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Características dos eventos adversos na atenção primária à saúde no Brasil

Características de los eventos adversos en la atención primaria de salud en Brasil

Resumo

Neste estudo procurou-se avaliar a ocorrência de incidentes no cuidado à saúde ao paciente na atenção primária brasileira. Quinze profissionais de saúde que trabalham em unidades da Estratégia Saúde da Família aceitaram registrar de forma anônima e confidencial, incidentes ocorridos com os pacientes durante cinco meses, através do questionário Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) adaptado para o contexto brasileiro. A taxa de incidência envolvendo todos os incidentes foi de 1,11%. A taxa de incidentes que não atingiram os pacientes foi de 0,11%. A taxa de incidência de incidentes que atingiram os pacientes, mas não causaram dano foi de 0,09%.A taxa de incidência de incidentes que atingiram os pacientes e causaram evento adverso foi de 0,9%. Foram identificados oito tipos de erros e os erros administrativos foram os mais frequentes. A comunicação foi citada como sendo o fator contribuinte mais comum para ocorrência de incidente na atenção primária à saúde (53%). Os achados desse estudo demonstram que os incidentes também ocorrem na atenção primária à saúde, entretanto deve-se considerar que as pesquisas neste campo ainda são incipientes.

Segurança do Paciente; Avaliação em Saúde; Atenção Primária à Saúde

Resumen

Este estudio trata de evaluar la ocurrencia de incidentes sanitarios con pacientes en la atención primaria de Brasil. Fueron aceptados quince profesionales de la salud que trabajan en las unidades de salud de la familia y registraron incidentes con pacientes durante cinco meses anónima y confidencialmente, a través del cuestionario Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME), adaptado al contexto brasileño. La tasa de incidencia de todos los incidentes relacionados fue de un 1,11%. La tasa de incidentes que no llegan a los pacientes fue de un 0,11%. La tasa de ocurrencia de incidentes que afectan a los pacientes, pero no causó daño fue 0,09%. La tasa de ocurrencia de incidentes que afectan a los pacientes y causó eventos adversos fue de un 0,9%. Fueron identificados ocho tipos de errores y faltas administrativas que eran las más frecuentes. La comunicación se cita como el factor más común que contribuye a la ocurrencia de incidentes en la atención primaria de la salud (53%). Los resultados de este estudio demuestran que los incidentes se producen también en la atención primaria de la salud, sin embargo, hay que considerar que la investigación en este campo es aún incipiente.

Seguridad del Paciente; Evaluación en Salud; Atención Primaria de Salud

Abstract

This study aimed to evaluate the occurrence of incidents in primary health care in Brazil. Fifteen health professionals working in Family Health Strategy units agreed to anonymously and confidentially record incidents over the course of five months, using the questionnaire Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) questionnaire adapted to the Brazilian context. The overall rate of incidents was 1.11%. The rate of incidents that did not reach patients was 0.11%. The rate of incidents reaching patients but without causing harm was 0.09%. The rate of incidents reaching patients and causing adverse events was 0.9%. Eight types of most frequent errors and administrative failures were identified. Communication failures were the most common contributing factor to incidents in primary health care (53%). The findings show that incidents occur in primary health care (as elsewhere in the health system), but research in this area is still incipient.

Patient Safety; Health Evaluation; Primary Health Care

Introdução

Muitos profissionais e instituições de saúde que julgavam prestar cuidado em saúde com qualidade conheceram, mais recentemente, os riscos de incidentes a que os pacientes estão expostos. As pesquisas realizadas em vários países vêm revelando uma alta frequência de danos relacionados ao cuidado, alertando formuladores de políticas, gestores, profissionais de saúde e os pacientes 11. De Vries EN, Ramrattan MA, Smorenburg SM, Gouma DJ, Boermeester MA. The incidence and nature of in-hospital adverse events: a systematic review. Qual Saf Health Care 2008; 17:216-23.. Um número significativo de estratégias voltadas para melhorar a qualidade do cuidado à saúde e consequentemente atenuar os riscos dos cuidados de saúde vem sendo proposto 22. Sousa P. Patient safety: a necessidade de uma estratégia nacional. Acta Med Port 2006; 19:309-18.. O atributo da qualidade do cuidado à saúde – segurança do paciente – tem sido reconhecido como um dos componentes mais importantes para a melhoria da qualidade em saúde 22. Sousa P. Patient safety: a necessidade de uma estratégia nacional. Acta Med Port 2006; 19:309-18..

O relatório Errar é Humano 33. Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS. To err is human: building a safer health system. Washington DC: National Academy Press; 1999. do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, de 1999, baseado em pesquisas de revisão retrospectiva em prontuários de hospitais de Nova York, Colorado e Utah, demonstrou a magnitude do problema e estimulou esforços de melhoria no campo da segurança do paciente. Os estudos que se seguiram priorizaram o olhar no cuidado hospitalar, deixando uma lacuna no conhecimento sobre a natureza, a frequência dos incidentes e a redução de dano aos pacientes na atenção primária à saúde 44. Makeham MAB, Dovey S, Runciman W, Larizgoitia I. Methods and measures used in primary care patient safety research. Geneva: World Health Organization; 2008..

