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EXPLORING TRANSLATION THEORIES1 1 Tradução do capítulo Descriptions - the intellectual background, que complementao capítulo 5 do livro Exploring Translations Studies (2010), de Anthony Pym.

Resumo

O presente é uma tradução do capítulo Descriptions - the intellectual background, que complementa o capítulo 5 do livro Exploring Translations Studies (2010), de Anthony Pym. O capítulo traça a ligação entre o Formalismo Russo e algumas vertentes dos Estudos da Tradução surgidas ao longo do século XIX. Passa pelos esforços realizados em Praga (Círculo de Praga), Bratislava e Leipzig e pelos realizados em Holland e Flandres, mas foca-se principalmente na Escola de Tel Aviv, onde atuam Itamar Even-Zohar e Gideon Toury, os principais proponentes dos Estudos Descritivos da Tradução (EDT). Ao analisar esse contexto acadêmico, descreve o tipo de análise proposto por esses teóricos e discute as vantagens e desvantagens desse paradigma, problematizando os conceitos de “deslocamentos tradutórios”, “traduções assumidas” e “normas”. A tradução aqui apresentada pretende trazer o texto de Pym com a clareza e fluidez que caracterizam o original, para que ele sirva tanto como referencial histórico, quanto texto introdutório aos Estudos da Tradução.

Palavras-chave
Descritivismo; Deslocamentos Tradutórios

Tradução do Capítulo adicional: Descritivismo - O background intelectual

Este material explica o contexto histórico dos conceitos apresentados no capítulo 5 do livro impresso.

Se nos propusermos a descrever uma tradução ou um ato de tradução, pode parecer que essa tarefa simples não precisa de uma grande teoria. Aliás, poderia parecer simples demais até para ser levada a sério pelos estudiosos. Alguns dos conceitos mais significativos da Teoria da Tradução europeia são, contudo, o resultado do que chamaríamos de um abrangente “paradigma descritivo”, e este capítulo descreve os caminhos pelos quais esse paradigma se desenvolveu no século XX. Esta contextualização deve nos ajudar a estabelecer uma conexão entre a Teoria da Tradução e algumas das principais correntes anti-humanistas da época. Também pretende corrigir alguns dos equívocos comuns, particularmente em relação às várias formas pelas quais diferentes escolas e centros de estudo estavam interconectados. Vamos dar considerável ênfase nos Formalistas Russos, embora eles não tenham produzido trabalhos tão relevantes sobre tradução. Isso porque a ideia central dos Formalistas pode ser traçada através de vários caminhos ao longo do século, chegando aos pontos nos quais as principais teorias da tradução foram desenvolvidas. A primeira conexão foi com os trabalhos feitos em Praga, Bratislava, e, em menor escala, em Leipzig. A segunda conexão foi com a “Escola de Tel Aviv” (Even-Zohar, Toury e o desenvolvimento dos Estudos Descritivos da Tradução – EDT). E a terceira conexão foi com Holanda (“Holland”2 2 N.T. Tanto Holland, quanto Netherlands podem ser traduzidos como Holanda. Netherlands, sendo o país aparece acompanhado do artigo “a”. Holland, sendo uma região deste país, aparece sem artigo. ) e com Flandres. Quando finalmente os estudiosos da literatura dessas três áreas se encontraram e discutiram seus projetos em uma série de conferências, os Estudos da Tradução começaram a se constituir como uma disciplina acadêmica. É por isso que a história é importante – esse paradigma particular não tem as mesmas origens que os outros mencionados neste livro. A segunda metade deste capítulo descreve os principais conceitos usados nos Estudos Descritivos: deslocamentos tradutórios (“translation shifts”), sistemas e polissistemas, “traduções assumidas”3 3 N.T. “Translation Shifts” é um termo que ainda não possui uma tradução definida em português. Propomos aqui “deslocamentos tradutórios”, pois deslocamento abarca bem a ideia de afastamento das normas existentes, como ficará claro ao longo do texto. Igualmente, acreditamos que “tradução assumida” é o melhor termo para se referir a textos que não necessariamente foram traduzidos de um original, mas que, na cultura de chegada, são considerados como uma tradução, como ficará mais claro adiante. e a prioridade da cultura de recepção. No próximo capítulo olharemos mais atentamente os resultados provenientes da abordagem descritiva como um todo.

Nossos agradecimentos especiais a Itamar Even-Zohar, Gideon Toury, Zuzana Jettmarová, Jana Králová e Christina Schäffner pela ajuda e conselhos na elaboração deste capítulo.

Os principais pontos abordados neste capítulo são:

  • Os Estudos Descritivos da Tradução desenvolvidos a partir da tradição em que métodos científicos objetivos foram aplicados a produtos culturais.

  • Esses métodos foram frequentemente aplicados à tradução por estudiosos de literatura trabalhando em culturas minoritárias.

  • Em vez de prescrever como uma boa tradução deveria ser, as abordagens descritivas tentam dizer como as traduções são ou como poderiam ser.

  • Os deslocamentos tradutórios (“translation shifts”) são as diferenças regularmente encontradas entre as traduções e seus textos fonte. Eles podem ser analisados de modo descendente (top-down) ou ascendente (bottom-up).

  • As traduções desempenham um papel no desenvolvimento dos sistemas culturais.

  • A posição inovadora ou conservadora das traduções num sistema cultural depende da relação desse sistema com os demais, e pode ter conexão com o tipo de estratégia tradutória utilizada.

  • Ao selecionar os textos a serem estudados, as traduções podem ser consideradas somente como elementos da cultura de chegada, diferentemente do contexto da cultura de partida, que é preponderante no paradigma da equivalência.

