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MERCADO DE TRABALHO DE INTÉRPRETES E TRADUTORES DE LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS E LÍNGUA PORTUGUESA: IDENTIDADE E PROFISSIONALIZAÇÃO

JOB MARKET OF INTERPRETERS AND TRANSLATORS OF BRAZILIAN SIGN LANGUAGE AND PORTUGUESE: IDENTITY AND PROFESSIONALIZATION

Resumo

Este artigo apresenta uma análise do mercado de trabalho de um grupo de intérpretes e tradutores de língua brasileira de sinais e língua portuguesa. O objetivo é descrever este mercado a partir das seguintes perspectivas: contextos de atuação, jornada de trabalho, remuneração, trabalho voluntário, valorização e descrição das atividades desenvolvidas. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo descritiva. Os participantes são dezoito intérpretes e tradutores que atuam no interior do estado de Minas Gerais. A coleta de dados se deu por meio de questionário e grupo focal. Na análise dos dados foram utilizadas duas categorias criadas, com base em Bardin: identidade profissional e profissionalização. Os resultados indicam que os profissionais atuam em diferentes contextos, predominantemente, em interpretação educacional; apontam longa jornada de trabalho; exercem funções que ultrapassam as atividades de interpretação e tradução; vivenciam momento de busca por valorização social da profissão e ruptura da visão assistencialista. Conclui-se que há necessidade de se desenvolverem políticas de valorização e consciência social da profissão de intérprete e tradutor de Libras-português.

Palavras-chave
Intérpretes; Tradutores; Libras; Mercado de Trabalho; Profissionalização

Abstract

This article presents an analysis of the job market of interpreters and translators of Brazilian sign language and Brazilian Portuguese language. The aim is to describe this market from perspectives, such as: contexts of work, working hours, remuneration, voluntary work, valuation and description of the activities developed. This is qualitative and descriptive research. The participants are eighteen interpreters and translators who work in a city in the countryside of Minas Gerais state. The data was collected by questionnaire and focus group. In the data analysis, two categories were used: professional identity and professionalization. The results indicate that professionals work in different contexts, predominantly in educational interpretation; they also claim long working hours, perform functions that go beyond the activities of interpretation and translation, and experience moments of search for social vaporization of the profession and rupture of the assistentialist view. We conclude that there is a need to develop valuation policies and social awareness of the Libras-Portuguese interpreter and translator profession.

Keywords
Interpreters; Translators; Libras; job market; Professionalization

Introdução

No Brasil, nas duas últimas décadas, políticas afirmativas promoveram conquistas sociais para as comunidades surdas, acarretando avanços que levaram à expansão do mercado de trabalho para intérpretes e tradutores de língua brasileira de sinais (Libras) e língua portuguesa (Quadros 13Quadros, Ronice Müller de. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEESP, 2004.), à criação de cursos específicos de formação em nível superior e ao processo de reconhecimento profissional da categoria (Brasil, 2005Brasil. Decreto 5626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília-DF. 23/09/2010. Seção 1: 28-30., 2010Brasil. Lei 12.319, de 01 de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - Libras. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília-DF. 02/09/2010. Seção 1: 1.). Entretanto, identifica-se que o trabalho do intérprete e tradutor ainda é costumeiramente relacionado a questões ligadas ao assistencialismo e ao voluntariado, uma vez que esta atividade laboral emergiu destas condições.

Neste artigo, são apresentados os resultados de uma pesquisa que objetivou descrever características atuais do mercado profissional de intérpretes e tradutores de Libras-português, com base na visão dos próprios profissionais sobre os seguintes tópicos: contextos de atuação, jornada de trabalho, remuneração, trabalho voluntário, valorização e descrição das atividades desenvolvidas. Os participantes são profissionais de interpretação e tradução de Libras-português que atuam em uma cidade do interior do estado de Minas Gerais, Brasil.

Antes, porém, pretende-se apresentar um panorama acerca de como se constituiu, no Brasil, o mercado de trabalho para a área de interpretação e tradução intermodal1 1 O termo intermodal refere-se à interpretação realizada entre línguas de modalidades diferentes, ou seja, uma língua visual (a Libras) e outra vocal (a língua portuguesa). de Libras-português. Em seguida, são apresentados o contexto da pesquisa, a análise e a descrição dos dados, que foram agrupados em duas categorias: identidade profissional e profissionalização, subdivididas em cinco núcleos de sentido: contextos de atuação; jornada de trabalho; intérprete-docente; valorização social da profissão e remuneração versus assistencialismo. Por fim, são apresentadas as considerações finais.

