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Dialogando sobre algumas questões de gênero e prevenção à violência e promoção da saúde na adolescência

Dialogue on some gender issues and violence prevention and health promotion in adolescence

Queiti Batista Moreira Oliveira

Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ). queitioliveira@ig.com.br

O artigo de Cássia Barbosa Reis e Nayana Rosa dos Santos intitulado "Relações desiguais de gênero no discurso de adolescentes"1 traz reflexões sobre uma temática que considero de suma importância para o campo de discussões sobre prevenção à violência e promoção à saúde, mais especificamente, saúde dos adolescentes. A discussão empreendida pelas autoras organiza-se em torno de dois eixos temáticos centrais nos debates - e embates - sobre questões de gênero, tanto no campo teórico, quanto no da militância, quais sejam: a desigualdade e a hierarquia presente nas relações de gênero e a orientação homoafetiva. Vários elementos trazidos pelas autoras poderiam ser tema de debate, todavia, atenho-me a dois deles.

Começando pelo primeiro eixo, gostaria de complementar a discussão das autoras destacando alguns elementos para pensarmos estratégias de enfrentamento à violência de gênero, mais especificamente, à violência entre parceiros íntimos. As autoras destacam o papel da escola, além da família, no que tange à orientação e à informação dos adolescentes sobre questões acerca do exercício da sexualidade, mas também alertam para o quanto o espaço escolar pode contribuir para a produção de desigualdade e para a hierarquia entre os gêneros. Nesse sentido, gostaria de acrescentar que a escola, como instituição social, é também atravessada pelas mesmas questões culturais e históricas que constituem a sociedade brasileira, e muitas vezes, reproduz de forma naturalizada a desigualdade e a hierarquia entre homens e mulheres, atualizando algo presente em nossas terras desde os tempos coloniais. Nesse ponto, especialmente, gostaria de indagar o que as autoras estariam chamando de "sociedade antiga", pois somente em um momento do texto mencionam expressamente nossa herança judaico-cristã trazida pelos colonizadores europeus. Nesse cenário, seria importante destacar que aqueles responsáveis pela orientação e informação dos alunos também carregam seus valores e crenças - geralmente os professores - também devem passar por processos de reflexão, informação, orientação e acolhimento, para que possam oferecê-los aos alunos e assim, estabelecer uma parceria mais efetiva com as famílias na tarefa de educar e formar crianças e adolescentes para relações mais igualitárias entre os gêneros.

Como forma de contribuir para o tema em pauta, trago alguns dados de uma pesquisa realizada pelo Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (CLAVES), entre 2007 e 2009, recentemente publicada2. A questão do apoio recebido e da busca por ajuda em situações de violência no namoro foi um dos temas abordados na pesquisa referida. Independentemente de estrato social e de região do país, seguindo a literatura, os adolescentes raramente procuraram ajuda em situações de violência no namoro, apenas 3,5% dos jovens afirmaram já ter solicitado apoio profissional por causa de algum tipo de violência causada por pessoas com quem namorou ou "ficou". Em contrapartida, houve elevada prevalência da violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes: durante situações de conflito com um parceiro íntimo, 86,9% já foram vítimas e 86,8% já praticaram algum tipo de agressão, seja ela física, sexual ou psicológica. Além dos efeitos imediatos, essas violências impactam em longo prazo a vida dos adolescentes, sendo considerada pela literatura como um forte preditor da violência entre casais na vida adulta. Isto torna o tema central nas discussões e proposições de estratégias de prevenção da violência de gênero e entre parceiros íntimos, já que os adolescentes envolvidos em violência afetivo-sexual, como vítimas ou perpetradores, frequentemente não procuram ajuda profissional.

