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Estereótipos de gênero no cuidado psicossocial das usuárias de cocaína e crack

Estereotipos de género en el cuidado psicosocial de consumidoras de cocaína y crack

Resumos

A presente pesquisa analisou as concepções dos profissionais de saúde sobre as mulheres usuárias de cocaína e crack em processo de cuidado psicossocial baseando-se na perspectiva de gênero. Para tal fim, foram entrevistados 17 profissionais de saúde e procedidas observações sistemáticas nos espaços de cuidado coletivo em um Centro de Atenção Psicossocial para álcool e drogas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil. A análise das entrevistas e diários de campo foi realizada por meio do método hermenêutico-dialético, que revelou três categorias: a fragilidade como atributo constitutivo da condição feminina; a dependência afetiva feminina relacionada com o uso de cocaína e crack; e os estereótipos de gênero no cuidado psicossocial. Os profissionais de saúde expressam a visão tradicional da mulher heterossexual, dócil e maternal, e reproduzem concepções estereotipadas ao considerar as usuárias de cocaína e crack como pessoas sensíveis, frágeis, dependentes afetivamente dos homens e mais envolvidas com o lar e a família. Esses profissionais carecem de uma compreensão mais elaborada sobre as questões de gênero no processo saúde/doença mental, a fim de possibilitar a superação do senso comum e da práxis de cuidado reducionista.

Palavras-chave:
Cocaína Crack; Usuários de Drogas; Gênero e Saúde; Saúde da Mulher


La presente investigación analizó las concepciones de los profesionales de salud sobre las mujeres consumidoras de cocaína y crack en proceso de terapia psicosocial, basándose en la perspectiva de género. Para tal fin, se entrevistaron a diecisiete profesionales de salud y se procedió a realizar observaciones sistemáticas en los espacios de cuidado colectivo en un Centro de Atención Psicosocial para el alcohol y drogas de la Región Metropolitana de Río de Janeiro, Brasil. El análisis de las entrevistas y diarios de campo se realizó mediante el método hermenéutico-dialéctico, que reveló tres categorías: fragilidad como atributo constitutivo de la condición femenina; la dependencia afectiva femenina, relacionada con el uso de cocaína y crack; y los estereotipos de género en el cuidado psicosocial. Los profesionales de salud expresan la visión tradicional de la mujer heterosexual, dócil y maternal, y reproducen concepciones estereotipadas, al considerar a las consumidoras de cocaína y crack como personas sensibles, frágiles, dependientes afectivamente de los hombres y más involucradas en el hogar y la familia. Estos profesionales carecen de una comprensión más sofisticada sobre cuestiones de género en el proceso salud/enfermedad mental, a fin de posibilitar la superación de creencias comunes y de la praxis de cuidados reduccionistas.

Palabras-clave:
Coicaína Crack; Consumidores de Drogas; Género y Salud; Salud de la Mujer


The study analyzed health professionals’ conceptions toward female users of crack and powder cocaine currently receiving psychosocial care, based on a gender perspective. Seventeen health professionals were interviewed, and systematic observations were made of the spaces for collective care in a Center for Psychosocial Care specializing in alcohol and drug addiction in Greater Metropolitan Rio de Janeiro, Brazil. Analysis of the interviews and field diaries using the hermeneutic-dialectic method revealed three categories: frailty as a constitutive attribute of women’s condition, the women’s emotional addiction to crack and powder cocaine use, and gender stereotypes during psychosocial care. The health professionals voiced a traditional view of the heterosexual, docile, and maternal woman and reproduced stereotypical concepts when addressing female crack and cocaine users as sensitive, frail individuals, emotionally dependent on men and more involved in the home and family. These professionals need a more refined understanding of gender issues in the mental health-disease process in order to allow overcoming preconceived notions and reductionist health care practices.

Keywords:
Cocaine Crack; Drug Users; Gender and Health; Women’s Health


Introdução

A problemática do consumo de drogas ilícitas tem impacto na saúde e na vida das pessoas usuárias destas substâncias. Estima-se que entre 162 a 324 milhões de pessoas, com idades variando de 15 a 64 anos, consumiram, pelo menos uma vez, alguma droga ilícita no mundo em 2012, o que representa de 3,5% a 7% da população mundial. Nas Américas, os dados brasileiros revelam o aumento dos indicadores do consumo e o país passou a ser o maior mercado de consumo de cocaína na América do Sul, além de se destacar como rota do tráfico, em virtude de sua posição geográfica estratégica para o trânsito da droga em direção aos maiores mercados consumidores, como a América do Norte e a Europa 11. United Nations Office on Drugs and Crime. World Drug Report 2015. New York: United Nations; 2015..

No II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas em 2012, a prevalência do uso de cocaína aspirada na população brasileira em geral foi calculada em 3,9%. Entre aqueles que consumiram essa substância pelo menos uma vez no último ano, a prevalência foi de 1,7%. As estimativas de cocaína fumada (crack) foram de 1,5% e 0,8% para os que consumiram pelo menos uma vez na vida e no último ano, respectivamente 22. Abdalla RR, Madruga CS, Ribeiro M, Pinsky I, Caetano R, Laranjeira R. Prevalence of cocaine use in Brazil: data from the II Brazilian national alcohol and drugs survey (BNADS). Addict Behav 2014; 39:297-301..