Há um esforço internacional para que sejam realizadas mais pesquisas sobre a segurança do paciente na atenção primária à saúde. Uma revisão sistemática 44. Makeham MAB, Dovey S, Runciman W, Larizgoitia I. Methods and measures used in primary care patient safety research. Geneva: World Health Organization; 2008. demonstrou que mesmo que os estudos ainda sejam incipientes, alguns métodos têm sido mais utilizados para medir os danos e compreender suas causas, e entre eles a análise dos incidentes em sistemas de notificações. Os tipos de incidentes mais encontrados na atenção primária à saúde, nesses estudos são associados à medicação e ao diagnóstico e os fatores contribuintes, mais relevantes, de incidentes são as falhas de comunicação entre os membros da equipe de saúde.

Nos últimos anos, no Brasil, com a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), houve uma ampliação do acesso aos serviços, aumentando o número de pacientes atendidos na atenção primária à saúde 55. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.. A ESF responde por uma parcela expressiva dos cuidados ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) 55. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.. Este modelo procura adotar práticas de uma atenção mais integradora, multiprofissional e humanizada, onde a comunicação entre os cuidadores é fator essencial.

Em busca da melhoria contínua da qualidade no Brasil, o Ministério da Saúde desenvolveu modelos de avaliação da qualidade da assistência prestada pela ESF. Em 2005, foi criado o instrumento Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família (AMQ) 66. Sarti TD, Maciel ELN, Campos CEA, Zandonade E, Ruschi GEC. Validade de conteúdo da Avaliação para melhoria da qualidade da estratégia saúde da família. Physis (Rio J.) 2011; 21:865-78. e em 2011, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) 77. Ministério da Saúde. CIT aprova a universalização do NASF e divulga resultados preliminares do PMAQ-AB. http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=28_11_resultados_preli minares_PMAQ_AB (acessado em 30/Jul/2014).
http://dab.saude.gov.br/portaldab/notici...
. Através do PMAQ 77. Ministério da Saúde. CIT aprova a universalização do NASF e divulga resultados preliminares do PMAQ-AB. http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=28_11_resultados_preli minares_PMAQ_AB (acessado em 30/Jul/2014).
http://dab.saude.gov.br/portaldab/notici...
foi realizada uma avaliação nacional sobre as condições de atendimento, nas unidades de ESF. Nessa avaliação ficou demonstrado que a qualidade do serviço ofertado foi classificada como regular em cerca de 44% das unidades. As avaliações apontaram que 62% dos profissionais de saúde não utilizavam os protocolos recomendados para a avaliação clínica inicial e apenas 38% dos profissionais de saúde que trabalhavam nas unidades informaram utilizar protocolos clínicos em situações de urgência.

Embora a pesquisa em segurança do paciente na atenção primária à saúde ainda seja incipiente, existem vários métodos disponíveis na literatura internacional para avaliar os incidentes relacionados ao cuidado em saúde na atenção primária à saúde. Numa recente revisão sistemática 88. Marchon SG, Mendes Junior WV. Patient safety in primary health care: a systematic review. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35. da literatura não foram encontrados estudos sobre o tema no contexto brasileiro, demonstrando uma lacuna no conhecimento sobre a realidade brasileira.

Algumas questões são motivos para uma reflexão: (i) os incidentes de segurança ou eventos adversos ocorrem em decorrência dos cuidados de saúde no âmbito da atenção primária à saúde no Brasil, como em outros países? (ii) os tipos de incidentes de segurança e os fatores contribuintes mais frequentes na atenção primária à saúde na realidade brasileira se assemelham aos que acontecem em outros contextos?

Esse estudo buscou respostas sobre a ocorrência de incidentes no paciente, os tipos, a gravidade dos incidentes na atenção primária à saúde, e seus fatores contribuintes no contexto brasileiro.

Material e métodos

Desenho do estudo

Foi realizado um estudo observacional, descritivo, prospectivo, em 13 unidades de saúde da família, em uma área urbana de municípios da baixada litorânea do Estado do Rio de Janeiro, sendo obtida, previamente uma autorização do gestor municipal para convidar os profissionais que trabalham nessas unidades para responder a um questionário sobre incidentes relacionados ao cuidado.

Contexto e participantes

Foram convidados vinte profissionais que trabalham nas secretarias municipais da baixada litorânea, selecionados por conveniência. Esses profissionais, dez médicos e dez enfermeiros registram o atendimento no Sistema de Informação a Atenção Básica (SIAB), têm uma carga horária de trabalho semanal mínima de vinte horas semanais nessas unidades. Os participantes informaram o sexo, a idade, a formação profissional, o tempo de formado, o tipo de especialização e o tempo de atuação na ESF.

A cada participante foi solicitado registrar, de forma anônima e confidencial, no mínimo, dez incidentes detectados durante o seu horário de trabalho no período de cinco meses, de 1o de outubro de 2013 a 28 de fevereiro de 2014. Os participantes tiveram a opção de responder de forma eletrônica ou em papel. Para garantir o anonimato dos profissionais, os questionários foram identificados com siglas de cada profissão, sendo “M” para médicos e “E” para enfermeiros e ganharam números de 1 a 125, à medida que foram preenchidos e devolvidos.

Durante o contato inicial, foram explicadas aos profissionais participantes as terminologias utilizadas no questionário. Foram entregues uma lista com descrições de exemplos de possíveis incidentes e um tutorial para preenchimento do questionário.

Dos vinte profissionais convidados a participar do estudo, três médicos se recusaram a participar e dois enfermeiros não enviaram o questionário em tempo hábil, mesmo após um segundo contato. Dos 17 profissionais que aceitaram participar do estudo, 15 (88%) profissionais, sete médicos e oito enfermeiros – retornaram os questionários devidamente preenchidos. Entre os profissionais participantes, 12 (80%) eram do sexo feminino e três (20%) do sexo masculino. As idades dos profissionais variaram, sendo o mais jovem, um enfermeiro com 24 anos e o mais velho, um médico com 72 anos.

