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Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da abrasco

RESENHAS BOOK REVIEWS

Jairnilson Silva Paim

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. jairnil@ufba.br

SAÚDE COLETIVA COMO COMPROMISSO: A TRAJETÓRIA DA ABRASCO. Lima NT, Santana JP, organizadores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 232pp.

ISBN: 85-7541-103-9

"Já não somos como na chegada/Calados e magros, esperando o jantar/Na borda do prato se limita a janta/E as espinhas do peixe de volta pro mar" 1. Este poema de José Carlos Capinan combina com a leitura do livro Saúde Coletiva como Compromisso: a Trajetória da ABRASCO, organizado por Nísia Trindade Lima e José Paranaguá Santana.

O que dizer de uma geração de brasileiros que resistiu à ditadura, lutou pela democracia, organizou o movimento sanitário, inventou o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), engendrou a Saúde Coletiva, produziu publicações, fundou a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), desencadeou a Reforma Sanitária, concebeu e implementou o SUS, constituiu novos sujeitos, implantou programas de pós-graduação e pesquisa, criou instituições e ampliou a produção científica e tecnológica em saúde no país?

Pode-se responder, sem triunfalismos, que esses brasileiros fizeram história. E os autores que colaboraram com essa publicação têm o mérito de registrar parte significativa dessa história. Concebido "como um diálogo e um texto aberto a novas contribuições" (p. 15), o livro está organizado em sete capítulos, uma apresentação, cronologia, informações sobre as diretorias da associação, além de ilustrações e documentos. Complementos ou correções poderão aparecer na medida em que se ampliem as fontes de dados.

De início, Cristina Fonseca adverte que "refletir sobre essa história pressupõe necessariamente uma compreensão a respeito das principais características e diretrizes que nortearam as mudanças na Saúde Pública brasileira" (p. 21). Nesse particular, convém caracterizar a Saúde Coletiva e discutir possíveis diferenças com a saúde pública institucionalizada, um dos alvos das mudanças propostas.

A Saúde Coletiva, do mesmo modo que representou uma ruptura com a Medicina Preventiva e a Medicina Comunitária, partiu de uma crítica ao sanitarismo, movimento ideológico que se organiza em meados do século XIX na Europa. Assim, a Saúde Pública institucionaliza-se por meio de agências governamentais voltadas para o controle de doenças transmissíveis e se reproduz na passagem do século XX por intermédio de escolas de saúde pública e de organismos internacionais vinculados aos interesses norte-americanos. O mesmo Flexner, responsável pelas modificações da educação médica, escolheu a proposta de escola de saúde pública da Johns Hopkins para ser apoiada pela Fundação Rockefeller, a mesma que ajudou a construir a London School of Tropical Medicine and Hygiene. Essa fundação influenciou a criação de campanhas, organismos estatais e escolas de saúde pública na América Latina, bem como a formação de gerações de sanitaristas latino-americanos ao longo do século XX.

A saúde pública institucionalizada desenvolve-se com o capitalismo e insere-se nas relações internacionais com objetivos econômicos e político-ideológicos vinculados a tais interesses. Corresponde à "ideologia do possível", com as marcas do sanitarismo do norte que foi moldando as estruturas do Ministério da Saúde e das secretarias de saúde no Brasil. O campanhismo, o autoritarismo e a dominância dos programas especiais voltados para os pobres são algumas de suas características. Mesmo a "Nova Saúde Pública" proposta pelo Instituto de Medicina dos Estados Unidos em 1988 e patrocinada pela Organização Mundial da Saúde, sob o signo do neoliberalismo, apresenta concepções e proposições muito aquém do desenvolvimento teórico-conceitual alcançado pela Saúde Coletiva. Esta, ao ser construída no Brasil, inspirou-se nas lutas sociais da França e Alemanha no século XIX, solo em que nasceu a Medicina Social que expressava uma ampla proposta de reforma social relacionando a saúde às condições de vida e às formas de organização da sociedade, além de privilegiar a ação política. A saúde era entendida como um direito social, cabendo ao Estado o dever de garanti-lo. Décadas depois esse direito foi reconhecido pelos países que optaram pelo socialismo ou pela social-democracia no contexto do Welfare State.

