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Masculinidades

RESENHAS REVIEWS

Romeu Gomes

Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz

Masculinidades. Mônica Raisa Schpun (org.). Boitempo Editorial-Edunisc, São Paulo-Santa Cruz do Sul, 2004, 238 p.

A começar pelo seu título, o livro – composto por nove partes – trata da pluralidade do masculino. Nesse olhar plural, revela-se a crítica incessante à masculinidade reduzida a uma categoria que torna os homens homogêneos. Em oposição a essa redução, os autores buscam analisar os processos dinâmicos de construção e reconstrução do masculino. Para isso, rompem fronteiras, fazendo dialogar diferentes campos disciplinares (antropologia, história, psicanálise e sociologia), em busca de uma abordagem interdisciplinar, não só como produto da coletânea dos trabalhos como também no interior de cada texto.

Além das fronteiras disciplinares, também fronteiras geográficas são rompidas. As análises presentes na obra trilham territórios nacionais e internacionais. Nesse sentido, autores de universidades, regiões e tendências variadas são reunidos para tratarem da riqueza do ser masculino, a partir de realidades diferentes.

Na introdução, a organizadora da obra, Mônica Raisa Schpun, apresenta um pouco da história como surgiu o interesse de se produzir o debate sobre as masculinidades, bem como os propósitos do debate. Além disso, de forma sucinta, pontua os conteúdos de cada um dos capítulos. Ao longo de sua exposição, ela adverte acerca da complexidade das questões envolvidas em torno das masculinidades, demandando refinamento intelectual para a construção de categorias analíticas e explicativas sobre a temática.

Abordando a dimensão sexual de uma guerra, Véronique Nahoum-Gappe não só descreve os atos violentos cometidos contra mulheres da ex-Iugoslávia, pelo exército sérvio, como também situa os estupros em uma lógica de guerra. Nessa lógica, o estupro não só se constitui uma agressão moral e física contra a mulher, mas também produz um assassinato da identidade específica, transformando não só a mulher como toda a comunidade. Nesse sentido, a degola dos homens e a violação das mulheres se articulam de forma homóloga num conjunto de estratégias organizadas e voltadas para as populações vencidas, visando a sua destruição, tanto física quanto simbólica.

Em Masculinidade e violência, Lia Zanotta Machado, baseando-se em entrevistas com presos que cumprem pena por estupro, revela sentidos do ser masculino: masculino-sujeito opondo-se ao feminino-objeto; masculinidade associada ao controle dos desejos e das vontades, e masculinidade como encenação do controle e do poder. No estupro, a penetração peniana se acirra como o único instrumento de se apoderar sexualmente. Nele, o verdadeiro macho – aquele que não se segura e cede à fraqueza – entende o "não" de sua vítima como uma forma de sedução.

Luisa Leonini, em seu estudo sobre os clientes das prostitutas, aponta para o fato de ser a prática do sexo pago um fenômeno ainda amplamente praticado e difundido. No cenário de mudanças nas relações de gênero, surgidas a partir da década de 1960, no Ocidente, pagar uma prostituta pode, dentre outros, associar-se aos seguintes significados: a obtenção do gozo total, sem que haja exigências de atenção e de satisfação do outro; uma experiência de uma relação pela qual o ser masculino passa para se iniciar sexualmente; uma possibilidade de se ter acesso aos desejos mais perversos e reprimidos; a reafirmação de uma relação de poder. Para além desses e de outros significados, a autora, com base nas mulheres imigrantes que praticam a prostituição em Milão (Itália), traz um outro olhar sobre a sua temática: ver a prática do sexo pago numa perspectiva de prostituição cultural no qual as pessoas pertencentes a países "economicamente em desvantagem" se mostram dispostas a aceitar qualquer tipo de trabalho que seja capaz de lhes trazer compensações, através da satisfação dos desejos das pessoas que pertencem aos países "mais desenvolvidos" (pp. 103-104).