1. Mercado de trabalho, interpretação e tradução de línguas de sinais

Quadros aponta que as atividades laborais de intérpretes e tradutores de línguas de sinais se iniciaram vinculadas a atividades voluntárias que foram se expandindo à medida que os surdos conquistavam espaços sociais e que este processo ocorreu de forma semelhante, mas não simultânea, em diferentes países. A autora registra que a profissionalização e a expansão do mercado de trabalho para estes profissionais ocorreram em decorrência de conquistas legais e sociais das comunidades surdas de cada país e que estas mudanças se deram de formas e em momentos diferentes. Como cita a autora, na Suécia, a presença de intérpretes de línguas de sinais ocorreu no final do século XIX, primeiramente, em trabalhos voluntários de cunho religioso, sendo que somente em 1981 foi instituído que cada conselho municipal deveria ter uma unidade com intérpretes no país. Já nos Estados Unidos da América (EUA), o registro da primeira atividade de interpretação foi em 1815, quando Thomas Gallaudet interpretou para um surdo francês, chamado Laurent Clerc, que desenvolvia um trabalho nos EUA a fim de promover a educação de surdos. Um dado interessante é que em 1964 foi fundada, neste país, uma organização nacional de intérpretes para surdos, a atual Registry of Interpreters for the Deaf (RID), que, ainda nos dias atuais, seleciona, registra, certifica, promove o código de ética e oferece informações sobre formação destes profissionais.

No Brasil, as atividades de interpretação de Libras-português têm os primeiros registros oficiais em atividades religiosas e datam da década de 1980. De acordo com Quadros, em 1988, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) promoveu o I Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, que direcionou discussões sobre encaminhamentos da profissão, sobretudo, sobre questões éticas, e oportunizou, pela primeira vez, um intercâmbio entre intérpretes de várias regiões do país.

Ainda sobre os primeiros intérpretes de línguas de sinais, Rodrigues e Beer afirmam que “eram práticos, sem nenhuma formação acadêmica. Na maioria dos casos, eram familiares e amigos dos surdos ou religiosos preocupados em oferecer assistência a eles ou evangelizá-los” (Rodrigues e Beer 31Rodrigues, Carlos Henrique e Beer, Hanna. “Os estudos da tradução e da interpretação de línguas de sinais: novo campo disciplinar emergente? Cadernos de Tradução 35 (2015): 17-45. Portal de Periódicos da UFSC. 19/07/2021. DOI:10.5007/2175-7968.2015v35nesp2p17.Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/285639160_Os_estudos_da_traducao_e_da_interpretacao_de_linguas_de_sinais_novo_campo_disciplinar_emergente>.
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). Estes autores apontam que nas primeiras atividades dos intérpretes práticos de línguas de sinais, a predominância era da interpretação simultânea, uma vez que as atividades de tradução de línguas de sinais só surgiram posteriormente, quando se passou a exigir maior necessidade de documentos linguisticamente acessíveis para pessoas surdas. A interpretação inversa, ou seja, quando a língua-fonte é a língua portuguesa e a língua-alvo é a Libras, no caso de intérpretes ouvintes que têm a língua portuguesa como língua materna, também era (e ainda é) predominante. Embora atualmente trabalhem em diversos contextos, os intérpretes de Libras-português iniciaram sua trajetória no campo da interpretação “intra-social — ou baseada em cenários comunitários” (Pöchhacker e Queiroz 62Pöchhacker, F e Queiroz, M. “Conexões fundamentais: afinidade e convergência nos estudos da interpretação”. Scientia Traductionis, 7 (2010): 61-75. Base de Dados da Universidade de Coimbra. 20/10/2021. Disponível em: <https://digitalis.uc.pt/pt-pt/artigo/conex%C3%B5es_fundamentais_afinidade_e_converg%C3%AAncia_nos_estudos_da_interpreta%C3%A7%C3%A3o>.
https://digitalis.uc.pt/pt-pt/artigo/con...
), especialmente em associações de comunidades surdas e religiosas.

Rodrigues e Beer observam, também, que, com o passar dos anos, as atividades de interpretação e, por conseguinte, de tradução de Libras-português, se deslocaram do contexto religioso para outros contextos, sendo, a princípio, o educacional. Com a exigência de inclusão educacional da pessoa surda, houve a necessidade de profissionais da interpretação na educação básica e superior. No contexto universitário, segundo os autores, essas atividades foram, aos poucos, ganhando espaço em diferentes esferas: “(i) campo de atuação profissional; (ii) como curso de graduação e, por sua vez, como conteúdo de ensino; (iii) como temática de pesquisa; e, também, (iv) como possibilidade de extensão” (Rodrigues e Beer 32Rodrigues, Carlos Henrique e Beer, Hanna. “Os estudos da tradução e da interpretação de línguas de sinais: novo campo disciplinar emergente? Cadernos de Tradução 35 (2015): 17-45. Portal de Periódicos da UFSC. 19/07/2021. DOI:10.5007/2175-7968.2015v35nesp2p17.Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/285639160_Os_estudos_da_traducao_e_da_interpretacao_de_linguas_de_sinais_novo_campo_disciplinar_emergente>.
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).

