RESENHAS BOOK REVIEWS
Luiz Antonio de Castro SantosI; Ieda da Costa BarbosaII; Mauro de Lima GomesIII
IInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
IIIEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
SAÚDE NO GOVERNO VARGAS (1930-1945): DUALIDADE INSTITUCIONAL DE UM BEM PÚBLICO. Fonseca CMO. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007. 298 pp. (Coleção História e Saúde).
ISBN: 978-85-7541-132-2
A saúde pública sob Getúlio Vargas: notas de leitura
Saúde no Governo Vargas (1930-1945): Dualidade Institucional de um Bem Público, obra da historiadora e cientista política Cristina Maria O. Fonseca, é uma leitura estimulante sobre o papel - que a autora julga ter sido de destaque - desempenhado pela saúde no primeiro período getulista. O subtítulo refere-se a um 'bem público' que se tornou inquestionável, como dever do Estado, aos olhos de um segmento da população urbana. A dimensão mais forte da narrativa está no debate sobre a chamada dualidade institucional da saúde, nos tempos de Vargas. Esse caráter dual refere-se à distinção entre a assistência à saúde prestada pelos dois ministérios criados à época, o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC). Esse é o foco discursivo da obra, que recupera, a partir da concepção de Wanderley Guilherme dos Santos 1, as diferentes faces da cidadania regulada no Brasil: dois modelos diversos de inclusão e exclusão de camadas sociais, com concepções, também diferentes, sobre o direito à saúde.
A organização do texto é invejável. A parte introdutória dá indicações precisas sobre o caminho teórico e analítico que a obra irá percorrer. As bases são sólidas: uma sociologia histórica de primeira mão, que a autora prefere denominar de "institucionalismo histórico", calcado em matrizes na maior parte norte-americanas; e uma referência brasileira que, a nosso ver, está mais forte, entre as influências, do que a própria autora nos faria crer. Falamos da obra de Wanderley Guilherme dos Santos; mas são os "institucionalistas" que merecem da autora uma menção especial.
O texto focaliza o período getulista, acentuando a diferença entre dois formatos de políticas públicas de saúde, capitaneadas pelo MESP e pelo MTIC. Aqui residia um contraponto entre corporativismo e universalismo. No primeiro capítulo, a autora abre um debate com Castro-Santos 2,3 e Draibe 4, salientando que estes autores atribuíram ao governo varguista uma prioridade à medicina previdenciária, em detrimento da saúde pública, interpretação que a autora contesta. Ao discordar, lembra que a política varguista de saúde teria contribuído para a construção do Estado nacional. A autora pondera que a bandeira do saneamento, agitada pelos sanitaristas e por intelectuais da Primeira República, foi incorporada e reelaborada sob a égide do MESP, acompanhando o desenvolvimento econômico e burocrático, adaptando novas instituições e agentes ao novo arcabouço institucional de saúde.
Tanto Draibe como Castro-Santos não teriam levado em conta "o investimento institucional realizado pelo governo central na área de saúde pública" neste período (p. 30-1). Assim, pondera a autora, ao Governo Vargas interessava consolidar-se na construção de um Estado nacional, centralizador e intervencionista, que respondesse com políticas sociais aos conflitos urbanos por meio do MTIC, ou, a partir do MESP, contemplasse as populações rurais, fora do âmbito do mercado formal de trabalho. Aqui, na inter-relação entre o governo central e os poderes local e regional, teríamos um processo de construção da nação - "nation-building", que fomentaria novas identidades sociais em substituição àquelas baseadas na lealdade local.
Em torno das concepções de prevenção definiam-se as estratégias de ação e prioridades a doenças e regiões, bem como a formação das especializações profissionais. Não houve, nesse contexto, ruptura com o que se passava na Primeira República. Ao retornar à literatura sobre o saneamento, particularmente à obra de Hochman 5, afirma a autora que as ações públicas das primeiras décadas do século XX permitiram a penetração do poder estatal por meio de novas campanhas sanitárias no pós-30, aprofundando o processo de expansão dos aparelhos de Estado. Esses rumos foram impulsionados, em 1941, pela criação de serviços nacionais de saúde, cujos parâmetros universalistas diferiam da política previdenciária, lançada em bases mais restritivas.
