Open-access Passado, presente e futuro do rastreamento do câncer de colo do útero no Brasil: lições aprendidas?

Estamos vivendo um momento histórico de transição no controle do câncer do colo do útero no Brasil, com a iminência de uma mudança tanto do ponto de vista tecnológico quanto - espera-se também - do modelo organizacional do programa. Em 2024, foi aprovada, na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde no Sistema Único de Saúde (CONITEC), a incorporação do rastreamento primário com teste de HPV em substituição ao citopatológico do colo do útero e de forma atrelada à instituição de um programa organizado de base-populacional 1. Em seguida, foram desenvolvidas as novas diretrizes brasileiras de rastreamento do câncer do colo do útero, as quais já foram aprovadas em fevereiro de 2025 na CONITEC, aguardando apenas sua publicação final 2. Nestas novas diretrizes, o citopatológico apresenta-se deslocado para um papel de exame de triagem após o rastreamento de casos positivos para HPV oncogênico não 16 ou 18, não sendo recomendado para rastreamento primário em conjunto com o teste de HPV, o que configuraria o chamado coteste 2.

Portanto, um momento propício para uma avaliação dos erros e acertos dos últimos 97 anos, nos quais acompanhamos o desenrolar das diversas fases do ciclo dessa tecnologia, incluindo sua difusão e utilização como parte central de programa de saúde pública em todo o mundo. Desde o desenvolvimento e publicação dos resultados iniciais por Georgios Papanicolaou, em 1928, seguidos de seu artigo de 1941, que foi decisivo para a maior difusão do método 3. No Brasil, o citopatológico foi paulatinamente se estabelecendo como padrão para rastreamento do câncer do colo do útero ao longo das décadas seguintes, de forma que a sua cobertura no país em 1983 foi estimada em 1,2% das mulheres acima de 15 anos, em artigo publicado no segundo volume de CSP (1986) 4. No fim dos anos 1990, o projeto Viva Mulher foi iniciado como piloto em algumas cidades, seguido por uma rápida expansão nacional do programa de rastreamento, que adotou um modelo organizacional predominantemente oportunístico, oficializando, como ferramenta de monitoramento, o Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero (SISCOLO), precursor do atual Sistema de Informação do Câncer (SISCAN) 5.

Nas décadas que se seguiram, o rastreamento do câncer do colo do útero, continuou figurando como prioridade de saúde pública no país em publicações oficiais, como por exemplo, no Pacto Pela Vida de 2006, o qual previa uma meta de cobertura de 80% para o rastreamento e no Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis no Brasil de 2011-2022. A despeito disso, o cenário atual do câncer do colo do útero no Brasil, ainda preocupa. A taxa de incidência de 15,38 casos a cada 100 mil mulheres, estimada para Brasil em 2025 ainda está longe da meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 4 por 100 mil, chegando a 20,48 por 100 mil na Região Norte 6. Do ano 2000 até 2021 predominou a tendência de aumento das taxas de mortalidade nas regiões Norte e Nordeste, mesmo após ajuste por idade 7.

Por que, mesmo tantas décadas depois de implantado, o impacto do programa de rastreamento ficou aquém do esperado no Brasil? Diversos problemas de implementação explicam esse déficit de efetividade. Parte deles se deve a características do próprio teste, que demanda treinamento de profissionais especializados para sua coleta e interpretação. Isso resulta em problemas persistentes de qualidade, com muitos municípios com baixa qualidade da coleta e diversos estados com baixa positividade ou com positividade inflada por resultados inconclusivos como células escamosas atípicas de significado indeterminado 8. Problemas esses perpetuados pela falta de implementação efetiva de um programa de qualidade e pela pulverização dos exames em laboratórios com baixa produção. Outras barreiras de implementação advêm do modelo predominantemente oportunístico da organização do programa brasileiro, no qual não há convocação ativa da população-alvo na periodicidade recomendada e mulheres são rastreadas por ocasião do comparecimento aos serviços de saúde. Esse modelo organizacional resulta em baixa eficiência e efetividade, com elevado percentual de mulheres sobrerrastreadas em periodicidade menor do que a recomendada (trienal) e em faixas etárias fora da população-alvo de 25 a 64 anos, ao mesmo tempo em que muitas mulheres com critérios de elegibilidade e maior risco permanecem sem ter um único episódio de rastreamento ao longo de suas vidas 5.

