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Violações de direitos humanos nos procedimentos normalizadores em crianças intersexo

Violaciones de derechos humanos en procedimientos de normalización de niños intersexuales

Resumos

No Brasil, crianças intersexo ainda são submetidas a procedimentos para designação de sexo binário no nascimento e a intervenções corporais subsequentes. A Resolução nº 1.664/2003, do Conselho Federal de Medicina, legitima intervenções sobre as corporalidades intersexo, se constituindo como o único instrumento normativo nacional que trata sobre o tema. No entanto, as demandas advindas do ativismo político internacional intersexo vêm expondo o quanto as intervenções precoces na infância para a designação de um sexo binário mutilam os corpos das crianças e violam uma série de direitos humanos. Esta pesquisa visa identificar como os procedimentos precoces, irreversíveis e normalizadores, realizados sem o consentimento da pessoa intersexo, revelam-se violadores de direitos humanos. Sob as lentes do conceito de (in)justiça epistêmica, partimos das disputas em torno da produção de evidências que embasam as práticas médicas. Demonstramos como esses procedimentos violam os direitos humanos à saúde, à integridade corporal e à autonomia e os direitos sexuais e reprodutivos, e analisamos quais têm sido as estratégias para evitar essas violações. Propomos que pessoas intersexo estejam no centro das decisões sobre o próprio corpo e que sejam debatidos, junto a pacientes e familiares, caminhos não cirúrgicos e proibidas intervenções precoces, invasivas, mutilatórias, prejudiciais, cosméticas e não consentidas nos corpos de crianças intersexo. A proposição de mudanças em instrumentos norteadores que deixem de regular esses corpos é necessária para, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, incluir instâncias bioéticas e de direitos humanos, assim como pessoas do ativismo político intersexo.

Palavras-chave:
Pessoas Intersexo; Criança; Direitos Humanos; Bioética


En Brasil, los niños intersexuales todavía están sujetos a procedimientos de asignación de sexo binario al nacer y a intervenciones corporales posteriores. La Resolución nº 1.664/2003, del Consejo Federal de Medicina, asegura las intervenciones sobre corporalidades intersexuales y es el único instrumento normativo nacional sobre el tema. Sin embargo, las demandas que surgieron desde el activismo político internacional intersexual plantean cómo las intervenciones tempranas en la infancia para la asignación de género binario mutilan el cuerpo de los niños y vulneran una serie de derechos humanos. Esta investigación tiene por objetivo identificar cómo los procedimientos tempranos, irreversibles y normalizadores, realizados sin el consentimiento de la persona intersexual producen violadores de los derechos humanos. Con base en el concepto de (in)justicia epistémica, partimos de las disputas en torno a la producción de evidencia que subyace a las prácticas médicas. Demostramos cómo estos procedimientos vulneran los derechos humanos a la salud, la integridad y autonomía corporales, y los derechos sexuales y reproductivos, además, analizamos qué estrategias se han utilizado para evitarlos. Debatimos que las personas intersexuales deben estar en el centro de las decisiones sobre sus propios cuerpos y que se discutan con pacientes y familiares formas no quirúrgicas e intervenciones tempranas, invasivas, mutiladoras, dañinas, cosméticas y no consensuales en los cuerpos de los niños intersexuales. Los cambios en los instrumentos rectores para que dejen de regular estos cuerpos son necesarios para que, desde una perspectiva interdisciplinaria, se incluyan instancias de bioética y derechos humanos, así como a personas del activismo político intersexual.

Palabras-clave:
Personas Intersexuales; Niño; Derechos Humanos; Bioética


Intersex children in Brazil are still subjected to “normalizing” surgical procedures and subsequent bodily interventions to make their bodies conform to binary views of sex. Resolution n. 1,664/2003 of the Brazilian Federal Council of Medicine legitimizes interventions upon intersex bodies, being the only national normative instrument that address the subject. However, the demands of international intersex political activism have denounced how early childhood interventions for sex designation mutilate children’s bodies and violate a number of human rights. This research discusses how early, irreversible, and normalizing procedures performed without the intersex person’s consent are human rights violations. Based on the concept of epistemic (in)justice, we first look at the disputes surrounding the evidence that underpin medical practices. We demonstrate how such procedures violate human rights to health, body integrity, autonomy, and sexual and reproductive rights, analyzing which strategies were put into place to prevent them. We propose that intersex people be at the center of decisions regarding their bodies, that non-surgical paths be discussed with patients and their family members, and that early, invasive, mutilating, harmful, cosmetic, and unconsented surgical interventions on intersex children be prohibited. Guiding tools must introduce changes into its regulatory bias to, from an interdisciplinary perspective, include bioethical and human rights bodies, as well as intersex activists.

Keywords:
Intersex Persons; Child; Human Rights; Bioethics


Introdução

As avaliações que envolvem o corpo intersexo ainda são fortemente pautadas e produzidas pelos saberes biomédicos. No Brasil, esse fato se evidencia, entre outros aspectos, pela Resolução nº 1.664/2003 do Conselho Federal de Medicina (CFM) 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.664, de 13 de maio de 2003. Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Diário Oficial da União 2003; 13 mai., que legitima intervenções sobre tais corporalidades e “define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual”. No meio médico brasileiro, as nomenclaturas “anomalias de diferenciação sexual” (ADS) ou “distúrbios de diferenciação sexual” (DSD) são utilizadas para se referir à intersexualidade. Quando os saberes biomédicos nomeiam “anomalia” e/ou “distúrbio”, estabelecem reiterativamente a patologia como realidade do corpo intersexo e, a partir dessa perspectiva, normatizam as intervenções que visam definir o sexo (em feminino ou masculino) da criança como “corretivas” e “necessárias”. Esses saberes concorrem para a produção do que se entende como evidências científicas, as quais costumam basear a tomada de decisões nos contextos de atendimento clínico.

Contrapondo as postulações biomédicas, os ativismos intersexo, desde os anos 1990, reivindicam a possibilidade de autodeterminação corporal e adotam o termo “intersexualidade” enquanto categoria ética e política. Intersexualidade se refere a pessoas que nascem com características sexuais, sejam elas genéticas, anatômicas e/ou referentes aos órgãos reprodutivos e genitais, que não se enquadram nas típicas definições de corpos masculinos ou femininos 22. Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Nascidos livres e iguais: orientação sexual e identidade de gênero no regime internacional de direitos humanos. 2ª Ed. Santiago: Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; 2019.. Desde essa compreensão, ativistas do movimento intersexo expõem o quanto as intervenções precoces durante a infância para a designação de um sexo binário mutilam os corpos das crianças e violam uma série de direitos humanos 33. Cabral M, editor. Interdicciones: escrituras de la intersexualidad en castellano. Córdoba: Anarrés Editorial; 2009.,44. Carpenter M. Intersex human rights, sexual orientation, gender identity, sex characteristics and the Yogyakarta principles plus 10. Cult Health Sex 2021; 23:516-32.,55. Vieira AM. Reflexões sobre corpos dissidentes sob o olhar feminista decolonial-queer. In: Dias MB, Barreto FCL, organizadoras. Intersexo: aspectos jurídicos, internacionais, trabalhistas, registrais, médicos, psicológicos, sociais, culturais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil; 2018. p. 481-92..