A escola foi apontada pelos adolescentes participantes do mencionado estudo como espaço potencialmente importante para abordar o tema do namoro e da violência nos relacionamentos amorosos. No entanto, relataram que nem sempre se sentem acolhidos pelos professores quando vivenciam situações de violência em seus relacionamentos afetivo-sexuais. Embora considerada como espaço privilegiado de apoio e escuta, consideraram que a escola explora pouco o olhar para os aspectos da vida emocional dos jovens. Sua importância como espaço privilegiado para ações de prevenção da violência no namoro e promoção da saúde reside, segundo os adolescentes, no fato de ser na escola que os jovens muitas vezes conhecem seus primeiros parceiros íntimos, sejam namorados ou outros tipos de parcerias, ressaltando-a, portanto, como espaço de socialização e de aprendizado amoroso.

Fechando este tópico, concluo que a alta prevalência e a baixa procura por ajuda colocam em cena a necessidade de apoio e atenção que os adolescentes demandam. Os dados da pesquisa, como um todo, sugeriram certa banalização e naturalização da violência no namoro, sobretudo quando os participantes do estudo justificaram-na como efeito do ciúme, considerado muitas vezes como forma de cuidado com quem se ama. Muitas situações relatadas pelos adolescentes revelaram formas tradicionais de hierarquia e desigualdade entre gênero, sobretudo na forma de controle da sexualidade feminina e da incitação à virilidade masculina. Por outro lado, em diversos momentos, fomos abordadas pelos adolescentes participantes do estudo para relatarem que a mera atividade reflexiva exigida para o preenchimento do questionário proposto e para a participação dos grupos focais havia proporcionado uma oportunidade de pensarem sobre o tema, tão presente em suas vidas, mas tão pouco analisado e questionado por eles mesmos. Ficou muito claro para mim, como pesquisadora interessada na questão da prevenção da violência e da promoção da saúde, o quão potente são os espaços de fala e reflexão. Quando oferecidos através de uma escuta aberta, com a proposta de uma reflexão conjunta, os adolescentes ocuparam tais espaços de forma presente e ativa. Concordo com as autoras no que diz respeito à demanda permanente por informação e orientação, mas creio que devamos repensar nossas estratégias de fazê-lo entendendo que estamos diante de pessoas que são sujeitos de sua própria história, e que como nós, pesquisadores, professores, profissionais de saúde, estão tão expostos aos riscos de reprodução de certas formas tradicionais, mas também, e talvez um pouco a mais do que nós, bastante dispostos à criação de novas formas de ser e estar neste mundo.

A segunda questão que gostaria de abordar, concentra-se no que chamei de segundo eixo temático que, dentre outras questões, trata dos avanços que vêm ocorrendo no que concerne à garantia de direitos de pessoas cuja orientação sexual - e não opção -, é homoafetiva. Faço essa ressalva terminológica antes de iniciar a discussão propriamente dita por acreditar que só podemos falar em escolha, ou opção sexual a partir um registro teórico baseado no conceito de inconsciente, o que não é o caso deste artigo de debate, como também não é do artigo debatido. Conscientemente ninguém escolhe ser homo ou heterossexual, e francamente tenho minhas dúvidas sobre essa polaridade de escolhas. Feito isso, gostaria de refletir sobre a afirmação das autoras de que a "única certeza que se tem, é que os homossexuais possuem uma força muito grande na sociedade, tanto que hoje eles não precisam se adequar às antigas leis e viver com medo e insegurança (...)", exemplificada com o caso do Canadá, primeiro país a realizar casamentos entre pessoas do mesmo sexo no mundo.