A Saúde Coletiva, tal como a Medicina Social, nasce dos movimentos e lutas sociais do seu tempo e não a partir do Estado ou dos interesses das classes dominantes. Na América Latina confunde-se com as lutas pela redemocratização dos países que viveram sob ditaduras. A democratização da saúde, concebida e teorizada pela Saúde Coletiva, implicava a democratização do Estado e dos seus aparelhos, além da sociedade. Comprometia-se com a democracia substantiva e progressiva, com ideais libertários e com emancipação dos sujeitos na conquista de modos de vida mais saudáveis. Assim, a Saúde Coletiva é, simultaneamente, um campo científico e um âmbito de práticas, contribuindo com a Reforma Sanitária Brasileira mediante produção de conhecimentos e sua socialização junto aos movimentos sociais. Como campo científico, distancia-se da saúde pública institucionalizada e, como práxis, tem a possibilidade de radicalizar seus compromissos históricos com o povo, com as pessoas, com as classes dominadas.

Saúde Coletiva como Compromisso aponta a contribuição da ABRASCO no reconhecimento e consolidação desse campo científico perante o Estado, via Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Destaca a sua presença marcante na 8ª. Conferência Nacional de Saúde, no processo constituinte, nas plenárias da saúde e no Conselho Nacional de Saúde. Seus congressos constituem "fóruns de divulgação da produção científica do campo, de difusão de conhecimentos, de troca e de relatos de experiências, de tomada de posição, de posicionamentos, e de proposições políticas" (p. 69), como acentua Soraya Belisário. Suas publicações Revista Brasileira de Epidemiologia e Revista Ciência & Saúde Coletiva, analisadas por José Carvalheiro, Marilisa Barros, Marina Lopes e Cecília Minayo, são utilizadas por um número crescente e qualificado de leitores.

Mais que o protagonismo de seus presidentes ou diretorias, cabe ressaltar o dinamismo das suas comissões e grupos temáticos, bem como a militância dos seus sócios: "um número infinitamente maior de sujeitos, que em cada um dos momentos focalizados construíram essa história, foram capazes de imprimir suas características humanas peculiares, suas crenças, suas visões de mundo, suas maneiras de atuar, dando o colorido e o tempero a um processo histórico no qual são, a um só tempo, construtores e construídos" (p. 105). Essa síntese do feito, apresentada por Moisés Goldbaum e Rita Barata, dá conta desse sujeito coletivo que é a ABRASCO, capaz de incidir, cada vez mais, sobre a vida social.

Portanto, a Saúde Coletiva é mais que um termo inventado por brasileiros e acolhido pelos companheiros da América Latina, Caribe e África. É um campo científico em construção, com acúmulos teóricos e reflexões epistemológicas, aberto a novos paradigmas, e um âmbito de práticas informadas por valores que prezam a democracia, a emancipação e a solidariedade.

O caso da ABRASCO serve para ilustrar como os sujeitos fazem a História. Esta determina a organização, enquanto cristalização de projetos e lutas, define o papel do Estado e influi na teoria. Propósitos de governo e métodos são, também, determinados ou condicionados pelos elementos desse "postulado da coerência", concebido pelo pensador Mario Testa. Sem negar as determinações, sem sacralizar antinomias na saúde e sem contrapor sujeitos a estruturas, mas reconhecendo os espaços de ação social, a ABRASCO demonstra que "as associações são estruturadas e estruturantes: constituem um campo instituído, mas possibilitam o aparecimento de novos atores coletivos" (p. 187), como explica Everardo Nunes.

Apesar de tudo, a Saúde Coletiva não pode ir tão bem quando a saúde e a vida dos brasileiros encontram-se tão vilipendiadas. Mas a aposta na capacidade instituinte desses novos atores, diante das violências e das iniqüidades sociais, permite vislumbrar outras rupturas. "Já não somos como na chegada/O Sol já é claro nas águas quietas do mangue/Derramemos vinho no linho da mesa/Molhada de vinho e manchada de sangue" 1.

1. Capinan JC. Miserere nobis. Música de Gilberto Gil, 1968. In: Rennó C, organizador. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor. São Paulo: Companhia de Letras; 1996. p. 95.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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