Os homens são os principais usuários de crack e/ou de outras drogas similares no Brasil, correspondendo a 78,7% do total dos usuários que estavam em cenas abertas de tráfico e consumo em 2012. Quanto às mulheres usuárias nesses cenários, uma pesquisa constatou que elas têm idade média de 29,6 anos, são predominantemente não brancas quanto à cor da pele, e possuem baixa escolaridade, chegando até o nível do Ensino Fundamental. O tempo médio que elas fazem uso dessas drogas é 77,07 meses, correspondendo a cerca de seis anos 33. Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnol ógica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz; 2014..

Destaca-se que os relatos de violência sexual em alguma vez na vida foram seis vezes mais prevalentes nas mulheres do que nos homens usuários dessas drogas, correspondendo a 46,7% e a 7,49%, respectivamente. Igualmente, a maioria (55,4%) delas informou que exercia trabalho sexual ou troca de sexo por dinheiro, e apenas 14,6% dos usuários do sexo masculino atuavam neste tipo de atividade. Portanto, as mulheres brasileiras dependentes de crack e/ou de outras drogas similares têm uma inserção social precária e enfrentam desigualdades de gênero que as expõem a riscos de saúde adicionais 33. Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnol ógica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz; 2014..

A compreensão das repercussões e consequências dessas desigualdades acerca do fenômeno da dependência de drogas pode ser restrita quando os estudos empregam apenas abordagens comparativas sobre o padrão de consumo entre os usuários do sexo feminino e masculino, o que limita o conhecimento sobre este fenômeno nas mulheres em particular 44. Organização Mundial da Saúde. Mulheres e saúde: evidências de hoje, agenda de amanhã. Brasília: Organização Mundial da Saúde; 2009.. Os preconceitos e discriminações que elas enfrentam na sociedade provocam iniquidades que são somadas aos problemas advindos do próprio consumo de drogas ilícitas sobre a vida e a saúde feminina 55. Bungay V, Johnson JL, Varcoe C, Boyd S. Women's health and use of crack cocaine in context: structural and "everyday" violence. Int J Drug Policy 2010; 21:321-9..

O gênero é um determinante social da saúde, indispensável para a compreensão do processo saúde/doença mental nos homens e nas mulheres 66. Luis MAV, Barros HMT, Macedo JQ, organizadoras. Mulheres, drogas e violência. Ribeirão Preto: Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2014.. Esse conceito alude às diferenças socialmente construídas dos papéis, normas, comportamentos, atividades e atributos que uma determinada sociedade considera como apropriados para os homens e as mulheres 77. Cruz VD, Oliveira MM, Pinho LB, Coimbra VCC, Kantorski LP, Oliveira JF. Sociodemographic conditions and patterns of crack use among women. Texto Contexto Enferm 2014; 23:1068-76.. Nas sociedades em que há o domínio da perspectiva patriarcal, essas diferenças causam iniquidades de gênero e afetam a saúde das mulheres 88. Zanello V, Costa e Silva R. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética 2012; 20:267-79..

Apesar do gênero ser categoria teórica ampla e complexa, o patriarcado expressa um ordenamento social, político, cultural e simbólico das relações de dominação que as mulheres estão submetidas pelo simples fato de serem mulheres 99. Scott JW. Os usos e abusos do gênero. Projeto História 2012; 45:327-51.. Tal ordenamento reproduz as iniquidades e violências que elas sofrem nas sociedades contemporâneas, como as dificuldades que enfrentam em relação à educação, à renda e ao emprego, além da carga de trabalho, violência, abuso sexual, entre outros decorrentes das desigualdades de gênero 44. Organização Mundial da Saúde. Mulheres e saúde: evidências de hoje, agenda de amanhã. Brasília: Organização Mundial da Saúde; 2009.,55. Bungay V, Johnson JL, Varcoe C, Boyd S. Women's health and use of crack cocaine in context: structural and "everyday" violence. Int J Drug Policy 2010; 21:321-9.,66. Luis MAV, Barros HMT, Macedo JQ, organizadoras. Mulheres, drogas e violência. Ribeirão Preto: Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2014.,77. Cruz VD, Oliveira MM, Pinho LB, Coimbra VCC, Kantorski LP, Oliveira JF. Sociodemographic conditions and patterns of crack use among women. Texto Contexto Enferm 2014; 23:1068-76.,88. Zanello V, Costa e Silva R. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética 2012; 20:267-79.,99. Scott JW. Os usos e abusos do gênero. Projeto História 2012; 45:327-51.,1010. Saffioti HIB. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu 2001; (16):115-36.. Portanto, os discursos sexistas e misóginos ainda vociferantes na atualidade refletem a influência dessa ordem social patriarcal.

Há uma visão dominante sobre as relações de gênero subjacentes ao fenômeno do uso de cocaína e crack que decorre da reprodução das relações de dominação masculina, o que leva à manutenção de estereótipos, preconceitos e estigmas sociais associados às mulheres. Portanto, as questões do gênero feminino precisam ter maior visibilidade no campo das dependências para que as políticas públicas sejam mais adequadas e sensíveis às necessidades da população feminina 1111. Carter J. Patriarchy and violence against women and girls. Lancet 2015; 385:e40-1.,1212. Hosseinpoor AR, Stewart WJ, Amin A, Araujo CI, Beard J, Boerma T, et al. Social determinants of self-reported health in women and men: understanding the role of gender in population health. PLoS One 2012; 7:e34799..