Creio que nesta seara, a única afirmação possível é a de que houve grandes avanços. Um exemplo referente ao nosso país foi o recente reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro em 05 de maio de 2011, o que representa um importante passo na direção da garantia de direitos dessa parcela da população e na diminuição da desigualdade. Acredito que essa igualdade inicialmente alocada na esfera jurídica é um potente instrumento de afirmação da vida, e que nos permite apostar em sua contribuição, paulatina, para a diminuição da desigualdade no plano das relações interpessoais. Considero um significativo marco na história brasileira na medida em que foi uma decisão claramente fundamentada na função social do direito, estendendo a proteção legal a todos e não somente a uma suposta maioria. Nada ilustra melhor essa minha afirmação do que as palavras da ministra Cármen Lúcia, que em seu voto declarou que "o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito"3. Outros acontecimentos importantes nos âmbitos não-governamentais e governamentais rumo a uma sociedade brasileira mais igualitária vêm se espraiando pelo país. Como exemplo de iniciativas governamentais, mais recentes do que as não-governamentais, temos o lançamento, no Estado do Rio de Janeiro, da Campanha Estatal "Rio Sem Homofobia", que utiliza diferentes mídias para combater a discriminação e o preconceito contra LGBT, através de encenações de situações cotidianas, positivas e afirmativas4. Podemos citar também a criação do Disque Direitos Humanos - LGBT, pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, lançado em Brasília em 23 de dezembro de 20105.

No entanto, o Brasil nos dá exemplos igualmente atuais de que medo e insegurança, infelizmente, não estão fora do cotidiano daqueles que fogem à heteronormatividade, mesmo em um contexto em que emergem tantas iniciativas afirmativas.

Também em maio deste ano, mesmo mês em que o STF garantia reconhecimento à união estável entre pessoas do mesmo sexo, a votação do projeto de lei complementar 122/06, que criminaliza os atos de homofobia, foi impedida por um forte movimento da chamada "bancada evangélica" do Senado de nosso estado laico que culminou na retirada do projeto da pauta, sem previsão de retorno. Assistimos nas mídias televisivas, impressas e eletrônicas a discursos inflamados clamando por uma suposta moral de uma suposta maioria do povo brasileiro, profundamente marcados pelo preconceito, pela homofobia, e em alguns casos, pelo declarado ódio aos gays. Também amplamente divulgadas por diferentes mídias, foram as imagens da câmera de rua na Avenida Paulista (cidade de São Paulo) da agressão a um jovem gay com uma lâmpada fluorescente no dia 14 de novembro de 2010, por quatro adolescentes e um rapaz de 19 anos. Mais grave ainda são os dados divulgados pelo Grupo Gay da Bahia, do Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010, em que 260 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil foram registrados no ano passado, 62 a mais do que em 2009 (198 mortes), representando um aumento de 113% nos últimos cinco anos (122 em 2007). Segundo esse relatório, o Brasil alcançou a vergonhosa posição de campeão mundial de assassinatos de homossexuais, sendo um país onde o risco de um homossexual ser morto é 785% maior que nos Estados Unidos6.

Ao trazer o lado infeliz desta história não estou, em absoluto, sendo pessimista, senão, creio que não estaria aqui a empreender este debate. E justamente por acreditar e apostar que as mudanças que aí estão a se delinear na sociedade brasileira vêm para afirmar a vida, a diferença e a existência do outro - seja lá como essa se apresente no mundo -, é que não posso deixar de mencionar as forças mortificantes que se fazem presentes nesse jogo de forças instituinte e instituídas.

Todo o avanço de que falamos até então configurou-se nas estratégias diversas de enfrentamento à homofobia de diferentes movimentos, sobretudo dos grupos organizados, compostos por pessoas homoafetivas e não-homoafetivas. Coloco desta forma para afirmar que "a força" não está "em poder dos homossexuais" em si, mas na movimentação realizada em diversos momentos históricos, sob múltiplas configurações, em uma intensa ação micropolítica que hoje permite que seja possível até suas parcerias com governos, e a visibilidade da temática no âmbito macropolítico. Sendo a saúde pública um campo interdisciplinar, creio que as contribuições teóricas do filósofo Michel Foucault sobre o poder são pertinentes a esta reflexão. O constructo teórico desse pensador francês convergiu com as proposições teóricas de Karl Marx ao entender que a reflexão sobre as práticas sociais deveria partir da análise das condições nas quais foram tais práticas foram produzidas. Entretanto, não só de suas condições materiais, mas também das relações de poder e saber e dos modos de subjetivação das quais elas emergiram no campo das relações sociais.

