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Saúde do trabalhador do Sistema Único de Saúde: diagnósticos, resistências e alternativas

Health of the Brazilian Unified National Health System’s workers: diagnoses, resistance and alternatives

Salud del trabajador del Sistema Único de Salud brasileño: diagnósticos, resistencias y alternativas

TRABALHAR NO SUS: GESTÃO, REPERCUSSÕES PSICOSSOCIAIS E POLÍTICA DE PROTEÇÃO À SAÚDE.Lacaz, A; Goulart, P; Junqueira, V. São Paulo:Editora Hucitec/FAPESP;2017.379p. ISBN9788584041220

As diversas abordagens em Trabalhar no SUS: Gestão, Repercussões Psicossociais e Política de Proteção em Saúde11. Lacaz A, Goulart P, Junqueira V. Trabalhar no SUS: gestão, repercussões psicossociais e política de proteção à saúde. São Paulo: Editora Hucitec/FAPESP; 2017. analisam os impasses e desafios das condições de saúde dos trabalhadores e da gestão do trabalho no SUS. Os autores se diferenciam da apreciação do trabalho como mero fator produtivo, logo, a reflexão sobre o cotidiano dos trabalhadores não poderia ser monotemática, a saúde dos trabalhadores é o eixo articulador de aspectos concernentes aos recursos humanos e à sociologia do trabalho. Os capítulos são frutos de pesquisa coletiva em duas cidades do Estado de São Paulo, configuração demandante de proposições políticas em parceria com as secretarias municipais de saúde envolvidas.

Na abertura, Lacaz & Junqueira atravessam os elementos do capitalismo contemporâneo, o neoliberalismo, entendido como expressão político-ideológica do movimento do capital, baseia-se na reestruturação produtiva e de medidas regressivas sob o trabalho: a intensificação da exploração e a expansão privada para atividades anteriormente controladas pelo Estado. Esse processo erodiu a exceção histórica dos direitos sociais dos Estados capitalistas centrais e a organização do trabalho fordista.

O gerencialismo é o aspecto tecnocrático decorrente dessa tendência, na prática combina o incentivo estatal para o setor privado, na gestão, na organização do trabalho ou nos serviços propriamente ditos com vultosos recursos do fundo público. A Reforma Gerencial do Estado nos anos 1990 apostou em uma suposta maior eficiência das políticas sociais, todavia, representou concretamente o estabelecimento da dinâmica privada no interior do Estado. A função atual do Estado implicou formas variadas da privatização e de precarização do trabalho. As formas contemporâneas de organização do trabalho em saúde são condicionadas pelas mudanças organizacionais “gerencialistas”: o estabelecimento de metas, mensuração de produtividade, a avaliação de desempenho e resultados e instabilidade de contratos de gestão; tais medidas afetaram os trabalhadores, principalmente, pela insegurança, individualização e competitividade entre os pares, desembocando em sérios agravos subjetivos.

Nesse entendimento, o capítulo elaborado por Goulart et al. apresenta cuidadosa abordagem metodológica da fundamentação teórica e das escolhas técnicas de pesquisa para apreensão dos objetos. Com base em pressupostos da teoria social constroem-se questionamentos e quadros analíticos para a pesquisa empírica, consequentemente, descrevem as categorias teóricas centrais como trabalho e saúde, explicita o objetivo da instituição da política pública municipal em saúde do trabalhador e expõe os significados de termos decorrentes desta relação. Desse modo, refuta o empirismo ingênuo e realiza o duplo movimento: levar teoria ao campo e os achados empíricos para a teorização. Nessa concepção, aborda como a precariedade do trabalho em saúde extrapola as delimitações municipais e são condicionadas por tendências históricas gerais, tais como a flexibilidade de contratos empregatícios, as relações de poder assimétricas e a destituição da autonomia dos profissionais. Por fim, problematiza o termo “qualidade de vida no trabalho”, expondo suas armadilhas, e explana acerca da formulação de questionários de pesquisa correspondentes à realidade brasileira adicionando a temática da percepção dos trabalhadores acerca dos Planos de Cargos, Carreiras e Salários.

Na observação dos planos de carreiras municipais, o capítulo construído por Rizzo & Santos explora criticamente a efetividade dos programas estatais de desprecarização do trabalho em saúde pela sua concentração nos quesitos legais de vínculos empregatícios, embora a precarização expresse a não garantia de direitos previdenciários ou trabalhistas, as mudanças são mais amplas no cotidiano de trabalho. Por exemplo, as metas e os relatórios reforçam relações alienadas de afastamento com os usuários. As autoras destacam que a dinâmica privada permeia a administração direta e não somente as Organizações Sociais. Destacam os efeitos da reforma gerencial do Estado e a consequente diversidade de vínculos, o subfinanciamento e o contingenciamento da Lei de Responsabilidade Fiscal como constrangimento às realidades municipais, e elaboram proposições contratendenciais à precarização e projetam melhores condições e reconhecimento social dos trabalhadores.