  • As habilidades tradutórias são reguladas por um conjunto de “normas”, baseadas em um consenso informal sobre o que é esperado de um tradutor.

  • A abordagem descritiva foi um instrumento na organização dos Estudos da Tradução como disciplina acadêmica de base empírica.

5.1 O que aconteceu com a equivalência?

A equivalência caiu em desuso. A Teoria do Escopo (“Skopostheorie”) germânica a tornou ainda mais ultrapassada, argumentando que já que a “consistência funcional” (o que mais se aproximava de equivalência) era apenas mais um dos vários pré-requisitos possíveis, a tradução frequentemente necessita de transformações um pouco mais radicais. Para esses teóricos, a equivalência se transformou numa coisa simples, um caso especial. Quase ao mesmo tempo, entretanto, outros teóricos foram desmantelando a equivalência de forma diametralmente oposta. Para esse segundo grupo mais abrangente, que Gideon Toury conceberia como os “Estudos Descritivos da Tradução” – EDT, a equivalência era uma característica de todas as traduções, simplesmente porque eram vistas como sendo traduções, pouco importando sua qualidade estética ou linguística (Toury 1980:63-70). Isso mudou tudo. Se a equivalência de repente estava em todas as partes da tradução, ou em quase todas elas, ela não mais poderia ser usada como suporte para estudos linguísticos que tentassem produzi-la, nem seu conceito serviria diretamente à formação prescritiva de tradutores. Os estudos da tradução então migraram para um reino que não estava protegido por disciplinas já consolidadas; teve de se tornar uma disciplina autônoma. Em vez de expor princípios e opiniões, a abordagem descritiva enfatizou a necessidade de se conduzir pesquisas sobre tradução, principalmente nos moldes em que eram feitas nos estudos literários estruturalistas. As teorias associadas à pesquisa foram problematicamente deixadas fora do alcance do crescente número de instituições de formação; eram, num contexto institucional, bem diferentes das Teorias do Escopo. Seguiremos, aqui, os passos desse caminho histórico. Vamos, no próximo capítulo, considerar o que, de fato, os Estudos Descritivos podem ter descoberto.

5.2 As origens do paradigma descritivo

O nome “Estudos Descritivos da Tradução” (com maiúsculas) não tinha se consagrado completamente até o livro Descriptive Translation Studies and Beyond [Estudos Descritivos da Tradução e Além], de Gideon Toury (1995; tradução para o espanhol 2004). Tornou-se, desde então, uma conveniente bandeira para uma frota perdida de novos estudiosos. Em torno dessa designação existe agora um vasto campo de reflexões e de pesquisas. Superficialmente falando, trata-se um paradigma geral no qual estudiosos se fundamentaram para descrever o que as traduções realmente são, em vez de simplesmente prescrever como deveriam ser. Esses termos, no entanto, são simplificações. Se a proposta fosse simplesmente descrever, não haveria necessidade de se formular uma grande teoria. O que descobrimos é que esse paradigma acolhe vários conceitos teóricos, como: sistemas, deslocamentos, normas, leis e universais (apenas para citar os mais importantes), além de um longo debate em andamento sobre como definir o termo “tradução” em si. Apesar da ênfase sobre a descrição, este ainda é um paradigma para atividades teóricas.

Naquele contexto histórico, o deslocamento da prescrição para a descrição implicou em um claro desafio para a institucionalização do paradigma da equivalência. Em vez de simplesmente dizer como traduzir bem (que é o que a maioria das análises linguísticas baseadas na equivalência se propuseram a fazer, juntamente com a Teoria do Escopo e, possivelmente, a maioria das instituições de formação), as teorias descritivistas têm como proposta identificar como as pessoas realmente traduzem, pouco importando a suposta qualidade. O paradigma da equivalência em geral veio de estudiosos que atuaram na linguística ou em formação profissional; já o paradigma descritivo ganhou mais adeptos entre pesquisadores com bagagem nos estudos literários. Essa divisão surgiu nos anos 70 e no início dos 80, aproximadamente em paralelo com o desenvolvimento da Teoria do Escopo. As genealogias intelectuais do paradigma descritivo poderiam, não obstante, ser rastreadas na história até pelo menos o início do século XX.