Diferente de uma visão tradicional nas Ciências Sociais, para Foucault, o poder configura-se como relações de forças, não estando contido em uma forma, e nem mesmo emanando de tal forma, como por exemplo, a forma "Estado", e nem de algum grupo específico, como os homossexuais, ou a "bancada evangélica". Para esse autor, o poder, não é possuído a priori, ele é sempre exercido, e passa por todas as forças em relação no campo social, incluindo dominantes e dominados, nunca está no singular e dirige-se sempre a outra força: é uma ação sobre outra ação. Não é essencialmente ou necessariamente repressivo posto que incita, suscita e produz. E é nesse permanente jogo em que uma multiplicidade de forças coexistem em luta no campo social, é que determinadas formas se tornam hegemônicas, instituídas, modelares, em detrimento de outras. Para isso é importante estar atento às raridades, às formas inusitadas que se constroem no tecido histórico para então perceber que outras formas são possíveis a partir do momento em que se assuma a coexistência de uma multiplicidade de práticas7. Creio que o papel fundamental desses movimentos de garantia de direitos foi o de justamente tornar visível aquilo que se julgava inexistente, ou que se escolhia manter calado. O modelo da heteronormatividade, embora percebido como a-histórico e natural, é, no entanto, uma forma precária, pois não é fixo ou eterno, e depende das relações de força e das mutações destas para ser construído. Se podemos afirmar que houve avanços, não podemos contudo, descansar sobre os louros desta ou daquela vitória, pois há ainda muito o que se caminhar nas estratégias de enfrentamento à homofobia, um tipo de violência que humilha, que subjuga e que muitas vezes, ao menos no caso do Brasil -, ainda mata, e muito.

Concluindo esta breve reflexão, enfatizo que o processo de elaboração de estratégias de prevenção à violência e de promoção da saúde na adolescência deve estar atento não só à identificação precoce do problema, mas também à sensibilização desses sujeitos e à disposição para o diálogo com os mesmos. A discussão sobre os temas apresentados neste debate, norteada por uma escuta aberta ao que os próprios adolescentes eles têm a nos dizer, é importante ferramenta na construção de modos de ser e estar no mundo, mais igualitários, respeitosos e tolerantes.

Referências

1. Reis CB, Santos NS. Relações Desiguais de Gênero no discurso de adolescentes. Cien Saude Colet. No prelo 2011.

2. Minayo CMS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e Violência: Um paradoxo das relações de namoro e do ficar entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2011.

3. Ação Direta De Inconstitucionalidade N. 4277. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental N. 132. Supremo Tribunal Federal. Voto da Senhora Ministra Cármen Lúcia. [acessado 2011 mai 22]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277cl.pdf

4. Estado lança campanha Rio sem Homofobia. Subsecretaria de Comunicação Social do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 16/maio/2011. [acessado 2011 mai 22]. Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=460586

5. Disque Direitos Humanos lança hoje (23) novos módulos e terá atendimento 24 horas. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Notícias. [acessado 2011 jun 01]. Disponível em: http://www.direitoshumanos.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2011/01/23-dez-2010-disque-direitos-humanos-lanca-hoje-23-novos-modulos-e-tera-atendimento-24-horas/?searchterm=disquedenúncialgbt

6. Epidemia do ódio. 260 homossexuais foram assassinados no Brasil em 2010. Grupo Gay da Bahia. [acessado 2011 mai 22]. Disponível em: http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%20completo.html

7. Foucault M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal; 1999.

As desigualdades de gênero frente à sexualidade

The inequalities of gender in terms of sexuality

Romeu Gomes

Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz. romeu@iff.fiocruz.br

O debate em questão traz uma valiosa contribuição ao chamar a atenção para a necessidade das instâncias da educação e da saúde investirem mais no trato das questões da sexualidade junto a adolescentes. Esses investimentos devem não só se voltar para espaços específicos de atuação, como escolas e serviços de saúde, mas também serem traduzidos em ações sociais mais amplas, uma vez que a sexualidade humana é uma construção social, que envolve uma articulação entre atividades mentais e corporais. Essa construção ocorre tanto a partir de uma aprendizagem social para que as pessoas saibam como, quando e com quem agir sexualmente, quanto por meio da atribuição de sentidos às condutas sexuais1.