Martins e NascimentoMartins, V. R. de O. Posição-Mestre: desdobramentos foucautianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional. 2013. 256 f. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2013., também, desenvolveram uma análise da trajetória de intérpretes de línguas de sinais, na qual afirmam que as atuações de interpretação de português para Libras ocorriam, a princípio, em contextos comunitários e que a formação desses profissionais, por muito tempo, ocorreu totalmente baseada na prática, ou seja, no exercício da função de interpretar. Identificam, ainda, uma mudança no perfil de interessados em atuar na área de interpretação e tradução de Libras-português, uma vez que os novos profissionais já não possuem relação estreita e direta com a comunidade surda como os primeiros intérpretes de Libras. Essa mudança ocorre devido à disseminação das atividades de tradução e de interpretação e do novo status da Libras. Segundo estes autores, “o campo de trabalho, que cresce e se estabelece com as políticas públicas de inclusão social, tende a ser cada vez mais amplo e a demandar, com cada vez mais frequência, profissionais para assumir os espaços ampliados de atuação” (Martins e Nascimento 103Martins, V. R. de O. Posição-Mestre: desdobramentos foucautianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional. 2013. 256 f. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2013.).

Atualmente, observa-se uma variedade de atividades que os intérpretes e tradutores de Libras-português podem desenvolver. Nas últimas décadas, a Comunidade Surda brasileira avançou em termos de conquistas legais e espaços de formação. Os surdos ganharam o direito não apenas de usar a Libras, mas também de ter serviços de interpretação e de tradução de Libras-português em várias áreas sociais, às quais não tinham acessibilidade linguística anteriormente. Evidentemente, ampliou-se de forma considerável o mercado de trabalho para a profissão de intérprete de Libras-português, que deixa de ser meramente assistencialista e caminha para a profissionalização.

2. Sobre o estudo

Trata-se de um estudo do tipo descritivo, de abordagem qualitativa. GilGil, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. aponta que o objetivo de um estudo descritivo é descobrir as principais características de um povo ou fenômeno ou, ainda, estabelecer relações entre variáveis que, neste caso, são as características do mercado de trabalho de intérpretes e tradutores de Libras-português.

Os dados foram coletados nos meses de fevereiro e março de 2020, por meio de dois instrumentos: questionário on-line, para coleta de informações sobre o perfil dos participantes da pesquisa, e grupo focal presencial, uma técnica de coleta de informações por meio de pequenos grupos de pessoas. Para a seleção da amostra dos participantes da pesquisa, inicialmente, foram necessárias duas fases: 1) identificação das pessoas que atuam profissionalmente como intérpretes de Libras-português, de acordo com os contatos obtidos junto à coordenadoria do Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de atendimento às pessoas com Surdez (CaS) da cidade; 2) convite, enviado por meio de um aplicativo de mensagens, aos vinte e seis intérpretes e tradutores de Libras-português identificados. Já a coleta de dados se deu em três momentos: 1) envio de um questionário on-line, criado pela pesquisadora; 2) a partir das respostas ao questionário, seleção dos profissionais que atuam há mais de 5 anos no mercado de trabalho; e 3) realização de um grupo focal com um subgrupo composto por intérpretes que atuam há mais de 5 anos.

O critério de seleção para a inclusão dos sujeitos na pesquisa, ou seja, responder ao questionário, foi atuar como intérprete e tradutor de Libras-português e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Entretanto, dos 26 questionários enviados, apenas 18 participantes responderam, se habilitando, assim, a participar da pesquisa. A estes foi, então, enviado o TCLE, contendo informações sobre o sigilo da pesquisa, a temática e a forma de participação. Na apresentação dos resultados, a fim de assegurar suas identidades, os participantes são indicados por P1, P2 e assim por diante.

No primeiro momento da coleta de dados, foi enviado um questionário contendo perguntas abertas e fechadas, escritas em português, acerca das características do ambiente profissional, por exemplo, o tempo de atuação, jornada de trabalho, contextos de atuação, faixa salarial, formação. O questionário foi aplicado a fim de identificar características gerais do mercado de trabalho na cidade. As respostas às questões sobre dados sociodemográficos mostraram que a amostra foi constituída por 16 pessoas que se declararam do gênero feminino e por duas, do gênero masculino, sendo que todos os participantes são pessoas ouvintes, com tempo de atuação diversificado, variando entre seis meses e 26 anos de carreira, e atuam em diferentes contextos, sendo predominante a interpretação em contexto educacional.

No segundo momento, passou-se à realização da(s) sessão do grupo focal. Para este momento, foram selecionados os intérpretes e tradutores que responderam ao questionário e apontaram que atuam no mercado de trabalho há, pelo menos, cinco anos, somando sete participantes, pois os demais atuam há menos tempo. Entretanto, apesar de confirmarem presença com antecedência, apenas três participantes compareceram ao grupo focal, que foi filmado e conduzido, em língua portuguesa, pela pesquisadora e, posteriormente, transcrito para língua portuguesa escrita. O grupo focal seguiu perguntas semiestruturadas e durou cerca de três horas. Foi realizado presencialmente e as perguntas norteadoras puderam complementar e aprofundar as informações coletadas no questionário.