Para estudar as especificidades do cuidado das mulheres em situação de consumo de cocaína e crack, a presente pesquisa teve com ponto de partida a seguinte questão norteadora: como os profissionais de saúde veem as mulheres usuárias de cocaína e crack e as suas questões específicas no cuidado psicossocial?

Para responder a essa questão, a pesquisa objetivou analisar as concepções dos profissionais de saúde sobre as mulheres usuárias de cocaína e crack em processo de cuidado psicossocial com base na perspectiva de gênero.

Essa perspectiva está sustentada na corrente teórica do feminismo que analisa as relações de gênero decorrentes da construção social das diferenças sexuais, e que se coloca na defesa da equidade de gênero, apropriando-se da base conceitual das autoras Joan Scott 99. Scott JW. Os usos e abusos do gênero. Projeto História 2012; 45:327-51. e Heleieth Saffioti 1010. Saffioti HIB. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu 2001; (16):115-36., bem como dos estudos que abordaram as questões de gênero e do consumo de cocaína e crack na população feminina.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo que foi conduzido em um Centro de Atenção Psicossocial para álcool e drogas do tipo II (CAPSad II), situado em um município da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Os dados foram obtidos no período de maio a junho de 2014.

Esse município contava com uma população estimada de 873.921 residentes no ano de 2013. Dentre a rede de serviços de atenção psicossocial municipal, o CAPSad II é o centro de referência para o cuidado especializado em álcool e outras drogas e apresenta uma média mensal de 361 usuários em atendimento.

Como o banco de dados do serviço de saúde não caracterizava a clientela por tipo de droga utilizada, foi realizado um levantamento dos prontuários para complementar as informações sobre o cenário da pesquisa. Essa etapa foi preliminar à coleta de dados propriamente dita e possibilitou conhecer o quantitativo e perfil da clientela feminina que frequentava regularmente o CAPSad II no período em que a pesquisa foi conduzida na instituição.

Do total dos 152 prontuários de mulheres em cuidado psicossocial para álcool e outras drogas, 113 eram usuárias de cocaína e crack. Nesse grupo, quase a totalidade (90,3%) era de mulheres em idade adulta, e as adolescentes representavam 9,7%. A maioria (62,8%) residia com a família e possuía filhos menores de idade (55,7%).

As mulheres sem ocupação laboral predominaram (47,8%), seguidas daquelas que dependiam da família para o seu sustento pessoal (39%). As trabalhadoras informais e trabalhadoras formais representaram 15% e 9,7%, respectivamente. As mulheres que exerciam a prostituição como fonte de renda corresponderam a 12,4% do total da clientela feminina.

Os participantes da pesquisa foram os profissionais da equipe do cuidado psicossocial, que tinham pelo menos um ano de experiência profissional no cuidado às mulheres dependentes de crack e cocaína. Três membros da equipe foram excluídos: uma enfermeira por não atender diretamente à clientela feminina, um profissional de saúde que tinha menos de um ano de experiência no cuidado ao usuário de crack e cocaína, e outro que estava em licença médica durante o período da coleta de dados.

Portanto, 17 profissionais de saúde participaram da pesquisa, do total de vinte profissionais atuantes no serviço no período da coleta de dados. Esses participantes são representados por 14 profissionais de Nível Superior (quatro assistentes sociais, quatro médicos, quatro psicólogos, um terapeuta ocupacional e um farmacêutico) e três profissionais de Nível Fundamental (auxiliares de enfermagem).

A maior parte deles estava na faixa etária entre 50 e 61 anos de idade (41,2%), tem mais de vinte anos de exercício profissional (47%) e é majoritariamente do sexo feminino (76,5%). Em virtude dessa predominância, os participantes são designados pelo gênero feminino.

Quanto ao tempo de atuação no cuidado a usuários de crack e cocaína, 88,2% possuíam até cinco anos de experiência. A totalidade não tinha formação especializada na área de atenção em álcool e drogas.

Utilizaram-se as duas técnicas de coleta de dados: (1) entrevistas individuais e semiestruturadas com os profissionais da equipe do serviço acerca das singularidades das mulheres usuárias de cocaína e crack no cuidado psicossocial; e (2) a observação sistemática do cuidado coletivo (espaços de convivência e atendimentos em grupo) com registros em diário de campo sobre como os profissionais abordam as questões e necessidades da clientela feminina nestes espaços.

Para preservar o anonimato dos participantes, foi adotada a codificação da letra “E” para “entrevistada”, seguida do número de ordem da realização da entrevista, de 1 a 17, como E1, E2, E3, assim sucessivamente. Em relação às anotações do diário de campo, numerou-se por ordem cronológica dos registros, de 1 a 10, seguida do local onde ocorreu a observação: grupo de mulheres ou espaço de convivência.

A análise desse conjunto de dados empíricos foi guiada pela abordagem compreensiva-crítica da hermenêutica-dialética, que associa a compreensão de textos, como biografias, narrativas, entrevistas e outros documentos, com a vertente crítica da dialética, que intenta revelar as ambivalências, incompletudes e os núcleos contraditórios do fenômeno social em estudo 1313. Minayo MCS. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadoras. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 83-107..