Instrumento de coleta de dados

Entre os vários métodos descritos na literatura 88. Marchon SG, Mendes Junior WV. Patient safety in primary health care: a systematic review. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35. para avaliar a segurança do paciente na atenção primária à saúde, optou-se, nesse estudo, pela aplicação de um questionário para profissionais de saúde, baseado no estudo australiano Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME) 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72.. Trata-se de um questionário para avaliar se houve algum incidente durante o cuidado, e, se houver, busca-se caracterizá-lo, conhecer a sua gravidade e os fatores que contribuíram para sua ocorrência.

Esse questionário foi escolhido pelo caráter pioneiro, por ser de livre disponibilidade por via eletrônica, sem ônus e por ter sido já replicado em vários países, inclusive traduzido para o português em um estudo realizado em Portugal 1010. Sequeira AM, Martins L, Pereira VH. Natureza e frequência dos erros na actividade de medicina geral e familiar geral num ACES: estudo descritivo. Revista Portuguesa de Clínica Geral 2010; 26: 572-84..

O questionário do PCISME foi traduzido e adaptado para o contexto brasileiro através de um painel com especialistas, empregando o método Delphi modificado 1111. Marchon SG, Mendes Junior WV. Tradução e adaptação de um questionário elaborado para avaliar a segurança do paciente na atenção primária em saúde. Cad Saúde Pública 2015; 31:1395-402.. Esse estudo seguiu as etapas de execução do estudo australiano, adotando as diretrizes disponibilizadas, tendo como principal adequação ao contexto brasileiro, a inclusão de enfermeiros como respondentes do questionário e não apenas médicos, como no desenho australiano devido às características de organização da atenção primária à saúde.

Esse questionário é composto por dezesseis questões abertas e fechadas, para que médicos e enfermeiros registrem os incidentes ocorridos com os pacientes das unidades de saúde da família, com garantias do anonimato, onde cada questionário é utilizado para notificar um único incidente.

Variáveis e análise dos dados

As respostas dos questionários foram organizadas de forma que se permitisse conhecer as razões de incidentes; as razões de incidentes que não atingiram os pacientes; as razões de incidentes que atingiram os pacientes e não causaram o dano e as razões de incidentes que atingiram os pacientes e que causaram dano. Para calcular as frequências dos incidentes o numerador foi composto pela soma dos incidentes relatados pelos participantes, e o denominador pela soma das consultas realizadas pelos participantes durante o período, informações, essas, colhidas no SIAB (Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informação da Atenção Básica. http://www2.datasus.gov.br/SIAB/index.php, acessado em 30/Out/2014). O resultado dessa fração foi multiplicado por 100.

Nesse estudo foram utilizadas as definições encontradas nos estudos sobre segurança do paciente da Classificação Internacional de Segurança do Paciente (ICPS – sigla em inglês) da Organização Mundial da Saúde (OMS) 1212. World Health Organization; Patient Safety World Alliance for Safer Health Care. The conceptual framework for the international classification for patient safety. Final technical report. Geneva: World Health Organization; 2009.. No ICPS considera-se um incidente um evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou em dano desnecessário ao paciente, advindo de atos não intencionais ou intencionais. O incidente pode atingir ou não o paciente. Quando atinge pode ou não causar um dano. Quando não causa dano é chamado de incidente sem dano e quando causa o dano é chamado de evento adverso. Segurança do Paciente é definido como a redução, a um mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde 1212. World Health Organization; Patient Safety World Alliance for Safer Health Care. The conceptual framework for the international classification for patient safety. Final technical report. Geneva: World Health Organization; 2009..

A Tabela 1 foi criada para descrever: os tipos de incidentes, os seus fatores contribuintes, as consequências destes aos pacientes e a gravidade dos danos. Os fatores contribuintes foram classificados, de acordo com as definições encontradas nos estudos de segurança em atenção primária à saúde 88. Marchon SG, Mendes Junior WV. Patient safety in primary health care: a systematic review. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35. e agrupados como: falhas na comunicação com paciente; falhas na comunicação interprofissional; falhas na gestão; falhas no cuidado; e falhas na comunicação na rede de atenção. Foi calculada a proporção dos fatores contribuintes classificados e da gravidade do dano entre os incidentes registrados nos questionários.

Tabela 1
Características gerais dos 125 pacientes, segundo o tipo de incidente ocorrido.

Para classificar a gravidade do dano, foi utilizada uma escala: dano mínimo (com recuperação de até um mês), dano moderado (recuperação entre um mês e um ano), dano permanente, óbito. Havia a opção: “não tenho como classificar o dano” 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72..

Muitas vezes os profissionais de saúde, e os médicos em particular, julgam a existência de um erro ou de um dano de acordo com a consequência destes para o paciente. Em função disso um especialista em segurança do paciente redefiniu os tipos de incidentes atribuídos pelos participantes de acordo com a definição do ICPS 1212. World Health Organization; Patient Safety World Alliance for Safer Health Care. The conceptual framework for the international classification for patient safety. Final technical report. Geneva: World Health Organization; 2009..