O artigo de Ribeiro et al. 9, publicado neste fascículo de CSP, indica que mesmo com tantos anos de programa a cobertura do rastreamento no Sistema Único de Saúde (SUS) foi estimada em apenas 35,6% no triênio 2021-2023, segundo dados do SISCAN. Apesar de vários outros artigos já terem buscado estimar essa cobertura, esses resultados chegam em momento oportuno para fazermos um balanço de décadas do programa nacional de rastreamento de câncer do colo do útero neste momento de transição. Os autores estimaram também, que a cobertura poderia chegar a 53,9% se as recomendações de faixa etária e periodicidade fossem seguidas 9. Um verdadeiro custo de oportunidade que além de não trazer benefícios adicionais, traz riscos desnecessários para as mulheres e perda de recursos que poderiam ser direcionados para quem de fato se beneficiaria. Isso reforça a pouca eficiência do modelo oportunístico e necessidade de sua mudança. Além disso, a cultura disseminada do rastreamento anual criou durante muitos anos um ilusório incremento de cobertura, inflando artificialmente o indicador de razão de exames na população feminina, que infelizmente foi usado por muito tempo como proxy da cobertura e principal indicador de monitoramento do programa, pela dificuldade de se ter a informação sobre mulheres examinadas.

Contudo, ainda não podemos afirmar que essa é a cobertura do rastreamento pelo SUS no Brasil, pois foram excluídos três estados com baixa implantação do SISCAN, entre eles dois dos mais populosos do país, sendo um deles provavelmente com a maior cobertura do país (São Paulo) e não contabilizado na estimativa final 9. Isso reflete, em grande parte, a existência de laboratórios com sistema próprio e a ausência de webservice que permita a troca de informações. O fato de ainda termos esse grau de incerteza sobre um cálculo de indicador relativamente básico, mesmo após décadas, traz também uma lição que deve ser aprendida e aplicada no futuro programa de detecção precoce: será mais eficiente investir em interoperabilidade entre sistemas de informação do que tentar implantar um sistema único em todo o país. Outra fonte de subestimação da cobertura é que, além dos três estados excluídos do cálculo, outros oito estados apresentaram implantação do SISCAN abaixo de 100% 8. Além disso, o período de estudo inclui 2021, ano em que estavam vigentes recomendações especiais para o rastreamento de câncer no contexto da pandemia de COVID-19 10. Por outro lado, coberturas muito mais elevadas em inquéritos, como a Pesquisa Nacional de Saúde, apresentam superestimação por incluírem exames realizados na saúde suplementar e por serem autoreferidos, o que deve gerar superestimação também pela confusão com o exame ginecológico especular sem que necessariamente tenha havido rastreamento com o citopatológico.

Embora continuemos sem saber qual é a real cobertura no país, a mensagem mais importante é que ela potencialmente poderia ser muito maior se ao menos houvesse adesão às diretrizes de periodicidade e população-alvo 9. E esse aumento poderia ser ainda maior se incluíssemos nessas estimativas as mulheres com 65 anos ou mais que foram rastreadas sem indicação. No que pese a importância da capacitação e sensibilização de médicos e enfermeiros sobre a importância da adesão às diretrizes de rastreamento, a história já comprovou que isso é insuficiente para reverter esse quadro. Afinal, já existem, desde 1988, diretrizes ministeriais que recomendam iniciar o rastreamento a partir de 25 anos e fazê-lo em periodicidade trienal após dois exames iniciais anuais negativos 11. Portanto, a chave para uma mudança efetiva está na transformação do modelo organizacional do programa.

Outro ponto essencial é que, apesar da importância da cobertura, precisamos lembrar que ela não pode ser a única métrica para se avaliar um programa de rastreamento. Além dela e dos indicadores de qualidade, é necessário lembrar também que o rastreamento é uma intervenção complexa e mesmo uma cobertura adequada e boa qualidade não são suficientes para garantir a efetividade. Outro problema crônico no país é a elevada perda de seguimento e a fragmentação do processo de cuidado em múltiplas etapas 12, comprometendo a efetividade do programa mesmo para aquelas mulheres que tiveram acesso ao rastreamento. Isso advém da falta de regulação e integração da rede assistencial, o que também está relacionado ao modelo oportunístico.