Na hermenêutica, a compreensão do texto se dá por meio da linguagem, visto que esta não é transparente em si mesma, mas tem em um caráter filosófico e dinâmico e envolve um processo intersubjetivo e ao mesmo tempo objetivo, possibilitando a conexão entre o pensamento e a linguagem, e a apreensão da significação da fala ou manifestação simbólica baseando-se no conhecimento do contexto social do interlocutor 1313. Minayo MCS. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadoras. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 83-107..

A dialética também coloca em foco o contexto histórico das manifestações simbólicas, pois a razão humana pode mais do que simplesmente compreender a realidade, ela é capaz de fazer a síntese dos processos compreensivos e críticos. Portanto, a união da hermenêutica com a dialética possibilita caminhar para o desvelamento de um significado consensual daquilo que nos propomos interpretar, e estabelece uma crítica acerca dos dissensos e das contradições dos significados e sobre as suas relações com o contexto social em questão 1313. Minayo MCS. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadoras. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 83-107.,1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2014..

Foram adotados os seguintes passos operacionais na análise: (a) ordenação dos dados, que compreende a transcrição, organização e sistematização das entrevistas e dos registros dos diários de campo; (b) classificação dos dados, a leitura exaustiva para identificação das estruturas de relevância, as ideias centrais e os momentos-chave sobre o objeto de estudo, permitindo o agrupamento temático; e (c) análise final, quando se estabelece o movimento dialético entre o material empírico e a perspectiva teórica do estudo, que culmina na elaboração de sínteses interpretativas 1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2014..

A pesquisa atendeu os princípios éticos estabelecidos na Resolução nº 466/12 e obteve parecer favorável da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (parecer nº 628.205/2014).

Resultados

Três categorias emergiram da análise compreensiva-crítica: a fragilidade como atributo constitutivo da condição feminina; a dependência afetiva feminina relacionada com o uso de cocaína e crack; e os estereótipos de gênero no cuidado psicossocial, que são apresentadas a seguir.

A fragilidade como atributo constitutivo da condição feminina

As profissionais de saúde descrevem as mulheres usuárias de cocaína e crack de forma comparativa com os homens e conferem atributos distintivos para estas usuárias, como pessoas mais sensíveis, zelosas, carentes, inseguras, dependentes afetivamente dos homens e das drogas, com mais recato para versar sobre o uso de drogas, colocando-as numa posição de vítima de sua própria condição feminina.

Por conta dessas fragilidades, essas profissionais consideram que elas são mais expostas às estruturas sociais opressivas, o que repercute inclusive no acesso ao serviço: “Mulher é mais sensível. Porque o homem parece ser mais independente, mesmo usuário de droga. Mas a mulher é mais frágil, não tem independência” (E1). “É como se ela quisesse melhorar para poder ainda segurar a família. É mais um peso que ela coloca sobre si (...). Acho que para a mulher é tudo mais difícil, porque que ela busca tardiamente o tratamento, ou porque que ela falta muito ao tratamento. Eu acho que ela pode desistir mais rápido do tratamento do que os homens desistem” (E4). “Tudo na mulher é mais velado. Porque para ela dizer que é uma usuária de drogas é mais complicado do que para um homem chegar até aqui e falar” (E5). “Acho que muitas são vítimas da sociedade, outras são vítimas do casamento, outras são vítimas da família” (E6).

Na comparação entre os homens e as mulheres, as diferenças entre os gêneros são naturalizadas e decorrem da distinção de suas constituições biológicas. As profissionais de saúde expressam as seguintes concepções: “Ela já tem naturalmente aquele tratamento diferenciado. Isso é muito natural” (E2). “O homem é mais forte que a mulher nesse universo de droga, onde é praticamente cada um por si. Então, a mulher acaba, por conta da sua fragilidade física, sendo subjugada” (E12). “Não dá para esquecer a especificidade das questões relacionadas à emoção e aos hormônios. Elas têm uma emoção, uma coisa de sentimento que é inato” (E15).

Por conta dessa visão dominante de que as mulheres têm uma “natureza” demarcada pela fragilidade, há influência direta na relação do cuidado psicossocial por conceber as mulheres como vítimas e limitadas para a construção de sua autonomia pessoal. Tal visão emerge nas seguintes falas: “Coitada, precisa de ajuda” (E1). “Elas ficam esperando que as respostas venham da gente” (E2).

A timidez e o pudor das mulheres exigem das profissionais da saúde o emprego da afetividade a fim de facilitar a abordagem terapêutica da clientela feminina: “A mulher já se coloca mais temerosa nesse processo [terapêutico]. Eu acho que ela ainda vem muito timidamente” (E4). “Os homens são mais soltos. Eles falam à vontade o que fazem. A mulher já não fala” (E5).

Apesar dessas concepções das profissionais de saúde, o trabalho terapêutico de grupo debateu o tema da “fragilidade” feminina dominante na sociedade para que as usuárias desenvolvam atitudes mais ativas na superação da dependência da droga, com estímulo do protagonismo feminino e do seu papel no cuidado maternal dos filhos e da família: “A coordenadora trabalha o tema do empoderamento das mulheres, previamente definido para este dia, e as estimula para a adoção de uma atitude mais confiante e autônoma, e as aconselha para evitar a percepção de si como vítimas da sociedade. Porém, a orientação para exercer adequadamente o seu papel de mãe e a responsabilidade no cuidado dos filhos e família são utilizados como motivações para a manutenção da abstemia da droga, o que reforça os estereótipos de gênero” (Observação nº 2, grupo de mulheres).