Os erros que contribuíram para os incidentes foram classificados da mesma forma como nos estudos que utilizaram o PCISME 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72.,1010. Sequeira AM, Martins L, Pereira VH. Natureza e frequência dos erros na actividade de medicina geral e familiar geral num ACES: estudo descritivo. Revista Portuguesa de Clínica Geral 2010; 26: 572-84. em outros países: erros no atendimento administrativo; erros na investigação de exames; erros com tratamento; erros de comunicação; erros de pagamento; erros na gestão de recursos humanos; erros na execução de uma tarefa clínica; erros de diagnóstico. De acordo com o PCISME 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72., erros no atendimento administrativo indicam: erros no preenchimento do prontuário ou incompleto; erro no agendamento de consultas; erro no fluxo do paciente na rede de atenção; erro de logística, gerando falta de insumos e medicamentos; erro na manutenção de um ambiente físico seguro; dificuldades de acesso ao especialista; troca de nomes de medicamentos, incorreta interpretação das receitas na farmácia, profissional nega atendimento ao paciente. A proporção de cada erro foi calculada em relação ao total de erros.

Considerações éticas

Um consentimento informado de cada participante foi obtido, garantindo o anonimato dos sujeitos na divulgação dos resultados, a liberdade para retirada do consentimento a qualquer momento e a informação quanto ao destino das informações produzidas.

Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), sob o parecer no 303.649, em 14 de junho de 2013.

Resultados

Foram registrados 125 incidentes em 11.233 consultas (Departamento de Informática do SUS. Sistema de Informação da Atenção Básica. http://www2.datasus.gov.br/SIAB/index.php, acessado em 30/Out/2014) realizadas pelos participantes no período do estudo. A razão de incidentes foi de 1,11% (IC95%: 0,93-1,32). Como no questionário foi verificado que cada incidente correspondeu a um erro, pode-se considerar que a razão de erros foi também de 1,11%. A razão de incidentes que não atingiram os pacientes foi de 0,11% (13/11.233; IC95%: 0,06-0,20). A razão de incidentes que atingiram os pacientes, mas não causaram dano foi de 0,09% (10/11.233; IC95%: 0,04-0,16). A razão de incidentes que atingiram os pacientes e causaram dano (evento adverso) foi de 0,91% (102/11.233; IC95%: 0,74-1,10).

Dos 131 questionários que retornaram ao pesquisador, seis (4,6%) não foram aceitos porque os campos “idade”, “sexo dos pacientes” e “resultado do incidente” não estavam preenchidos e o contato com o profissional para completar não foi possível em função do anonimato. Para análise final foram recebidos 125 questionários válidos, cada questionário representa um incidente.

A Tabela 1 apresenta as características gerais dos 125 pacientes de acordo com o tipo de incidente ocorrido.

Os pacientes que sofreram os incidentes registrados eram, em sua maioria, adultos (n = 64, 51%), do sexo feminino (n = 68, 54%). A maioria dos pacientes apresentava doenças crônicas (n = 84; 67%) e a maioria tinha um problema de saúde complexo 1212. World Health Organization; Patient Safety World Alliance for Safer Health Care. The conceptual framework for the international classification for patient safety. Final technical report. Geneva: World Health Organization; 2009. (n = 50, 59%), descrito como condição de difícil manejo clínico 1313. Elder NC, Pallerla H, Regan S. What do family physicians consider an error? A comparison of definitions and physician perception. BMC Fam Pract 2006; 7:73., desde a presença de comorbidades, até a dependência de álcool e/ou drogas, passando por distúrbios neurológicos ou psiquiátricos. Mesmo que não se tenha solicitado descrever o problema de saúde complexo do paciente, os participantes fizeram referências aos problemas de saúde mental de oito pacientes.

Quase a metade dos pacientes (n = 59, 47%) estava exposta a alguma forma de vulnerabilidade social 1414. Ayres JRCM, França Júnior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 117-39.. Entre eles, 24 (40,7%) tinham baixa renda, 23 (40%) eram analfabetos ou tinham baixa escolaridade, 16 (27,1%) estavam envolvidos com álcool e drogas, (22%) tinham precárias condições de moradias, 10 (16,9%) estavam desempregados, 10 (16,9%) tinham vários filhos e 29 (49,1%) tinham outras condições não especificadas. Em relação ao tipo de incidente, o mais frequente foi o evento adverso (53,6%), seguido pelo incidente que atingiu o paciente, mas não causou dano (29,6%).

A Tabela 2 descreve os tipos de incidentes, as suas consequências para o paciente, os fatores contribuintes e a gravidade do dano.

Tabela 2
Tipos de incidentes, as suas consequências para o paciente, os fatores contribuintes e a gravidade do dano.

Em relação à gravidade do dano, entre os pacientes que sofreram eventos adversos, 32 (26%) tiveram dano permanente, 27 (21%) apresentaram dano moderado e 18 (15%) sofreram um dano mínimo. Todos os óbitos (8) foram classificados como eventos adversos, sendo que destes 50% (4) ocorreram pela falha na comunicação na rede de atenção, 25% (2) pela falha na comunicação com paciente, 12,5% (1) pela falha na comunicação interprofissional e 12,5% (1) pela falha no cuidado. Em 32% (40) dos incidentes não foi possível classificar a gravidade, incidindo em 42 % (17) de falhas no cuidado, 20% (8) de falhas na comunicação na rede de atenção, 15% (6) de falhas na comunicação com paciente, 13% (5) de falhas na gestão, e 10% (4) de falhas na comunicação interprofissional.

Os fatores que contribuíram com os incidentes foram: falhas no cuidado (n = 44, 34%), falhas na gestão (n = 16,13%) e falhas na comunicação (n = 65, 53%). Essas últimas eram classificadas em falhas de comunicação com paciente (n = 30, 24%), na rede de atenção (n = 23, 19%) e na comunicação interprofissional (n = 12, 10%).