Não devemos ter a ilusão de que a simples mudança tecnológica para os testes moleculares resolverá esses problemas. Porém, se associado a um programa organizado de base-populacional, características propiciadas pelos testes de HPV, como a mudança para a periodicidade quinquenal e a possibilidade de autocoleta, poderão contribuir para maior cobertura 1,2,5. A adoção dos testes moleculares no SUS deve acompanhar a implantação progressiva do programa organizado no país, respeitando critérios mínimos essenciais e, ao mesmo tempo, evitar a coexistência do rastreamento citológico nos mesmos municípios e consequentemente a prática de coteste 2. Diante do quadro persistente de grande desigualdade regional no controle deste câncer 7, deve ao mesmo tempo haver um cuidado redobrado para não se reforçar iniquidades buscando-se priorizar e fomentar a estruturação em municípios com maior incidência e mortalidade, priorizando o alcance das populações mais vulneráveis.

Que o ponto de inflexão histórica que estamos vivendo traga uma mudança paradigmática também no aspecto organizacional do programa e que as lições advindas dos acertos e erros das últimas décadas possam nos ajudar a pavimentar um caminho de sucesso rumo à eliminação do câncer do colo do útero no Brasil.

Referências bibliográficas

  • 1 Ministério da Saúde. Testagem molecular para detecção de HPV e rastreamento do câncer do colo do útero. https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/relatorios/2024/testagem-molecular-para-deteccao-de-hpv-e-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero/view (accessed on 01/Jul/2025).
    » https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/relatorios/2024/testagem-molecular-para-deteccao-de-hpv-e-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero/view
  • 2 Ministério da Saúde. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: parte I - Rastreamento organizado utilizando testes moleculares para detecção de DNA-HPV oncogênico. https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/consultas/relatorios/2024/relatorio-preliminar-diretrizes-brasileiras-para-o-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero-parte-i-rastreamento-organizado-utilizando-testes-moleculares-para-deteccao-de-dna-hpv-oncogenico/view (accessed on 01/Jul/2025).
    » https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/consultas/relatorios/2024/relatorio-preliminar-diretrizes-brasileiras-para-o-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero-parte-i-rastreamento-organizado-utilizando-testes-moleculares-para-deteccao-de-dna-hpv-oncogenico/view
  • 3 Löwy I. Cancer, women, and public health: the history of screening for cervical cancer. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2010; 17 Suppl 1:53-67.
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  • 6 Instituto Nacional de Câncer. Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/estimativa-2023.pdf (accessed on 02/Jul/2025).
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  • 7 Melo MS, Lima SVMA, Dos Santos AD, Ribeiro CJN, Brito Júnior PA, Silva TKS, et al. Temporal trends, spatial and spatiotemporal clusters of cervical cancer mortality in Brazil from 2000 to 2021. Sci Rep 2024; 14:24436.
  • 8 Instituto Nacional de Câncer. Monitoramento das ações de controle do câncer do colo do útero. Boletim 2023; 14(1). https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//informativo_numero_1_2023.pdf
    » https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//informativo_numero_1_2023.pdf
  • 9 Ribeiro CM, Claro IB, Tomazelli JG, Dias MBK. Rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil: análise da cobertura a partir do Sistema de Informação do Câncer. Cad Saúde Pública 2025; 41:e00152224.
  • 10 Migowski A, Corrêa FM. Recommendations for early detection of cancer during COVID-19 pandemic in 2021. Rev APS 2020; 23:235-40.
  • 11 Ministério da Saúde. Controle do câncer cérvico-uterino e de mama. https://ninho.inca.gov.br/jspui/handle/123456789/12428 (accessed on 04/Jul/2025).
    » https://ninho.inca.gov.br/jspui/handle/123456789/12428
  • 12 Torres KL, Rondon HHMF, Martins TR, Martins S, Ribeiro A, Raiol T, et al. Moving towards a strategy to accelerate cervical cancer elimination in a high-burden city: lessons learned from the Amazon city of Manaus, Brazil. PLoS One 2021; 16:e0258539.

Editado por

  • Evaluation coordinator:
    Editor-in-Chief Luciana Correia Alves (0000-0002-8598-4875)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2025
  • Aceito
    16 Jul 2025
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