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Walter Oswaldo Cruz

Walter Oswaldo Cruz1 1 Discurso proferido em solenidade promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (10/4/87) para assinalar o 20º. aniversário da morte de Walter Oswaldo Cruz, ocorrida em 3/1/1967. 2 Walter O. Cruz: O Clima, Ci, e Cult., 9:79-84 (1957).

Wladimir Lobato Paraense

Pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz

Prestamos hoje, com 20 anos de atraso, esta homenagem a quem poderia simbolizar, sem favor, o cientista perfeito: Walter Oswaldo Cruz. Duplamente privilegiado com excepcional talento para a investigação científica e total familiaridade com o ambiente de Manguinhos, iniciou-se desde estudante em um tema da mais alta importância para a ciência e para o país: a ancilostomose. Graduado em medicina aos 20 anos de idade, dois anos depois, em 1932, publicava seu primeiro trabalho apresentado evidências de ordem clínica, terapêutica, hematológica, anatomopatológica, ficava seu primeiro trabalho apresentando evidências de ordem clínica, terapêutica, hematológica, anatomopatológica, ficava seu primeiro trabalho apresentando evidências de ordem clínica, terapêutica, hematológica, anatomopatológica, fisiepatológica, epidemiológica e experimental que contrariavam as teorias tóxica e hemorrágica universalmente aceitas para a explicação de patogenia de anemia ansilostomótica. Sua proposta de que "a anemia da ancilostomose não é senão o resultado de uma perturbação no metabolismo orgânico do ferro", levando-o a afirmar que o tratamento por vermífugos, praticado correntemente, constituía isoladamente "um processo terapêutico absolutamente ineficaz" , foi tão logicamente articulada que até um simples estudante interno de hospital no nordeste do país, como era o meu caso, podia comprová-lo sem qualquer dificuldade.

A originalidade dessa interpretação da patogenia da anemia ancilostomótica, comunicada à Academia Nacional de Medicina, foi acentuada por Miguel Couto, presidente da Academia, mas contestada por Oscar Clark, o que obrigou Walter a publicar uma nota resumindo a fundamentação de sua idéia e comparando-a com os pontos de vista dos autores precedentes para concluir: "Quando surgiu, pela primeira vez, essa interpretação patogênica da anemia? Na publicação que tivemos a honra de levar à Academia Nacional de Medicina em 8 de junho do corrente ano, onde foi apresentada pelo nosso eminente mestre, Professor Carlos Chagas, da maneira clara e incisiva que lhe é habitual. Eis onde se encontra a originalidade da nossa contribuição para este importante capítulo da nosologia dos países quentes".

As críticas mais freqüentes, entretanto, visavam à asserção de que o tratamento exclusivamente por vermífugos era absolutamente ineficaz, pois era difícil conceber que se pudesse ignorar o agente causal da doença. Esse aparente radicalismo de Walter devia ser uma forma de acentuar a perturbação do metabolismo do ferro como fator central do processo patogênico. O que realmente ocorria era que a administração oral de altas doses de ferro normalizava rapidamente a evolução do eritroblasto para eritrócito, que estava bloqueada pela carência de ferro. Essa normalização processava-se muito lentamente após a simples expulsão dos vermes, e muito rapidamente com o tratamento pelo ferro mesmo sem modificação da carga parasitária. Mas ele nunca desprezou o tratamento anti-helmíntico, apenas recomendava que nos casos graves fosse precedido pela administração de ferro, mesmo porque nesses casos muitos pacientes com profundo comprometimento cardíaco, hepático, renal e nervoso não resistiam à ação tóxica dos anti-helmínticos contemporâneos. Em pesquisas publicadas nos anos seguintes foram sendo desenvolvidos os conceitos inicialmente propostos. Não se tratava de adições aos conceitos originais, mas de consolidação e aprofundamento, através de investigações mais detalhadas, das idéias que todas elas tinham sido enunciadas no primeiro trabalho publicado.

Paralelamente esses conceitos iam sendo confirmados por pesquisadores de outros países, como Porto Rico, Venezuela, Costa Rica, Java, Egito e Quênia. Num de seus últimos artigos sobre o assunto, em 1942, reviu as últimas aquisições na ancilostomose, atualizando os conceitos sobre sua patogenia, profilaxia e tratamento, e descendo a detalhes práticos como a maneira de administrar o ferro profilaticamente às populações das áreas endêmicas e curativamente nos casos individuais, e também a conduta a seguir na aplicação dos vermífugos. Assim termina esse escrito: "Finalizando, repetiremos informação por nós fornecida aos médicos do Brasil em 1932: A não ser em casos já quase em agonia, acreditamos que com uma urgente medicação marcial podemos banir a Ancilostomose das listas de mortalidade".

