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Validade ou verdade? Algumas reflexões sobre crenças verdadeiras e justificáveis em epidemiologia

DEBATE DEBATE

Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Pernambuco. moreirars@cpqam.fiocruz.br

Debater sobre um artigo que já consiste em uma crítica a outro artigo não é tarefa simples na medida em que, muitas vezes, acabamos por escolher um ou outro ponto de reflexão para nos debruçar, independentemente de qual artigo foi a origem desta reflexão. Em outras palavras, trata-se de uma tarefa peculiar de se criticar uma crítica. Entretanto, tal atribuição deve ser assumida no escopo das regras do pensamento científico, sendo a crítica permanente um dos traços marcantes da postura científica aqui exercitada.

No tocante ao tema, o artigo de Narvai et al. foi muito feliz ao criticar o texto de Queiroz et al. 1, que também se trata de uma crítica sobre os dados gerados pelo último levantamento epidemiológico nacional de saúde bucal. Dessa forma, observa-se já de início a prática da racionalidade crítica aqui exemplificada.

Diante de tantas reflexões e abundâncias de "críticas" geradas pelos dois artigos acima citados, a minha contribuição será pautada pela tentativa de estabelecer alguns pontos no texto de Narvai et al. que merecem destaque sob o ponto de vista da construção do conhecimento científico na perspectiva de que, no conceito de Costa 2, seria a construção de uma crença verdadeira e justificável sobre o que pensamos ao fazermos ciência.

Inicialmente, é necessário registrar a grande vantagem da disponibilidade do banco de dados do SB Brasil para a avaliação pela comunidade científica. Os bancos de dados dos levantamentos anteriores não foram rapidamente disponibilizados na mesma velocidade em que foi o SB Brasil. Esta presteza favoreceu a realização de várias análises e ainda continua sendo fonte de dados secundários para várias pesquisas em andamento. Com efeito, mesmo com atraso na disponibilidade dos dados dos levantamentos anteriores, vários programas e ações de saúde pública voltadas à saúde bucal não deixaram de ser realizadas por falta de dados ou por inconsistências operacionais diagnosticadas nestes levantamentos. Conforme citado por Roncalli 3, as experiências do uso da epidemiologia nos serviços de saúde bucal no Brasil são escassas e tímidas. Enquanto os países desenvolvidos apresentam séries históricas desde as primeiras décadas do século XX, o Brasil realizou seu primeiro grande inquérito no ano de 1986. Posteriormente, apenas dois levantamentos foram conduzidos nacionalmente, sendo um em 1996 e o último em 2003.

Paralelamente, críticas devem ser feitas com relação às características que diferem os três levantamentos, sobretudo em referência ao cuidado que se deve ter ao comparar estudos de diferentes estratégias e desenhos amostrais. No entanto, é importante destacar o esforço operacional envolvido nos três momentos distintos a fim de gerar informações sobre a saúde bucal da população brasileira, respeitando-se os diferentes contextos políticos e econômicos de cada período representando, ou uma informação com a qualidade desejável, ao menos um acúmulo de dados disponíveis e únicos sobre o tema em questão. Dessa forma, a preocupação recai sobre o que efetivamente existe de dados sobre a saúde bucal da população brasileira, sendo fundamentais os atores sociais envolvidos na interpretação das informações criticarem a validade e a confiabilidade das mesmas. Contudo, tal crítica não deve ser confundida como renúncia ao uso destes dados.

Assim, concordamos que é mais importante estabelecer metas programáticas, mesmo se baseando em estimativas válidas ou não válidas, pois apenas a validade ou não de uma estimativa não confere a ela o valor de verdade sobre o que se estima. Sobre isso, Nietzsche já apontava para o sentimento de que uma crença forte demonstra apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se acredita. Entretanto, temos em debate duas crenças com forças e validades distintas. Mas qual delas é verdadeira?

Esta indagação nos remeterá ao conceito de quase-verdade ou verdade pragmática, proposta por Costa 2, dentre outras três teorias da verdade, mas preferimos comentá-las posteriormente. Voltando às crenças em debate no artigo de Narvai et al., destacamos de um lado a crença de que a pesquisa SB Brasil não produz estimativas válidas segundo Queiroz et al. 1 e de outro lado de que elas são válidas, pois também se propõem a revelar a realidade, embora não compartilhem dos mesmos requisitos para validar esta observação da realidade.