Sobre o grupo focal, Morgan (apud GondimGondim, Sônia Maria Guedes. “Perfil profissional e mercado de trabalho: relação com a formação acadêmica pela perspectiva de estudantes universitários”. Estudos da Psicologia, 7. 2. jul./dez. (2002): 299-309. Portal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 18/10/2021. Disponível em: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=26170211>.
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=2...
) define-o como uma técnica da pesquisa qualitativa que deriva das entrevistas em grupo. Segundo a autora, o grupo focal coleta informações de um conjunto de pessoas que possui alguma característica em comum, sendo uma discussão por meio de um coordenador ou pesquisador sobre um tópico específico e a análise se dá com foco nas influências mútuas que emergem a partir da discussão no grupo focal.

Os dados coletados no grupo focal foram gravados por meio de áudio, via aparelho celular e, posteriormente, transcritos para língua portuguesa. Em seguida, foi realizada a análise. O tratamento dos dados coletados durante o grupo focal ocorreu, portanto, com base na abordagem qualitativa, utilizando-se os procedimentos indicados pela técnica de análise de conteúdo (Bardin 105Bardin, L. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. 4. ed. Lisboa: Lisboa Edições 70, 2007.). Essa técnica consiste em analisar os dados por meio de “categorias” que evidenciam “núcleos de sentido”, que são organizados com base na frequência em que aparecem.

A seguir, será apresentada a análise dos dados coletados tanto no questionário, com todos os participantes, quanto no grupo focal, que contou com a participação dos intérpretes e tradutores que atuam há pelo menos cinco anos.

3. Análise e resultados

Utilizando-se a técnica de análise de conteúdo de Bardin, os dados coletados, tanto no questionário, quanto no grupo focal, apontaram uma frequência de temas, tais como: os contextos em que atuam, a jornada de trabalho, a remuneração e a valorização da profissão, que foram organizados em duas categorias e em cinco núcleos de sentido criados pela autora a partir da análise dos dados, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Categorias e Núcleos de Sentido

A seguir, são apresentados os núcleos de sentido das duas categorias criadas a partir da análise de dados, realizando-se a discussão dos resultados com base nas respostas dos participantes às questões do questionário e com base nas falas dos participantes sobre os temas propostos durante a realização do grupo focal.

3.1 Resultados da categoria identidade profissional

O primeiro núcleo de sentido desta categoria, contextos de atuação, possibilita identificar as principais áreas ou atividades de atuação dos intérpretes e tradutores de Libras participantes da pesquisa.

A área educacional é a mais evidente: Eu atuo mais no contexto educacional, educação básica (P2); Eu trabalho mais em contexto educacional, técnico e superior, e na saúde (P3). Embora atividades no âmbito educacional sejam predominantes, intérpretes e tradutores estão atuando, cada vez mais, em outros contextos: Trabalho em contextos religiosos, palestras e eventos (P4); Faço interpretação de conferências e mídias. Atualmente, atuo na Educação e conferências diversas (P 3); A gente, então, faz interpretação em reuniões de colegiado, instituto, isso é, tudo na direção de português para Libras, e nas salas de aula, que são todas as licenciaturas, psicologia, engenharia ou mais alguma que aparece como optativa. E, também, já tivemos aluno no curso técnico em radiologia, aí acompanhávamos em todas as disciplinas e, também, no estágio (P3).

Apenas um participante mencionou que trabalha com tradução: Eu comecei a fazer um trabalho de tradução também porque estou fazendo legendagem, mas essa legenda é para todos os alunos, e não só para surdos; Eu faço um trabalho com videoaula, no ensino a distância. Eu recebo as disciplinas que o aluno vai fazer, estudo a aula, o material e tudo mais. E depois gravo a interpretação. É tipo uma tradução, mas na verdade eu interpreto e isso é filmado. (P1). No entanto, conforme seu relato, ele reconhece que não faz um trabalho de tradução propriamente dita, e sim, o que pode ser considerada uma interpretação simultânea gravada e realizada com alto controle das demandas linguísticas, por conhecer completamente o conteúdo das aulas e por não haver possibilidade de análise, revisão e correção do texto traduzido.

Este conjunto de respostas dos alunos evidencia a predominância de serviços de interpretação e não de tradução como uma das características da identidade profissional da área de intérpretes e tradutores de Libras e língua portuguesa2 2 Costumeiramente, os profissionais da área são denominados como Tilsp, que significa Tradutores e Intérpretes de Libras e língua portuguesa. Entretanto, devido à evidência de que os serviços de interpretação ainda são predominantes, optou-se neste artigo pela denominação Intérpretes e Tradutores de Libras-português, apontando, primeiramente, a atividade mais realizada. .

