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Humanização, gênero, poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde

RESENHAS BOOK REVIEWS

Humanização, gênero, poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde

Andreza Rodrigues Nakano

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. andrezaenfermeira@yahoo.com.br

HUMANIZAÇÃO, GÊNERO, PODER: CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE FALA-EM-INTERAÇÃO PARA A ATENÇÃO À SAÚDE. Ostermann AC, Meneghel SN, organizadoras. Campinas: Mercado das Letras/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012.

ISBN: 978-85-7591-221-8

A relação entre profissionais de saúde e usuários é loco de reflexões, que passam pelas denominações que se deve utilizar para este conjunto, pelas características desta relação (entre elas a assimetria), mas principalmente pelos desmembramentos que esta interação proporciona, seja na prática de autocuidado adotada, no cumprimento da terapêutica prescrita, na condução dos cuidados posteriores ou nas tomadas de decisão acerca de assuntos compartilhados 1. No plano teórico e político, essa interação face a face é reconhecida como valiosa e crucial na construção de uma assistência humanizada. A expectativa de "um novo tipo de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde e deles usufruem" está referida no Marco-Teórico Político da Política Nacional de Humanização 2, e aponta um diálogo menos assimétrico e com troca de saberes no percurso para a humanização da assistência.

É sobre esse esteio que as autoras desenvolvem Humanização, Gênero e Poder: Contribuições dos Estudos de Fala-Em-Interação para a Atenção à Saúde. A organização da obra por autoras de áreas distintas – uma linguista e a outra médica – em prol de trazer o foco para "a importância da fala-em-interação como constitutiva das ações, das práticas nos atendimentos à saúde, especialmente à saúde da mulher", trouxe uma leitura densa (do ponto de vista metodológico), mas por outro lado garantiu leveza e vivacidade a ela.

O livro está divido em cinco partes, e a coerência entre elas favorece ao leitor o aprimoramento do olhar (e da escuta) às características das interações. Na primeira parte, são apresentados aspectos introdutórios e metodológicos que fundamentam toda a obra. A Análise de Conversa de base etnometodológica pressupõe a fala como característica básica e constitutiva da vida social humana, e aproxima-se do nível micro das interações sociais para estudar "a vida cotidiana das pessoas de forma a compreender como elas realizam, criam e transformam o seu dia-a-dia". Foram analisados dados naturalísticos, ou seja, conversas cotidianas do serviço entre médicos (ginecologistas e obstetras) e mulheres (e em um dos capítulos entre psicóloga e homens que buscavam a vasectomia). A observação e gravação em áudio dos atendimentos não configuraram um contexto de pesquisa, e permitiu aproximar de questões, que, se investigadas com roteiros mediados por um pesquisador, poderiam assumir outra roupagem. A grande maioria dos dados é fruto de projetos de pesquisa de Ostermann, os quais seguiram a mesma abordagem teórico-metodológica.

As três partes seguintes são compostas de capítulos analíticos, agrupados com temáticas afins, quais sejam, Momentos Delicados e Poder, Estratégias de Humanização, e Gênero e Sexualidade. A novidade metodológica na análise das falas – entre elas a investigação de perturbações nas falas, da sequencia interacional, de atribuições e de formulações – fica leve ao se associar discussões do impacto desses processos na interação entre profissionais e mulheres. Aquilo que "não se deve falar" é omitido ou substituído por outros termos (por exemplo, a troca de "vagina" por "perereca"), assim como "quem pode" falar sobre determinado assunto (principalmente, sexo) é o destaque da segunda parte.