Diante de tal impasse, como contribuição e convite à observação da realidade, apresento uma passagem das páginas de Palomar, de Ítalo Calvino 4 (p. 102): "O senhor Palomar decidiu que daqui para a frente redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece. Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? (...) Portanto: há uma janela que dá para o mundo. Do lado de lá está o mundo; e do lado de cá? Sempre o mundo: que outra coisa queriam que estivesse? (...) E ele, dito também 'eu', ou seja, o senhor Palomar? Não será ele também um pedaço de mundo que está olhando ou outro pedaço de mundo? Ou então, dado que há mundo do lado de cá e mundo do lado de lá da janela talvez o eu não seja mais do que a janela através da qual o mundo olha o mundo. Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar".

Usando a arte da literatura podemos expressar nessa breve e profunda passagem de Palomar que o mundo que observamos, mais especificamente, as condições bucais que foram observadas estão de que lado da janela? Quem está usando os óculos de Palomar? As respostas às questões levantadas na parte que discorre sobre "levantamentos de saúde bucal" já aponta a frágil sustentabilidade da afirmação apresentada sobre a não representatividade da população brasileira dos inquéritos de saúde bucal. Parece estar claro que faltaram os óculos de Palomar para enxergar outras representatividades e representações que os inquéritos vêm proporcionando para o conhecimento da realidade.

Sem negar o valioso cartesianismo de nossas práticas científicas e ao mesmo tempo assumindo a complexidade dos objetos de aproximação científica, dentre eles a saúde bucal, Almeida Filho 5 nos indica que este objeto complexo, na sua forma de objeto heurístico, não pode ser explicado por modelos lineares de determinação, pode ser apreendido em múltiplos níveis de existência, dado que opera em distintos níveis da realidade e é multifacetado, alvo de diversas miradas, fonte de múltiplos discursos, extravasando os recortes disciplinares da ciência. Em resumo, o objeto complexo é sintético, não linear, múltiplo, plural e emergente.

Nesse sentido, a crítica levantada por Queiroz et al. 1 mostra claramente a forte inclinação funcional-positivista que ainda se mostra hegemônica no campo da epidemiologia. Conquanto tais aproximações positivistas e abordagens cartesianas se mostrem úteis para o desenvolvimento da ciência e respondam a várias perguntas condutoras de pesquisas em Saúde Pública, a negação de outras dimensões e de formas alternativas de apreensão do conhecimento favorece o sepultamento de infinitas possibilidades de aproximação de um mesmo objeto por meio de diferentes olhos/óculos.

Todavia, é necessário registrar que as falhas do SB Brasil apontadas por Queiroz et al. 1 e analisadas pelos autores deste debate são coerentes com o método utilizado no inquérito. Em outras palavras, se as regras do jogo (aqui representadas pelo processo amostral) obedeciam a uma cartilha cartesiana, como realmente se propõem os levantamentos preconizados pelos manuais da Organização Mundial da Saúde (OMS), a falta de obediência aos mandamentos de tal cartilha deve ser sim encarada como erros na condução do estudo e que devem ser revelados para a comunidade científica. Mas este argumento não cega os outros pontos "válidos" do levantamento, especialmente aqueles que culminaram no envolvimento das unidades e dos profissionais dos serviços públicos de saúde e na estruturação de um sistema nacional de Vigilância em Saúde Bucal. Com efeito, tal preocupação reforça a importância da epidemiologia no SUS para além das fronteiras acadêmicas.

Uma importante contribuição do artigo de Narvai et al., especialmente no polêmico tópico da "validade das inferências" foi apontar, indiretamente, a relação entre a estatística e as ciências da saúde. Respeitando-se os devidos limites de cada campo do conhecimento inicialmente sob uma concepção multidisciplinar, a estatística tradicionalmente se ocupa com a pureza das formas matemáticas, dos modelos de ajustes mais precisos e do respeito canônico pelos pressupostos e requisitos de cada análise. Exige que todos os graus de incerteza sejam mensurados, haja vista que a certeza de seus achados é algo epistemologicamente inatingível.