O movimento político da Sociedade Intersex da América do Norte (ISNA), assim como o trabalho intelectual e político de Mauro Cabral, influenciou fortemente a realização de pesquisas acadêmicas brasileiras sob uma ótica interdisciplinar, crítica, antropológica, jurídica, biomédica, bioética e educacional 66. Machado PS. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2008.,77. Lima SAM. Intersexo e identidade: história de um corpo reconstruído ENT#091;Dissertação de MestradoENT#093;. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007.,88. Costa AG. As (im)possibilidades do desenvolvimento: enquadres da intersexualidade no Brasil contemporâneo ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018.,99. Pires B. Distinções do desenvolvimento sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade ENT#091;Dissertação de MestradoENT#093;. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2015.,1010. Pretes EA. Intersexualidade e direito ao próprio corpo: garantia à integridade corporal da criança intersexual e direito à autodeterminação na adolescência ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2019.,1111. Santos TEC. Educação de crianças e adolescentes intersexo ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Marília: Universidade Estadual Paulista; 2020.,1212. Schiavon AA. Legislando infâncias: coprodução da criança intersexo enquanto sujeito de direitos ENT#091;Dissertação de MestradoENT#093;. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021.. Além disso, produziu efeitos em organizações internacionais de proteção de direitos humanos e da saúde, que editaram documentos conclamando os Estados nacionais a proibirem a realização de cirurgias desnecessárias em crianças intersexo 22. Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Nascidos livres e iguais: orientação sexual e identidade de gênero no regime internacional de direitos humanos. 2ª Ed. Santiago: Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; 2019.,1313. Princípios de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. http://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2016/10/principios_yogyakarta-Portugues.pdf (acessado em 15/Mai/2021).
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,1414. Yogyakarta Principles Plus 10. Additional principles and state obligations on the application of international human rights law in relation to sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics to complement the Yogyakarta principles. https://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf (acessado em 15/Mai/2021).
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, haja vista que esses procedimentos violam os direitos humanos à saúde, à integridade mental e física e à autonomia, bem como o direito de viver livre de tortura. Isso posto, alguns Estados têm estabelecido condições para a realização das cirurgias, como é o caso da Colômbia 1515. Colombia. Sentencia T-477/95. Bogotá: Corte Constitucional; 1995.,1616. Colombia. Sentencia SU-337/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999.,1717. Colombia. Sentencia T-551/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999.,1818. Colombia. Sentencia T-1025/02. Bogotá: Corte Constitucional; 2002.,1919. Colombia. Sentencia T-912/08. Bogotá: Corte Constitucional; 2008., da Alemanha 2020. Bundesministerium der Justiz und für Verbraucherschutz. Gesetz zum Schutz von Kindern mit Varianten der Geschlechtsentwicklung. Bundesgesetzblatt 2021; 21 mai. e da Grécia 2121. Pikramenou N. Prohibition of intersex genital mutilation (IGM) procedures on intersex children. https://intersexgreece.org.gr/en/2022/07/25/3449/ (acessado em Jul/2022).
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, sendo Portugal 2222. Portugal. Lei 38, de 7 de agosto de 2018. Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Diário da República 2018; 7 ago. e Malta 2323. Malta. Gender Identity, Gender Expression and Sex Characteristics Act, 14th April, 2015. Valletta: Maltese Parliament; 2015. os únicos países a proibirem de fato essas intervenções em crianças que não têm idade mínima para consentir.

O entendimento de que os procedimentos precoces e desnecessários realizados em crianças intersexo violam direitos humanos, contudo, não é consensual. Discursos produzidos pelo campo biomédico atuam, inclusive, no sentido contrário, indicando que a realização de tais procedimentos teria justamente o condão de garantir direitos à saúde e ao melhor interesse da criança, pois viabilizariam a adequação das crianças intersexo às normas sociais de corpo sexuado, conforme pode ser observado nos trabalhos de Fagerholm et al. 2424. Fagerholm R, Santtila P, Miettinen PJ, Mattila A, Rintala R, Taskinen S. Sexual function and attitudes toward surgery after feminizing genitoplasty. J Urol 2011; 185:1900-4., Binet et al. 2525. Binet A, Lardy H, Geslin D, Francois-Fiquet C, Poli-Merol ML. Should we question early feminizing genitoplasty for patients with congenital adrenal hyperplasia and XX karyotype? J Pediatr Surg 2016; 51:465-8., Hemesath et al. 2626. Hemesath TP, De Paula LCP, Carvalho CG, Leite JCL, Guaragna-Filho G, Costa EC. Controversies on timing of sex assignment and surgery in individuals with disorders of sex development: a perspective. Front Pediatr 2018; 6:419. e Jesus 2727. Jesus LE. Feminizing genitoplasties: where are we now? J Pediatr Urol 2018; 14:407-15., entre outros. Tais procedimentos incluem cirurgias genitais e intervenções hormonais precoces, cosméticas e não consentidas pelas próprias pessoas.

Os ativismos intersexo e as pesquisas das Ciências Humanas e Sociais tensionam a noção biomédica do que se entende como evidência científica. A perspectiva crítica desses campos dá centralidade às narrativas dos sujeitos, não como elementos de experiência que precisam ser validados pelo campo biomédico, mas como produtoras de saberes válidos, que concorrem na produção de conhecimento, tal como propõe o modelo baseado na agência de pessoas intersexo 2828. Crocetti D, Monro S, Vecchietti V, Yeadon-Lee T. Towards an agency-based model of intersex, variations of sex characteristics (VSC) and DSD/dsd health. Cult Health Sex 2021; 23:500-15.. Quando, ao contrário, as pessoas intersexo são tratadas de maneira injusta em sua capacidade de conhecer, ou em sua habilidade de descrever suas experiências no mundo, estamos diante daquilo que Fricker 2929. Fricker M. Epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press; 2007. denomina injustiça epistêmica. Tal categoria permite compreender os processos de apagamento dos sujeitos intersexo na produção de evidências sobre seus próprios corpos e sobre as práticas em saúde incidentes sobre eles.

A partir da noção de (in)justiça epistêmica, este ensaio tem como objetivo identificar como os procedimentos precoces, irreversíveis e normalizadores, realizados sem o consentimento dos sujeitos intersexo, revelam-se violadores dos direitos à saúde, à integridade corporal e à autonomia e dos direitos sexuais e reprodutivos. Para tanto, partimos das disputas travadas pelos movimentos intersexo em torno da produção de evidências que embasam as práticas médicas para demonstrar como elas têm reverberado em produções acadêmicas críticas, na atuação de organizações de direitos humanos e na produção de novas legislações. Finalmente, a partir da análise de decisões judiciais e de legislações nacionais, buscamos identificar quais têm sido as estratégias para evitar as violações de direitos humanos produzidas pela realização dos procedimentos precoces, irreversíveis e normalizadores.

Injustiça epistêmica e as disputas em torno das evidências sobre os corpos intersexo

De acordo com Freitas & Machado 3030. Freitas J, Machado PS. Intersexualidades, bioética e negociações técnico-políticas. In: Facchini R, França IL, organizadoras. Direitos em disputa: LGBTI+. Campinas: Editora da Unicamp; 2020. p. 493-510., a patologização e a medicalização da intersexualidade mobilizam distintas práticas e saberes que se articulam em torno do que será considerado uma “evidência” científica no campo biomédico. Conforme sugerem 3030. Freitas J, Machado PS. Intersexualidades, bioética e negociações técnico-políticas. In: Facchini R, França IL, organizadoras. Direitos em disputa: LGBTI+. Campinas: Editora da Unicamp; 2020. p. 493-510. (p. 499), “perseguir a ideia de evidência significa mostrar como ela se desdobra e em quais dinâmicas se insere entre as especialidades biomédicas e, também, entre as pessoas intersexo”. Seguindo esse debate, algumas perguntas são fundamentais: Quem produz as evidências científicas no contexto das intersexualidades? As vozes das pessoas intersexo são ouvidas na tomada de decisão sobre seus direitos, incluindo o direito sobre o próprio corpo? Ou, ainda, como questionam as autoras 3030. Freitas J, Machado PS. Intersexualidades, bioética e negociações técnico-políticas. In: Facchini R, França IL, organizadoras. Direitos em disputa: LGBTI+. Campinas: Editora da Unicamp; 2020. p. 493-510. (p. 500): “qual engrenagem faz com que as evidências de violências e mutilações narradas pelas pessoas intersexo não funcionem como evidências médicas?”.

