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A CUSTÓDIA E O TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO NO BRASIL: CENSO 2011

RESENHAS BOOK REVIEWS

Luciana Stoimenoff Brito

Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Brasília, Brasil. l.brito@anis.org.br

A CUSTÓDIA E O TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO NO BRASIL: CENSO 2011. Diniz D. Brasília: Letras Livres/Editora UnB; 2013. 382 p. ISBN 978-85-98070-35-3

O primeiro censo nacional de indivíduos internados em estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico ocorreu em 2011, com a publicação dos dados em formato de livro em 2013. A obra a que me refiro é A Custódia e o Tratamento Psiquiátrico no Brasil, de Debora Diniz. O ano da pesquisa, a primeira a contabilizar essa população no país, pode impressionar se tomarmos como ponto de partida o ano de inauguração do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro: 1921. Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico bem como as Alas de Tratamento Psiquiátrico são os estabelecimentos destinados a receber as pessoas em medida de segurança, aquelas em restrição de liberdade para tratamento psiquiátrico. Diniz refere-se a essas duas modalidades institucionais como "Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico".

O livro revela o perfil da população inserida em 23 hospitais de custódia de tratamento psiquiátrico e 3 alas de tratamento psiquiátrico no território nacional. Nem todos os estados possuíam estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico em 2011. Acre, Amapá, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Roraima e Tocantins são estados onde não foi possível identificar a localização das pessoas em medida de segurança - se em hospitais, presídios comuns, albergues ou asilos, inseridas na comunidade ou trancadas nas próprias casas. Ainda não sabemos se a situação das pessoas nesses estados é melhor ou pior do que a da população contada no livro.

A autora inicia a obra com uma frase que revelará a motivação de sua pesquisa e escrita: "ser contado é uma forma de existir" (p. 13). Homens e mulheres invisíveis aos olhos do Estado brasileiro por quase um século passam a existir em números: são 3.989 pessoas. Apesar de descritiva, a obra revela um posicionamento político e ideológico em defesa do direito à liberdade - para Diniz, um direito cotidianamente violado seja pela indeterminação do tempo da medida de segurança, seja pelo asilamento compulsório. Para além dos números, o censo revela vidas anônimas que esperam do Estado ações imediatas. Diniz aponta o lugar que sua voz de pesquisadora e autora pretende ocupar: seu estudo não é neutro; não há imparcialidade nas variáveis escolhidas ou nas perguntas feitas aos dados. Todavia, é confiável tanto no rigor da técnica de levantamento de dados quanto no método de análise.

O livro divide-se em capítulos que seguem a metodologia de análise de dados da pesquisa. O capítulo "Brasil" agrupa os dados do cenário nacional: a população que vivia nos 26 estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico em 2011. Os demais capítulos compilam os dados de cada estabelecimento de custódia e tratamento psiquiátrico para analisá-los de acordo com a realidade local, mas também em comparação com o cenário nacional. Diniz esclarece que os argumentos dos capítulos visam oferecer respostas "[...] às principais inquietações das políticas públicas e da reforma legislativa e penal no Brasil" (p. 15). Nesse contexto, o dispositivo da periculosidade ganha centralidade. É com base nele que a autora enuncia o que considera o principal resultado da pesquisa: não há periculosidade inerente ao diagnóstico psiquiátrico. Todos os indivíduos que estavam em estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico brasileiros em 2011 cometeram infrações numa mesma distribuição, independentemente de seu diagnóstico. Para Diniz, a periculosidade é um conceito moral "[...] em permanente disputa entre os saberes penais e psiquiátricos" (p. 15).