5.2.1 O Formalismo Russo e seu legado

Nas primeiras décadas do século XX, o movimento conhecido como Formalismo Russo se dedicou a produzir descrições científicas de sistemas e produtos culturais, particularmente no campo da literatura. A ideia inicial era que essa ciência pudesse e devesse ser aplicada a uma esfera cultural. Por mais simples que possa parecer, isso nunca havia sido feito anteriormente de maneira consistente. As aplicações das ciências empíricas à literatura no século XIX foram, em sua maioria, limitadas a prescrever os modos pelos quais os romances deveriam descrever a sociedade (esta era a ideologia do Naturalismo), e a algumas tentativas de análise da linguagem artística, no contexto do que ficou conhecido como o Movimento Simbolista. Com efeito, é provável que as sementes do Formalismo Russo tenham sido semeadas a partir deste abrangente Simbolismo (cf. Genette 1976: 312). Em 1915, um grupo de jovens universitários que se encontravam nos cursos do Professor Vengerov fundaram o “Círculo de Linguística de Moscou”, que reuniu Roman Jakobson, Petr Bogatyrev e Grigori Vinokur. Eles procuravam estudar as especificidades da literatura apoiando-se em conceitos emprestados da emergente linguística pré-estrutural (especialmente a noção das “características distintivas” na língua). Em 1916, a Sociedade de Estudo da Linguagem Poética (conhecida pela abreviação Opojaz - Society for the Study of Poetic Language) foi fundada em São Petersburgo, reunindo Viktor Shklovsky, Boris Eikhenbaum, Boris Tomashevsky e mais tarde Yuri Tynianov. Esses, em sua maioria, eram historiadores literários à procura das leis e princípios fundamentais da literatura. Um dos projetos estava dentro da linguística, o outro se relacionava à linguagem poética; mas nesse estágio os dois poderiam desenvolver um substancial terreno comum. Ambos os projetos eram baseados em uma ideia muito simples, já mencionada aqui: os métodos e objetivos da ciência deveriam ser aplicados à cultura. Os dois visavam desenvolver modelos explícitos, definindo termos cuidadosamente e usando observações para confirmar ou refutar leis e princípios hipotéticos da linguagem artística, independentemente da psicologia dos autores, das emoções dos leitores, ou qualquer suposta representação social. De acordo com o convincente princípio formalista, o objeto de estudo não era o trabalho literário em si, nem os seus conteúdos, mas as características subjacentes que o tornaram literário (“literariedade”, ou “literaturnost”, conforme criado por Roman Jakobson). Esta linguagem literária tinha suas técnicas artísticas próprias (priyómy na terminologia de Shklovsky, de vez em quando representado como “dispositivos” [“devices”] em inglês, ou “procedimentos” [“procédés”] em francês); ela presumivelmente tinha seu próprio sistema subjacente de padronização, e, particularmente no trabalho de Tynyanov, relações dinâmicas específicas com outros sistemas culturais, tanto diacrônicos quanto sincrônicos. Ao descrever o processo de mudanças nos sistemas literários, Tynyanov reconhece que um novo “princípio constitutivo” pode surgir a partir de uma série de ocorrências ou de encontros fortuitos, mas, para tornar-se substancial, ele precisa da transferência de modelos e materiais provindos de outras esferas (1924: 19-20). Aquela observação não veio acompanhada por nenhuma consideração sobre o papel das traduções, embora Tynyanov tivesse escrito em outro lugar uma crítica da tradução de Heine feita por Tyutchev (estudo datado de 1921, incluído em Arcaicos e Inovadores [Arxaisty i novatory] em 1929 e na tradução francesa de Formalismo e história literária [Formalisme et histoire littéraire] em 1991, mas que não fez parte da tradução parcial germânica de 1967). Havia certamente um quadro teórico para aquele tipo de estudo da tradução literária, mas a tarefa propriamente dita não parece ter feito parte da pauta do Formalismo Russo. Quaisquer insights potenciais sobre tradução permaneceram sem impacto imediato na teoria russa, embora alguns estudantes de Tynyanov, por exemplo Andrei Federov, tenham se tornado proeminentes teóricos da tradução na era Soviética, e Jakobson tenha escrito alguns artigos seminais sobre a tradução tal como foi mencionado nos capítulos anteriores.

A herança do período Formalista teria servido, de várias formas, para a sociolinguística de Valentin Vološinov, talvez em parte para Mikhail Bahktin, e mais obviamente para os semioticistas Yuri Lotman e Boris Uspenski, cujos nomes talvez sejam mais familiares. Nenhum desses especialistas em cultura, entretanto, produziu trabalhos teóricos sistemáticos sobre tradução; nem mesmo os Formalistas posteriores. Quando Andrei Fedorov publicou seu impactante “Introdução à Teoria da Tradução” (“Introduction to the Theory of Translation”) em 1953, ele tinha estudado no State Institute for the History of the Arts, onde os Formalistas tinham criado um programa (nossos agradecimentos a Itamar Even-Zohar por esta informação), e é certamente por isso que alguma porção da abordagem inicial sobreviveu. Os traços desse legado podem ser intuídos a partir da aproximação altamente sistemática que Fedorov fez de princípios básicos (depois da devida homenagem a Marx e Lenin) e de sua investigação detalhada sobre a forma como diferentes gêneros e elementos estilísticos devem ser traduzidos. A mesma observação pode ser feita em relação a Efim Etkind, cujo trabalho sobre os poetas-tradutores Russos (1973) chamava a atenção para o papel da tradução no desenvolvimento das culturas.

A partir de Fedorov e alguns outros, chegamos a uma certa escola russa de teoria de tradução, que inclui importantes trabalhos feitos por Retsker e Shveitser. Seus princípios gerais, entretanto, não estão relacionados à escola literária; eles são linguísticos, prescritivos e basicamente compatíveis com o paradigma da equivalência. Se estivermos procurando o caminho pelo qual as descrições científicas de sistemas levaram a um novo paradigma de teoria da tradução, então devemos investigar mais.

Mais interessante para nós aqui é como as ideias Formalistas deixaram os Russos e alcançaram outros estudiosos da tradução. Podemos selecionar três linhas interligadas: de Praga e Bratislava, de Tel Aviv, e de Holanda e Flandres.

5.2.2 Estruturalismo em Praga, Bratislava e Leipzig

A primeira vertente é a dos estudiosos que passaram a se encontrar a partir de 1926 sob o título de Círculo Linguístico de Praga (Cercle linguistique de Prague). A conexão mais óbvia foi o linguista Roman Jakobson, que tinha se instalado na cidade de Brno (sua fuga da ocupação germânica de Praga o levou a Copenhagen, Estocolmo, Nova Iorque e Harvard, estimulando curiosidade intelectual por onde passava, e eventualmente semeando alguns insights fundamentais no terreno da tradução). Outros membros do Círculo foram o russo Nikolai Trubetzkoi, que chegou a ocupar uma cátedra em Viena, e Henrik Becker, que participou da primeira reunião, mas vivia em Leipzig (ver Dušková 1999). Mencionamos esses detalhes aqui para indicar que o Círculo de Praga claramente se estendeu para além dessa cidade. Em 1928, Jakobson, Trubetzkoi e outros membros do grupo participaram da Primeira Conferência Internacional de Linguistas em Haia (Hague) na Holanda, ocasião na qual foi acordada uma resolução: pensar a análise linguística de maneira sincrônica. Nesse acordo também assinaram Charles Bally e Albert Sechehaye, que tinham compilado e editado o Curso de Linguística Geral de Saussure (1916), a referência fundamental para a ciência da análise sincrônica. Os fios da história intelectual se cruzavam, não sendo fácil urdi-los em tradições nacionais. Será que havia então alguma teoria da tradução nessa trama?