O segundo núcleo de sentido, jornada de trabalho, encontrado nesta categoria, aponta a alta carga horária de trabalho, como afirma P2: Trabalho mais de 40h por semana com interpretação; e, também, evidencia que prevalece o trabalho individual, ou seja, sem revezamento, como afirma P12: Horas exaustivas de tradução e interpretação sem revezamento. Dentre os participantes, apenas dois mencionaram que trabalham menos de 30h semanais como intérpretes e tradutores e a maioria trabalha no mínimo 40h.

É possível perceber nas respostas dos participantes que há excesso de trabalho para que se mantenham salários razoáveis, como diz P2: E, também, as condições de trabalho porque a gente precisa acumular funções, trabalhar muito, na maioria das vezes, três períodos por dia para ter um salário razoável. E isso gera muito adoecimento do profissional.

Dean e Pollard JrDean, R. K. e Pollard Jr, R. Q. “Application demand-control theory to sign language interpreting: implications for stress and interpreter training”. Journal of Deaf Studies and Deaf Education, 6: 1 (2001): não paginado. Portal da University of Rochester School of Medicine, NY., 17/06/2020. DOI:10.1093/SURDO/6.1.1 Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/6535/88a7436e1808d118759a45b5caf793890b8e.pdf?_ga=2.244317957.1490731828.1592329942-526624097.1592329942>.
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. apresentam um conceito para demanda e controle, sendo a demanda a exigência do trabalho sobre o intérprete (interna ou externa) e o controle do grau de decisão dos intérpretes sobre as demandas. Os autores apontam que situações de alta demanda e baixo controle podem causar elevado estresse, que podem acarretar doenças ocupacionais e prováveis lesões, tais como lesões por esforços repetitivos (LER) e síndrome de burnout, dentre outras, como citaram P11: Além das longas jornadas interpretando, o que faz com que tenhamos alguns problemas de saúde porque não tem ninguém pra revezar; e P2: [...] E isso gera muito adoecimento do profissional.

Entretanto, um aspecto importante apresentado por Dean e Pollard Jr.Dean, R. K. e Pollard Jr, R. Q. “Application demand-control theory to sign language interpreting: implications for stress and interpreter training”. Journal of Deaf Studies and Deaf Education, 6: 1 (2001): não paginado. Portal da University of Rochester School of Medicine, NY., 17/06/2020. DOI:10.1093/SURDO/6.1.1 Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/6535/88a7436e1808d118759a45b5caf793890b8e.pdf?_ga=2.244317957.1490731828.1592329942-526624097.1592329942>.
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é de que embora haja preocupação por parte das empresas na redução de estresse, a política desenvolvida, na maioria das vezes, é de que o profissional precisa aprender a lidar com o estresse, e não a de que há necessidade de reduzi-lo. Assim, fica evidente que uma das características da identidade profissional dos intérpretes de Libras é o excesso de trabalho e a necessidade de aprender a controlar os níveis de estresse.

Outra característica apontada é o trabalho individual, pois não há trabalho em equipe em nenhum dos contextos em que atuam, mas, sim, trabalho de revezamento. No contexto de educação básica, os participantes relatam que há um revezamento por área, mas continuam atuando sozinhos em sala, como afirma P1: Nós fazemos, também, um revezamento por área. Por exemplo: eu prefiro trabalhar em disciplinas da área de exatas e minha colega prefere a área de humanas. Então, eu interpreto do 9º ao 3º ano todas as disciplinas de exatas, como matemática, química, física. E revezo com a minha colega, que interpreta a área de humanas (português, história, geografia etc.). Da mesma forma, aqueles que atuam em nível superior, relatam que em reuniões há revezamento de trinta em trinta minutos: Lá somos eu e outra intérprete apenas, então, é quase impossível trabalhar em dupla, com apoio. Só acontece muito raramente quando tem algum evento maior e de maior duração. Mas, no dia a dia, a gente trabalha com revezamento. A gente reveza de 30 em 30 minutos, mas não é trabalho de apoio, é revezamento. Principalmente nas reuniões de departamento porque são longas (P3).

Sobre este aspecto, NogueiraNogueira, T. C. Intérpretes de Libras-português no contexto de conferência: uma descrição do trabalho em equipe e as formas de apoio na cabine. 2016. 213 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) − Base de Dados da Universidade Federal de Santa Catarina, 2016. apresentou um estudo que analisa as potencialidades do trabalho em duplas em interpretação de cabine e demonstrou que a interpretação em equipe é predominante em interpretações de conferência, apontando que há três modelos: o processo independente, quando acontece apenas o revezamento e os profissionais atuam de forma totalmente independente um do outro; o processo de monitoração, quando há monitoramento do intérprete de apoio durante a interpretação realizada pelo intérprete do turno; e o processo colaborativo e interdependente, quando há interação desde o momento pré-evento, preparação, momento da atuação e avaliação após o evento.