Os dados obtidos através dos questionários permitiram classificar os erros nas tipologias utilizadas nos estudos australiano e português (Tabela 3). Os erros com pagamento de prestadores de serviço não se aplicaram ao contexto do estudo brasileiro. Essa foi a maneira utilizada para comparar os resultados encontrados no estudo brasileiro com os dos demais países que utilizaram o questionário PCISME (Tabela 3). O erro no atendimento administrativo (26%) foi o erro mais frequente no estudo brasileiro, seguido por erros de comunicação (22%).

Tabela 3
Proporção de tipos de erros que contribuíram com os incidentes encontrados nos estudos brasileiro, português e australiano.

O médico foi o profissional que esteve envolvido no erro com o paciente com mais frequência, como nos estudos português 1010. Sequeira AM, Martins L, Pereira VH. Natureza e frequência dos erros na actividade de medicina geral e familiar geral num ACES: estudo descritivo. Revista Portuguesa de Clínica Geral 2010; 26: 572-84. e australiano 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72. – 30% (38), seguido pelos profissionais da enfermagem – 13% (17), da farmácia – 12% (15) e os agentes comunitários de saúde – 5% (6). Em 17% (22) dos relatos, o próprio paciente foi apontado como sendo diretamente responsável pelo erro.

A maior proporção dos erros ocorreu no consultório médico (25%), dado que também foi observado em outros países. Em segundo lugar, esteve o hospital (15%), o que também foi observado no estudo australiano (Tabela 4).

Tabela 4
Local de ocorrência dos erros encontrados nos estudos brasileiro, português e australiano.

Foi relatado por 80 (64%) participantes que eles próprios já tiveram conhecimento da ocorrência prévia do mesmo tipo de erro que registraram. Em contraposição, 25 (20%) entrevistados afirmaram que raramente ocorre o mesmo tipo de erro que o registrado em outros pacientes, e 20 (16%) disseram que frequentemente ocorre o mesmo tipo de erro, que ocasionou o incidente relatado, em outros pacientes.

Discussão

A razão de incidentes foi de 1,11%, o que corresponde à mesma razão de erros. No estudo australiano 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72. com o mesmo desenho metodológico, a frequência de erros foi de 0,24%. Os outros estudos que utilizaram o questionário do PCISME não tiveram a preocupação de calcular a frequên- cia dos tipos de incidentes, muito provavelmente porque a taxonomia proposta pela OMS é muito recente 99. Makeham MAB, Dovey SM, County M, Kidd MR. An international taxonomy for errors in general practice: a pilot study. Med J Aust 200215; 177: 68-72.,1010. Sequeira AM, Martins L, Pereira VH. Natureza e frequência dos erros na actividade de medicina geral e familiar geral num ACES: estudo descritivo. Revista Portuguesa de Clínica Geral 2010; 26: 572-84.,1515. Makeham MA, Kidd MR, Saltman DC, Mira M, Bridges-Webb C, Cooper C, et al. The Threats to Australian Patient Safety (TAPS) study: incidence of reported errors in general practice. Med J Aust 2006; 185:95-8..

Embora a atenção primária à saúde atenda pacientes com menor complexidade, 82% dos incidentes ocasionaram ou causaram dano ao paciente e muitos deles com gravidade muito alta – dano permanente (25%) ou óbito (7%), diferente dos estudos internacionais 1616. Jacobs S, O’Beirne M, Derflingher LP, Vlach L, Rosser W, Drummond N. Erreurs et événements fâcheux en médecine familiale: élaboration et validation d’une taxonomie canadienne des erreurs. Can Fam Physician 2007; 53:270-6.,1717. Beyer M, Dovey S, Gerlach FM. Fehler in der Allgemeinpraxis – Ergebnisse der internationalen PCISME-Studie in Deutschland. Z Allg Med 2003; 79:1-5., que apresentaram danos com pouca gravidade.

No estudo brasileiro, o local de ocorrência do erro, teve ocorrência maior no consultório médico (25%), dado observado também nos outros países, seguido pelo hospital (15%). É importante considerar o impacto que um incidente na atenção primária à saúde pode provocar nos pacientes quando atendidos nos demais níveis assistenciais, onde o indicador indireto da qualidade da atenção primária, chamado de internações por condições sensíveis à atenção primária 1818. Junqueira RMP, Duarte EC. Internações hospitalares por causas sensíveis à atenção primária no Distrito Federal, 2008. Rev Saúde Pública 2012; 46:761-8. representa cerca de 20% das internações no SUS.

O maior número de incidentes foi detectado em pacientes mais velhos – acima de 40 anos (n = 57; 83%), com doenças crônicas (n = 17; 68%), similar ao observado nos estudos americano 1919. Steven HW, Kuzel AJ, Dovey SM, Phillips RL. A string of mistakes: the importance of cascade analysis in describing, counting, and preventing medical errors. Ann Fam Med 2004; 2:317-26. e canadense 2020. Rosser W, Dovey S, Bordman R, White D, Crighton E, Drummond N. Medical errors in primary care. Results of an international study of family practice. Can Fam Physician 2005; 51:386-7., onde a ocorrência em pacientes mais velhos foi 81% e 92% e doenças crônicas 60% e 63%, respectivamente. Thomas & Brennan 2121. Thomas EJ, Brennan TA. Incidence and types of preventable adverse events in elderly patients: population-based review of medical records. BMJ 2000; 320:741-4. destaca em seu estudo, que os pacientes com idade acima de 45 anos eram significativamente mais propensos a ter um evento adverso, em razão do aumento da prevalência de doenças crônicas, com comorbidades associadas, por consequência da transição epidemiológica e demográfica. Num estudo em hospitais brasileiros 2222. Mendes W, Pavão ALB, Martins M, Moura MLO, Travassos C. Características de eventos adversos evitáveis em hospitais do Rio de Janeiro. Rev Assoc Méd Bras 2013; 59:421-8. a faixa etária acima de 60 anos também foi a que sofreu mais eventos adversos.