A abordagem científica do Formalismo Russo forneceu o impulso para os avanços iniciais do Círculo de Praga na linguística estruturalista, abrangendo desde a fonologia aos estudos da linguagem poética, todas potencialmente partes da análise geral dos signos culturais. Embora o desenvolvimento da fonologia tenha sido, sem dúvida, a conquista mais duradoura do grupo (e, de fato de todo o estruturalismo, conforme argumentaremos), seus interesses se estendiam a vários aspectos culturais, especialmente à literatura, e ocasionalmente à tradução.

No trabalho de Jan Mukařovsky฀, do Círculo de Praga, encontramos uma clara consciência do papel histórico da tradução. No seu artigo de 1936 “Francouzská poezie Karla Čapka” (“A poesia francesa de Karla Čapka”), Mukařovsky฀ argumenta que a tradução é uma das maneiras pelas quais as literaturas nacionais podem ser transformadas, já que buscam e desenvolvem equivalentes para textos estrangeiros (ver Králová 2006). Essa compreensão pode ser vislumbrada na obra de Tynyanov no contexto do Formalismo Russo (ou do trabalho de Zhirmunskij sobre Pushkin, ou Vinogradov sobre Gogol); já em Mukařovsky฀ ela é claramente afirmada.

No tocante aos estudos literários o papel transformacional da tradução se tornou parte e invólucro de uma abordagem que via os sistemas culturais (tais como as literaturas nacionais) como grupos de relações estruturais que se desenvolviam não só em termos de sua lógica interna (como foi o caso no Formalismo Russo), nem exclusivamente a partir de influências externas (como pode ter sido o caso dos estudos tradicionais de história), mas sim a partir do complexo contexto social formado pelas dinâmicas de ambos os lados, simultaneamente. O que tornava a tradução interessante era que ela necessariamente perpassava esses dois quadros aparentemente distintos; ela obrigava o historiador literário a ver o lado interno e o externo em uma só perspectiva. Podemos argumentar que essa situação é mais plausível quando estamos tratando de um “sistema minoritário”, tal como a literatura tcheca, do que de um “sistema majoritário” e aparentemente mais autônomo, como a literatura russa. Talvez o interesse de Praga na tradução não fosse mera coincidência.

O estruturalismo de Praga foi um fenômeno específico das décadas de 20 e 30. Houve, no entanto, uma tradição, aparentemente descontínua, que viu sua influência se infiltrar especialmente no estudo da literatura, ao longo dos anos. Nas décadas de 60 e 70 temos o estudioso tcheco Jiří Lev́, e os eslovacos František Miko e Anton Popovič, que procuravam descrever os princípios estruturais que fundamentam as traduções literárias (ver Jettmarová 2005; Králová 1998, 2006). É importante notar que esses estudiosos explicitamente refrearam seus preconceitos no que se referia à equivalência, ou ao que seria uma “boa tradução”; suas posições científicas os fizeram descrever ao invés de prescrever. Lev́ publicava em tcheco na década de 60 e se tornou mais amplamente conhecido em alemão (Lev́ 1969). Seu trabalho demonstra um talento na aplicação dos modelos provenientes das ciências exatas, embasando-se não somente na linguística, mas também na teoria do jogo (como podemos ver no capítulo sobre o indeterminismo). Miko (1970) sugeriu que se desse uma atenção particular sobre o que acontece com as características formais de um texto quando é traduzido. Popovič (1970) reconheceu que já que as traduções transformam os textos, os estudos da tradução deveriam focar-se no que mudou, assim como no que não mudou. Ele então decidiu descrever os “deslocamentos da tradução” (“Translation Shifts”) que acontecem no nível da expressão. Voltaremos posteriormente a esse conceito chave.

