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An anthropology of Biomedicine

RESENHAS BOOK REVIEWS

Jorge Alberto Bernstein Iriart

Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. iriart@ufba.br

AN ANTHROPOLOGY OF BIOMEDICINE. Lock M, Nguyen V. Malden: Wiley-Blackwell; 2010. 506 pp.

ISBN: 978-1-4051-1071-6

A obra de Margaret Lock & Vinh-kim Nguyen, respectivamente antropóloga e médico e antropólogo radicados em Montreal, Canadá, aborda o desenvolvimento dos saberes e práticas da biomedicina e as consequências esperadas e não esperadas da implementação das tecnologias médicas em contextos locais e globais na perspectiva da antropologia médica crítica. Trata-se de um estudo de fôlego, que traz importante contribuição original à Antropologia e à Saúde Pública. A obra contempla uma extensa revisão e síntese de literatura sobre várias dimensões dos saberes e práticas da biomedicina, aliada a uma reflexão teórica sobre o corpo concebido na interface entre o biológico, o meio-ambiente e o social. Os autores empreendem também a discussão de temas emergentes, a exemplo da repercussão do desenvolvimento da biologia molecular e das biotecnologias sobre a saúde, a doença e a vida social.

A obra atesta a diversidade da antropologia médica anglo-saxônica, por vezes retratada na literatura nacional de forma simplista, como uma abordagem de caráter instrumental em face das necessidades do sistema médico oficial e, portanto, subsumida na lógica do saber biomédico. Ao contrário, Lock & Nguyen se posicionam na corrente da antropologia médica crítica, atenta aos fatores sociais, históricos, políticos e econômicos que configuram a saúde e a doença e os saberes e práticas biomédicos em diferentes contextos. Os autores utilizam o conceito antropológico de cultura como instrumento analítico, recusando, no entanto, o culturalismo em sua concepção da cultura como uma entidade unificada e essencializada que explicaria completamente os comportamentos dos indivíduos. Para eles, o conceito de cultura deve ser politizado de forma a incorporar as relações de poder e o contexto histórico e político na construção de significados e práticas.

Três grandes temas estão interligados e perpassam toda a obra. O primeiro é a crítica feita pelos autores à orientação dominante na biomedicina que considera o corpo biológico como essencialmente o mesmo em qualquer lugar do mundo. Lock & Nguyen argumentam que o corpo deve ser compreendido em contexto e defendem o conceito de "biologias locais" para se referir a como o biológico e o social são mutuamente constitutivos. Buscando ilustrar o processo dinâmico da corporeidade, o corpo humano é retratado ao longo do livro como resultado de um processo de transformação social, biológico, histórico e contemporâneo resultante de infinitas interações entre os seres humanos, o meio ambiente e o meio social e político em que eles vivem. A esse processo, que constitui o segundo tema transversal do livro, os autores denominam de "diferenciação biossocial".

O terceiro tema diz respeito à importância da etnografia para acessar o impacto das tecnologias biomédicas, partindo do pressuposto de que os efeitos de sua aplicação não são uniformes em diferentes contextos socioculturais. Em outras palavras, não é possível acessar os efeitos das tecnologias em saúde sem conhecer a experiência, os discursos e as práticas de profissionais de saúde e da população afetada por elas nos contextos locais em que são aplicados. Os autores mostram a importância da pesquisa etnográfica para tornar visíveis os interstícios entre as taxonomias universais e as práticas locais.

