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Antropologia do corpo e modernidade

RESENHAS BOOK REVIEWS

Instituto Nacional de Saúde da Criança, da Mulher e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. romeu@iff.fiocruz.br

Le Breton D. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. 407p.

ISBN: 978-85-326-2449-9

David Le Breton já é um autor conhecido nos meios acadêmicos brasileiros (Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade 1 1 . Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus Editora; 2003. , A Sociologia do Corpo 2 2 . Le Breton D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2006. e As Paixões Ordinárias: Antropologia das Emoções 3 3 . Le Breton D. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Editora Vozes; 2009. ). Apesar de a primeira edição de Antropologia do Corpo e Modernidade ter sido lançada na França em 1990 e a terceira e última ser de 2003, só agora os leitores podem tomar contato com ideias seminais que parecem ser o pilar das outras obras do autor. Nela, a premissa maior é que o corpo é uma construção simbólica e não uma realidade em si. Nesse sentido, o corpo que parece ser evidente é mais inapreensível do que se pensa, uma vez que é efeito de uma construção social e cultural.

Le Breton traz uma análise de longo alcance, que se estende do início da modernidade até as experiências genéticas atuais. Segundo o autor, ao longo do tempo, veio sendo construída uma paradoxal concepção acerca do corpo. De um lado, ele é visto como o demarcador das fronteiras entre o indivíduo e o mundo; de outro, é concebido como dissociado do homem. Em outras palavras, instala-se uma bipolaridade: uma visão do corpo mais como um ter do que um ser, em que o homem não só se distancia do corpo, mas também o deprecia, e outra que faz do corpo a identidade do homem, produzindo no indivíduo um sentimento novo de ser ele mesmo, antes de ser membro de uma comunidade.

Esse paradoxo se traduz por uma tripla cisão, gestada no intervalo entre os séculos XVI e XVII. Assim - ao contrário do que se verifica na Idade Média e no Renascimento - na Modernidade ocidental observa-se a concepção do homem cindido de si mesmo (divisão entre homem e corpo), dos outros e do cosmo. Isso, de certa forma, rompe com o pensamento das sociedades tradicionais, em que não se concebia a separação entre a pessoa e o seu corpo; o homem e os outros; e as matérias constituintes do homem e as que dão consistência ao cosmo.

Da Modernidade aos dias atuais, no cenário ocidental, várias concepções sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira polissemia corporal. Segundo o autor, essas concepções são tributadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado individualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pública é valorizada), a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando no estudo do corpo como realidade em si mesma, dissociada do homem) e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo).

Na linha do tempo, o autor destaca os anos 60 do século XX como cenário do desenvolvimento de um novo imaginário ocidental acerca do corpo, traduzido em discursos e práticas revestidos pela mídia. Nessa instância, o corpo se torna uma espécie de alter ego. Ele passa a ser o lugar do bem-estar, do bem-parecer, da paixão pelo esforço ou pelo risco. Investimentos midiáticos voltados para esses focos são produzidos, tematizados no body-bulding, nos cosméticos, nas dietéticas, nas maratonas e nos esportes de risco.

Na sociedade ocidental atual, para o autor, predomina o divórcio entre dois conjuntos de representações do corpo: um relacionado aos saberes populares e outro tributado à cultura erudita, principalmente de natureza biomédica. Transitam nessas representações as visões de gênero e de categorias sociais, que ora se diferenciam, ora se intercambiam. Nesse sentido, em termos gerais, os signos corporais tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino não só coexistem separadamente, como também se deslocam de um gênero para outro. Assim, observa-se que o corpo de homem pode se tornar sexual e o de mulher, musculoso. Quanto às categorias sociais, destaca-se que a aposta simbólica do corpo pode se dar apenas para alguns segmentos sociais, enquanto outros podem valorizar mais a força e a resistência do que a forma e o bem-parecer.

O saber biomédico - visto como representação oficial do corpo humano atual - é destaque na obra em questão. Nessa discussão, o autor focaliza vários temas: a separação do sujeito de seu corpo em busca de uma eficácia médica; a imagética médica, que busca atravessar o interior do corpo invisível; a procriação sem a sexualidade; o efeito do placebo; as relações e tensões entre a medicina e as medicinas vistas como paralelas, dentre outros temas.

Ao longo da obra, são reforçados os posicionamentos de vários antropólogos que defendem que os corpos, além de serem biologicamente constituídos, passam por processos de modelação cultural, assumindo distintos significados em distintos espaços sociais e diferentes épocas. Marcel Mauss 4 4 . Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003. é uma referência clássica no conjunto desses posicionamentos. Segundo ele, o corpo tanto é a ferramenta original com que os humanos moldam o seu mundo, como é a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado. A construção cultural diz respeito às técnicas tradicionais de saber servir desenvolvidas pelo corpo, referindo-se ainda à imitação de atos que são bem-sucedidos e observados em pessoas consideradas autoridades por quem imita.

Le Breton não só atualiza esse debate da construção cultural do corpo, como também pode estabelecer diálogo com posicionamentos que procuram lidar com as tensões entre natureza e cultura que atravessam a discussão acerca do corpo. Nesses posicionamentos, destaca-se o de Butler, que, em uma entrevista 5 5 . Prins B, Meijer IC. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas 2002; 10:155-67. , observa que tanto a materialidade precisa do discurso para se tornar acessível, quanto o discurso não conseguem captar totalmente a materialidade que lhes é anterior, revelando, assim, um limite à construtividade.

  • Antropologia do corpo e modernidade

    Romeu Gomes
  • 1
    . Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus Editora; 2003.
  • 2
    . Le Breton D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2006.
  • 3
    . Le Breton D. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Editora Vozes; 2009.
  • 4
    . Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify; 2003.
  • 5
    . Prins B, Meijer IC. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas 2002; 10:155-67.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2011
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