Uma observação deve ser feita aqui sobre a não tão definida “Escola de Leipzig” de estudiosos da tradução, que desde 1964, trabalhavam de modo semelhante (para detalhes históricos, ver Wotjak 2002; para aspectos conceituais, Jung 2000). Ainda que hesitemos em estabelecer uma linha direta entre o formalismo russo e seu legado, não há dúvida nenhuma de que os estudiosos do calibre de Otto Kade (na teoria da comunicação social), Gert Jäger (na linguística estruturalista) e Albrecht Neubert (na pragmática e linguística de texto) procuraram uma abordagem científica da tradução, exigindo clareza conceitual. Isso os levou a resgatar e redefinir muitos dos termos germânicos usuais. Por exemplo, “mediação linguística” (“linguistic mediation”, Sprachmittlung) tornou-se um objeto de estudo mais amplo (ver Kade, 1980), superando uma concepção estreita de tradução, e Kade cunhou o neologismo Translation em alemão, para abarcar tanto a tradução escrita quanto a interpretação oral. O trabalho em Leipzig foi também importante para a redefinição da ideia de deslocamento tradutório (“translation shift”), uma vez que as pesquisas de Kade e Neubert enfatizavam cada vez mais as relações a nível textual. Deve-se admitir também que a relação da escola com a ideologia Marxista oficial foi além do mero discurso. Quando Kade abordou a mediação linguística como um fenômeno social, ele procurou as causas dos problemas de tradução não nos mistérios da linguagem mas no desenvolvimento “não correspondente” de duas sociedades históricas. O pensamento sistêmico é claro, abrangente e importante, como de fato está em Marx. O principal trabalho de Leipzig, no entanto, foi sobre a tradução não literária a nível textual, sem investigação profunda sobre os sistemas sociais e, por isso, não foi parte integrante da forma como o paradigma descritivo se desenvolveu (seus primeiros modelos eram literários e sistêmicos). Em vez disso, fundamentou-se no paradigma da equivalência, que, como notamos, incorpora a reflexão de Kade sobre os tipos de equivalência. Esse trabalho exerceu uma influência terminológica sobre as abordagens gerais de propósito que adotaram o termo alemão Translation (“Tradução”), assim como a propensão geral para renomear coisas. Sua terminologia e ideias gerais sobre função textual abasteceram o desenvolvimento da Teoria do Escopo (Skopos theory). E Kade, ademais, tinha o que dizer sobre o desenvolvimento dos Estudos da Interpretação (ver Pöchhacker 2004: 34-35). Dito isso, o ímpeto e a identidade da Escola de Leipzig não perduraram muito depois da queda do muro de Berlim em 1989, pelo menos na Alemanha. Albrecht Neubert ajudou a promover análises texto-linguísticas nos Estados Unidos, principalmente graças a um programa de intercâmbio entre Leipzig e Kent State; e Christina Schäffner, que pertence à geração seguinte se especializou no Reino Unido em abordagens funcionalistas e texto-linguísticas, com ênfase particular na tradução de textos políticos. O resto dos teóricos da Alemanha especulava entre equivalência e Escopo, sem grande interesse no descritivismo como paradigma distinto.

Há poucas evidências de qualquer influência profunda ligando Praga ou Bratislava a Leipzig, apesar da proximidade geográfica e política. Devemos lembrar, entretanto, que os vários regimes Comunistas do período davam grande importância à tradução, tanto como um modo de preservar as línguas nacionais, quanto como uma maneira de promover a internacionalização da sua causa. Isso se referia não apenas ao papel do Russo como uma língua pivô, mas também às políticas de tradução de obras literárias advindas de países simpatizantes, da América Latina e África, por exemplo, assim como traduções de textos ideológicos para a posterior libertação dos povos oprimidos. Essas políticas demandavam tradutores, tradutores que deviam ser treinados. O treinamento criava um espaço institucional para pensar sobre tradução. O que quer que pensemos hoje em dia sobre as ideologias oficiais, o desenvolvimento de uma teoria sistemática da tradução deve muito ao período Comunista na União Soviética e na Europa Central. Não podemos reproduzir o mito da iluminação de um formalismo russo pré-revolucionário que de alguma forma enfrentava os dias difíceis de regimes medievais. Stalin certamente perseguiu o movimento formalista que considerava antimarxista, mas a história do período comunista não deve ser reduzida a apenas isso.

5.2.3 Polissistemas em Tel Aviv

Uma segunda vertente levou o Formalismo Russo a Tel Aviv. O agente dessa transferência foi o estudioso israelense Itamar Even-Zohar, que tomou conhecimento dos textos russos quando foi aluno de Benjamin Harshav na Universidade Hebraica de Jerusalém (Hebrew University of Jerusalem) e começou a lê-los quando estudava em Copenhagen (ver Even-Zohar 2008b; as redes de intercâmbio da Europa são complexas) e trabalhava em sua tese de doutorado. Even-Zohar se ocupa principalmente com as descrições sistêmicas de como as culturas se desenvolvem. Ele segue explicitamente as posições de Tynyanov, Jakobson e Eikhenbaum ao estudar fenômenos culturais, entendendo-os como sistemas governados por leis e princípios próprios, ainda à espera de identificação. De maneira simplificada, em vez de se concentrar sobre sistemas literários isoladamente, Even-Zohar procura ver as culturas como “polissistemas”, como sistemas complexos, abrangentes e heterogêneos (tais como a “cultura israelense”, “cultura francesa”) dentro dos quais existem sistemas menores como literatura, arquitetura, linguagem, leis, a vida em família, e assim por diante (por isso “poli”, significando “muitos”). Esses sistemas menores também podem ser complexos e dinâmicos, merecendo da mesma maneira o prefixo “poli”.

Apesar de sua abordagem diferenciada dos sistemas culturais, Even-Zohar permaneceu fiel à tradição de criação de modelos científicos e aos múltiplos ramos dos costumes europeus, como transparece em sua tese de doutorado sobre tradução. Como os estruturalistas de Praga e Bratislava, ele trabalhava dentro de uma cultura “minoritária” (Hebraica), e seu interesse nas fases pré-israelenses da cultura hebraica levou-o a enxergá-la como um sistema de múltiplos componentes (um polissistema). Even-Zohar fundou um departamento de Estudos da Tradução na Universidade de Tel Aviv (“Tel Aviv School”) e estava na origem do que viria a ser chamado de “Escola de Tel Aviv” dos Estudos da Tradução, que inclui Gideon Toury (cujo doutorado foi orientado por Even-Zohar), Rakefet Sela-Sheffy e Gisèle Sapiro. De certa forma, pode-se dizer que esse ramo inaugurou o termo “Estudos Descritivos da Tradução” (“Descriptive Translation Studies – DTS”).

