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Precariedades do excesso: informação e comunicação em saúde coletiva

RESENHAS BOOK REVIEWS

Priscila Menezes de Aragão

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

PRECARIEDADES DO EXCESSO: INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA. Castiel LD, Vasconcellos-Silva PR. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 168 pp.

ISBN: 85-7541-071-7

A precariedade do excesso nos traz uma reflexão sobre as repercussões geradas pela tecnologia da informação e comunicação (TICS) na atualidade. Parte da premissa dos recursos e objetos comunicacionais interferindo cada vez mais nas dimensões estruturais da saúde coletiva. Destaca o uso da Internet, principalmente no sentido de como vem reconfigurando o campo sanitário da atualidade. O próprio título revela o olhar que os autores lançam: "em síntese, trata-se de explorar criticamente o fato ambivalente de que, ao lado das indiscutíveis vantagens tecnológicas, reside uma considerável perda de medidas" (p. 16).

O primeiro capítulo aborda a interface entre Internet e saúde, ressaltando o excesso da informação e a necessidade cada vez mais intensa de atualização do conhecimento. Analisa a dinâmica estabelecida como "uma busca insaciável de orientações, preceitos, aconselhamentos, referências" (p. 26), que gera ao seu usuário uma sensação de desgaste constante. Assim como transformações importantes na informática médica com a ocupação cada vez mais significativas das TICS, ampliando suas funções, produzindo setores de especialização denominados e-saude, telemedicina, cibermedicina e até a chamada Informática para Saúde do Consumidor. A partir desta premissa de funcionamento do campo do conhecimento os autores nos indagam de quais os desdobramentos no campo da saúde. Alertam que há uma nova definição de papéis tanto da perspectiva do emissor como do receptor das informações, de certa forma uma maior flexibilidade e possibilidades de espaços que estes vão ocupar. No lado do emissor um nível variado de qualidade de informação com os mais diversos formatos e origens, páginas de profissionais, portais de saúde, serviços assistenciais, do outro, o receptor: usuários, consumidores e pacientes. Assinalam para a necessidade de dimensionar a confiabilidade da informação.

As possibilidades de interação entre o profissional de saúde e o paciente via Internet são então discutidas, ressaltando as limitações deste contato. Traz como um dos caminhos desta junção a vinculação entre Informática da Saúde do Consumidor e a Medicina Baseada em evidências (tema a ser discutido no capítulo 4), na qual entre outras críticas são ressaltadas a limitação da escolha cognitiva no processo de tratamento, não abordando a sua esfera emocional.

Os autores percebem essa nova dimensão de funcionamento do campo da saúde baseada na engrenagem de três sistemas: o predomínio da produção instrumental e suas produções tecno-científicas; o poder enfeixado pela junção de instituições e ideologias; a crença na supremacia dos mitos, símbolos e ritos promovidos pela tecnociência. Apontam como possível desdobramento o domínio da sociedade por uma aliança entre autoridades geradoras de conhecimentos especializados, profissionais encarregados de produzi-los como objetos técnicos, o conjunto do sistema industrial e as redes de comunicação, distribuição e consumo.

O segundo capítulo aborda o movimento no campo da saúde pública para auto-responsabilização pelo reconhecimento de estilos de vida pouco saudáveis. Faz uma crítica sobre o formato e a intenção de programas educacionais de promoção de saúde, incluindo os que acontecem em ambiente hospitalar, onde há enfoques mais específicos. Ressalta o grande "boom" na produção de material informativo, relacionando tais excessos a duas principais motivações: a demanda do esclarecimento informativo aos usuário de serviços de saúde, e a facilidade e barateamento na realização de tais produções pelos avanços tecnológicos. No entanto, questiona os resultados obtidos com esses investimentos, aponta para a falta de pesquisa e estudo sobre a efetividade de tais iniciativas. Vale destacar a produção unilateral dos sentidos como o seu principal ponto de questionamento, uma vez que nega modulações e ambigüidades devido à cientificidade fundada do conteúdo. Os autores afirmam "que ampliação do conhecimento é gerada na trama de uma ampla rede de fatores subjetivos que interfere não linearmente na construção dos comportamentos" (p. 67). O pacote de informações acaba reforçando o sistema isolado dos diversos setores nos hospitais, o que pode ser visto com clareza a partir da análise dos conteúdos informativos produzidos sem nenhum tipo de articulação. Traz à tona a importância da influência relacional ativa, que comprovadamente atinge resultados valorizáveis.

No capítulo seguinte é desenvolvida uma discussão sobre apropriação do conhecimento. As idéias de promoção e educação em saúde do professor e médico Miguel Couto são expostas, representando a utilização do discurso científico como instrumento da moral, cultural, de educação e saúde. Posteriormente faz um paralelo com a proposta do Dr. Gunther Esybech de um novo panorama para saúde coletiva com utilização da Internet, como fontes promissoras de informações, no qual o usuário esclarecido teria uma autonomia no processo de determinação de prioridades e cuidados com a saúde. O que inicialmente é apresentado como contraponto ao Dr. Miguel Couto, diante de uma análise do seu mecanismo (fornecimento maciço de informação), acaba sendo repensado como mais uma engrenagem do conhecimento científico no eixo de decisões do indivíduo.