NogueiraNogueira, T. C. Intérpretes de Libras-português no contexto de conferência: uma descrição do trabalho em equipe e as formas de apoio na cabine. 2016. 213 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) − Base de Dados da Universidade Federal de Santa Catarina, 2016. apresenta os benefícios do trabalho em equipe segundo o modelo colaborativo e interdependente, dentre eles, a diminuição do estresse entre os profissionais, uma vez que há diminuição do esforço cognitivo, e maior controle das omissões na interpretação, pois, o papel do apoio colabora com os controles de demandas. Portanto, identifica-se que, embora haja evidências dos benefícios do trabalho em equipe de forma colaborativa e interdependente, há necessidade de se desenvolverem políticas que estimulem o trabalho em equipe em todos os contextos de atuação, pois, como apontaram os participantes, a predominância é do processo independente.

O terceiro núcleo de sentido, intérprete-docente, mostra como os profissionais intérpretes e tradutores de Libras, frequentemente, desempenham atividades que extrapolam suas funções, o que ocorre, sobretudo, quando atuam em contextos educacionais, como se depreende da fala de P2: Na educação básica, não tem jeito. A gente atua com a docência o tempo inteiro. Não é só trabalho de interpretar e traduzir, não. Entretanto, vale destacar uma especificidade deste contexto que é a dupla função, ou seja, a docência ligada ao trabalho de interpretação e tradução, como se pode ver no relato de P1: Como eu interpreto área de exatas, uso muito o recurso do quadro negro. Por exemplo, o professor de matemática tá explicando uma conta usando um pincel azul, eu vou com outro pincel, vermelho, por exemplo, aí vou interpretando e mostrando pros alunos no quadro o tempo inteiro. Por exemplo, às vezes o professor coloca um ponto que significa multiplicação, mas o surdo não sabe isso. O aluno não entende que significa multiplicação. Ai eu uso o meu pincel de cor diferente e faço um X para ele entender que aquilo lá é uma multiplicação, sabe? Além de atuarem ajudando diretamente o professor, não raro, auxiliam diretamente aos alunos, como relata P2: Outro recurso que eu uso muito também, quando se trata de um termo novo, é fazer o registro no caderno do aluno. Aí eu escrevo a palavra e coloco significados na frente com outras palavras para que eles possam começar pelo menos a reconhecer o vocabulário.

Conforme as participantes apontaram, no contexto educacional o trabalho do intérprete e tradutor ultrapassa questões relacionadas à área, pois, necessitam usar recursos para ensinar o surdo, como os apresentados: utilizar o quadro do professor para explicar o conteúdo, escrever no caderno dos alunos.

Fatos como estes corroboram o ponto de vista de Martins ao analisar os desdobramentos da carreira daqueles que ela chama de tradutor e intérprete de língua de sinais educacional (Tilse): “O intérprete educacional, portanto, passa a ser parte do ensino, deixando-se capturar por uma visualidade que percorre métodos e estratégias que tornam saberes visuais, na língua de sinais, com uso de imagens, figuras, materiais múltiplos que auxiliarão naquilo que precisa ser trabalhado com os alunos surdos” (Martins 205Martins, V. R de O. e Nascimento, V. “Da formação comunitária à formação universitária (e vice e versa): novo perfil dos tradutores e intérpretes de língua de sinais no contexto brasileiro”. Cadernos de Tradução. 35. 2 jul a dez. (2015): 78-112. Portal de Periódicos da UFSC. 18/10/2021. DOI:10.5007/2175-7968.2015v35nesp2p78. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/285638999_Da_formacao_comunitaria_a_formacao_universitaria_e_vice_e_versa_novo_perfil_dos_tradutores_e_interpretes_de_lingua_de_sinais_no_contexto_brasileiro>.
https://www.researchgate.net/publication...
).

3.2 Resultados da categoria profissionalização

O primeiro núcleo de sentido desta categoria, valorização social da profissão, indica, por meio das falas dos participantes, o quanto, no Brasil, a profissão de intérprete e tradutor de Libras ainda é pouco reconhecida e valorizada e levanta questões relacionadas aos conceitos de profissionalismo e profissionalidade, propostos por Libâneo, e profissionalização, proposto por NóvoaNóvoa, Antônio. Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. Lisboa.. Estes termos estão relacionados ao desenvolvimento profissional de docentes, que passaram por situação semelhante à dos intérpretes e tradutores de Libras-português, pois, do mesmo modo, iniciaram seus trabalhos de maneira voluntária e passaram por um período de reconhecimento e validação social da profissão.

Libâneo define profissionalismo como “compromisso com o projeto político democrático, participação na construção coletiva do projeto pedagógico, dedicação ao trabalho de ensinar a todos, domínio da matéria e dos métodos de ensino, respeito à cultura dos alunos, assiduidade, preparação de aulas etc” (Libâneo 90Libâneo, José Carlos. Adeus professor, adeus professora? novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 1998.).