5.2.4 O Descritivismo na Holanda e em Flandres

A terceira vertente diz respeito a um grupo de estudiosos trabalhando em Holanda e em Flandres (a parte da Bélgica que fala holandês), conhecido também como Escola dos Países Baixos (“Low Countries School”). Entre os nomes que se destacam aqui temos o americano James S Holmes4 4 Uma estranha anedota dos Estudos da Tradução afirma que o “S” do nome “James S Holmes” representa o nome de sua mãe; sugere-se que depois da letra não se use um ponto. Os escritos de Gideon Toury consistentemente omitem o sinal. em Amsterdam, os belgas José Lambert, Raymond Van den Broeck, André Lefevere e Theo Hermans. A relação deles com o Formalismo Russo é menos direta e não tem tanta importância, quando a comparamos aos outros casos. Os principais textos da Escola Russa tinham sido traduzidos para o francês (editados por Todorov, em 1965) e para o inglês (também em 1965, por Lemon e Reis; e editados por Matejka e Pomorska, em 1971), mas a atmosfera intelectual, nesse período, estava impregnada pelo prestígio do estruturalismo. Os princípios do pensamento da Europa Oriental certamente alcançaram os estudiosos dos Países Baixos, por meio de uma série de contatos pessoais, particularmente entre Anton Popovič, e Even-Zohar e Toury. Isso resultou em uma afinidade mais ampla de ideias.

5.2.5 Um Descritivismo Europeu

Essas três vertentes se encontraram no final dos anos 60, especialmente após a conferência de Bratislava, em 1968 (ver Holmes, ed. 1970). Trabalhos em grupo foram conduzido nos anos 70 (ver Holmes et al. eds. 1978) por alguns dos principais estudiosos. Eles se reuniam sob a bandeira do Comitê de Tradução da Associação Internacional de Literatura Comparada (Translation Committee of the International Comparative Literature Association). Toury (1978) estabeleceu a conexão com o trabalho de Even-Zohar sobre o modo como as culturas se desenvolvem. O volume The Manipulation of Literature (“A Manipulação da Literatura”, ed. Hermans 1985) reuniu uma série de artigos influentes dos principais estudiosos e, durante um período, o grupo foi apelidado, em tom de piada, de Escola da Manipulação, apesar do termo dizer muito pouco sobre o que estavam realmente fazendo.

Os estudiosos desse grupo estavam longe de partilhar das mesmas teorias, como era de se esperar, dadas suas bagagens teóricas diversas (ver Hermans 1999 para uma pesquisa detalhada). Todos eles, no entanto, concordavam que uma abordagem científica deveria ser usada para falar sobre o mundo, em vez de criticar ou avaliar o que é encontrado. Em maior ou menor medida, aceitavam que o trabalho anterior sobre tradução, incluindo várias das teorias elaboradas dentro do paradigma da equivalência, era “pré-científico” (um termo áspero, mas usado com relativa frequência). Evidentemente, todos eles concordavam que a tradução merecia ser seriamente estudada, e isso os opunha em parte aos estudos literários, que em sua maioria consideravam as traduções como produtos marginais, inerentemente inferiores aos originais e, portanto, de menor interesse. Quanto ao resto, os interesses e preceitos de cada teórico tendiam a abordagens diversas e diferentes níveis de trabalho.

Uma síntese das ideias desenvolvidas no paradigma descritivo

A seguir, indicamos os nomes dos teóricos que foram decisivos no desenvolvimento e verificação de hipóteses, embora muitos outros nomes também pudessem ser mencionados e todos eles possam ser associados a mais de uma ideia:

  1. As relações entre o texto de partida e o texto de chegada podem ser descritas em termos de “deslocamentos tradutórios” (“Translation shifts”, Lev́, Miko, Popovič).

  2. A posição inovadora ou conservadora das traduções em um sistema cultural depende das relações desse sistema com outros e é correlata à estratégia de tradução empregada (Even-Zohar, Holmes, Toury).

  3. Os Estudos da Tradução devem ser uma disciplina descritiva empírica com uma organização hierárquica e um programa de pesquisa estruturado (Holmes, Toury).

  4. Ao se selecionar textos para estudo, as traduções devem ser consideradas fatos da cultura alvo (Toury).

  5. Para entender não somente as traduções, mas também todos os tipos de “reescrita”, devemos considerar os contextos sociais, especialmente o mecenato (Lefevere).

  6. Teóricos da tradução devem se voltar não apenas para a literatura (Lambert).

Como vimos, o paradigma descritivista não pode ser vinculado a um espaço geográfico bem definido, como por exemplo aos “Países Baixos” (Low Countries). De fato, todos os estudiosos mencionados acima pertenciam ou ainda pertencem a culturas relativamente pequenas, e isso poderia explicar algumas de suas posições. Quanto menor a cultura, mais importante a tradução tende a ser (uma hipótese descritiva formulada em Pym 2004, mas claramente dedutível de Even-Zohar 1978). Não é de se surpreender, portanto, que justamente esses teóricos resolveram estudar a tradução a sério. No entanto, ocorreram alguns importantes deslocamentos geográficos. Theo Hermans mudou-se para Londres e teve uma decisiva influência no desenvolvimento dos estudos da tradução no Reino Unido; André Lefevere foi para os Estados Unidos, onde seu legado foi menos influente (sem dúvida por motivo de seu infeliz falecimento precoce em 1996, mas talvez também pelo fato dos Estados Unidos abrigarem uma cultura tão vasta e complexa). Desde então o ramo empírico dos Estudos da Tradução cresceu, propagando as bases do paradigma descritivo virtualmente por todo o mundo. Por essa mesma razão, o paradigma não pode ser restrito a um período histórico, como às décadas de 60 e 70 (como sugerido por Venuti em 2000). Várias das perguntas fundamentais formuladas na pesquisa do grupo original continuam sendo respondidas hoje em dia, sem dúvida porque o paradigma permanece notavelmente adequado à pesquisa empírica. Numerosas teses utilizam essas ideias e estão efetivamente contribuindo para o nosso conhecimento sobre traduções.