A dependência afetiva feminina relacionada com o uso de cocaína e crack

As relações de poder identificadas no processo interacional entre as mulheres usuárias de substâncias e seus companheiros, apresentam impacto sobre o estado psicossocial da mulher segundo as profissionais de saúde, que veem estas mulheres como dependentes afetivamente dos homens: “Vive na rua com o marido, marido não, pai da criança. Eles [os companheiros] dizem que querem ajudar, mas que não têm condição de ficar com ela em casa, nem ela e nem o filho. E elas permanecem em situação de rua para acompanhar seus parceiros, mesmo com filhos pequenos” (E1). “Muitos casos que temos aqui, nós vemos as mulheres falando que elas usaram drogas porque os maridos eram usuários e as forçaram a usar” (E5). “A grande maioria foi levada [para o uso de drogas] por um homem! Pelo amor!” (E17).

As relações amorosas e familiares empobrecidas foram consideradas pelas profissionais de saúde como espaços produtores de sofrimento psíquico e desencadeadores da dependência da cocaína e crack, decorrentes da carência afetiva que as mulheres vivenciam no ambiente doméstico, como assim destacam as falas: “São questões, na sua grande maioria, familiares ou ligadas ao casamento, quer dizer, é uma coisa muito mais afetiva do que os homens” (E2). “São vítimas do casamento, outras são vítimas da família (...). Existe alguma coisa que faz com que elas queiram usar [a droga]” (E6). “Elas são mulheres que buscaram a droga por alguma razão, por alguma carência que elas tiveram, emocional principalmente. Geralmente são mulheres que não tiveram a mãe presente, ou tiveram frustrações amorosas, ou até em relação à guarda dos filhos. São mulheres que o marido não paga pensão ou que engravidaram, mas foram abandonadas” (E14).

A história que envolve uma relação amorosa também foi registrada no diário de campo: “Uma das usuárias conta que passou as duas últimas noites na rua, em companhia do namorado, visto que este havia sido expulso de sua comunidade e nenhum parente quis acolhê-lo em seu lar. Ela decidiu que não iria deixá-lo sozinho neste momento, por ser o amor de sua vida (...). O fato de estar na rua com o namorado foi considerado como falta de autoestima pelas outras participantes do grupo” (Observação nº 9, grupo de mulheres).

A dependência afetiva, aliada à dependência química e à subjugação das mulheres aos desejos dos homens, predispõe à exploração sexual feminina na visão das profissionais de saúde, como manifestam os seguintes depoimentos: “As mulheres ficam [no cenário de consumo da droga] e, aí, os homens querem aproveitar, abusar, o abuso sexual e a prostituição” (E1). “A mulher é manipulada, é forçada à prostituição por conta do vício” (E12).

Portanto, essas profissionais consideram que as mulheres usuárias de cocaína e crack são mais propensas a utilizar seu corpo como um meio de subsistência e de acesso à renda para a manutenção do consumo: “Quando é mulher, ela geralmente tem uma necessidade econômica menor. Mulher tem mais facilidade para arrumar dinheiro. Mulher se prostitui” (E3). “As mulheres têm uma forma de acessar renda na rua diferenciada dos homens. A gente tem muito caso de prostituição entre as mulheres” (E10).

Os estereótipos de gênero no cuidado psicossocial

As profissionais de saúde abordam as mulheres de modo diferenciado e por meio de uma postura distintiva por exigirem delas uma postura mais sensível e delicada na prática do cuidado psicossocial: “Tem que abordar [as mulheres] de maneira diferente, por mais que as mulheres queiram a igualdade. Enfim, nós somos diferentes. Para a mulher, nós temos que ter uma postura mais delicada” (E2). “Eu acho que o cuidar dessas mulheres requer muita sensibilidade” (E15).

Na comparação dos papéis sociais femininos e masculinos, as profissionais consideram que as mulheres usuárias de cocaína e crack são mais exigidas nos cuidados da casa e da família, além de assumirem também a responsabilidade da criação dos filhos, o que as leva a ter maior responsabilidade sobre o seu núcleo familiar: “O que acaba acontecendo é, quando o homem sai de casa, a mulher assume a responsabilidade [da casa e dos filhos]” (E9). “A referência familiar dificilmente é um pai. A mulher tem um peso diferente na família” (E10).

O destaque do papel das mulheres no cuidado da família e na maternidade também é um recurso terapêutico usado no cuidado psicossocial das mulheres, sendo utilizado como elemento motivador da reconstrução de sua vida social: “O controle sobre a dependência das drogas é ponto de partida para a reorganização da vida, para que possam ser mães adequadas às expectativas da sociedade moderna, como ser exemplo de índole e de postura para os filhos, para ensinarem os filhos a não utilizarem drogas e transformarem sua realidade a partir da educação destas crianças” (Observação nº 3, grupo de mulheres).