O quadro de vulnerabilidade social constitui permanente preocupação no Brasil e neste estudo quase metade dos pacientes que sofreram incidentes eram vulneráveis. Os pacientes vulneráveis, em geral, têm baixa adesão ao tratamento e pouca autonomia para participar da prevenção de incidentes 1414. Ayres JRCM, França Júnior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 117-39.. Em 17% (22) dos relatos, o próprio paciente foi apontado como sendo diretamente responsável pelo erro, ou por não adesão ao tratamento proposto ou por não entendimento da gravidade do seu quadro de saúde.

Os dados obtidos através dos questionários permitiram identificar oito tipos de erros enquadrados nas tipologias internacionalmente utilizadas. Usando a tipologia quando comparados os resultados verificam-se muitas semelhanças entre os estudos brasileiros, português e australiano, com prevalência do registro em erros administrativos.

A classificação mais genérica de erros e de fatores contribuintes pode ocultar informações importantes. Quando se observam os fatores contribuintes no estudo brasileiro e no estudo português verificam-se situações relevantes. O artigo com o estudo australiano não revela as causas dos erros.

No estudo brasileiro em 38 incidentes o principal fator contribuinte do incidente foi estrutural, como a falta de medicamentos, de leitos de referência, ou de suporte para o acompanhamento do doente mental. Esses fatores não foram encontrados no estudo português. Outra situação específica no estudo brasileiro foi a falta de compromisso do profissional com o paciente, que foi descrita em nove casos.

A comunicação foi citada como o fator contribuinte mais comum para ocorrência de incidente na atenção primária à saúde (53%). As falhas na comunicação interprofissional contribuíram em 10% para a ocorrência do incidente e os profissionais apresentaram como dificuldades para o bom relacionamento da equipe, as diferenças de opinião, de visão profissional, de formação acadêmica, de cultura de segurança do paciente, de comportamento, de escolaridade, de hierarquização profissional, e de responsabilização com o paciente. Essa dificuldade pode ser exemplificada no registro encontrado no questionário 55, respondido por um enfermeiro:

A falha da comunicação na equipe cria um retrabalho na unidade. Dificilmente alguém chegará para assumir a falha diante do gestor, com receio de represálias. Provavelmente, o erro será jogado de mão em mão e isso provocará arranhões no relacionamento das pessoas. O conflito torna- se quase que inevitável”.

No intuito de melhorar a comunicação entre os profissionais, deve-se promover uma comunicação aberta, onde eles se sintam-se livres para conversar sobre os erros que podem afetar o paciente, e ao mesmo tempo, à vontade para questionar os profissionais hierarquicamente superiores sobre questões relacionadas à segurança do paciente, fortalecendo o trabalho em equipe, com capacidade compartilhada de mudanças e motivação para agir em prol da segurança 2323. Mendes W, Reis CT, Marchon SG. Segurança do paciente na APS. In: Crozeta K, Godoy SF, organizadores. Programa de atualização da enfermagem: atenção primária e saúde da família. Ciclo 3. Porto Alegre: Editora Artmed; 2014. p. 81-104..

As falhas de comunicação entre o profissional e o paciente foram descritas em 24% dos registros. As dificuldades dos profissionais em estabelecer vínculos pessoais e de ter escuta qualificada com os pacientes e o não compartilhamento de informações foram relacionados com a baixa adesão ao tratamento.

Um médico registrou sua preocupação com a comunicação com o paciente no questionário 61:

Nós que trabalhamos com saúde da família, sempre conversamos bastante com os familiares, sempre levamos muito em conta o que o paciente diz. Mas tem profissional que nem pergunta o nome do paciente, não sabe a queixa que o paciente traz, e ainda pergunta por que o paciente não fez os exames e nem tomou o remédio. Essa relação médico/paciente eu considero uma das maiores proteções de segurança, a partir deste diálogo, estabelece uma relação de confiança” .

Em outras situações, mesmo tendo a preocupação de realizar uma boa relação médico paciente, o médico que respondeu ao questionário 20 relatou dificuldades, diante de um paciente:

O paciente participa pouco do cuidado, mesmo eu falando, ele não se envolve com seus problemas de saúde e deixa de tomar a medicação, continua bebendo bebida alcoólica e fumando”.

Essas falhas de comunicação já tinham sido evidenciadas pelo PMAQ 77. Ministério da Saúde. CIT aprova a universalização do NASF e divulga resultados preliminares do PMAQ-AB. http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=28_11_resultados_preli minares_PMAQ_AB (acessado em 30/Jul/2014).
http://dab.saude.gov.br/portaldab/notici...
: cerca de 41% dos pacientes entrevistados relataram dificuldades para tirar dúvidas com os profissionais de saúde, levando-os a ter que agendar outra consulta.