Na terceira parte, investe-se na análise de como a descrição das queixas são acompanhadas por "atribuições" (ou causas associadas) que as mulheres procuram checar com o profissional, e também das "formulações" que fazem diante das explicações oferecidas pelos profissionais durante as consultas. A análise desses processos de linguagem é avaliada pelas autoras como estratégias para a humanização, uma vez que valorizam o saber da mulher na composição de suas demandas, assim como clarificam as negociações de cuidado ali estabelecidas, e que terão impacto na continuidade da assistência. A quarta parte torna visível o modo como gênero e sexualidade são abordados nos atendimentos. No primeiro capítulo dessa parte, as autoras exploram, nas consultas ginecológicas, como o sexo tem direcionamento heteronormativo desde a anamnese, o que singulariza o "cuidar-se direitinho" ao uso da pílula. A negligência dos cuidados para além da contracepção, como IST, por exemplo, e a aridez para as manifestações de homossexualidade são materializações do "fazer heteronormativo". O capítulo seguinte – o último do conjunto de capítulos analíticos – é distinto de todos os outros. Ele explora a categoria de pertença e a análise de conversa na interação entre uma psicóloga e homens aspirantes à vasectomia. Em que pese a diferença dessas para as interações dos outros capítulos – já que com a psicóloga o estímulo à fala é uma atividade terapêutica – pode-se observar, como citam as autoras: "os aspectos identitários que são tomados pelo senso comum como homogêneos e naturais e que, na fala-em-interação, são tensionados e desestabilizados".

A quinta e última parte traz a conclusão da obra e um glossário dos termos comuns à abordagem metodológica da fala-em-interação. E antes de qualquer outra pessoa, são as próprias organizadoras que trazem a questão: "E então, quais são as contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde?". Elas evidenciam a interação médico/paciente, um importante ponto de reflexão, uma vez que avanços nos campos normativo e político não são suficientes para mudar práticas e proporcionar atenção humanizada (um exemplo claro e citado pelas autoras é o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher). Portanto, uma contribuição sutil, mas paradigmática, é proporcionar "que os profissionais de saúde possam enxergar a avaliar suas conversas com pacientes, rompendo assim com o padrão em que o médico vai cada vez mais centrando o olhar para a doença em vez da pessoa", o que promove um alargamento do que compreendem ser a interação humana.

O foco no nível proximal das interações entre usuários e serviços de saúde é o ponto crucial desta leitura. Ela nos convida a reflexões acerca das conquistas e desafios das políticas que destacam a importância dessa interação, e também ao aprofundamento de questões teóricas sobre o seu aprimoramento. Nos microprocessos de interação que se dão nos serviços de saúde há outros sujeitos participantes, outras disputas políticas, conflitos e negociação, ou seja, não é somente uma transposição de ideias, debates e diretrizes que foram acordados no plano mais central da discussão política. São nos pontos distais do sistema que os sujeitos da saúde e da reprodução trazem as suas necessidades e podem (ou não) exercer seus direitos e fortalecer sua autonomia 3. Naquele espaço – físico e relacional – "todo mundo sabe alguma coisa e ninguém sabe tudo, e a arte da conversa não é homogeneizar os sentidos fazendo desaparecer as divergências, mas fazer emergir o sentido no ponto de convergência das diversidades" 4 (p. 107). Os produtos dessa relação ultrapassam resultados epidemiológicos, de produção ou de indicadores. Ali se constrói uma rede de conversações que reverbera nas práticas – não só das mulheres, mas também dos profissionais, já que ouvir e interagir é um exercício continuado possível de ser aperfeiçoado.

É nesse sentido que a leitura deste livro se destina a todos os profissionais que lidam com os usuários em atendimentos – a ausência de observação de interações entre profissionais não médicos e usuários sentida durante a leitura não minimiza a importância da obra para aqueles que atuam nos serviços, somente aguça o desejo de investigá-las. E assim, o livro pode ser também uma leitura motivante para pesquisadores. Por um lado, por expor uma nova estratégia de abordagem metodológica, mas também porque se colocam rotineiramente diante de informantes de pesquisa, e o conhecimento sobre os processos de linguagem podem aprimorar suas investigações.

1. Jordan B. The achievement of authoritative knowledge in an American hospital birth. In: Jordan B, editor. Birth in four cultures. Long Grove: Waveland Press; 1993. p. 151-68.

2. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.

3. Nakano AR. Necessidades em regulação da fecundidade e controle da vida reprodutiva na perspectiva de mulheres atendidas pela Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2010.

4. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2007. p. 91-109.

  • 1. Jordan B. The achievement of authoritative knowledge in an American hospital birth. In: Jordan B, editor. Birth in four cultures. Long Grove: Waveland Press; 1993. p. 151-68.
  • 2
    Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
  • 4. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2007. p. 91-109.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Jan 2013
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