No desenvolvimento da sexualidade, muitas vezes, podem ocorrer relações desiguais entre homens e mulheres no que se refere a status e papéis sexuais. Essas desigualdades podem ser explicadas a partir de modelos culturais de gênero. Dentre esses modelos, hegemonicamente destaca-se aquele que considera o masculino como superior ao feminino, podendo resultar na dominação de homens sobre as mulheres, vistas a partir de uma lógica externa a elas, que podem contribuir para a perpetuação do poder dos homens2,3. Reflexos dessas ideias são percebidos nas falas dos adolescentes focalizadas pelo artigo-debate.

Essa discussão acerca das assimetrias entre gêneros relacionadas a papéis sexuais é fundamental para se lidar com os adolescentes, que vivenciam momentos de significativas mudanças. Como observam os autores do artigo, esses sujeitos passam por uma fase de vida onde ocorrem importantes mudanças, com repercussões na construção das identidades pessoais e sociais.

Mas não é essa a principal contribuição deste artigo. Vejo como mais importante os questionamentos suscitados pela discussão nele apresentada. São questões que necessariamente não têm respostas e que podem apontar mais polêmicas do que consensos. Como acredito que na ciência, às vezes, as perguntas são mais importantes do que as respostas, faço algumas indagações a seguir.

O primeiro questionamento - de cunho metodológico - refere-se ao fato de ser ou não possível falar de um discurso de um sujeito coletivo acerca das desigualdades de gênero. Como epistemologicamente o resumo de textos individuais reunidos pode ser denominado de "coletivo"? Será que a reunião dos adolescentes entrevistados pode ser considerada como um sujeito coletivo? Essas questões não invalidam a possibilidade de falas de sujeitos, que se inter-relacionam, se constituírem numa via de acesso a modelos culturais que as estruturam. Nesse sentido, as falas apresentadas na discussão podem possibilitar uma interpretação de lógicas coletivas culturalmente modeladas, desde que se consiga empreender um desvelamento do que está subjacente a essas falas. Caminhando nessa direção, é possível partilhar da ideia dos autores de que os depoimentos revelam assimetrias de gênero nos papéis sexuais atribuídos a homens e mulheres por parte dos entrevistados. Acredito que essas desigualdades seriam ainda mais contundentes se houvesse uma separação inicial entre os depoimentos de rapazes e moças para depois se processar uma comparação. Isso poderia dar maior visibilidade tanto às homologias quanto às especificidades nas relações de gênero.

Questiono ainda: Será que essa a desigualdade ocorre apenas intergêneros? Ao se prestar atenção nos fragmentos das falas apresentadas pelos autores, observo que isso também se processa nas relações intragêneros. Há trechos que - além de tributar mais poder a homens do que a mulheres - atestam as desigualdades entre homens. Aqueles que se aproximam mais da hetoronormatividade seriam qualificados como homens "normais", enquanto os que fogem da exclusividade dessa norma seriam vistos como "menos normais".