Machado et al. 3131. Machado PS, Costa AB, Nardi HC, Fontanari AMV, Araujo IR, Knauth DR. Follow-up of psychological outcomes of interventions in patients diagnosed with disorders of sexual development: a systematic review. J Health Psychol 2015; 21:2195-206. observaram os limites e a carência de estudos clínicos que se propõem a avaliar, em longo ou médio prazo, as práticas destinadas a “normatizar” os corpos intersexo. Nessa revisão sistemática, constataram que os resultados das intervenções e a defesa de sua realização são balizados por evidências pouco consolidadas e metodologias muito diversas. Construtos como “satisfação” e “qualidade de vida” variam em termos de definição e de formas de mensuração e, muitas vezes, podem apresentar pouca consistência. Essas fragilidades são observadas também por Jones 3232. Jones T. Intersex studies: a systematic review of international health literature. SAGE Open 2018; 8:2158244017745577. em revisão sistemática que indica a existência de uma tensão entre publicações no que se refere à perspectiva ético-analítica utilizada: de um lado, aquelas com uma visão biomédica e patologizante e, de outro, as teorias críticas, que adotam uma abordagem centrada nas experiências dos sujeitos intersexo e assumem uma crítica à patologização e aos procedimentos cosméticos em corpos intersexo.

Zeeman & Aranda 3333. Zeeman L, Aranda K. A systematic review of the health and healthcare inequalities for people with intersex variance. Int J Environ Res Public Health 2020; 17:6533., analisando estudos do campo biomédico, demonstram que a prática clínica, baseada na patologização de corpos intersexo e medicalização precoce, desnecessária e sem consentimento dos próprios sujeitos, tem ocasionado consequências prejudiciais nas experiências de algumas pessoas intersexo, assim como aumentam as insatisfações com a assistência em saúde. Com a premissa de que essas intervenções acontecem em nome da manutenção de um sexo binário, as autoras propõem que os campos da saúde passem a interrogar, desfazer e repensar sexo e gênero, de modo a ampliar os conceitos para além do binarismo.

Entre 2017 e 2018, foram publicados resultados de um projeto europeu denominado dsd-LIFE 3434. dsd-LIFE. European Union: Multidisciplinary European Consortium dsd-LIFE. https://www.dsd-life.eu/index.html# (acessado em 23/Ago/2021).
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, realizado em 14 centros médicos, alcançando 1.040 pessoas com diferenças de desenvolvimento sexual (dsd), o qual tem sido referenciado para pensar as práticas atuais e as necessidades de melhorias na atenção e no cuidado com a saúde e o bem-estar de pessoas intersexo. As produções desse projeto se direcionam para a defesa da necessidade de uma comunicação eficiente e pautada na escuta das pessoas atendidas nos serviços de saúde, sobretudo quanto à iniciativa de lhes perguntar que terminologia preferem que se utilize em relação a elas. O termo dsd, em letras minúsculas, tem sido usado em pesquisas psicossociais que dialogam com serviços em saúde, mas buscam manter um distanciamento crítico da terminologia médica DSD (distúrbios do desenvolvimento sexual).

Embora a pesquisa dsd-LIFE 3434. dsd-LIFE. European Union: Multidisciplinary European Consortium dsd-LIFE. https://www.dsd-life.eu/index.html# (acessado em 23/Ago/2021).
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envide esforços para ouvir pessoas intersexo, as pesquisadoras ainda partem de um enfoque nas práticas biomédicas, afinal, as pessoas recrutadas foram pacientes desses centros médicos, além da revisão de prontuários e exames físicos para confirmar diagnósticos. Ainda assim, dentre os resultados dos estudos dsd-LIFE, salientamos que, de modo geral, as publicações sobre o estado de saúde de pessoas com dsd pontuam que 8,6% relataram uma saúde geral ruim ou muito ruim e que 6,8% haviam tentado suicídio. As pesquisas mostram que as práticas nesses centros clínicos europeus são muito variadas, bem como sugerem o uso da terminologia alternativa: diferenças de desenvolvimento sexual.

Em contrapartida, uma pesquisa estadunidense desenvolvida por Rosenwohl-Mack et al. 35 busca descrever a saúde de pessoas adultas intersexo a partir de metodologia construída com a própria comunidade intersexo. As pesquisadoras ressaltaram a dificuldade de recrutar pessoas intersexo devido às experiências de trauma, exploração e estigmatização que já vivenciaram em ambientes clínicos e de pesquisas. Dentre os resultados, destacamos que 43% das participantes classificaram sua saúde física como regular/ruim, 53% relataram saúde mental como regular/ruim e quase um terço referiu que já tentou suicídio.

As pesquisas europeia 3434. dsd-LIFE. European Union: Multidisciplinary European Consortium dsd-LIFE. https://www.dsd-life.eu/index.html# (acessado em 23/Ago/2021).
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e estadunidense 3535. Rosenwohl-Mack A, Tamar-Mattis S, Baratz AB, Dalke KB, Ittelson A, Zieselman K, et al. A national study on the physical and mental health of intersex adults in the U.S. PLoS One 2020; 15:e0240088. evidenciam que os contextos em que foram realizadas e os elementos em que se baseiam influenciam nos resultados produzidos. Afinal, partilham de compreensão e pressupostos distintos quanto àquilo que comporá a evidência para a investigação. No estudo europeu 3434. dsd-LIFE. European Union: Multidisciplinary European Consortium dsd-LIFE. https://www.dsd-life.eu/index.html# (acessado em 23/Ago/2021).
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, a porcentagem de 8,6% de pessoas que relataram saúde geral ruim ou muito ruim é significativa, porém inferior quando comparada aos 43% encontrados na pesquisa estadunidense 3535. Rosenwohl-Mack A, Tamar-Mattis S, Baratz AB, Dalke KB, Ittelson A, Zieselman K, et al. A national study on the physical and mental health of intersex adults in the U.S. PLoS One 2020; 15:e0240088.: no contexto do estudo europeu, partiu-se de um lócus hierárquico biomédico (ambulatórios e prontuários), enquanto no do estadunidense produziu-se uma pesquisa de forma horizontalizada, junto ao ativismo político intersexo.

Nesse sentido, Crocetti et al. 2828. Crocetti D, Monro S, Vecchietti V, Yeadon-Lee T. Towards an agency-based model of intersex, variations of sex characteristics (VSC) and DSD/dsd health. Cult Health Sex 2021; 23:500-15. apostam em um modelo baseado na agência de pessoas intersexo, com variações das características sexuais (VSC) e DSD/dsd para uma abordagem em saúde dessas populações. Tal modelo deve: partir de uma ética e política da não discriminação, do respeito e da autodeterminação; questionar o binarismo sexual e de gênero, assim como as normas heterossexuais; debater acerca das variações sexuais; melhorar a comunicação com pacientes e, quando necessário, com a família; desenvolver caminhos não cirúrgicos; e conduzir um atendimento focado na pessoa intersexo, que deverá estar no centro da decisão sobre o próprio corpo. As pesquisadoras ainda ressaltam que, quando se trata de crianças intersexo, o modelo baseado na agência de pessoas intersexo deve garantir proteção e apoio para a capacidade futura de agência.