No processo de melhoria da comunicação entre o profissional e o paciente, a abordagem centrada no paciente deve ser valorizada respeitando o paciente como um elemento ativo no seu processo de cuidado, permitindo que este ajude a gerenciar o seu cuidado, inclusive um possível evento adverso 2424. Santos MC, Grilo A, Andrade G, Guimarães T, Gomes A. Comunicação em saúde e a segurança do doente: problemas e desafios. Rev Port Saúde Pública 2010; Vol Temat(10):47-57.. O profissional de saúde deve transmitir ao paciente uma informação adaptada ao indivíduo e à situação, considerando o grau de escolaridade, as especificidades culturais e linguísticas, bem como o grau de desenvolvimento cognitivo. A comunicação efetiva acarreta benefícios à relação profissional de saúde-paciente, sendo um fator direto na adesão ao tratamento 2525. Oliveira VZ, Gomes WB. Comunicação médico-paciente e adesão ao tratamento em adolescentes portadores de doenças orgânicas crônicas. Estud Psicol (Natal) 2004; 9:459-69.. A informação aos pacientes deve ser clara e escrita sempre que possível, encorajando e capacitando-os a contribuir com a sua própria segurança e explicar-lhes a prescrição 2626. Ribas MJ. Eventos adversos em cuidados de saúde primários: promover uma cultura de segurança. Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar 2010; 26:585-9..

Em 19% dos registros foram descritas falhas de comunicação entre os serviços de saúde da rede de atenção. O Ministério da Saúde 2727. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. descreve a ESF como reguladora do sistema de saúde, buscando o acesso integral na rede de atenção. Para a efetiva comunicação na rede de atenção se exige uma articulação entre os vários profissionais que compõem a equipe de saúde e entre os distintos níveis de hierarquização tecnológica da assistência. Algumas estratégias viáveis são conhecidas como a implantação de sistemas de referência e contrarreferência, sistemas informatizados de regulação de consultas e exames, criar mecanismos para que o paciente trafegue na rede de saúde na lógica de linha de cuidados, e o programa de humanização 2727. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.. Entretanto os problemas de rede ficam evidenciados neste trecho descrito pelo médico que respondeu ao questionário 56:

O paciente fica meses esperando uma consulta do especialista, pois só tem um médico mastologista na rede para atender a toda a demanda. A doença evolui e nós do ESF não podemos fazer nada”.

Entre os fatores contribuintes descritos como falhas na gestão 88. Marchon SG, Mendes Junior WV. Patient safety in primary health care: a systematic review. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35. (13%) que comprometem a qualidade dos serviços prestados aos pacientes e descritos nos artigos sobre segurança na atenção primária à saúde estão: falta de insumos médico-cirúrgicos e de medicamentos, profissionais pressionados para serem mais produtivos em menos tempo, falhas em prontuários, falhas na recepção dos pacientes, planta física da unidade de saúde inadequada, descarte inadequado de resíduos da unidade de saúde, tarefas excessivas, não acesso a computadores e Internet.

Um enfermeiro descreve no questionário 26 a situação de falha na gestão:

Os gestores deveriam se preocupar em oferecer o mínimo para trabalhar, estamos há semanas sem água potável aqui na unidade de [....]. Não podemos fechar as portas, temos que atender os pacientes assim mesmo, é insalubre”.

No relatório da avaliação nacional realizado pelo PMAQ 77. Ministério da Saúde. CIT aprova a universalização do NASF e divulga resultados preliminares do PMAQ-AB. http://dab.saude.gov.br/portaldab/noticias.php?conteudo=28_11_resultados_preli minares_PMAQ_AB (acessado em 30/Jul/2014).
http://dab.saude.gov.br/portaldab/notici...
estão descritas inúmeras falhas na gestão das unidades da atenção primária à saúde. Apenas 30% das unidades avaliadas pelo PMAQ têm um consultório ou mais com computador conectado à internet, e apenas 18% dos profissionais de saúde das unidades trabalham com registro eletrônico. Somente em 45,5% das unidades, os pacientes são informados sobre os serviços disponíveis, em 62% das unidades o horário de funcionamento da unidade está afixado, e o acesso à escala dos profissionais com nomes e horários de atendimento encontra-se disponível em 37% das unidades.

Fatores contribuintes elencados como falhas no cuidado 88. Marchon SG, Mendes Junior WV. Patient safety in primary health care: a systematic review. Cad Saúde Pública 2014; 30:1815-35. (34%) foram descritos como: falhas no tratamento medicamentoso (principalmente erro na prescrição); falha no diagnóstico; demora na realização do diagnóstico; demora na obtenção de informações e interpretação dos achados laboratoriais; falhas em reconhecer a urgência da doença ou suas complicações; déficit de conhecimento profissional. Os participantes registraram nos questionários várias soluções para melhorar o cuidado: instituir prontuário eletrônico, contar com a presença do farmacêutico clínico, educação permanente à equipe profissional, estímulo à cultura não punitiva, utilizar sistema de apoio para as decisões clínicas, implementar protocolos clínicos e envolver a equipe nas estratégias de implementação de protocolos de práticas seguras. O enfermeiro que respondeu ao questionário 102 registrou:

Quando os profissionais conversam e o trabalho é integrado, discutindo os casos, avaliando as situações-problemas é possível evitar interpretações diagnósticas erradas, sem culpar o profissional e garantir um atendimento mais seguro ao paciente”.