Como derivação desse questionamento, pergunto: estaria a sociedade atual mais aberta e tolerante frente à homossexualidade? Levando-se em conta outras épocas e focalizando alguns segmentos sociais, pode-se partilhar da conclusão do artigo quanto aos avanços no campo dos direitos das diversidades sexuais. Entretanto, a hegemonia heterossexual pode ser atestada pela pesquisa4 publicada em 2007, realizada em 102 municípios brasileiros, com amostra probabilística de 2.363 participantes, que verificou 89% dos entrevistados contra a homossexualidade masculina e 88% contra a feminina. Essas opiniões refletem uma hetoronormatividade estruturada a partir de habitus que fazem pensar a sexualidade como única e exclusiva de ordem heterossexual2, implicando, de um lado, num despreparo para se lidar com a pluralidade da orientação sexual e, de outro, em dificuldades para que as sexualidades não heterossexuais sejam reveladas.

Junto a isso, observo que a heterossexualidade tanto serve de referência para os discursos homofóbicos, como para as reivindicações daqueles que almejam formar comunidades homossexuais em separado3. O rompimento da lógica binária (hetero/homo) que hierarquiza e promove excludência entre as sexualidades ainda está longe de ocorrer em termos sociais mais amplos. Ainda não vejo na realidade brasileira em geral testemunho pleno da concepção defendida por alguns autores5-9, que advoga a coexistência de sexualidades (sejam elas masculinas ou femininas), assegurando as diferenças de orientações ou preferências sexuais.

Frente à importância tributada ao papel das informações no artigo-debate, indago: as informações em si asseguram mudanças de conduta sexuais? O problema está no déficit de informações ou na qualidade delas? Inicialmente, considero que as informações devem se ancorar numa perspectiva dialógica, em que o sujeito-alvo desse processo tenha o seu saber reconhecido e não deslegitimado por ser diferenciado do saber técnico-científico10. Observo ainda que as informações acerca da sexualidade, ao serem inseridas num processo de comunicação mais amplo, terão como concorrentes instruções culturais coerentes ou não com o que se quer informar3. Tais instruções não estão presentes apenas em textos literários. Elas se inserem tanto nas formas organizativas das instituições sociais como no cotidiano destas11. Nesse sentido, não basta informar. É importante que se dialogue os discursos com os cotidianos e, aliado a isso, faz-se necessário promover espaços de convivência entre os profissionais de saúde e os sujeitos-alvos das informações para que haja reflexões sobre vivências3.

Esses questionamentos atestam a possibilidade de o artigo-debate ser um importante ponto de partida para discussões futuras no sentido de se buscar ações exitosas na promoção de um desenvolvimento sexual que seja traduzido tanto em rea­lizações quanto no respeito aos direitos sexuais.

Referências

1. Bozon M. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 2004.

2. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1999.

3. Gomes R. Sexualidade masculina, gênero e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. (Coleção Criança, mulher e saúde).

4. Almeida AC. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record; 2007.

5. Butler J. Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: Louro GL, organizador. O corpo educado: pedagogias e sexualidades. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 2000. p. 151-172.

6. Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003.

7. Butler J. Cuerpos que importan: sobre os limites materiales y discusivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós; 2005.

8. Louro GL. Pedagogia da sexualidade. In: Louro GL, organizador. O Corpo Educado: Pedagogias e Sexualidades. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 2000. p. 07-34

9. Louro GL. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas 2001; 9(2): 541-553.

10. Alves VS. Um modelo de educação em saúde para o Programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface - Comunicação, Saúde e Educação 2005; 9(16):39-52.

11. Gagnon JH. Uma Interpretação do Desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2006.

A construção das representações de gênero e da homossexualidade na escola, na família e na mídia

The construction of representations of gender and homosexuality at school, in the family and in the media