A sacralidade da maternidade emergiu no trabalho de grupo com as mulheres como um estímulo da reflexão e debate entre as usuárias de cocaína e crack sobre a importância de elas investirem no seu processo de cura para atender às necessidades de suas famílias e filhos: “Hoje as mulheres foram recepcionadas com a leitura de um poema sobre as mães. A última frase do poema dizia: ‘Falar das mães é falar de Deus’. O poema mencionava uma força divina que as mulheres recebem de Deus para a vivência da maternidade” (Observação nº 10, grupo de mulheres).

Apesar da intencionalidade motivadora da coordenadora da atividade em grupo para favorecer a adesão ao tratamento, houve mulheres que se questionaram frente a este papel materno idealizado: “‘Que tipo de mãe eu vou ser?’. ‘Que exemplo eu estou dando para meus filhos?’” (Observação nº 3, grupo de mulheres).

Outro destaque nos grupos é o estímulo das usuárias de cocaína e crack para exercerem uma atividade laboral, como um meio de gerar renda e reconstruir os laços sociais com base no trabalho. Para tal, as habilidades manuais têm destaque no aprendizado de um meio de subsistência, a exemplo do ensino da confecção de flores artificiais por meio de dobraduras e cortes de papel.

Tais habilidades manuais são vistas pelas profissionais de saúde como inerentes ao ser mulher. Quando uma das usuárias não demonstra essas habilidades, a profissional que conduz a atividade comenta: “É simples! A senhora nunca fez corte e costura? Nem roupinha de boneca?” (Observação nº 2, espaço de convivência).

Quando as mulheres dependentes de cocaína e crack se afastam dos comportamentos tipicamente femininos, como a docilidade, as profissionais de saúde os relacionam com padrões comportamentais masculinos e desviantes do caráter: “Independente de ser homem ou mulher, o perfil [dos usuários de cocaína e crack] é um só, são manipuladores e mentem. E aí, tem horas que você tem que ser tão firme como se você tivesse falando com um homem” (E2). “Hoje, você vê mulheres que falam como mulher-macho: ‘Eu sou mais macho que muito homem!’” (E15).

Discussão

As usuárias de cocaína e crack são compreendidas pelas profissionais de saúde com base nas concepções hegemônicas sobre os papéis sociais e atributos do gênero feminino em comparação ao masculino, apesar destas profissionais serem predominantemente mulheres. Essas concepções demarcam as distinções sociais entre o ser mulher e o ser homem, e também revelam a influência dos estereótipos de gênero cristalizados na ordem sociocultural brasileira e dos mecanismos de reprodução dos códigos sociais de uma sociedade patriarcal.

Essas influências conformam o modo pelo qual as profissionais veem e efetivam o cuidado psicossocial para a clientela feminina, e esta reprodução dos estereótipos também é observada no cuidado das mulheres em situação de violência e sofrimento psíquico, tanto na atenção básica quanto na rede hospitalar 1515. Ramiro FS, Padovani RC, Tucci AM. Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde Debate 2014; 38: 379-92.,1616. Seleghim MR, Marangoni SR, Marcon SS, Oliveira MLF. Family ties of crack cocaine users cared for in a psychiatric emergency department. Rev Latinoam Enferm 2011; 19:1163-70..

As profissionais de saúde situam no âmbito biológico as diferenças entre os homens e as mulheres dependentes de cocaína e crack. Esse enfoque revela uma visão reducionista sobre as mulheres, que põe em destaque a sua função reprodutiva e o seu papel social com a prole e a família em detrimento de outras necessidades de saúde e de sua plenitude como ser humano, bem como deixa em segundo plano os problemas de saúde relacionados com a violência de gênero e as estruturas simbólicas de opressão na sociedade. Os mecanismos e dinâmicas sociais que perpetuam essas concepções representam um obstáculo no avanço da luta pela igualdade e equidade social das mulheres, que impactam o acesso aos serviços de saúde e o planejamento dos cuidados específicos 44. Organização Mundial da Saúde. Mulheres e saúde: evidências de hoje, agenda de amanhã. Brasília: Organização Mundial da Saúde; 2009..

A fragilidade e a dependência emocional constitutivas do ser mulher, na perspectiva das profissionais, são relacionadas ao fenômeno da dependência feminina pela droga. Portanto, o consumo das substâncias tem relação com as vivências das mulheres em seu contexto social, que está sob a influência dos elementos estruturadores das relações sociais e de poder nas sociedades que se organizam com base na dicotomia entre os papéis masculinos e femininos 1717. Franzoi NM, Fonseca RMGS, Guedes RN. Gender-based violence: conceptions of professionals on the family health strategy's teams. Rev Latinoam Enferm 2011; 19:589-97..

A violência é um problema social complexo e grave, em âmbitos nacional e internacional, com maior magnitude nos grandes centros urbanos 1818. Cruz VD, Oliveira MM, Coimbra VCC, Kantorski LP, Pinho LB, Oliveira JF. Experiences of women who use crack. Rev RENE 2014; 15:639-49.. Entre as mulheres, a violência é problema de saúde pública e também está presente no contexto do consumo de drogas. Contudo, por conta das questões de gênero, esse problema precisa ser compreendido primeiramente como uma violação dos direitos humanos, que as afeta pelo simples fato de serem mulheres 1616. Seleghim MR, Marangoni SR, Marcon SS, Oliveira MLF. Family ties of crack cocaine users cared for in a psychiatric emergency department. Rev Latinoam Enferm 2011; 19:1163-70..