O sistema de notificação de incidentes é apontado tanto na literatura quanto pelas autoridades sanitárias 2828. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Segurança do paciente e qualidade em serviços de saúde. Boletim Informativo 2011; 1:1-12. como um mecanismo com capacidade de atuar para a correção rápida dos incidentes detectados e deve ser introduzido como procedimento na rotina dos profissionais, visando uma cultura mais segura. Entretanto nenhum participante o mencionou como uma solução para o contexto brasileiro.

Considerações finais

O tema segurança do paciente em atenção primária à saúde vem crescendo de importância nas principais organizações internacionais de saúde 22. Sousa P. Patient safety: a necessidade de uma estratégia nacional. Acta Med Port 2006; 19:309-18., e em alguns países desenvolvidos como a Austrália, Reino Unido, Estados Unidos e Portugal 2929. De Wet C, Johnson P, Mash R, McConnachie A, Bowie P. Measuring perceptions of safety climate in primary care: a cross-sectional study. J Eval Clin Pract 2012; 18:135-42.. Já no Brasil o tema ganhou mais visibilidade, em função do Programa Nacional de Segurança do Paciente 3030. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM no 529, de 1o de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP). Diário Oficial da União 2013; 2 abr., lançado pelo Ministério da Saúde em 2013, que incluiu a atenção primária à saúde como lócus de desenvolvimento de ações para a melhoria de segurança do paciente. Entretanto deve-se considerar que as pesquisas neste campo ainda são incipientes.

Este estudo teve um caráter inédito, pois foi um dos primeiros estudos a investigar os incidentes que ocorrem no cuidado na atenção primária à saúde brasileira, e seus resultados apresentam relevantes contribuições.

A adaptação do questionário PCISME ao contexto brasileiro cumpriu o papel de contribuir com instrumentos específicos para mensuração de incidentes em atenção primária à saúde, chamando a atenção para o problema da ocorrência de danos com esses pacientes. O aprimoramento desse instrumento pode ajudar na medição da frequência de incidentes e a conhecer seus fatores contribuintes nos serviços de atenção primária à saúde brasileiros.

Os achados desse estudo mostram que os incidentes também ocorrem na atenção primária à saúde como vem apontando os estudos em países em desenvolvimento. Embora tendo sido realizado numa microrregião de saúde no Estado do Rio de Janeiro, ele pode ser representativo de problemas que acontecem em outras regiões brasileiras. O que mostrou isso possível foi a equivalência dos achados com evidências registradas na literatura.

Recursos como o fortalecimento do trabalho em equipe com a presença do farmacêutico, o apoio da tecnologia da informação, a educação profissional e o envolvimento do paciente, despontam como as soluções importantes neste campo. Essas soluções ficaram evidentes, tanto na pesquisa de campo, como na literatura. A sensibilização de gestores e profissionais para prática de segurança do paciente na atenção primária à saúde encontra-se como um dos desafios a serem superados. As dificuldades com pacientes vulneráveis são desafios para o sistema. Busca-se envolver ativamente o paciente e seus familiares no processo de cuidado lhes fornecendo informações sobre medidas de segurança, e principalmente dando-lhes voz 3131. World Health Organization. Summary of the evidence on patient safety: implications for research. Geneva: World Health Organization; 2008..

Segundo especialistas do projeto Safer Primary Care 32, um passo importante para tornar os cuidados mais seguros é a criação de uma rede internacional de informações, tornando os mecanismos de segurança para proteger os pacientes de atenção primária à saúde conhecidos e aplicáveis. Concomitantemente, faz-se necessário conhecer e entender como as cascatas de erros levam ao incidente. Para tanto, a notificação de incidentes precisa ser encorajada, para que esses sejam investigados e promovam um aprendizado contínuo no sentido de evitar incidentes no futuro. A criação de sistemas de notificação de incidentes é uma forma de reunir dados que contribuam para a melhoria significativa na segurança e na qualidade do cuidado. Para que seja útil, é desejável que o sistema de notificação de incidentes seja de fácil uso, ter caráter voluntário, não punitivo, com garantias do anonimato profissional e que seja manejado por pessoa habilitada e principalmente seja um mecanismo de “ida e volta” 3333. Wachter RM. Compreendendo a segurança do paciente. 2a Ed. Porto Alegre: McGraw-Hill; 2013..

O fortalecimento da cultura de segurança entre os profissionais destaca-se como um importante fator condicionador ao desenvolvimento institucional de estratégias para melhoria da qualidade e redução de incidentes na atenção primária à saúde.

O estudo apresentou algumas limitações: (i) pode ter havido uma baixa notificação dos incidentes, em função do pouco conhecimento de alguns profissionais sobre o tema abordado e do pouco tempo para responder os questionários; (ii) a razão de incidentes pode estar subestimada em consequência do caráter voluntário da notificação; (iii) os resultados não podem ser considerados uma expressão da segurança do paciente na atenção primária à saúde, pois a amostra foi limitada e de conveniência, em uma microrregião de uma das 27 Unidades Federativas do Brasil;

Em que pese a revisão de um especialista em segurança do paciente para melhorar a precisão dos tipos de incidentes, pode ter havido uma descrição errônea, em função do julgamento do erro ou dano de acordo com a consequência deste para o paciente e a verdadeira causa pode não ter sido informada, em função do pouco tempo dos participantes comprometendo a confiabilidade dos relatos 2828. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Segurança do paciente e qualidade em serviços de saúde. Boletim Informativo 2011; 1:1-12..

Novas pesquisas devem entrar na agenda da política de saúde brasileira, em busca do cuidado mais seguro.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2014
  • Revisado
    25 Mar 2015
  • Aceito
    04 Maio 2015
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