As práticas biomédicas e patologizantes dos corpos intersexo se impõem, inclusive, pela linguagem. A pesquisa de Machado et al. 3131. Machado PS, Costa AB, Nardi HC, Fontanari AMV, Araujo IR, Knauth DR. Follow-up of psychological outcomes of interventions in patients diagnosed with disorders of sexual development: a systematic review. J Health Psychol 2015; 21:2195-206. revela a massiva utilização de expressões como “de acordo com a nossa experiência” ou “nós acreditamos que”. Da mesma forma, Bastien-Charlebois & Guillot 3636. Bastien-Charlebois J, Guillot V. Medical resistance to criticism of intersex activists: operations on the frontline of credibility. In: Schneider E, Baltes-Löhr C, editores. Normed children: effects of gender and sex related normativity on childhood and adolescence. Bielefeld: Verlag; 2018. p. 257-69., ao encontrarem enunciados semelhantes advindos de equipes de saúde, apontam que são atribuídos diferentes graus de credibilidade para distintos discursos, haja vista que as falas de pessoas intersexo não são consideradas evidências por serem baseadas na experiência. Porém, as pesquisadoras apontam que tanto profissionais da saúde quanto ativistas intersexo utilizam suas experiências para justificar seus argumentos e práticas. Machado et al. 3131. Machado PS, Costa AB, Nardi HC, Fontanari AMV, Araujo IR, Knauth DR. Follow-up of psychological outcomes of interventions in patients diagnosed with disorders of sexual development: a systematic review. J Health Psychol 2015; 21:2195-206., por exemplo, demonstram como, na maior parte dos estudos analisados, destaca-se a manutenção da lógica de intervenções cirúrgicas e hormonais, assim como distintas regulações do corpo sexuado, o que não se sustenta exclusivamente nas evidências empíricas encontradas.

Com vistas a problematizar o status quo legitimado a partir da autoridade científica e da empiria baseada em um objeto externo de conhecimento, Fricker 2929. Fricker M. Epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press; 2007. analisa como as vozes das pessoas marginalizadas são tratadas e demonstra que ser convidada a fazer parte da discussão não é suficiente. De fato, ao explorar o conceito de injustiça epistêmica, a filósofa reflete sobre como algumas formas de conhecimento são validadas como mais importantes que outras, quais vozes são mais audíveis que outras e por que algumas experiências ganham mais crédito que outras. A injustiça epistêmica acontece quando alguém pode ser tratado de maneira injusta em sua capacidade de saber algo ou em sua habilidade de descrever suas experiências no mundo. Para a autora, há dois desdobramentos para esse conceito: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica.

A injustiça testemunhal ocorre quando, devido a preconceitos arraigados, se dá menor credibilidade à palavra de alguém. A credibilidade não é um processo neutro, é influenciada por códigos sociais conscientes ou inconscientes e suposições sobre como as especialidades são construídas e quem está em melhor posição para ver as coisas “como elas verdadeiramente são2929. Fricker M. Epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press; 2007.. Já a injustiça hermenêutica refere-se a uma lacuna particular em razão de as pessoas de um grupo específico, por vezes, não terem palavras específicas para descreverem suas experiências, ou porque elas e aquelas de outro grupo não têm as mesmas experiências compartilhadas. Há, assim, uma lacuna entre a experiência, a habilidade de expressá-la, de um lado, e a habilidade de compreendê-la, de outro.

Podemos identificar que, nos jogos discursivos entre o campo biomédico e as pessoas intersexo, essas duas categorias de injustiça epistêmica estão articuladas. Enquanto pessoas intersexo buscam validar sua voz para terem a experiência acreditada e tomarem decisões sobre seus próprios corpos, os saberes biomédicos têm, também, uma linguagem própria, discursivamente hierárquica (portanto assimétrica em relação àquelas que reivindicam que suas vozes sejam ouvidas), que monologa entre seus pares sobre como normalizar corpos que nomeiam como anômalos e desviantes. Conforme Fricker 2929. Fricker M. Epistemic injustice: power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press; 2007., as pessoas de grupos dominantes - no contexto de nossa pesquisa, representadas pelo corpo biomédico - têm suas vozes validadas como mais objetivas e mais especializadas, enquanto as pessoas de grupos subalternizados - aqui, as pessoas intersexo - são interpretadas como aquelas que têm vieses, que usam maior subjetividade, com interesses políticos, além de serem vistas como as que não sabem sobre o que falam. Silenciar e descredibilizar as vozes das pessoas intersexo fazem com que suas próprias narrativas sejam deslegitimadas, o que as desumaniza frente a quem tem um suposto saber-poder.

O corpo intersexo é compreendido como território político a ser dominado por quem tem poder para corrigi-lo, sob a justificativa de uma suposta normalização segundo os padrões binários de sexo biológico. Há, assim, uma regulação biomédica hegemônica dos corpos que concorre para que as pessoas intersexo sejam forçadas a se adequarem a um sistema de coerção hegemônica heteronormativo e bionormativo 3737. King BW. Biopolitics and intersex human rights: a role for applied linguistics. In: Chun CW, editor. Applied linguistics & politics. Nova York: Bloomsbury Publishing; 2020. p. 155-81..

Costa 88. Costa AG. As (im)possibilidades do desenvolvimento: enquadres da intersexualidade no Brasil contemporâneo ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2018. persegue as lógicas do desenvolvimento (biológico, econômico, cultural, político, tecnológico, moral), observando como elas produzem e são produzidas nas versões médicas, ativistas e midiáticas a respeito da intersexualidade, campos aos quais dedica à análise. A autora entende desenvolvimento enquanto um regime de categorização que classifica, a partir de relações hierárquicas de poder, narrativas e experiências como mais ou menos legítimas, normais ou desviantes, ameaçadas ou ameaçadoras. Dessa forma, pensar as disputas narrativas em torno da intersexualidade é falar das noções de desenvolvimento que as estruturam. A pesquisadora evidencia que as noções de desenvolvimento sugerem caminhos muito diferentes quando interseccionados com cada campo estudado e isso faz com que as próprias definições a respeito das temporalidades (urgência, precocidade, atrasos, adiamentos, permanências) que envolvem os procedimentos cirúrgicos em corpos intersexo, assim como o acesso a eles, tomem múltiplos contornos. O exercício de abrir mão das dicotomias - atraso/avanço, conservador/progressista, normal/patológico - demonstra que não é possível estabelecer uma única narrativa de desenvolvimento para balizar corpos, memórias, identidades e experiências de pessoas intersexo.

Para Bastien-Charlebois 3838. Bastien-Charlebois J. How medical discourse dehumanizes intersex people. https://intersexday.org/en/medical-discourse-bastien-charlebois/ (acessado em 29/Jan/2021).
https://intersexday.org/en/medical-disco...
, profissionais da medicina não só produzem as técnicas e os protocolos de intervenção, mas os legitimam para seus pares e para o público, bem como para as organizações de direitos humanos e órgãos governamentais. A linguagem e as práticas patologizantes provocam danos e desumanização da população intersexo, já que as suposições (e os preconceitos) que as sustentam acabam por promover legitimidade para as intervenções sem consentimento das crianças intersexo e para construir o sentido de que as diferenças dessas pessoas são falhas a serem corrigidas 3838. Bastien-Charlebois J. How medical discourse dehumanizes intersex people. https://intersexday.org/en/medical-discourse-bastien-charlebois/ (acessado em 29/Jan/2021).
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. Nesse sentido, Bastien-Charlebois 3838. Bastien-Charlebois J. How medical discourse dehumanizes intersex people. https://intersexday.org/en/medical-discourse-bastien-charlebois/ (acessado em 29/Jan/2021).
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,3939. Bastien-Charlebois J. Les sujets intersexes peuvent-ils (se) penser? Les empiétements de l’injustice épistémique sur le processus de subjectivation politique des personnes intersex(ué)es. Socio 2017; 9:143-62. aponta que os danos e a desumanização ocorrem quando tal discurso biomédico prescinde da participação dessa população, duvidando de sua representatividade, recusando ouvir suas críticas ou queixas quanto às intervenções não consentidas e até minimizando os danos sofridos devido aos procedimentos realizados. Além disso, profissionais de saúde que reverberam tal discurso acabam por tratar a população intersexo como fonte de informações sobre seus corpos, enquanto se recusam à efetivação de uma justiça epistêmica, que implicaria, por exemplo, consultar textos produzidos por pessoas intersexo ou citar referências de trabalhos produzidos por elas 3838. Bastien-Charlebois J. How medical discourse dehumanizes intersex people. https://intersexday.org/en/medical-discourse-bastien-charlebois/ (acessado em 29/Jan/2021).
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,3939. Bastien-Charlebois J. Les sujets intersexes peuvent-ils (se) penser? Les empiétements de l’injustice épistémique sur le processus de subjectivation politique des personnes intersex(ué)es. Socio 2017; 9:143-62..