O fenômeno da violência emergiu na presente pesquisa como uma das consequências da própria condição de submissão das mulheres aos desejos do parceiro, segundo as participantes, que inclui as situações de exploração sexual. A vivência de uma relação abusiva apresenta impacto sobre a condição psicológica e social da mulher e de qualquer outra pessoa, como o sentimento de culpa, baixa autoestima e impacto na sua capacidade de autodeterminação para o enfrentamento desta realidade adversa e perversa, o que pode conduzir para o uso abusivo de substâncias e o desenvolvimento de outras morbidades psiquiátricas, como transtornos de ansiedade e depressão 55. Bungay V, Johnson JL, Varcoe C, Boyd S. Women's health and use of crack cocaine in context: structural and "everyday" violence. Int J Drug Policy 2010; 21:321-9.,66. Luis MAV, Barros HMT, Macedo JQ, organizadoras. Mulheres, drogas e violência. Ribeirão Preto: Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2014.,77. Cruz VD, Oliveira MM, Pinho LB, Coimbra VCC, Kantorski LP, Oliveira JF. Sociodemographic conditions and patterns of crack use among women. Texto Contexto Enferm 2014; 23:1068-76.,88. Zanello V, Costa e Silva R. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética 2012; 20:267-79.,99. Scott JW. Os usos e abusos do gênero. Projeto História 2012; 45:327-51.,1010. Saffioti HIB. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu 2001; (16):115-36.,1111. Carter J. Patriarchy and violence against women and girls. Lancet 2015; 385:e40-1.,1212. Hosseinpoor AR, Stewart WJ, Amin A, Araujo CI, Beard J, Boerma T, et al. Social determinants of self-reported health in women and men: understanding the role of gender in population health. PLoS One 2012; 7:e34799.,1313. Minayo MCS. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadoras. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. p. 83-107.,1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2014.,1515. Ramiro FS, Padovani RC, Tucci AM. Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde Debate 2014; 38: 379-92.,1616. Seleghim MR, Marangoni SR, Marcon SS, Oliveira MLF. Family ties of crack cocaine users cared for in a psychiatric emergency department. Rev Latinoam Enferm 2011; 19:1163-70.,1717. Franzoi NM, Fonseca RMGS, Guedes RN. Gender-based violence: conceptions of professionals on the family health strategy's teams. Rev Latinoam Enferm 2011; 19:589-97.,1818. Cruz VD, Oliveira MM, Coimbra VCC, Kantorski LP, Pinho LB, Oliveira JF. Experiences of women who use crack. Rev RENE 2014; 15:639-49.,1919. Vieira LB, Cortes LF, Padoin SMM, Souza IEO, Paula CC, Terra MG. Abuso de álcool e drogas e violência contra as mulheres: denúncias de vividos. Rev Bras Enferm 2014; 67:366-72..

A associação entre a prostituição e a dependência de drogas emergiu nos depoimentos dos profissionais de saúde, que consideram que a própria condição de mulher predispõe às situações de prostituição, em virtude do cenário de consumo de drogas ser representado como um ambiente masculino e, portanto, dominado pelos homens. Há segmentos que associam a prostituição com a situação de discriminação na sociedade. Contudo, a troca de sexo por dinheiro ou por droga é relativamente comum e ocorre tanto por parte das mulheres quanto dos homens, que distinguem os seus vínculos amorosos dos encontros fortuitos para fins de sustento próprio e do uso de drogas 33. Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnol ógica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz; 2014.,1515. Ramiro FS, Padovani RC, Tucci AM. Consumo de crack a partir das perspectivas de gênero e vulnerabilidade: uma revisão sobre o fenômeno. Saúde Debate 2014; 38: 379-92.. Portanto, essa questão é muito mais complexa do que a percebida pelos profissionais de saúde entrevistados nesta pesquisa.

Os efeitos nocivos do crack e cocaína incluem a desintegração socioeconômica, sérios danos à saúde mental, envolvimento com o crime, marginalização, violência, prostituição e múltiplos parceiros sexuais, e o consequente aumento do potencial de infecção pelo HIV 55. Bungay V, Johnson JL, Varcoe C, Boyd S. Women's health and use of crack cocaine in context: structural and "everyday" violence. Int J Drug Policy 2010; 21:321-9.. Os riscos à saúde não devem ser negligenciados e exigem a compreensão da dinâmica da vida cotidiana dos usuários para que o cuidado inclua as particularidades pessoais e existenciais, independentemente de estes usuários serem identificados como mulheres ou homens.

As iniquidades de gênero são associadas à vida das mulheres, como a responsabilidade que habitualmente assumem nas famílias 2020. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011.. Essa organização social hierárquica e tradicional também foi observada entre os usuários de crack em situação de rua, cujas mulheres são representadas como aquelas responsáveis pelo cuidado com a prole. Contudo, há grupos femininos nessas cenas de rua que não seguem essa lógica e consideram a maternidade como fruto de sua própria escolha 2121. Vernaglia TVC, Vieira RAMS, Cruz MS. Crack cocaine users living on the streets: gender characteristics. Ciênc Saúde Coletiva 2015; 20:1851-9..