Tentaremos agora delinear os principais modelos de pesquisa desenvolvidos no paradigma descritivo. No próximo capítulo, vamos refletir sobre alguns dos resultados realmente alcançados por essa pesquisa.

5.3 A atração do estruturalismo

Nas páginas anteriores, muitas vezes encontramos o termo “estruturalismo”, especialmente se referindo ao paradigma da equivalência. Agora vamos tomar algum tempo para explicar o que esse termo significa e porque ele foi tão importante no século XX.

De modo simplificado, o estruturalismo significa que, ao invés de estudar cada objeto em si, como teríamos feito sob a influência do positivismo, estudamos as relações (“estruturas”) entre as coisas. A dificuldade é que, enquanto os objetos são visíveis para todos, as relações estão escondidas. Assim, o estruturalismo nos convida a descobrir a lógica secreta que se encontra sob a superfície dos produtos culturais. Em retrospecto, isso apresenta o mesmo apelo de quando Marx descobria as relações de produção existentes nas bases do funcionamento das sociedades, ou de quando Freud revelava os princípios do inconsciente. Para a maior parte dos estruturalistas da primeira metade do século XX, as estruturas realmente existem dentro das nossas línguas e culturas; as estruturas não surgem da subjetividade do pesquisador. O estruturalismo nos convida a trazer à tona verdades objetivas, que podem ser alcançadas e verificadas por meio de minuciosos procedimentos de análise. Também oferece uma abordagem científica da cultura (como no Formalismo Russo). Isso foi e ainda é um convite muito poderoso e atraente para qualquer pessoa em busca de conhecimento.

É possível encontrar exemplos dessas estruturas subjacentes em várias abordagens que consideram as linguagens como “visões de mundo”. O primeiro deles seria o de Saussure, de como as palavras ovelha (sheep) em inglês e carneiro (mouton) em francês se encontram em diferentes estruturas dentro de seus sistemas de linguagem. Vimos como essa ideia, já de início, criou problemas para o paradigma da equivalência, para o qual era necessário sustentar que a tradução fosse de alguma forma possível. Para o paradigma descritivo, entretanto, o estruturalismo tinha algo a ensinar, não a ser rejeitado. Em vez de perguntar se ovelha (sheep) realmente traduz carneiro (mouton), a tarefa inicial seria descrever o modo pelo qual os tradutores efetivamente resolveram esse problema ao longo da história.

O estruturalismo entrou na história do descritivismo no mesmo vagão que o Formalismo Russo, e particularmente através do Círculo de Praga (que estava realmente em contato com o legado de Saussure). Como mencionamos anteriormente, o desenvolvimento da fonologia em Praga foi a única grande história de sucesso do estruturalismo. Por exemplo, em inglês, ouvimos os sons /b/ e /v/ como significativamente diferente, já que sua diferença nos ajude a distinguir “bat” (morcego) de “vat” (tina)5 5 N.T. Em português, um exemplo semelhante seria o par mínimo “vento” e “bento”, palavras de significados diferentes, distinguidas apenas pelos fonemas /v/ e /b/. . No espanhol falado na Península Ibérica, entretanto, não há diferença relevante que ajude os falantes a soletrar palavras como “vota” e “bota”. Isso se dá porque em inglês há dois fonemas distintos para esses sons (que ainda permitem várias formas diferentes de pronúncia), enquanto em espanhol só há um. Falantes dessas línguas certamente conseguem pronunciar os diferentes sons, mas a estrutura subjacente de cada uma divide-os de diferentes maneiras. Essa estrutura subjacente é adquirida durante a aprendizagem de uma língua, ainda que não tenhamos consciência disso. Para a linguística sincrônica de Praga, e para o estruturalismo como um todo, o objeto de estudo deveria ser a estrutura interna (os fonemas), não os fenômenos superficiais (os detalhes fonéticos). Isso foi basicamente a mesma conclusão da análise de Saussure sobre ovelha (sheep) e carneiro (mouton), exceto pelo fato de que na fonologia as estruturas formavam sistemas completos e relativamente estáveis. Se um item é trocado (especialmente a vogal no inglês), os outros itens realmente tendem a mudar. Nesse sentido, a pesquisa ideal da fonologia teve seu foco desviado das estruturas para os sistemas dominantes.

Uma vez que entendamos essa visão do que é uma estrutura, é relativamente fácil entender um sistema como uma rede de estruturas, na qual uma alteração em um item implica em alguma forma de mudança em todos os outros. Existem, na verdade, pouquíssimos sistemas culturais nos quais isso se verifica. Na maioria destes, há partes, como em gêneros ou áreas específicas, em que as mudanças são interligadas, e outras em que tais distúrbios não ocorrem. Enquanto a introdução de um novo item lexical não altera a língua como um todo (campos lexicais são segmentados, e os repertórios são, em sua maioria, indeterminados), uma alteração em um tempo verbal normalmente afeta todos os outros (tempos verbais formam sistemas com muito poucos termos). A ideia dominante, no entanto, era a de que estruturas podem, de fato, relacionar qualquer coisa a qualquer coisa, o que deu origem a inúmeros planos para explicar o mundo.