Kathie Njaine

Universidade Federal de Santa Catarina. kathienjaine@ig.com.br

Pretendo neste pequeno texto realizar algumas reflexões sobre as representações sociais de gênero e de homossexualidade na escola, na família e na mídia a partir do artigo Relações desiguais de gênero no discurso dos adolescentes. Muito se tem discutido sobre o papel da escola e da família na formação de crianças e adolescentes e o quanto estas instituições seculares são referências para a construção da identidade de meninos e meninas. O artigo em questão traz à luz um aspecto importante sobre o quanto os adolescentes reproduzem padrões de masculinidade e feminilidade a partir dessas referências. Sendo as questões sexuais envoltas em muitos tabus sociais, devemos levar em consideração o contexto histórico e cultural que permeia a produção, a circulação e o consumo dos discursos sobre o sexo, a sexualidade e o gênero. Neste sentido, podemos pensar que as respostas dos adolescentes às questões sobre DST não só podem revelar níveis de conhecimento sobre essas doenças, como também atribuir sentidos a atitudes e comportamentos sexuais em contextos específicos.

A despeito dos inúmeros avanços dos movimentos feministas e dos homossexuais pelos direitos à liberdade sexual e de pensamento, ainda nos deparamos com muitos preconceitos sociais que se materializam em barreiras simbólicas ou concretas à expressão e à vivência plena da nossa sexualidade. E é neste campo que se torna importante abordar as representações sociais que orientam as ações dos sujeitos em suas relações com o mundo e com os outros1.

A construção das representações, segundo Moscovici2 e Jodelet1, passa fundamentalmente pelos processos de objetivação e ancoragem. Se pensarmos no processo de objetivação como a maneira pelas quais noções abstratas como ser homem ou ser mulher se materializam e se manifestam em uma realidade tida como natural, podemos inferir que os padrões de masculinidade e feminilidade da sociedade estão presentes também nos discursos dos adolescentes. E qualquer situação desconhecida desses padrões, como o homossexualismo, ancora-se nessas representações e pode induzir às condutas e às práticas sociais baseadas em valores tradicionais3.

Desse modo, as representações sociais de pais, de professores e da mídia sobre o que é ser homem e o que é ser mulher como forma de compreender e explicar a realidade, torna-se um conhecimento comum construído socialmente e ensinado aos jovens. Entretanto, não faz parte desse conhecimento baseado no senso comum, a reflexão sobre as relações desiguais baseadas no gênero, levando a estagnar um pensamento sobre diferenças e hierarquias sexuais fundamentadas no biológico. Da mesma forma, cristaliza-se a heterossexualidade como um padrão hegemônico de viver a sexualidade.

No âmbito dos setores da educação e saúde, experiências bem sucedidas de educação sexual podem aprofundar a discussão entre os adolescentes, rompendo as barreiras dos preconceitos e contribuindo para uma interlocução maior com esse grupo etário, assim como com suas famílias. A mídia também tem contribuído para quebrar muitos preconceitos sociais e desnaturalizar os papéis sexuais tão enraizados no imaginário coletivo. Por isso é necessário olharmos para crianças, adolescentes e jovens com respeito e acreditar que também descubram o respeito, o diálogo e a liberdade com ética, entendendo a pluralidade sexual, cultural, por exemplo, como formas de viver a vida.

Referências

1. Jodelet D. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: Jodelet D, organizador. As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ; 2001. p. 17-44

2. Moscovici S. Pourquoi l'étude des représentations sociales en psychologie? Psychologie et Société 2001; 4:7-24.

3. Spink MJ. O conceito de representação social na abordagem psicossocial. Cad Saude Publica 1993; 9(3):300-308.

OS AUTORES RESPONDEM THE AUTHORS REPLY

Relações de gênero na adolescência: discussões necessárias para a promoção da saúde sexual e reprodutiva

Ainda que as questões relacionadas à categoria gênero tenham sido amplamente discutidas por diversos seguimentos acadêmicos, o tema é sempre instigante e tem desvelado novos horizontes de investigações, evidenciados pelas constantes mudanças da sociedade. Este debate mostra a necessidade de constantes pesquisas nos diversos aspectos discutidos pelos autores, aos quais agradecemos pelas valiosas contribuições.