Do entrosamento de suas convicções sobre o papel social do cientista, tão bem delineado na conferência intitulada "Em defesa da Ciência", com os conhecimentos gerados por suas pesquisas sobre a ancilostomose, resultou magnífica palestra sobre "Aspectos sociais na profilaxia da anemia ancilostomótica", de grande utilidade para estudiosos do comportamento humano, principalmente entre os que se dedicam à educação sanitária.

Em 1940 esteve Walter nos Estados Unidos, como pesquisador visitante da Fundação Rockefeller junto ao Departamento de Patologia da Universidade de Rochester, estudando a suscetibilidade das hemácias a soluções hipotônicas, quando utilizou uma ténica incipiente, assim referida no título da publicação: "Ferro radioativo como método de marcação dos glóbulos vermelhos". Também estudou o mecanismo de destruição e regeneração das hemácias e a eliminação do pigmento biliar na anemia pela acetilfenilhidrazina.

Ao regressar ao Brasil, o Instituto tinha novo diretor, Henrique Aragão. Um dos mais eminentes pesquisadores brasileiros, um dos diretores que mais honraram as tradições desta Casa, tinha Aragão a desvantagem de dirigir com verbas minguadas, que procurava utilizar da maneira mais eficiente possível. Visava todos os pedidos dos pesquisadores para poder melhor controlar o fluxo dos recursos. Nunca me passaria pela idéia pedir de uma só vez dois frascos de um reagente, porque sabia que um seria cortado. O Serviço de Estudos das Grandes Endemias, organizado por Evandro Chagas durante a Diretoria anterior, funcionando no Hospital mas fora da estrutura administrativa do Instituto, e mesmo hostilizado por influentes colegas, subsistia graças à doação anual de 240 mil cruzeiros concedida por Guilherme Guinle. Dessa quantia Evandro subdoava a Walter uma parcela para aquisição de revistas indispensáveis inexistentes na biblioteca do Instituto. Tendo Evandro falecido no fim de 1940, a ajuda de Guilherme Guinle, agora direta e mais substancial, continuou a amparar as pesquisas de Walter até 1960, quando faleceu Guinle.

Nas pesquisas sobre ancilostomose Walter trabalhou isoladamente. Durante a década de 40 teve a colaboração de dois assistentes, Roberto Pimenta de Mello e Ernani Martins da Silva, este último falecido prematuramente em naufrágio no rio Araguaia quando investigava antígenos de hemácias em populações indígenas. Nesse período explorou vários efeitos da fenilhidrazina, como formação de metahemoglobina, produção de leucocitose, mecanismo de destruição e regeneração das hemácias, além de outros aspectos, e dedicou especial atenção à anemia produzida pelo benzoato de estradiol, demonstrando a semelhança de seu mecanismo com o da anemia da púrpura experimental pelo soro antiplaqueta. Estes experimentos levaram-no à verificação de que a injeção do soro antiplaqueta em antimais produzia efeitos análogos aos observados no choque anafilático, indicando um mecanismo básico comum à púrpura trombocitopênica, no caso desencadeada pelo soro antiplaqueta, e os choques anafilático, tríptico e peptônico. No decorrer dessas pesquisas foram por ele próprio desenvolvidos os métodos para determinação quantitativa da potência do soro antiplaqueta e determinação da proporção das plaquetas por volume de sangue. Esses estudos, iniciados em companhia de Ernani Martins, tiveram vários colaboradores de acordo com os diferentes aspectos: Aurélio Cardoso de Oliveira, Haity Moussatché, Magarinos Torres, Arlindo Baumgarten, Jacy Faro e Halley Pacheco de Oliveira.

Com a vasta experiência acumulada no convívio com as plaquetas, uma orientação muito natural de seu interesse levou-o ao estudo da hemostase. Até então poucos estudos haviam sido feitos sobre a hemostase in vivo, e sempre utilizando animais íntegros. Ocorreu-lhes adotar um modelo usado pelos fisiologistas para o estudo das propriedades vasomotoras regionais, a chamada preparação do trem posterior do cão. A primeira providência a tomar foi a construção de um aparelho capaz de manter constante o fluxo do sangue, sob condições adequadas de pressão, temperatura e equilíbrio de gases, o que foi feito no próprio laboratório e resultou num bem elaborado maquinismo descrito e figurado na primeira publicação da série.

Ao longo dessa linha de investigação, iniciada com a colaboração de Aurélio Oliveira, o laboratório passou a ser procurado por jovens estudantes, que eram selecionados segundo critérios imaginados e aplicados pelo próprio Walter, visando a detectar as verdadeiras vocações. Vários desses eleitos acompanharam-no pelos anos seguintes e até hoje continuam divulgando resultados de pesquisas originais em periódicos nacionais e internacionais: José Reinaldo Magalhães, Leopoldo de Meis, Mécia Maria de Oliveira e Paul Peter von Dietrich.