Nesse sentido, Carpenter 4040. Carpenter M. The human rights of intersex people: addressing harmful practices and rhetoric of change. Reprod Health Matters 2016; 24:74-84. aponta ser necessária uma mudança estrutural para acabar com a patologização e a estigmatização de corpos intersexo. Para tanto, uma série de ações deveriam ser realizadas, como: a eliminação das práticas médicas prejudiciais; o reconhecimento do direito das pessoas intersexo ao consentimento livre, informado e esclarecido; a alteração dos diagnósticos da Classificação Internacional de Doenças (CID) à luz dos direitos humanos; o desafio da retórica da inclusão; o incentivo, o apoio e a ampliação de iniciativas lideradas por pessoas intersexo; e a compreensão de que essas pessoas devem estar no centro das decisões e dos gerenciamentos biomédicos, bioéticos e de direitos humanos no que tange à intersexualidade 1212. Schiavon AA. Legislando infâncias: coprodução da criança intersexo enquanto sujeito de direitos ENT#091;Dissertação de MestradoENT#093;. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021..

Na perspectiva da justiça epistêmica, os procedimentos precoces, irreversíveis e normalizadores realizados sem o consentimento dos sujeitos intersexo violam direitos humanos, como fundamentaremos a seguir.

Intervenções precoces, irreversíveis e normalizadoras como violações de direitos humanos

As disputas que envolvem a noção de evidência produzem efeitos no que se compreende como garantia de direitos humanos. Para os saberes biomédicos hegemônicos, a realização de procedimentos cirúrgicos e precoces em crianças intersexo teria o condão de lhes garantir o direito à saúde e a lhes proporcionar uma vida normal, sendo, portanto, a conduta adequada para proteger o melhor interesse das crianças. Já para os ativismos intersexo e outras abordagens centradas nas experiências dos sujeitos, tais procedimentos seriam mutiladores e violadores dos direitos à saúde e à autonomia dos sujeitos que são submetidos a eles ainda nos primeiros anos de vida. A partir da perspectiva da justiça epistêmica - para a qual as vozes das pessoas intersexo devem ser validadas, suas experiências acreditadas e as decisões sobre seus próprios corpos respeitadas -, os procedimentos precoces, irreversíveis e normalizadores realizados sem o consentimento dos sujeitos intersexo revelam-se violadores de direitos humanos.

Neste tópico, mapeamos instrumentos de direitos humanos, atualizando pesquisas como a de Pretes 1010. Pretes EA. Intersexualidade e direito ao próprio corpo: garantia à integridade corporal da criança intersexual e direito à autodeterminação na adolescência ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2019., procurando percorrer esse fio que conecta tais disputas em torno das evidências. Esses dispositivos, a partir das reivindicações do movimento político intersexo, via organizações de direitos humanos, têm conclamado os Estados para o banimento de procedimentos medicamente desnecessários em crianças intersexo. Isso se baseia no reconhecimento de que, como já apontado, essas intervenções violam os direitos humanos, tais como os direitos à saúde, à integridade mental e física, os direitos sexuais e reprodutivos, o direito de estar livre de tortura e de maus-tratos, além do direito à autonomia. O argumento a ser perseguido é que a evidência é menos um ponto de partida neutro para tomadas de decisões e mais um emaranhado complexo, que articula tensões e hierarquias de credibilidade, com desdobramentos particulares no campo dos direitos das pessoas intersexo.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou na Opinião Consultiva (OC) 24/174141. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de noviembre de 2017 solicitada por la República de Costa Rica. Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo. http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf (acessado em 06/Jan/2023).
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sobre a interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos no que se refere ao reconhecimento da identidade de gênero, concretizada nas retificações de nome no registro civil. Apesar de não tratar especificamente de pessoas intersexo, suscita reflexões que podem ser empregadas para essa população. Uma delas se refere à desnecessidade de realização de cirurgias e de intervenções hormonais como condição à alteração do registro civil, reconhecendo a autodeclaração como elemento suficiente para levar adiante esse procedimento. Outra reflexão se relaciona ao reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes à identidade de gênero, que implica sua escuta em todas as decisões que afetem suas vidas. Esse argumento pode ser utilizado para pensar não só em crianças trans, mas também nas crianças intersexo, que deveriam ser ouvidas antes da realização de procedimentos cirúrgicos e hormonais desnecessários.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Assembleia Parlamentar da Europa recomendaram que os Estados revisem os protocolos médicos que estabelecem intervenções desnecessárias em crianças e que os procedimentos sejam adiados até que elas sejam capazes de dar seu consentimento prévio, livre e informado 4242. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Violencia contra personas lesbianas, gay, bisexuales, trans e intersex en América. http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/violenciapersonaslgbti.pdf (acessado em 06/Jan/2023).
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,4343. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Avances y desafíos hacia el reconocimiento de los derechos de las personas LGBTI en las Américas. http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/LGBTI-ReconocimientoDerechos2019.docx (acessado em 06/Jan/2023).
http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs...
,4444. Parliamentary Assembly, Council of Europe. Resolution 2191 (2017). Promoting the human rights of and eliminating discrimination against intersex people. https://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-XML2HTML-en.asp?fileid=24232 (acessado em 06/Jan/2023).
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,4545. Parliamentary Assembly, Council of Europe. Recommendation 2116 (2017). Promoting the human rights of and eliminating discrimination against intersex people. https://assembly.coe.int/nw/xml/XRef/Xref-DocDetails-en.asp?FileID=24230⟨=en (acessado em 06/Jan/2023).
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. Isso é reiterado no documento intitulado Nascidos Livres e Iguais: Orientação Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacional de Direitos Humanos22. Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Nascidos livres e iguais: orientação sexual e identidade de gênero no regime internacional de direitos humanos. 2ª Ed. Santiago: Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; 2019., em que procedimentos invasivos (cirurgias e exames dolorosos, entre outros) são referidos como causadores de sofrimentos físicos e psicológicos de longa duração que afetam os direitos das crianças intersexo à integridade física, à saúde, à autonomia e que podem constituir tortura ou maus-tratos.

O direito à saúde, entendido como estado de completo bem-estar físico, mental e social 4646. Organização Mundial da Saúde. Constituição da Organização Mundial da Saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 1946.,4747. Organização dos Estados Americanos. Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - Protocolo de San Salvador. San Salvador: Organização dos Estados Americanos; 1988., que permeia as discussões sobre a realização dos procedimentos precoces em crianças intersexo, não pode ser apartado do direito à autonomia de decidirem pela realização ou não de tais procedimentos. Esse debate alinha-se à afirmação de que crianças intersexo que são submetidas a procedimentos “normalizadores” têm seus direitos à saúde sexual e reprodutiva violados, conforme o que consta em documento de autoria de um conjunto de oito agências da Organização das Nações Unidas (ONU), entre elas a Organização Mundial da Saúde (OMS) 4848. World Health Organization. Eliminating forced, coercive and otherwise involuntary sterilization: an interagency statement, OHCHR, UN Women, UNAIDS, UNDP, UNFPA, UNICEF and WHO. Genebra: World Health Organization; 2014..