No campo das ciências da saúde, em especial no campo da saúde pública, o perfeito ajuste dos modelos estatísticos ou alguma alteração de ordem numérica não ocupa o cerne de seu olhar pragmático sobre a saúde da população. Um intervalo de confiança, seja qual for a sua (des)confiança, ou uma medida de efeito (desde que o sentido/direção deste efeito não seja alterado) seja de risco seja de proteção, com flutuações (aleatórias ou sistemáticas) em suas intensidades, não irá inviabilizar uma conclusão em um estudo de Saúde Pública e muito menos deixará de fornecer subsídios para intervenções neste campo.

Ainda com relação às inferências, o raciocínio abdutivo de Peirce, segundo Gonzalez et al. 6, entraria em ação quando a hipótese enunciada indutivamente não encontra sustentação na realidade de nossos hábitos instáveis, ou seja, as crenças sobre aquele objeto não se encontram ainda estabelecidas.

No raciocínio abdutivo, podemos nos permitir considerar a relação entre o resultado e a regra como sustentadores do caso em questão. Nesse sentido, podemos raciocinar, por exemplo, que se:

Boa parte dos idosos é edêntula (resultado)

Boa parte dos idosos da população brasileira é edêntula (regra)

____________________________________________________

Portanto, os idosos estudados são desta população (caso)

Embora seja um raciocínio dedutivamente inválido, a abdução permite uma "aposta razoável" sobre a origem da amostra 7.

Por fim, retomamos o pensamento de Costa 2 de que quando se pensa em conhecimento, estamos comprometidos com o conceito de verdade. Existem pelo menos três teorias de verdade relevantes em ciência: as teorias da correspondência, da coerência e a pragmática. Segundo a teoria da correspondência, a verdade é um atributo de crenças ou proposições. Sendo assim, uma proposição é verdadeira se retrata a realidade (se o que ela diz reflete o real). A concepção pragmática da verdade ou quase-verdade em que uma proposição é pragmaticamente verdadeira quando comparamos suas conseqüências com proposições que em geral são verdadeiras. A teoria da coerência pode ser considerada como uma versão sintática da teoria pragmática 8.

Neste sentido, Poincaré (1902, apud Costa 2, p. 43) acrescenta que "pouco nos importa que o éter exista realmente; este é um tema para os metafísicos. O relevante para nós é que tudo ocorra como se ele existisse, e que esta hipótese se mostre cômoda para a explicação dos fenômenos".

Sendo assim, desconfio de que muitas vezes as conclusões estatísticas vêm adotando práticas metafísicas no campo da saúde. Afinal, independentemente de o Brasil ser um país de desdentados ou não, o relevante para os cientistas é observar que tudo vem ocorrendo como se realmente ele fosse um país de desdentados, e que tal hipótese vem se mostrando cômoda para a explicação da determinação social deste fenômeno, por exemplo, conforme já evidenciado por estudos quase-verdadeiros.

Concluindo, destaco a célebre frase de Albert Einstein para resumir a instigante comparação que os autores fazem sobre três imagens artísticas distintas para "representar" a realidade ou "modelagens" da realidade: "a imaginação é mais poderosa que o conhecimento".

  • 1. Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade de correção. Cad Saúde Pública 2009; 25:47-58.
  • 2. Costa NCA. O conhecimento científico. São Paulo: Discurso Editorial; 1997.
  • 3. Roncalli AG. Epidemiologia e saúde bucal coletiva: um caminhar compartilhado. Ciênc Saúde Coletiva 2006; 11:105-14.
  • 4. Calvino I. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.
  • 5. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciênc Saúde Coletiva 1997; 2:5-20.
  • 6. Gonzalez MEQ, Andrade RSC, Oliveira LF. Complexidade e ordem implicada: uma investigação acerca do processo criativo. In: Guerrini IA, organizador. Nas asas do efeito borboleta: o despertar do novo espírito científico. Botucatu: Fepaf; 2006. p. 89-105.
  • 7. Peirce CS. Ilustrações da lógica da ciência. Aparecida: Idéias & Letras; 2008.
  • 8. Krause D. A filosofia da ciência de Newton C. A. da Costa. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo; 2001. (Série Lógica e Teoria da Ciência).
  • Validade ou verdade? Algumas reflexões sobre crenças verdadeiras e justificáveis em epidemiologia

    Rafael da Silveira Moreira
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010
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