O campo da educação em saúde sob a perspectiva econômica aponta para expansão de tendências econômicas-tecnocêntricas, num padrão de auto-responsabilização e autocuidado, instrumentalizadas pelo conhecimento científico. Segundo os autores, "após tantas décadas de evolução tecnológica, persiste a ótica de outros tempos que elege a 'instrução' como panacéia para insalubridade social" (p. 91).

Na contramão desse movimento, os autores se referem à Carta de Ottawa para resgatar a idéia de responsabilização coletiva para superação de adversidades, apoiando-se nos conceitos mais amplos e arrojados de promoção de saúde. Apontando a racionalidade comunicativa como caminho para os subsistemas sociais envolvidos direta ou indiretamente na ação educativa em saúde, que tem como objetivo a promoção da emancipação, bem-estar e igualdade.

Segue com um capítulo trazendo uma análise da medicina baseada em evidências, a qual elege representante emblemática das questões implicadas nos empreendimentos tecnobiocientíficos na atualidade. Reafirma a sua leitura da MBE como vinculado às razões das tradições cientificistas, e as observa como mais um contexto em que se estabelece uma relação direta entre o científico e o moral. Faz uma crítica à ordem social ocidental contemporânea que tem como essência a conjectura de uma supremacia monopolista de atribuir sentido e de avaliar os modos de viver. As pessoas em geral são convocadas a assumir escolhas racionais a partir de verdades científicas especializadas.

O capítulo 5 aborda as questões de insegurança que atingem as sociedades contemporâneas; estas são discutidas e analisadas como uma problemática pertinente ao âmbito da saúde pública. Algumas das repercussões na sociedade atual são destacadas tanto num sentido mais macro, a ampliação do sistema de controle, vigilância e restrição de liberdades individuais, como em sintomas refletidos no comportamento do indivíduo, a exaltação do consumismo e individualismo. Apresenta temas relativos à relação entre profissionais de saúde e instâncias de informação e comunicação pública de conteúdos ligados a riscos à saúde, com exemplos vinculados à biotecnologia. Finaliza alertando para necessidade do desenvolvimento de uma ética global voltada para problemas de saúde pública, que envolvem desigualdades sociais e vulnerabilidade de parcelas expressivas das populações em escala mundial.

Os autores concluem o livro com algumas páginas destacando os princípios que nortearam sua trajetória pelos capítulos apresentados. Ressaltam a sua crítica ao "carrossel de produção, transmissão e consumo de signos como bens acumuláveis" (p. 145), no qual referem os elementos fundamentais no campo da construção do conhecimento. Retomam os principais pontos das repercussões desta conjuntura atual na saúde coletiva. Por fim nos alertam dos efeitos nocivos, em decorrência das precariedades dos excessos, às relações humanas "que acompanha a sintomática liquefação afetiva desses nossos avassaladores tempos fluidos de significados" (p. 150).

Vale destacar que apesar de ser um livro em que o eixo da discussão proposta sejam inovações tecnológicas e seus desdobramentos no campo da saúde numa perspectiva macro (sócio-política-econômica), os autores conseguem nos remeter à reflexão de aspectos mais humanos (subjetivos, individuais) em sua análise. É visível a busca constante de apontar alternativas para apropriação da tecnologia, onde a subjetividade seja preservada e diferenças sociais, econômicas e culturais não sejam aprofundadas no sentido de exclusão.

Preocupação dos autores que nos leva a refletir sobre a importância de um entendimento do contexto off-line consistente, ou seja, das dinâmicas socioeconômicas culturais, para abordar que interações estão sendo estabelecidas entre o usuário e a Internet. Os autores durante as suas discussões construíram a questão com as TICS, apontando problemas no campo da saúde que antecediam o emprego da tecnologia, e como com o uso das mesmas acabaram gerando respostas muitas vezes num nível superficial, ou até desdobrando para origem de outros problemas. Repercussões que nos levam a refletir sobre que possibilidades de interferência da Internet, este espaço de circulação do conhecimento com fronteiras indefinidas, podem ter efetivamente na vida do indivíduo. Questões sobre segurança, violência e patologias relacionadas ao uso inadequado da Internet estão cada vez mais presentes na mídia e nas discussões sobre educação e ética. Logo, percebo uma necessidade urgente de uma compreensão mais crítica da dinâmica da Internet, assim como a criação de referenciais cybers. Acredito que percorrendo a trajetória que os autores nos apresentam, com um olhar crítico à produção e apropriação do conhecimento neste espaço, e realizando uma investigação direcionada a identificar quais são as demandas destes usuários, podemos começar a nos instrumentalizar de forma mais sistemática para responder a tais urgências.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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