Em declaração pelo Dia da Consciência Intersexo, um grupo de especialistas em direitos humanos da ONU fez um chamado para um urgente fim das violações de direitos humanos em crianças e adultos intersexo 4949. Office of the High Commissioner for Human Rights. Intersex Awareness Day - Wednesday 26 October 2016. End violence and harmful medical practices on intersex children and adults, UN and regional experts urge. https://www.ohchr.org/en/2016/10/intersex-awareness-day-wednesday-26-october (acessado em 06/Jan/2023).
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. Nesse documento, é dito que crianças intersexo que passam por procedimentos de “normalização” corporal sofrem “infertilidade permanente, perda de sensação sexual, causando dor ao longo da vida e sofrimento psicológico severo, incluindo depressão e vergonha ligadas às tentativas de esconder e apagar traços intersexo4949. Office of the High Commissioner for Human Rights. Intersex Awareness Day - Wednesday 26 October 2016. End violence and harmful medical practices on intersex children and adults, UN and regional experts urge. https://www.ohchr.org/en/2016/10/intersex-awareness-day-wednesday-26-october (acessado em 06/Jan/2023).
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. Entre as medidas recomendadas aos Estados estão: fortalecer a integração entre os princípios de direitos humanos e os protocolos editados por órgãos regulatórios e profissionais; investigar as violações de direitos humanos sofridas por pessoas intersexo; e “responsabilizar os culpados de perpetrar tais violações e fornecer reparação e compensação4949. Office of the High Commissioner for Human Rights. Intersex Awareness Day - Wednesday 26 October 2016. End violence and harmful medical practices on intersex children and adults, UN and regional experts urge. https://www.ohchr.org/en/2016/10/intersex-awareness-day-wednesday-26-october (acessado em 06/Jan/2023).
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, bem como proporcionar treinamento a profissionais da saúde e membros do sistema de justiça.

O direito à integridade corporal (física e mental) e o direito de estar livre de tortura estão enunciados em diversas normas de direitos humanos 5050. Brasil. Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Diário Oficial da União1989; 13 nov.,5151. Brasil. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Diário Oficial da União1989; 13 nov.. O Relator Especial sobre Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em documento apresentado perante a Assembleia Geral da ONU 5252. Office of the High Commissioner for Human Rights. Special rapporteur on torture and other cruel, in human or degrading treatment or punishment. About the mandate. https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-torture (acessado em 06/Jan/2023).
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, afirma que as cirurgias realizadas com a tentativa de determinar um sexo causam sofrimento mental severo e infertilidade permanente e irreversível. Por fim, há um chamamento para que seja proibida a realização dessas cirurgias sem o consentimento das pessoas envolvidas. Da mesma forma, os Princípios de Yogyakarta +10 1414. Yogyakarta Principles Plus 10. Additional principles and state obligations on the application of international human rights law in relation to sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics to complement the Yogyakarta principles. https://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf (acessado em 15/Mai/2021).
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, quando tratam do direito à liberdade contra tortura e tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante, recomendam a proibição da prática de tratamentos intrusivos e irreversíveis, tais como cirurgia de normalização genital forçada, quando realizados sem o consentimento.

A produção da violação de direitos humanos pelas cirurgias realizadas em crianças intersexo demonstra como os direitos à saúde e à integridade física e mental estão integrados à compreensão que se tem sobre os direitos à autonomia, ao consentimento informado, livre e esclarecido e ao melhor interesse da criança. Tais fundamentos são acionados, pelo campo biomédico, para justificar esses procedimentos, mesmo quando os sujeitos não têm condições de opinar sobre sua realização.

O consentimento informado, livre e esclarecido é um dos conceitos centrais na bioética. Efetiva-se quando uma usuária de serviço de saúde ou participante de pesquisa, em condições de decidir de forma autônoma, recebe uma informação adequada, compreende e manifesta induvidosamente sua vontade de se submeter a determinada intervenção ou fazer parte da pesquisa. A informação deve ser compreensível, abrangendo os riscos e benefícios associados ao procedimento e as alternativas existentes. Esse tipo de consentimento é uma das materializações do direito à autonomia, à livre determinação e à dignidade humana; além disso, está interconectado com os direitos à não discriminação, à liberdade de pensamento e expressão e ao reconhecimento perante a lei 5353. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. 33ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO. Paris: Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura; 2005.,5454. Nunes R. Ensaios em bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina; 2017..

Eler & Oliveira 5555. Eler KCG, Oliveira AAS. O assentimento ao consentimento das crianças para participar em pesquisa clínica: por uma capacidade sanitária juridicamente reconhecida. Pensar 2019; 24:1-13. afirmam ser comum optar por um critério etário como uma tentativa de facilitar a operacionalidade dos processos que versam sobre consentimento e assentimento. No entanto, deve-se considerar que tais critérios são insuficientes para determinar certo nível de capacidade ou maturidade. No Brasil, a capacidade jurídica plena é alcançada apenas com 18 anos, sendo que pessoas menores de 16 são consideradas absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º do Código Civil5656. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União2002; 11 jan.). Contudo, o consentimento e/ou assentimento bioético não deveria estar atrelado à capacidade civil.

Conforme apontam Borges et al. 5757. Borges RC, Souza ASL, Lima IMSO. A autonomia da criança intersexual: crítica à teoria jurídica das incapacidades. Espaço Jurídico Journal of Law 2016; 17:933-56., a teoria das capacidades, positivada no Código Civil, foi desenvolvida em um momento em que o Direito Civil era guiado pela tutela de interesses patrimoniais. Hoje, essa perspectiva se mostra insuficiente, pois não atende aos interesses ligados à personalidade, como a privacidade, o corpo, a vida, a imagem, o nome, a honra e a liberdade. Nesse sentido, o jurista italiano Perlingieri 5858. Perlingieri P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar; 1999. atenta que a rígida separação entre capacidade e incapacidade, maioridade e menoridade, prevista nas leis civis, é limitada. Afinal, os direitos da personalidade não tutelam apenas situações existenciais específicas (como as patrimoniais), mas sim o valor da pessoa, vista de forma unitária, sob a ótica da personalidade jurídica. Dessa forma, devem ser superados os obstáculos de direito e que de fato impedem o exercício gradual, conforme a maturidade e o desenvolvimento do sujeito, para exercer o progressivo cumprimento de sua autonomia 5858. Perlingieri P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar; 1999.. Assim, deve-se reconhecer aos sujeitos considerados incapazes pelo Código Civil brasileiro, como é o caso das crianças, algum grau de autonomia, que decorre justamente da sua condição de pessoa e que, portanto, não pode estar plenamente limitada, sob pena de violação da sua personalidade jurídica.

Nesse sentido, o artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Crianças 5959. Brasil. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União1990; 22 nov. assegura às crianças o direito de serem ouvidas e considera que, conforme sua idade e maturidade, podem “formular seus próprios juízos” e ter “o direito de expressar suas opiniões livremente”. No Brasil, um dos possíveis desdobramentos desse direito é a previsão de que crianças devem dar o seu assentimento para participação em pesquisas, mesmo que já tenha sido dado o consentimento de suas responsáveis 6060. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União2016; 24 mai..

A Recomendação nº 1/2016 do CFM 6161. Conselho Federal de Medicina. Recomendação CFM nº 1/2016. Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e esclarecido na assistência médica. Brasília: Câmara Técnica de Bioética do CFM; 2016. versa sobre a obtenção do consentimento informado, livre e esclarecido, dispõe brevemente acerca do assentimento e estabelece o incentivo à participação da criança na obtenção do assentimento livre e esclarecido. No entanto, o assentimento, por si só, não é suficiente em relação à garantia de proteção da integridade física e autonomia das crianças intersexo, já que não é uma alternativa possível nos primeiros 24 meses de vida, período em que iniciam, em geral, as intervenções em seus corpos.