Já a profissionalidade se refere ao aperfeiçoamento docente na busca de desenvolvimento profissional e pessoal, como a formação continuada ou a busca por ela, estando ligada à ânsia que o professor tem de conhecer, aperfeiçoar-se e ser reconhecido entre os pares e na sociedade. Por sua vez, a profissionalização, de acordo com Nóvoa corresponde à posição dos professores na sociedade perante as políticas públicas que são direcionadas a eles e, com isso, melhoram seus rendimentos e seu estatuto perante a sociedade.

Estes conceitos podem ser aplicados à situação atual dos intérpretes e tradutores de Libras-português, sendo que, o profissionalismo se refere ao processo individual e a questões éticas dos profissionais, como, por exemplo, ser assíduo, respeitar o ambiente de trabalho, preparar-se para as interpretações, ou seja, está no campo individual. A profissionalidade, por outro lado, refere-se às constantes buscas por desenvolvimento, como, por exemplo, formação continuada, algo que é extremamente citado pelos participantes deste estudo.

Por fim, a necessidade de se desenvolver a profissionalização para os intérpretes e tradutores de Libras-português é sentida nas seguintes falas dos participantes: Uma queixa que eu faço é que na educação básica eu me sinto invisível e sinto que os alunos surdos também são. Muitas vezes, os professores entram e saem sem nem falar com a gente (P2); ou: Apesar de trabalhar no ensino superior, é aonde me sinto menos valorizado; ou, ainda: Eu sou mais pessimista porque já vejo a questão da desvalorização (P1).

Intérpretes e tradutores têm clara percepção de que sua profissão não é devidamente valorizada e reivindicam que seu trabalho seja reconhecido, como se pode ver nas seguintes falas: As pessoas acham que é um bico. Acham que a gente não tem que beber água, ir ao banheiro, então, eu vejo mesmo o lado negativo dessa profissão (P1); ou: Penso que ainda é uma área desvalorizada e, também, é visto como algo dispensável. Interpretamos, às vezes, palestras, por horas sem que nos seja ofertado um copo d’água (P4); ou, ainda: Há muita desvalorização, as pessoas pensam que não somos seres humanos, que não temos nossas necessidades e, também, que não podemos ficar doentes (P18). Sobre o momento atual da profissionalização, P2 acha que os surdos olhavam muito para intérpretes que são filhos de surdo, não como intérprete, mas como um ouvinte que sabe Libras e vai dar um jeito em tudo, enquanto P3 acha que o surdo precisa apoiar mais o intérprete, ficar mais do nosso lado, porque, na maioria das vezes, o surdo não apoia as causas dos intérpretes. Já P3 entende que é a postura do intérprete que tem, agora, que ser diferente: Depois que foi regulamentada, eu acho que a postura do intérprete tem que ser diferente para mostrar ao surdo que aquilo ali também é uma profissão porque até então não era. Por fim, P3 considera que A questão da desvalorização do mercado de trabalho é culpa nossa mesmo, mas que a questão do trabalho assistencialista ainda está muito vinculado à nossa profissão.

Nestas falas fica evidente a ânsia destes profissionais pelo reconhecimento, por parte da sociedade, da profissão de intérpretes e tradutores de Libras-português.

O segundo núcleo de sentido desta categoria remuneração versus assistencialismo diz respeito a uma questão que remonta à origem desta profissão.

A primeira constatação a ser feita é que, apesar da ampliação da oferta de postos de trabalho para estes profissionais, ainda há bastante discrepância de remuneração e de formas de contratação. P1 reclama que A gente tem uma tabela (referindo-se à tabela de honorários Febrapils) que nunca é seguida.; e P2 exemplifica que Já aconteceu, por exemplo, de me pedirem orçamento e eu enviar conforme a tabela Febrapils. Mas, posteriormente, a empresa foi atrás de outra pessoa que cobrou menos da metade do preço. Pior ainda é a constatação feita por P1 de que Nem sempre nosso trabalho é remunerado.

A fim de minimizar essas divergências, a Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais (Febrapils) apresenta em seu sítio eletrônico uma tabela de referência de remuneração, contendo as atividades desenvolvidas pelos profissionais nos mais diferentes contextos, mas, não há evidências de que as referências sejam seguidas.

Por outro lado, a questão é mais complexa, pois remete às origens desta profissão quando as atividades de interpretação e tradução estavam intimamente ligadas a um ato de voluntariado, de caráter puramente assistencialista. Atualmente, apesar dos avanços legais no sentido da regulamentação da profissão, há, entre os atos legais e sua plena assimilação pela sociedade, certa distância a ser vencida ao longo do processo histórico.