O projeto de saúde pública varguista foi, a rigor, uma criação do ministério Gustavo Capanema, à frente do MESP desde julho de 1934. Os processos e atores que conduziram os primeiros anos do "setor saúde" no interior do novo ministério são abordados pela autora; iniciava-se, então, a passos lentos - diríamos nós -, a constituição de um sistema centralizado na área de saúde, em meio a mudanças de gestão e conflitos que envolviam as oligarquias regionais e a União. O projeto Capanema, em vigor desde 1937, resguardava a área de atuação dos estados e evitava profundos atritos políticos e gerenciais; não obstante, assegurava a ampliação da ação federal nos estados. A mais importante inovação foram as delegacias federais. Distribuídas em oito regiões, inspecionavam serviços e supervisionavam as atividades do setor, subordinadas ao Departamento Nacional de Saúde. Na reforma Capanema, as conferências nacionais de saúde e de educação eram marcos de debate e participação dos novos profissionais no âmbito do ministério. Em pauta nas conferências, o tema do alcance ou cobertura populacional das políticas sanitárias retomava, assim, as antigas preocupações de sanitaristas como Belisário Pena, pela superação do atraso e da pobreza no interior do país. Sob a reforma Capanema, durante todo o período varguista, construiu-se um serviço de saúde abrangente, destinado em princípio - enfatizamos - a toda a população. Uma faceta desse princípio e dessas práticas, esclarece a autora, foi a comunhão entre os indicativos dos fóruns internacionais e as prioridades políticas do Ministério Capanema. No tocante à saúde, as conferências sanitárias pan-americanas revelaram-se decisivas. Novamente, devemos sublinhar, estava em pauta a retomada dos rumos da Primeira República, quando se estabeleceram os primeiros laços entre o nacionalismo, os projetos de construção nacional e a visão de higiene social defendida pelas primeiras gerações de sanitaristas brasileiros e propagada também, no Brasil, pelos profissionais da Fundação Rockefeller.
A política de saúde do Ministério Capanema, sob a inspiração e direção de João de Barros Barreto - bolsista da Fundação Rockefeller em 1924-1925 - desenhava-se como um dos pilares da compreensão da instituição da saúde como um direito universal, levada a efeito por gerações posteriores de sanitaristas e movimentos sociais pela saúde 6. A autora aponta as dificuldades do Governo Vargas de gerar um pacto federativo, apesar - ou em razão deles, diríamos! - dos mecanismos centralizadores e autoritários que fortaleceram o papel da união nos estados. Daí, previne a autora, ter-se cristalizado, na população brasileira, o entendimento dos serviços de atenção à saúde antes como 'concessão paternalística' do que como direito social.
Segundo a autora, a literatura teria desconsiderado que a área da saúde constituía "fator de peso" nos investimentos institucionais realizados por Vargas. O peso foi indiscutível. Mas, ressaltamos, não foi ponderável em relação a outras áreas de políticas sociais - à educação e às políticas focadas na formação da sociedade urbano-industrial, longe da montagem institucional do MESP. Além disso, ainda que tenha sido inegável o investimento público na saúde, as ações de governo, durante os tempos de Capanema (ou de Barros Barreto, a bem dizer) não foram suficientes para projetá-la no imaginário político, em escala comparável àquela que os reformistas de 1920 vieram a consolidar em seu próprio tempo, apesar de um espaço institucional ainda reduzido. Tampouco o getulismo veio a gestar a formação de grupos profissionais da saúde com efetiva expressão política, diferentemente do que se passou na Primeira República 7.
Um bom texto se firma pelo elenco de contribuições à literatura. Nesse sentido, a obra de Fonseca, pela excelente pesquisa historiográfica e pela discussão rigorosa, tornou-se uma referência obrigatória. Depois de seu livro, sustentar que houve um "ocaso da saúde pública" no pós-30 8, como muitos de nós o fizemos e ainda fazemos, ainda que sob ângulos explanatórios diferenciados, será uma tarefa bem mais árdua.
Referências bibliográficas
- 1. Santos WG. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Editora Campus; 1979.
- 2. Castro-Santos LA. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados Rev Ciênc Sociais 1985; 28:193-210.
- 3. Castro-Santos LA. Power, ideology, and public health in Brazil (1889-1930) [Tese de Doutorado]. Cambridge: Harvard University; 1987.
- 4. Draibe S. Rumos e metamorfoses. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra; 1985.
- 5. Hochman G. A era do saneamento. São Paulo: Editora Hucitec/Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais; 1998.
- 6. Castro-Santos LA, Faria L. Os primeiros centros de saúde nos Estados Unidos e no Brasil: um estudo comparativo. Teoria e Pesquisa 2002; (40/41): 137-81.
- 7. Castro-Santos LA. Reabrindo o debate sobre Nagle: a educação e a saúde na historiografia brasileira. Revista Brasileira de História da Educação 2008; 16:47-62.
- 8. Campos GWS. A saúde pública e a defesa da vida. São Paulo: Editora Hucitec; 1991.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Set 2009 -
Data do Fascículo
Set 2009