É em boa hora que a obra Estigma e Saúde: Uma Relação Vital em Debate chega ao leitor brasileiro. Organizado por Simone Monteiro e Wilza Villela e publicado pela Editora Fiocruz e com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, a coletânea traz uma série de artigos de autoria de renomados pesquisadores, que abordam tanto os aspectos teóricos sobre estigma e saúde, como traz textos elaborados mediante abordagens etnográficas que apontam como a relação estigma e saúde influencia a ocorrência de doenças em diferentes populações e como deve ser considerada nas políticas e ações em saúde. O livro está composto de 11 artigos, em sua grande maioria de autores brasileiros com foco em diferentes realidades nacionais. Elaborado a partir de um seminário realizado sobre o tema, coordenado pelas autoras em junho de 2011, no Rio de Janeiro, o livro mantém a dinâmica e a lógica dos debates, já que se estrutura num texto central apresentado, que em seguida é debatido por outros autores presentes nas mesas do evento e a seguir nas páginas desta coletânea.
Apesar da ênfase no Brasil, as autoras incluíram também a perspectiva internacional com pelo menos dois artigos, mostrando que a relação entre estigma e saúde ultrapassa as fronteiras nacionais e que o enfrentamento do estigma deve levar em conta os aspectos locais e globais. Fenômenos como a epidemia de HIV/AIDS e o estigma enfrentado por milhões de soropositivos para o HIV no planeta, o recrudescimento do fundamentalismo religioso em diferentes regiões e em consequência reforço do preconceito e da discriminação contra diferentes populações e culturas, são alguns exemplos de como a questão de estigma e sua relação com a saúde tem uma dimensão global e deve estar incluída na agenda de trabalho de cientistas, governantes, ativistas e de todos aqueles empenhados na luta por um mundo mais justo e saudável. O texto de Richard Parker é central nesse sentido, pois analisa como o conceito de estigma é concebido e aplicado em diferentes países e cenários. Na sequência, Otávio Bonet debate os achados de Parker, inclusive para discutir a adoção de estratégias, políticas e ações de saúde mais justas e igualitárias no Brasil.
No Brasil, se tomarmos como “janela” de observação a epidemia de HIV/AIDS, veremos que nas últimas décadas o país avançou na luta contra o estigma como obstáculo a esse grave problema de saúde pública. Foram elaboradas leis, recomendações e jurisprudências protetoras para a pessoa vivendo com HIV/AIDS. O acesso universal aos antirretrovirais necessários ao tratamento do HIV/AIDS e garantido por lei no Brasil, a partir de 1996, conforme o texto de Francisco Bastos aponta, foi um passo significativo para dissociar o estigma da morte que marcava os soropositivos para o HIV até aquele momento. Poderíamos citar outros exemplos que demonstram outros avanços no campo do HIV que, como o caso do acesso aos antirretrovirais, também poderiam ser tomados como referência para reforçar a luta contra o estigma a cidadãos portadores de outras patologias. Nessa perspectiva, a resposta à AIDS no Brasil e ao estigma a ela relacionado, terminou por reforçar a promoção dos direitos humanos daqueles mais afetados pela epidemia, tais como homossexuais, prostitutas, travestis e transexuais, usuários de drogas injetáveis, entre outros. Tal luta pela garantia de direitos, incluindo o direito à saúde, também resultou na projeção de uma visibilidade mais positiva desses cidadãos na sociedade mais ampla, o que é um passo importante no enfrentamento contra o preconceito e o estigma que afligem essas populações, e, portanto, contra as condições de desigualdades sociais.
No entanto, nos últimos quatro anos, esses bons resultados acima mencionados estão ameaçados pela onda conservadora que afeta uma série de políticas e ações em saúde levadas a cabo pelo atual governo federal. Se trouxermos outra vez o caso da AIDS, é no mínimo preocupante a sequência de episódios de censuras, vetos e retrocessos em campanhas governamentais de prevenção destinadas a jovens homossexuais, travestis e prostitutas, justamente populações mais afetas pela AIDS. No campo da educação, também preocupa a suspensão da distribuição de materiais educativos sobre sexualidade, em especial sobre homossexualidade, nas escolas da rede pública, mesmo após esses materiais terem sido aprovados e pelo próprio Ministério da Educação. Por trás desses retrocessos, encontra-se a pressão de setores religiosos conservadores que a cada dia parecem ganhar mais força na governança do país, particularmente quando se trata de promoção e garantia de direitos sexuais daqueles mais vulneráveis ao estigma e à discriminação.
É nesse complexo e paradoxal contexto político-social que o livro Estigma e Saúde: Uma Relação Vital em Debate intervém de forma bastante direta e oportuna tanto na pesquisa, quanto naquele das políticas públicas de saúde. No campo acadêmico, os textos discutem aspectos e desafios conceituais e metodológicos que orientam a pesquisa social sobre o estigma e suas relações com a saúde, assim como analisam como o conceito de estigma é concebido e aplicado nas pesquisas desenvolvidas no Brasil, conforme bem demonstra o texto de autoria de Monteiro & Villela. As autoras identificam ainda lacunas na literatura científica nacional disponível, enquanto o texto-debate de Daniela Knauth reforça os achados de Monteiro et al., buscando compreender a razão para tais lacunas e para a escassez de estudos na área.
Outra contribuição marcante são as análises das relações interdisciplinares entre diferentes saberes que abordam estigma e discriminação, tais como as ciências sociais, a epidemiologia, a política, entre outros. O texto de João Luís Bastos & Eduardo Faerstein é emblemático nesse sentido, enquanto o texto-debate de Kenneth Camargo Jr. amplia as questões abordadas por Bastos & Faerstein. Não menos importante é o artigo de Luciana Ouriques que, por intermédio de um estudo etnográfico numa população indígena do sul do país, discute as relações entre vulnerabilidade em saúde e estigma.
Por outro lado, no campo dos movimentos sociais, os textos com as análises sobre como o estigma e o preconceito operam na vida de indivíduos e grupos sociais podem fortalecer os canais de diálogo entre a universidade e a sociedade civil organizada, em especial com os grupos que se mobilizam contra o estigma e a discriminação, como os movimentos gays, de mulheres, de negros, de pessoas vivendo com HIV/AIDS, entre outros. No tocante a isso, o texto de Sergio Carrara é outra expressiva contribuição. Ao abarcar interesses acadêmicos e políticos de forma tão vigorosa, a publicação desta obra significa uma oportunidade ímpar de solidariedade intersetorial e interdisciplinar. A solidariedade certamente é uma estratégia fundamental para enfrentar os desafios atuais relacionados a estigma e saúde, sobretudo aqueles desafios que são fundamentais à promoção e garantia dos direitos humanos dos mais vulneráveis ao estigma, aos preconceitos, à discriminação e aos consequentes agravos na sua saúde individual e coletiva.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Fev 2014