O censo utilizou uma técnica de análise documental dos dossiês das pessoas que viviam nos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico em 2011. Diniz define dossiê: são pastas administrativas contendo informações sobre o itinerário penal, desde a infração cometida até a internação nos hospitais de custódia de tratamento psiquiátrico ou alas de tratamento psiquiátrico. As informações que o leitor encontrará ao longo dos capítulos são de três tipos: dados sociodemográficos; dados sobre o itinerário jurídico; e dados sobre saúde mental. O instrumento de coleta de dados está anexado ao livro, o leitor pode acessar as perguntas realizadas no estudo. Foram dois questionários: o primeiro, com trinta quesitos, dirigido aos indivíduos em medida de segurança e em medida de segurança resultante de conversão de pena; e o segundo, com dezoito quesitos, dirigido aos indivíduos em situação de permanência transitória no estabelecimento de custódia e tratamento psiquiátrico. A internação para a realização de laudo de sanidade mental ou a transferência de outra penitenciária para tratamento são exemplos desse segundo grupo.

O censo se localiza na interseção entre o saber penal e o saber psiquiátrico. As duas linguagens são consideradas soberanas no regime de custódia e asilamento: para Diniz, é nessa interseção que os equívocos do tratamento do louco infrator se anunciam. O livro apresenta evidências seguras e desconcertantes sobre a "'estrutura inercial' do modelo psiquiátrico-penal no Brasil" (p. 17). Pelo menos um entre quatro indivíduos não deveria mais estar internado - seja porque tinha decisão judicial para desinternação, apresentava a periculosidade cessada, seja porque a medida de segurança estava extinta ou mesmo porque nem havia processo judicial que justificasse sua internação. Além disso, para um terço dos indivíduos (1.194 pessoas), não há como saber se a internação se justifica: a confecção dos laudos psiquiátricos e de cessação de periculosidade estava atrasada.

Na introdução topamos com as reflexões de Diniz sobre os principais resultados da pesquisa. É também nessa parte do livro que vemos com mais força a sensibilidade de sua narrativa. Os dados impressionam, mas não falam sozinhos. Diniz relata seu espanto e da equipe de pesquisa com os dados. Ela apresenta ao leitor o que ele encontrará ao longo das quase quatrocentas páginas da obra: também se espera o espanto daquele que lê, e o espanto pode mobilizar ações. Nas primeiras páginas do livro conhecemos o perfil da população asilada nos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico brasileiros: homens negros, pobres, de baixa escolaridade e com inserção periférica no mercado de trabalho. A maioria das infrações cometidas foi contra seus familiares ou pessoas próximas. As mulheres representam a minoria da população internada (7% dos indivíduos), "uma minoria ainda mais silenciada nesse universo de anônimos" (p. 16).

Alicerçada nos dados, Diniz mostra que as conquistas do movimento de reforma psiquiátrica e a ampla revisão da legislação sobre o cuidado e atenção da loucura não incluíram todos os indivíduos em sofrimento mental. O tratamento do louco infrator permanece sob a lógica do asilamento e da apartação social, uma sequestração justificada, sobretudo, pela periculosidade. Os números impressionam: dos 2.956 indivíduos internados em medida de segurança nos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico, 217 estão asilados há mais de 15 anos. Nesse universo, nove estão presos há mais de 30 anos. São pessoas vivendo uma situação inaceitável, que independe da representação sobre o número total de indivíduos. Elas vivem há mais tempo entre muros que fora deles. Para a autora, essas pessoas esquecidas e anônimas esperam do Estado uma ação imediata.

Diniz expressa sua expectativa: "[...] que os dados sejam capazes de mobilizar os leitores deste livro para a grave infração de direitos humanos em curso na sociedade brasileira" (p. 17). Há um desafio nas engrenagens do Estado para o tratamento do louco infrator. Os dados de que 47% das internações em estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico não se justificam por critérios legais e psiquiátricos e de que existem pessoas internadas há mais de três décadas sem que o Estado promova condições de tratamento para que elas ganhem a liberdade levantam a pergunta: "o que está acontecendo aqui?" Assim como a autora, tenho a expectativa de que o leitor se mobilize com o que descobrirá em cada página do livro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2013
  • Data do Fascículo
    Nov 2013
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