Como se pode ver, a passagem do assistencialismo para a profissionalização é um lento processo. O assistencialismo ainda se manifesta em atitudes tanto do público-alvo como dos intérpretes, como indicam as seguintes falas dos participantes: Eles olham para mim como aquela que sempre ajudou e agora quer cobrar (P1); Eu acho que a culpa é do próprio intérprete, porque antigamente, antes de 2002, antes de 2010, quando não era regularizado e não tinha a lei, a gente fazia muito trabalho voluntário, como eu fiz a minha vida inteira. Então, a gente mesmo fazia isso. Só que depois que houve a regulamentação, muita gente continuou fazendo e os surdos já estavam acostumados com esse trabalho voluntário, da gente não precisar de cobrar, da gente ter que fazer por eles (P1); A partir do momento que você cobra porque você sabe que o surdo tem condição de pagar, você não serve mais; Eu interpreto de graça quase todo dia porque minha mãe é surda e já me liga cedo por chamada de vídeo para pedir alguma coisa, como pedir gás etc. (P1); Se o surdo tá lá no pronto-socorro e me manda mensagem, aí a gente vai pelo lado humano, de forma voluntária, porque como a gente faz? Eu não consigo dormir tranquila pensando que o surdo tá morrendo lá no hospital e eu não fui interpretar porque ele não vai me pagar, entende?; E no meu carro, muitas vezes, até levo ou busco o surdo na casa dele, tudo com recurso próprio (P1);Quando vejo que é um surdo carente, em momentos onde (sic) eles precisam, eu não cobro. Essa é uma postura minha (P2); Minha história é um pouquinho diferente porque desde pequena eu estava dentro da associação de surdos, então, o tempo todo a minha história era ir lá, ajudar, interpretar, ligar e tudo de graça, né? (P1).

No entanto, percebem-se, em algumas falas, traços da profissionalização que estes profissionais tanto almejam: Se o intérprete cobra por um serviço, o surdo deveria ser o primeiro a dar apoio porque isso significa profissionalização. Isso vai exigir que os profissionais se formem, mas o surdo é o primeiro a condenar (P3); Agora que eu tenho formação na área e eu sei que posso cobrar pelo meu trabalho, eu não recebo mais uma mensagem porque eles (os surdos) pensam: Ah, ela vai cobrar. (P1).

Diante deste cenário revelado pelas falas dos participantes, torna-se evidente, mais uma vez, a necessidade de se desenvolver o conceito de profissionalização, pois, os resultados da pesquisa indicam que a atuação destes profissionais ainda está impregnada do tradicional caráter assistencialista desta profissão.

Considerações finais

Este artigo objetivou apresentar e analisar características do mercado de trabalho de intérpretes e tradutores de Libras-português. Os resultados indicam que estes profissionais vivenciam as contradições e os contratempos do atual marco histórico de busca pelo desenvolvimento, reconhecimento e valorização social da profissão e pela qualificação e formação continuada dos profissionais. Por outro lado, os conflitos do atual processo histórico são vivenciados, igualmente, por parte dos próprios profissionais, por parte do público-alvo de sua atuação e pela sociedade, em geral.

Neste sentido, propõe-se que os órgãos representativos da categoria de intérpretes e tradutores de Libras-português e da Comunidade Surda, tais como Febrapils, Feneis, Associações de Intérpretes e Sindicatos, atuem em conjunto a fim de promoverem discussões que colaborem com o desenvolvimento de políticas que sejam favoráveis à profissionalização desta categoria, no que diz respeito a:

  1. discussões e propostas acerca da necessidade de ramificação e formação de intérpretes e tradutores por áreas, uma vez que cada contexto de atuação necessita de competências específicas;

  2. propagação de marketing que estimule a correta negociação por parte dos profissionais e que estes se empenhem para seguir as referências da tabela de remuneração proposta pela Febrapils, em todos os contextos de atuação, a fim de colaborar com a construção da identidade profissional perante a sociedade;

  3. incentivo a propostas que estimulem contratantes à remuneração e formas de contrato justas que valorizem o trabalho em equipe, e não de revezamento, em todos os contextos de atuação, não apenas em conferências;

  4. discussões e propostas acerca do estímulo ao desenvolvimento do profissionalismo de toda a categoria e fiscalização de preceitos éticos e de comprometimento por parte dos profissionais, bem como do estímulo à profissionalidade, ou seja, oferta de formação continuada, uma vez que os profissionais estão dispostos e em busca de constante capacitação;

  5. propagação de marketing, discussões e políticas públicas que estimulem a conscientização coletiva da sociedade brasileira acerca da profissionalização do intérprete e tradutor de Libras-português e desvinculem a imagem deste profissional do trabalho voluntário.

Espera-se que este estudo contribua com as discussões acerca das necessidades para o mercado de trabalho de intérpretes e tradutores de Libras-português e estimule novas investigações e proposições acerca desta temática.

  • 1
    O termo intermodal refere-se à interpretação realizada entre línguas de modalidades diferentes, ou seja, uma língua visual (a Libras) e outra vocal (a língua portuguesa).
  • 2
    Costumeiramente, os profissionais da área são denominados como Tilsp, que significa Tradutores e Intérpretes de Libras e língua portuguesa. Entretanto, devido à evidência de que os serviços de interpretação ainda são predominantes, optou-se neste artigo pela denominação Intérpretes e Tradutores de Libras-português, apontando, primeiramente, a atividade mais realizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Aug-Dec 2021
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