A Resolução nº 1.664/2003 do CFM 11. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.664, de 13 de maio de 2003. Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Diário Oficial da União 2003; 13 mai., que regula as intervenções nos corpos das crianças intersexo, ao produzir um imperativo de urgência biológica e social para justificar procedimentos precoces, cria um impedimento para que as pessoas intersexo possam decidir sobre seus corpos. A normativa estabelece que a realização das intervenções precoces se dá a partir de participação e consentimento de familiares e responsáveis. Logo, outra questão que surge é se mães e pais devem ter o poder para consentir na realização de cirurgias cosméticas genitais em suas crianças. Produções acadêmicas de ativistas do movimento intersexo 33. Cabral M, editor. Interdicciones: escrituras de la intersexualidad en castellano. Córdoba: Anarrés Editorial; 2009.,44. Carpenter M. Intersex human rights, sexual orientation, gender identity, sex characteristics and the Yogyakarta principles plus 10. Cult Health Sex 2021; 23:516-32.,55. Vieira AM. Reflexões sobre corpos dissidentes sob o olhar feminista decolonial-queer. In: Dias MB, Barreto FCL, organizadoras. Intersexo: aspectos jurídicos, internacionais, trabalhistas, registrais, médicos, psicológicos, sociais, culturais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil; 2018. p. 481-92.,1111. Santos TEC. Educação de crianças e adolescentes intersexo ENT#091;Tese de DoutoradoENT#093;. Marília: Universidade Estadual Paulista; 2020.,3636. Bastien-Charlebois J, Guillot V. Medical resistance to criticism of intersex activists: operations on the frontline of credibility. In: Schneider E, Baltes-Löhr C, editores. Normed children: effects of gender and sex related normativity on childhood and adolescence. Bielefeld: Verlag; 2018. p. 257-69.,6262. Morland I. What can queer theory do for intersex? GLQ 2009; 15:285-312. afirmam que essa prática biomédica viola o direito à autonomia, visto que a criança intersexo tem seu corpo modificado sem o próprio consentimento, reduzindo e/ou limitando-lhe as opções de escolhas futuras. Portanto, tais estudos se opõem à realização desses procedimentos e propõem que somente os sujeitos afetados, quando tiverem idade adequada, devem poder consentir com as intervenções.

Desde 1995, a Corte Constitucional da Colômbia discute, a partir da sentença T-477/95 1515. Colombia. Sentencia T-477/95. Bogotá: Corte Constitucional; 1995., quais são os limites do consentimento parental para realização de procedimentos médicos em crianças, ponderando os princípios da autonomia e do paternalismo. Concluiu, no caso concreto, que o “reajuste sexual” não é possível sem a autorização direta da paciente, tendo em vista que as crianças não são propriedade de ninguém, nem de mães, pais e/ou responsáveis, nem da sociedade. A Corte ainda estabeleceu, nessa decisão, algumas questões a serem consideradas quando se analisa o consentimento informado dado pelos responsáveis: (a) a urgência e a importância do tratamento para a criança; (b) a intensidade do impacto do tratamento sobre a autonomia atual e futura da criança; e (c) a idade da criança 6363. Sánchez PG, Acevedo CV, Quintero SPD. Problemática jurídica de los estados intersexuales: el caso colombiano. Iatreia 2010; 23:204-11.. Nas sentenças SU-337/99 1616. Colombia. Sentencia SU-337/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999. e T-551/99 1717. Colombia. Sentencia T-551/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999., a Corte avançou no debate e decidiu que o limite de idade para que possa haver o consentimento informado substituído, ou seja, dado pelos responsáveis, é de cinco anos. Caso a criança tenha ultrapassado essa idade, o consentimento deve ser dado por ela 1515. Colombia. Sentencia T-477/95. Bogotá: Corte Constitucional; 1995.,1616. Colombia. Sentencia SU-337/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999.,1717. Colombia. Sentencia T-551/99. Bogotá: Corte Constitucional; 1999.,1818. Colombia. Sentencia T-1025/02. Bogotá: Corte Constitucional; 2002.,1919. Colombia. Sentencia T-912/08. Bogotá: Corte Constitucional; 2008..

Essa decisão, contudo, não impede que as cirurgias sejam realizadas antes dos cinco anos com o consentimento substituído, o que pode produzir, na prática, o efeito da antecipação dos procedimentos para antes dessa idade, como forma de driblar a exigência do consentimento da criança. Para essa decisão, ainda, não basta que o consentimento seja informado, ele deve ser qualificado e persistente. Ou seja, a pessoa e sua família devem contar com um grupo de apoio interdisciplinar que lhes forneça informações sobre as diversas opções de tratamento, de modo que possam ser compreendidos riscos e consequências e possam ser decididas as melhores alternativas - inclusive a decisão de não realizar procedimentos. A autorização também deve se dar de forma reiterada, com o objetivo de que a escolha reflita uma opção pensada e sólida, e não o resultado de um estado de ânimo momentâneo 6363. Sánchez PG, Acevedo CV, Quintero SPD. Problemática jurídica de los estados intersexuales: el caso colombiano. Iatreia 2010; 23:204-11.. Já nas sentenças T-1025/02 1818. Colombia. Sentencia T-1025/02. Bogotá: Corte Constitucional; 2002. e T-912/08 1919. Colombia. Sentencia T-912/08. Bogotá: Corte Constitucional; 2008., a Corte colombiana estabeleceu que, em caso de posições divergentes entre a criança, as pessoas por ela responsáveis e a equipe médica, deve preponderar a posição da criança intersexo, em respeito aos direitos da identidade pessoal e sexual e ao livre desenvolvimento da personalidade e da saúde.

A pergunta que se propõe aqui é: como considerar e garantir o melhor interesse da criança? Apesar das discussões propostas pelos ativistas acerca do adiamento dos procedimentos cosméticos em crianças intersexo, a maioria das médicas acredita que as alterações cirúrgicas representam o melhor interesse das crianças, bem como dizem que as pessoas por ela responsáveis, quando bem informadas sobre os riscos e benefícios, devem poder decidir 6464. Greenberg JA. Health care issues affecting people with an intersex condition or DSD: sex or disability discrimination? Loyola of Los Angeles Law Review 2012; 45:849-908.. O melhor interesse da criança, para essas médicas, implica garantir que os corpos intersexo sejam ​​“normalizados” e que, assim, possam ser lidos pelas lentes binárias, o que evitaria discriminações futuras ou desconforto da criança com seu corpo. Esse desconforto e a discriminação são produzidos pelo olhar patologizante dirigido ao corpo intersexo, perspectiva que emerge de uma estrutura social que só consegue ver os corpos como binários. Ou seja, o princípio do melhor interesse da criança é acionado pelas equipes de saúde para justificar o reforço às mesmas normas de gênero que produzem os sujeitos intersexo como anormais. Há, portanto, uma inversão do conteúdo desse direito, que, de proteção e priorização da criança, passa a ser a defesa de uma norma corporal preestabelecida.

A incorporação ao direito brasileiro da Convenção sobre os Direitos da Criança pelo Decreto nº 99.710, de 21 de novembro 1990 5959. Brasil. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União1990; 22 nov., e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente na Lei nº 8.069/19906565. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União1990; 13 jul. estabeleceram o princípio da proteção integral, segundo o qual todas as crianças e adolescentes devem ser reconhecidas como sujeitos de direitos e devem ser protegidas, com prioridade absoluta, pela família, pela sociedade e pelo Estado 6666. Zapater M. Direito da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva; 2019., o que envolve a garantia de sua integridade física e mental. Portanto, respeitar o melhor interesse da criança não pode significar discriminá-la em suas diferenças, mutilando seu corpo por meio de procedimentos cirúrgicos desnecessários para ser “normalizado”. Pelo contrário, significa preservar sua integridade física e protegê-la contra intervenções discriminatórias não consentidas.

Os Princípios de Yogyakarta 1313. Princípios de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. http://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2016/10/principios_yogyakarta-Portugues.pdf (acessado em 15/Mai/2021).
http://yogyakartaprinciples.org/wp-conte...
,1414. Yogyakarta Principles Plus 10. Additional principles and state obligations on the application of international human rights law in relation to sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics to complement the Yogyakarta principles. https://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf (acessado em 15/Mai/2021).
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, além de preverem os direitos à igualdade e não discriminação (Princípio 2), quando tratam da proteção contra abusos médicos (Princípio 18) e do direito à integridade corporal e mental, autonomia e autodeterminação dos sujeitos (Princípio 32), também explicitam, invocando o melhor interesse da criança, que os Estados devem assegurar que elas não sejam submetidas a tratamentos médicos invasivos ou irreversíveis que alterem suas características sexuais, destinados a lhes impor uma identidade de gênero, sem o seu pleno consentimento.