Além da importância teórica, a aquisição de novos conhecimentos sobre a hemostase tem enorme interesse prático, bastando lembrarmos os muitos milhares de pessoas que diariamente são acidentadas ou submetidas a intervenções cirúrgicas.

A utilização desse modelo revelou uma série de condições, até então desconhecidas, capazes de influenciar a hemostase, algumas delas nem mesmo suspeitadas. Enumerá-las, mesmo com um mínimo de detalhe, alongaria demasiadamente este monólogo, por isso apenas alguns resultados serão referidos. Talvez a seleção, feita por um estranho ao assunto, não recaia sobre os resultados mais significativos. Logo de início foi verificado que a hemostase depende da inervação, pois sendo esta interrompida pela secção do ciático o sangue que irriga a perna perde a capacidade hemostática. Sendo evitada a passagem do sangue pelo pulmão por meio de circulação extracorpórea, o tempo de sangramento é muito aumentado, mas volta ao normal quando se restabelece a circulação pulmonar, indicando a existência de uma função pulmonar no controle da hemostase. Somente o sangue arterial possui capacidade hemostática que falta ao sangue venoso. Esta propriedade negativa do sangue venoso foi aproveitada para revelar a atividade hemostática de muitas substâncias que, adicionadas ao sangue venoso, convertiam-no em sangue hemostático. Foi verificado que somente frações protéicas do sangue arterial e da linfa, e não do plasma venoso, eram capazes de fazer essa conversão; havia indicações de que as substâncias ativas estavam relacionadas ao plasma, quanto ao sangue arterial, e a lipoproteínas, quanto à linfa. Finalmente, a participação das arteríolas pré-capilares através da contração do músculo liso de suas paredes foi considerada fator de grande importância no mecanismo da hemostase.

Nessa altura das pesquisas, a explicação corrente para o controle do sangramento admitia dois diferentes mecanismos principais: formação de coágulos sanguíneos e aglutinação de plaquetas para tamponar a área de sangramento. Segundo Walter e seus colaboradores, o controle nervoso dos vasos e o estado bioquímico do plasma no sangue arterial teriam participação mais ativa no processo que a formação de coágulos e trombos, que só correria depois da contração dos vasos.

O último trabalho do Laboratório de Hematologia do Instituto Oswaldo Cruz foi recebido nos Proceedings of the Society of Experimental Biology and Medicine em 4 de junho de 1964 e publicado em 1965. Quando estava sendo redigido, o Clima chegava ao auge da deterioração.

Depois dessa mensagem de junho de 1964 estancou-se, em pleno apogeu de produtividade, uma das fontes geradoras de conhecimento mais fecundas deste país. Em janeiro de 1956, referindo-se ao "conturbado clima da pesquisa nacional" e ao "frígido vendaval que nos açoita a todos", pronunciou Walter estas palavras:

"As atividades artísticas, sempre provenientes de uma configuração de unidades mentais exageradamente desenvolvidas, como que protegem o artista dos altos e baixos da vida orgânica e social. Em condições adversas e às vezes por estas estimuladas, as unidades mentais pujantes e semi-independentes parecem trabalhar com a mesma eficiência que em condições normais ou ótimas. Cervantes escreveu o Quixote na prisão. Beethoven em sofrimento compõe seus melhores temas. O nosso Aleijadinho transformava em pura arte a pedra-sabão com instrumentos manejados com o que lhe restava de enfermidade mutilante. Dostoiewsky, Mozart, Stendhal, Rimbaud, são outros exemplos de atividades artísticas de nível excepcional, sem que condições de conforto e mesmo certa estabilidade social estivessem coadjuvandos seus trabalhos".

"Na atividade científica, todo o contrário. São muito variadas as características mentais que funcionam no processo de descobrir. Quando falta uma delas tudo cessa ou diminui assustadoramente de eficiência. Como plantas altamente adaptadas, a mais leve mudança de temperatura, umidade ou condição de solo basta para terminar, se não com a vida, pelo menos com a sua floração ou frutificação."2 1 Discurso proferido em solenidade promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (10/4/87) para assinalar o 20º. aniversário da morte de Walter Oswaldo Cruz, ocorrida em 3/1/1967. 2 Walter O. Cruz: O Clima, Ci, e Cult., 9:79-84 (1957).

Para Walter Oswaldo Cruz, o cientista, a violenta mudança do clima bastou para terminar com a floração e a frutificação e, dois anos e meio depois, com a própria vida.

  • 1
    Discurso proferido em solenidade promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (10/4/87) para assinalar o 20º. aniversário da morte de Walter Oswaldo Cruz, ocorrida em 3/1/1967.
    2
    Walter O. Cruz: O Clima, Ci, e Cult., 9:79-84 (1957).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 1989
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