Ao abordar os homens e o masculino numa perspectiva de relações sociais de sexo, Daniel Welzer-Lang se centra na crítica ao duplo paradigma naturalista que orienta a construção das masculinidades: a superioridade masculina em relação às mulheres, e a produção da norma política andro-heterocentrada e homófoba que define o "homem de verdade". Esse duplo modelo, além de operar nas relações intergêneros, também atravessa as relações hierárquicas entre homens.

Em trilhas urbanas e armadilhas humanas, Durval Muniz de Albuquerque Jr. e Rodrigo Ceballos abordam a construção de territórios de prazer e de dor na vivência da homossexualidade masculina no Nordeste do Brasil, nos anos 70 e 80. A análise, dentre outras conclusões, assinala que as hierarquias ocorridas na prática homossexual atravessam não somente as diferenças de classes e condição social, mas também as de faixa etária e de expressão e vivência da homossexualidade (p. 143).

Susan Clayton, em o hábito faz o marido, apresenta um exemplo de uma female husband – o caso de travestismo ocorrido na Inglaterra do século 19. Com a autópsia do operário James Allen, morto num acidente, que revela se tratar do corpo de uma mulher, a opinião de médicos, da imprensa e da população local se mobiliza. Segundo a autora, o desejo de Allen mudar o seu destino transformando-se em uma female husband, através da dissimulação, confirma a pobreza das escolhas abertas aos seres humanos no campo da expressão genérica, onde reina uma rígida dicotomia oficial (p. 172). Assim, no limite entre o binarismo social (masculino/feminino) e o poliformismo inato dos seres humanos em termos de multiplicidades identitárias e de preferências sexuais, uma mulher recusa ser tolhida pelas convenções.

Nas narrativas sobre fundadores de grupos empresariais brasileiros, Adriana Piscitelli mostra a coexistência, não isenta de tensões e ambigüidade, de um amplo leque de diferenciações e, ao mesmo tempo, apresenta denominadores comuns de feminilidade e masculinidade (p. 201). Nos relatos de empresários e de suas famílias, fica patente que, nas relações lineares entre termos de pares opostos, as características definidas como masculino ou como feminino não recobrem inteiramente masculinidades, feminilidades, homens, mulheres nem as modalidades da pessoa por eles e elas acionados (p. 201).

Ao abordar os meandros de um itinerário emblemático (de canhão a cartola), Mônica Raisa Schpun focaliza a pesquisa biográfica de Carlota Pereira de Queiroz, primeira deputada federal brasileira, cujo exercício político ocorreu no período de 1933-1937. Em torno dessa mulher e médica, preconceitos lhes foram projetados por ocupar um espaço tido como do masculino. Assim, de canhão (por ser vista como uma mulher feia, sem os atributos tidos como femininos) passa a ser considerada cartola (trocadilho com o seu nome) – adereço que combina poder e masculinidade. Carlota, simboliza, sobretudo uma subversão no processo de se considerar espaços sociais como femininos ou masculinos, bem como no fazer coincidir características tidas como masculinas com os homens e as femininas com as mulheres.

Esse amplo debate sobre as masculinidades pode trazer muitos benefícios para o campo da Saúde Coletiva. Dentre eles, destaca-se a perspectiva plural que esse campo pode adotar ao lidar com as relações intergêneros, em geral, e com a singularidade do ser masculino. Tal abordagem pode aumentar o foco de compreensão tanto da intervenção na doença quanto da promoção da saúde. Através da pluralidade, de um lado, pode-se descobrir que comprometimentos da saúde podem ser produzidos a partir do processo de fazer coincidir as características tidas como masculina no ser homem e as tidas femininas no ser mulher. Por outro lado, tal perspectiva instiga a se pensar uma vida mais saudável de homens e mulheres, construída a partir da superação de modelos excludentes, monolíticos e redutores que regem o masculino e o feminino.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2005
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