Na relação do reconhecimento e saúde dos trabalhadores, Coneglian et al. demonstram a magnitude da contradição dos trabalhadores que cuidam da saúde de outrem exaurindo a sua própria. Na pesquisa empírica, diagnosticam a frequência do adoecimento manifesta na angústia, estresse, depressão, síndrome de burnout e desmotivação. Correlacionam a intensificação do sofrimento no trabalho na esfera pública com a assimetria de poder entre os trabalhadores e a gestão, na qual as condições de trabalho marcadas pela minimização do custo e a insuficiência de trabalhadores geram sobrecarga de trabalho, a flexibilização e as cobranças de resultados em curto prazo.

No âmbito da organização do trabalho e das repercussões psicossociais, Neumann & Lacaz discutem as manifestações de resistência ou de passividade dos trabalhadores, interpretam as relações dos sujeitos com a influência da psicodinâmica do trabalho, consideram tanto a dimensão psíquica quanto os elementos da divisão social do trabalho capitalista. Nessa perspectiva, relacionam a insatisfação dos indivíduos ao conteúdo significativo do trabalho. Não à toa o desgaste mental dos trabalhadores é ressaltado. Constata-se a predominância individual das reações dos trabalhadores sobre as ações coletivas (sindical e demais movimentos políticos): religiosidade, opção por exercícios físicos no lazer por meio de manifestações culturais, entre outras.

Diante dos agravos dos trabalhadores, Vechia analisa a experiência inovadora de constituição de órgão municipal que combina assistência, prevenção e promoção da saúde do trabalhador em um dos municípios estudados, com foco especial na saúde mental. A despeito das tendências de precarização assinaladas, a gestão municipal atenuou tais medidas e enfrentou a questão do adoecimento com postura ativa, promoveu a saúde mental e qualidade de vida no trabalho com ações integrativas dos servidores, prevenção do alcoolismo, medidas de combate sobre assédio moral e do adoecimento mental, acompanhamento das questões de saúde e segurança com maior proximidade, intervenções na organização do trabalho e acompanhamento dos servidores acidentados.

Baseando-se nas percepções de enfermeiros e médicos, Goulart & Lacaz analisam as dificuldades materiais e diagnosticam a baixa qualidade das condições de trabalho, incluso riscos à integridade física. Os trabalhadores constatam a sobrecarga e a convivência com situações limites, aspectos correlacionados ao déficit de profissionais. Não obstante os trabalhadores caracterizarem sua relação laboral como “bem estar”, no decorrer dos anos manifesta-se acentuada desmotivação. As exigências do trabalho cobram a polivalência e a prestação de informações gerenciais para os enfermeiros, e também a rotatividade dos médicos gera sobrecarga na assistência. Para os médicos, destaca-se a percepção da diminuição do poder de decisão. Ambas as profissões consideram-se autônomas na execução do trabalho, caracterização a ser problematizada; por um lado, a autonomia é elemento fundamental para a saúde dos trabalhadores que se apropriam de seu ofício contrastando com a dinâmica da precarização, por outro, a resposta pode representar a lógica de individualização e responsabilização estabelecida. No entanto, acerca das questões de perspectiva profissional, os trabalhadores são unânimes quanto à baixa expectativa de promoção e gratificações, e também na insatisfação das contratações e remuneração.

No desfecho, Lacaz et al. encaram o desafio de proposição de políticas públicas vinculadas à saúde do trabalhador. Desse modo, apreciam a desarticulação institucional e fragmentação presentes na não efetivação da Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores. Na maioria dos municípios, a responsabilidade pela saúde dos trabalhadores cabe às Secretarias de Administração, resultando em concepção instrumental sendo o objetivo principal o controle do absenteísmo, de afastamento e períodos de licença saúde sem discutir seus motivos. Nesse sentido, por meio de atuação intersetorial no SUS, na Previdência e em órgãos municipais projeta-se a integralidade na assistência e da vigilância na prevenção e promoção da saúde com a participação dos órgãos existentes de saúde do trabalhador.

Em suma, o livro reflete a atualidade do campo da saúde do trabalhador, investiga o trabalho em serviços, especificamente saúde na administração pública, distintamente das pesquisas originárias concentradas na condição operária nas décadas 1970-1980. Nesse recorte, as interpretações priorizam as relações sociais de trabalho e vida dos sujeitos sobre os aspectos ambientais. Portanto, as questões acerca da saúde mental são desenvolvidas para além da constatação dos adoecimentos e queixas dos trabalhadores.

Por fim, duas grandes perspectivas organizaram a abordagem das categorias trabalho e saúde na saúde coletiva, ora pesquisas sobre a condição de saúde de diversos segmentos profissionais (metalúrgicos, trabalhadores rurais etc.), ora a teorização do trabalho das ocupações em saúde por meio das análises do mercado e do processo de trabalho na sociedade capitalista, ideologias ocupacionais, autonomia, modelos de atenção e de cuidado. O livro sintetiza as discussões ao considerar aspectos fundamentais do trabalho em saúde na contemporaneidade e as decorrências emocionais e físicas sobre os sujeitos, por tais motivos constitui uma referência na academia e nas práticas de saúde.

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    Lacaz A, Goulart P, Junqueira V. Trabalhar no SUS: gestão, repercussões psicossociais e política de proteção à saúde. São Paulo: Editora Hucitec/FAPESP; 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018
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