Alguns países, atentos às reivindicações do movimento intersexo e às recomendações das organizações de direitos humanos, já incorporaram às suas legislações normas protetivas dos sujeitos intersexo. Malta e Portugal editaram leis que proíbem expressamente a realização de cirurgias e demais procedimentos dispensáveis em crianças intersexo que não tenham idade para consentir, em respeito aos direitos à integridade corporal, à autonomia e à identidade de gênero. A Lei de Identidade, Expressão de Gênero e Características Sexuais, de Malta 2323. Malta. Gender Identity, Gender Expression and Sex Characteristics Act, 14th April, 2015. Valletta: Maltese Parliament; 2015., prevê que o tratamento pode ser efetuado após a indicação da equipe interdisciplinar e o consentimento dado pelas representantes da criança apenas em casos excepcionais e que não sejam motivados por questões sociais. Caso essas determinações não sejam respeitadas e procedimentos desnecessários sejam realizados, médicas e outras profissionais responsáveis podem ser punidas com multa e pena de prisão de até cinco anos.

A lei portuguesa 2222. Portugal. Lei 38, de 7 de agosto de 2018. Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Diário da República 2018; 7 ago., seguindo os passos de Malta 2323. Malta. Gender Identity, Gender Expression and Sex Characteristics Act, 14th April, 2015. Valletta: Maltese Parliament; 2015., proíbe modificações corporais em crianças intersexo, excetuando apenas aquelas realizadas quando há comprovado risco para sua saúde. Contudo, não especifica que o risco para a saúde não envolve casos motivados por questões sociais. Nesse sentido, a lei dá margem para que intervenções em bebês e crianças aconteçam antes que eles possam manifestar sua identidade de gênero, alegando-se risco para sua saúde psíquica.

A lei alemã sobre proteção de crianças com variantes de desenvolvimento sexual 2020. Bundesministerium der Justiz und für Verbraucherschutz. Gesetz zum Schutz von Kindern mit Varianten der Geschlechtsentwicklung. Bundesgesetzblatt 2021; 21 mai. proíbe cirurgias com intuito meramente cosmético - realizadas com a intenção de adequação da aparência física ao sexo masculino ou ao feminino - em crianças que são incapazes de dar seu consentimento. Entretanto, a lei permite intervenções médicas em duas situações: quando há uma situação de risco à saúde e/ou à vida e a cirurgia não puder ser adiada ou com uma autorização do Poder Judiciário, que deve submeter a questão a uma comissão interdisciplinar (médica da criança, outra médica, psicóloga ou psiquiatra infantojuvenil, bioeticista e, por solicitação de responsável pela criança, uma pessoa com variante de desenvolvimento sexual). Com isso, essa lei propõe uma mudança do questionamento que deve ser feito quando se discute a realização de cirurgias em crianças intersexo. Em vez de se questionar por que fazer a cirurgia, preconiza que se pergunte por que não adiá-la. Apesar dessa importante ruptura, assim como ocorre com a lei portuguesa, a lei alemã não proíbe expressamente as cirurgias motivadas por questões sociais e culturais. Na Grécia, uma lei aprovada em 19 de julho de 2022 tem semelhanças com a lei alemã ao proibir tratamentos e procedimentos médicos em crianças e adolescentes intersexo com menos de 15 anos, exceto com permissão judicial e nos casos em que não possam ser adiados até que seja alcançada a idade de 15 anos e não causem complicações à saúde 2121. Pikramenou N. Prohibition of intersex genital mutilation (IGM) procedures on intersex children. https://intersexgreece.org.gr/en/2022/07/25/3449/ (acessado em Jul/2022).
https://intersexgreece.org.gr/en/2022/07...
.

Partindo, portanto, de um olhar de direitos humanos baseado na justiça epistêmica, não há como se apartar as discussões sobre direito à saúde daquelas que envolvem a proteção da autonomia das crianças intersexo. Essa autonomia envolve o direito a um futuro aberto 1212. Schiavon AA. Legislando infâncias: coprodução da criança intersexo enquanto sujeito de direitos ENT#091;Dissertação de MestradoENT#093;. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2021., que só será possível com a proibição das intervenções cirúrgicas precoces, invasivas e desnecessárias. Apenas dessa forma é possível considerar o melhor interesse da criança, com a valorização e a escuta de sua voz, permitindo que consinta ou assinta acerca dessas intervenções tão impactantes para sua vida.

Considerações finais

Considerando os mapeamentos e as discussões realizadas ao longo deste artigo, tecemos, a seguir, proposições para se pensar a garantia de direitos à população intersexo no Brasil, diante das violações ocasionadas por uma prática em saúde injusta e discriminatória. De modo a evitar a injustiça epistêmica, as diversas instituições (biomédicas, jurídicas, educacionais, familiares) que intervêm, em diferentes níveis, sobre corpos intersexo devem partir de uma responsabilidade ética com os próprios sujeitos intersexo. Para tanto, as práticas de escuta e acolhimento das demandas de pessoas intersexo são imprescindíveis, assim como torná-las parte de quaisquer decisões que afetarão sua existência. Logo, propomos que pessoas intersexo estejam no centro das decisões sobre o próprio corpo, o que corresponde à participação desses sujeitos na gestão e no desenvolvimento de políticas públicas e institucionais e ao incentivo às iniciativas dos movimentos sociais.

No que diz respeito às atuações em saúde, elas devem ser pautadas nos direitos humanos, na perspectiva da justiça epistêmica e em uma ética e política de despatologização, não discriminação e respeito à autonomia e autodeterminação de pessoas intersexo. Da mesma forma, tais práticas não devem estar sustentadas pelas normas binárias para pensar a diferença dos corpos. Ainda, devem ser debatidos, junto a pacientes e familiares, caminhos não cirúrgicos, e proibidas as intervenções precoces, invasivas, mutilatórias, prejudiciais, cosméticas e não consentidas nos corpos de crianças intersexo, com vistas a garantir proteção e apoio para o exercício futuro da sua autonomia. Em casos de possível risco à saúde e à vida, como pacientes com hiperplasia adrenal congênita em sua forma perdedora de sal, deve-se intervir no sentido de salvar a vida da criança, sem que sejam realizados procedimentos desnecessários e precoces, baseados em estereótipos de sexo e gênero.

Propomos, assim, que seja revogada a Resolução nº 1.664/200311. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.664, de 13 de maio de 2003. Define as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Diário Oficial da União 2003; 13 mai. e criada uma comissão interdisciplinar para elaborar uma nova resolução, que vá ao encontro da política de despatologização, não discriminação e não estigmatização dos corpos intersexo, com participação de diferentes instâncias bioéticas e de direitos humanos, assim como com o envolvimento de pessoas do ativismo político intersexo. Além dessa proposta de mudança no âmbito do CFM, é importante que seja elaborada uma lei nacional de proteção às pessoas intersexo, utilizando como parâmetro a Lei de Identidade, Expressão de Gênero e Características Sexuais de Malta, tendo em vista os avanços que propõe em direção à despatologização, ao rompimento com os binarismos, ao respeito à autonomia e à promoção da justiça epistêmica. Entretanto, considerando a gravidade das violações de direitos humanos fundamentais, apresentadas neste ensaio, os órgãos competentes devem promover medidas urgentes para o banimento das intervenções precoces, invasivas, mutilatórias, prejudiciais, cosméticas e não consentidas nos corpos de crianças intersexo.

Agradecimentos

Agradecemos a colaboração de Thaíse de Soares Deponti, enfermeira e acadêmica do Curso de Medicina (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre), na fase de revisão e finalização deste manuscrito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2022
  • Revisado
    16 Dez 2022
  • Aceito
    21 Dez 2022
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