O livro está dividido em quatro partes e 14 capítulos. Na Parte I, intitulada Tecnologias e Corpos em Contexto, e dividida em quatro capítulos, os autores argumentam que as tecnologias biomédicas não são entidades autônomas, meros dispositivos ou máquinas que permitem a aplicação padronizada dos saberes médicos. O seu desenvolvimento e a sua implementação estão envolvidos com interesses médicos, políticos e sociais que têm implicações práticas e morais. A perspectiva foucaultiana na análise do biopoder e da "governamentalidade" se faz presente com a ressalva de que a emergência das biotecnologias, produzindo novas formas de vida e embaralhando a diferença entre o self e outro, assim como o uso das tecnologias biomédicas fora dos parâmetros do estado (por ONGs ou atores privados), complexam e tornam problemática a simples aplicação direta das categorias foucaultianas. Ao longo dos capítulos são analisados o processo de medicalização da vida, os julgamentos de valor embebidos nos discursos médicos e as várias formas pelas quais as práticas e tecnologias médicas são legitimadas. O conceito de "biologias locais" é introduzido para analisar como os processos biológicos e sociais estão profundamente interligados, produzindo, ao longo do tempo, diferenças biológicas. Ele permite compreender, por exemplo, as diferenças encontradas em estudos comparativos sobre a menopausa entre mulheres no Japão e na América do Norte, tanto nos sintomas referidos quanto nos significados que lhe são associados.

A parte II, intitulada A Norma Biológica e dividida em três capítulos, aborda em perspectiva histórica como a biologia se tornou o parâmetro para as intervenções tecnológicas sobre os corpos e as populações. Os autores expõem a historicidade do conceito de população e as relações de poder e pressupostos morais implicados em sua utilização. O pressuposto da universalidade da biologia humana permitiu a comparação das populações em condições controladas. Os autores argumentam, no entanto, que as sutilezas das biologias locais não são levadas em conta nos grandes ensaios clínicos que terminam por determinar as medicações que serão comercializadas, os diagnósticos que serão dados e até as políticas governamentais em nível global. O imenso impacto das tecnologias médicas na vida cotidiana, a exemplo das tecnologias de anticoncepção e planejamento familiar são discutidos. Especial atenção é dada à análise de como o uso de determinadas tecnologias escapa aos controles governamentais, a exemplo do uso ilegal das tecnologias de imagem para selecionar o sexo dos bebês, e suas consequências na exacerbação da discriminação de gênero e no desequilíbrio resultante nas taxas de natalidade por sexo em algumas regiões do mundo.

A parte III, intitulada Fronteiras Morais e Transformações Humanas, e dividida em três capítulos, aborda os avanços das biotecnologias e como sua produção e aplicação trazem questionamentos importantes às concepções vigentes sobre a ordem natural e moral, a distinção entre o self e o outro, o natural e o artificial, ou sobre como se constitui o parentesco biológico. Entre outros temas, são discutidas as implicações do conceito de morte cerebral, o impacto das tecnologias reprodutivas, a mercantilização do corpo humano ou de suas partes para uso experimental e terapêutico e as repercussões globais e locais da venda e doação de órgãos envolvendo indivíduos, famílias, comunidades e nações.

Na parte IV, intitulada Agentes Evasivos e Rupturas Morais, e dividida em quatro capítulos, os autores analisam os desenvolvimentos da genética molecular, o impacto dos testes e rastreamento genéticos e as consequências inesperadas como as ansiedades e incertezas associadas à sua aplicação. Discute-se como o conceito de risco é corporificado, e se apresentam estudos etnográficos que enfocam as consequências sobre os indivíduos e famílias do conhecimento sobre a sua herança genética e as consequências na construção da subjetividade, no ativismo político, e na constituição de novas formas de sociabilidade. Os autores discutem também como descobertas recentes em biologia molecular e na emergente epigenômica questionam o determinismo genético, enfatizando a importância do sistema regulatório que controla a expressão dos genes, o que pode significar uma mudança paradigmática na passagem para uma era pós-genômica.

Em conclusão, o livro de Lock & Nguyen aborda temas atuais e emergentes, alguns ainda pouco estudados no Brasil, e traz nova luz sobre o estudo da biomedicina e das tecnologias biomédicas, constituindo-se em importante obra para a antropologia médica e para a saúde coletiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jan 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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