Discussões sobre violência, como bem colocado por Queiti Oliveira, principalmente aquelas relacionadas às relações entre parceiros, são facilmente identificadas nos discursos dos adolescentes e em suas condutas na vida afetivo-sexual. Entendemos que, essencialmente na adolescência, a formação do conceito de gênero e as consequências da acentuada influência do meio escolar e midiático são precursores de condutas e comportamentos que persistem durante a vida adulta. Assim, a discussão feita por Kathie Njaine foca, nos espaços públicos e privados, a construção das representações dos adolescentes sobre gênero dentro dos padrões de masculinidade e feminilidade, o que reflete obviamente, na prática do sexo e da sexualidade, com todas as consequências a eles relacionadas.

Em relação à influência da mídia na questão das representações sociais, concordamos que ela tem quebrado muitas barreiras relacionadas aos papéis sexuais, ao mesmo tempo em que tem influenciado os adolescentes na construção de sua identidade sexual, mas, até que ponto esta influência é positiva, já que muitas situações explanadas pela mídia se tornam alvo de críticas e polemicas? Enfim, atravessamos um campo minado quando falamos de mídia, cujas mensagens precisam ser analisadas profundamente para que possam ser utilizadas nas ações de promoção da saúde sexual e reprodutiva e na prevenção de doenças, bem como na construção de relacionamentos pautados na equidade de gênero.

Os eixos discutidos por Queiti Oliveira evidenciam questões que precisam ser amplamente trabalhados nas famílias, nas escolas e em todos os espaços onde se possam alcançar efetivamente os adolescentes. Vale ressaltar que a discussão sobre a influência do meio deve sempre levar em consideração a dicotomia presente no comportamento humano, principalmente quando estão envolvidos preceitos morais e religiosos. Concordamos plenamente com a autora no sentido de que não podemos educar os adolescentes se antes não fizermos uma profunda reflexão sobre nossa própria sexualidade e os (pré) conceitos de gênero implícitos em nosso cotidiano. Acreditamos, assim, que a falta de acolhimento que os adolescentes relatam na família e na escola têm como causa básica a dificuldade dos adultos em discutir a própria sexualidade. Isso também fica claro quando o assunto é a homossexualidade, ainda que, com as mudanças legais ora em curso, grande enfoque tem sido dada pela mídia aos direitos dos casais homo afetivos.

Romeu Gomes enfatiza a essência do artigo na concepção do adolescente frente aos papéis sexuais e à influência destes na construção de sua identidade sexual, sendo que este processo inicia-se a partir de conceitos impostos pela sociedade, cultura e mídia. O autor ainda faz menção sobre a abertura e tolerância da sociedade atual frente à homossexualidade, contribuindo para a discussão do artigo.

Consideramos como destaque o questionamento de cunho metodológico feito pelo autor, enfatizamos que o objetivo inicial de nosso artigo foi demonstrar o conhecimento dos adolescentes sobre assuntos envolvendo a sexualidade. As diferenças de gênero foram destacadas dos discursos individuais e foi possível construir o discurso do sujeito coletivo, já que essas diferenças foram identificadas como uma ancoragem fortemente marcada no grupo pesquisado. Quanto a dar uma maior visibilidade nas especificidades das diferenciações de gênero é pertinente destacar que as opiniões dos adolescentes estão em constante mudança, e não há como estabelecer padrões fixos de comportamento nessa faixa etária, pois não é apenas o sexo masculino ou feminino que vai definir a identidade sexual e sim as influências do meio como citado acima.

Concordamos ainda que as informações disponíveis carecem de qualidade, e que necessitamos criar ambientes propícios às ações efetivas para a in(formação) dos adolescentes, utilizando metodologias ativas no processo de reflexão conjunta.

Agradecemos a Revista Ciência e Saúde Coletiva pela oportunidade de ampliar a discussão dos aspectos levantados em nosso artigo, bem como convidamos os pesquisadores a contribuir com o tema para que possamos almejar a equidade nas relações de gênero em nossa sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2012
  • Data do Fascículo
    Out 2011
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