A possibilidade de mulheres dissidentes dessa organização social tradicional não foi sequer aventada pelos profissionais de saúde entrevistados. Eles têm uma visão das usuárias de cocaína e crack como mulheres heterossexuais e responsáveis pelos cuidados de uma família tradicional. A autoestima, autoeficácia e autoconceito são importantes aspectos de saúde que contribuem para a elaboração das identidades pessoais e influenciam na forma pela qual o indivíduo vivencia as relações sociais.

As mulheres consumidoras de cocaína e crack, além de sofrerem preconceitos e estigmas sociais decorrentes da dependência química, têm suas necessidades singulares e específicas prejudicadas pelas representações elaboradas por uma visão binária de gênero, que conformam o modo pelo qual os profissionais de saúde efetivam seus cuidados, elaborados valendo-se de uma concepção tradicional do gênero masculino e feminino 66. Luis MAV, Barros HMT, Macedo JQ, organizadoras. Mulheres, drogas e violência. Ribeirão Preto: Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2014.,88. Zanello V, Costa e Silva R. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética 2012; 20:267-79..

Compreender o gênero feminino como frágil causa efeitos negativos na autoestima e na autoimagem das mulheres, acarretando uma maior propensão a aceitarem a vitimização. Além disso, as relações de poder assimétricas subjacentes aos papéis sociais tradicionais e estereotipados apresentam um impacto sobre o estado psicológico e social das pessoas e influenciam o modo de viver e adoecer 2020. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2011..

A compreensão desses processos e dos seus efeitos no cuidado psicossocial é necessária para a promoção da autoestima das mulheres e de suas potencialidades para uma vida mais saudável, de modo a apoiá-las na construção do empoderamento pessoal, dando-lhes a possibilidade de elaborar novos sentidos na produção de saúde e de melhorar a sua qualidade de vida.

A concepção das mulheres usuárias de cocaína e crack como as responsáveis primordiais pelos cuidados da família e emocionalmente dependentes acentua o sentimento de culpa e reforça os estereótipos sociais. No entanto, a perda dos vínculos familiares é verificada na literatura científica sobre os usuários de crack em situação de rua. Os usuários que permanecem nas ruas ou vivem sem moradia fixa constroem outros vínculos afetivos e organizam sua vida neste novo espaço 2121. Vernaglia TVC, Vieira RAMS, Cruz MS. Crack cocaine users living on the streets: gender characteristics. Ciênc Saúde Coletiva 2015; 20:1851-9..

O cuidado psicossocial aqui expresso pelas profissionais de saúde está centrado na concepção do papel da mulher heterossexual, subordinada ao homem e que tem a maternidade como um motivo restaurador de sua vida e vínculos sociais. Portanto, as relações de gênero influenciam a visão dos profissionais sobre a pessoa do cuidado e o modo restrito pelo qual conduzem seus cuidados 2222. Acosta DF, Gomes VLO, Fonseca AD, Gomes GC. Violence against women committed by intimate partners: (in)visibility of the problem. Texto Contexto Enferm 2015; 24:121-7..

Destaca-se que essas concepções emergem de um grupo de profissionais majoritariamente constituído por mulheres que expressam as desigualdades de gênero de forma naturalizada, o que indica a necessidade de implantar programas de educação permanente sobre gênero como determinante da saúde e, por conseguinte, acerca de suas influências e repercussões no cuidado psicossocial dos usuários de drogas ilícitas. Além disso, o tema gênero deve ser destacado nos currículos dos cursos de formação dos profissionais que irão atuar em saúde mental, para romper com a reprodução das iniquidades de gênero em suas práticas de cuidado.

Conclusão

Os profissionais de saúde reproduzem concepções estereotipadas sobre o gênero feminino e consideram as mulheres como pessoas sensíveis, frágeis, dependentes afetivamente dos homens, mais afeitas ao ambiente doméstico, às tarefas manuais e ao cuidado da família. Portanto, eles expressam uma visão tradicional da mulher heterossexual, dócil e maternal.

A fragilidade e docilidade femininas assumem um caráter constitutivo do modo de ser das mulheres usuárias de cocaína e crack para esses profissionais, justificando as premissas de que elas são mais dependentes emocionalmente dos vínculos amorosos com os companheiros e das relações familiares. Esses vínculos e relações têm interfaces com o modo pelo qual os cuidados psicossociais são conduzidos no CAPSad II, visto que há um destaque da maternidade nos discursos motivadores para a abstemia dessas mulheres e de resgate do seu papel social no cuidado dos filhos.

Os profissionais de saúde carecem de uma compreensão mais elaborada sobre as relações de gênero como um determinante social do processo saúde/doença mental para estabelecer um cuidado psicossocial qualificado, integral, equitativo e coerente com a história de vida e necessidades individuais, de modo a possibilitar a superação do senso comum sobre o gênero e a condição feminina, e da práxis de cuidado reducionista para as mulheres.

Apesar do foco nas perspectivas de um grupo particular de profissionais de saúde, os resultados da pesquisa suscitam reflexões sobre as questões de gênero feminino no cuidado psicossocial das usuárias de crack e cocaína, fornecem subsídios para as políticas de saúde e sugerem a necessidade de estratégias de educação permanente para estes profissionais e ações programáticas específicas para o cuidado da clientela feminina, ancorado na discussão das questões e inequidades de gênero.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2017
  • Revisado
    22 Out 2017
  • Aceito
    21 Nov 2017
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