A ideia básica do estruturalismo se espalhou no ocidente sob várias roupagens. Vários ramos das ciências humanas utilizaram elementos dessa abordagem. Na antropologia, a tradição que leva de Mauss a Lévi-Strauss se apoiou na linguística estruturalista; o estruturalismo estava na epistemologia científica de Bachelard e Merleau-Ponty; estava também por trás da linguística de Benveniste e Chomsky (que procurou mostrar as raízes cartesianas do paradigma). Em praticamente todas as ciências humanas, pesquisadores se dedicaram a estudar as relações entre objetos, em busca de princípios escondidos. Os estudos da tradução não foram exceção. Mas como seria a estrutura básica da tradução? As traduções são, de alguma forma, imprescindíveis para os sistemas culturais? E será que existe algo que se assemelhe a um sistema de traduções?

5.4 Conceitos teóricos dentro do paradigma descritivo

Dentro deste contexto intelectual, não é óbvio nem banal querer descrever traduções, em vez de “prescrever” o modo ideal de como elas deveriam ser. As abordagens descritivas se propunham a descobrir as relações e leis que estavam de alguma forma escondidas, ou seja, pensavam sobre as questões do estruturalismo. Ademais, dados os termos e conceitos que haviam sido acumulados nas várias disciplinas adjacentes desde os Formalistas Russos, os pesquisadores que estavam trabalhando em Tradução eram capazes de se apoiar em uma vasta gama de categorias estabelecidas (ninguém consegue simplesmente descrever com palavras o que se vê com os olhos) e de hipóteses sobre o que eles iriam encontrar. A abordagem subjacente era certamente empírica, na medida em que esses pesquisadores testavam suas ideias baseando-se em dados factuais. Mas seria um erro reduzir a abordagem a um mero empirismo (como é feito, por exemplo, em Merino e Rabadán 2004), como se não houvesse conceitos teóricos adequados em uso.

Nas próximas partes vamos descrever brevemente os conceitos chave usados no paradigma descritivo. No capítulo seguinte vamos considerar os conceitos mais amplos de normas e leis.

5.4.1 Deslocamentos tradutórios e sua análise

A forma mais evidente de se aplicar o estruturalismo à tradução é considerar os textos de partida e de chegada como conjuntos de estruturas. Podemos comparar os textos e ver quais estruturas são diferentes; obtemos assim estruturas específicas (as diferenças) que de alguma forma pertencem ao campo da tradução. Essa ideia é igualmente simples para entender e difícil de aplicar.

As diferenças estruturais entre traduções e seus originais podem ser descritas como deslocamentos tradutórios, um termo encontrado em muitas diferentes teorias. Para Catford, deslocamentos são “afastamentos da correspondência formal” (1965: 73), o que é bem claro. Se entre Sexta-feira 13 em inglês (“Friday the 13th”) e Sexta-feira 13 em espanhol (“viernes y 13”) encontramos uma correspondência formal, então qualquer outra possibilidade será, de alguma forma, um “deslocamento”. O leque de possibilidades de deslocamentos pode incluir então tudo que, para Vinay e Darbelnet (1958), a tradução traz, ou qualquer coisa detectada por alguém de dentro do paradigma da equivalência. Um deslocamento pode originar-se da decisão do tradutor em priorizar a função em detrimento da forma, ou em traduzir uma carga semântica para um registro linguístico diferente, ou em criar uma correspondência em um local diferente do texto (usando uma estratégia de compensação), ou ainda em selecionar convenções de gênero diferentes. Muitas pesquisas podem ser conduzidas neste processo: comparar os textos, selecionar as diferenças, e tentar organizar os vários tipos de deslocamentos.

Existem pelo menos duas maneiras de abordar essa questão: uma análise ascendente (bottom-up) começa com unidades menores (termos frequentes, frases ou sentenças) e avança para as maiores (texto, contexto, gênero, cultura); já uma análise descendente (top-down) faz o inverso, começando com os fatores sistêmicos mais abrangentes (especialmente construtos, tais como a posição das traduções dentro do sistema sociocultural) e seguindo para os menos abrangentes (especialmente categorias como estratégias de tradução). A princípio, a escolha é irrelevante: todos os caminhos levam a Roma, e existe sempre uma dialética de voltas e saltos entre os níveis. Pode parecer surpreendente, mas a diferença entre os dois tipos de análise tem muito a ver com o papel da teoria na descrição.

5.4.1.1 A análise ascendente dos deslocamentos

A complexidade e abrangência da análise ascendente são observadas de modo completo no modelo de comparação desenvolvido por Kitty van Leuven-Zwart (1989, 1990) no qual os deslocamentos são categorizados em diferentes níveis: do micro (especificamente na frase) ao macro (segundo a autora, nas estruturas narrativas como um todo). Uma síntese muito útil desse assunto se encontra na primeira edição do livro “Introdução aos Estudos de Tradução” (2001:63-65), de Munday (e no trabalho de Hermans, 1999: 58-63), embora tenha sido omitida da segunda edição de 2008, por ser pouco utilizada. Aqui, nos interessamos em entender as razões implícitas que levaram esse texto a cair em desuso.

No trabalho de Leuven-Zwart, unidades textuais que estejam sendo comparadas são chamadas “transemas” (cf. os “translemas” em Rabadán 1991). Por exemplo, duas unidades correspondentes poderiam ser “she sat up suddenly”, em inglês, e “se enderezó”, em espanhol, que significam basicamente que ela se levantou. Sugere-se que o que esses dois transemas têm em comum é o “arquitransema”. Uma vez que se identifique isso, inicia-se a procura dos deslocamentos, que podem então ser categorizados, quase do mesmo modo proposto por Vinay e Darbelnet, a partir do paradigma descritivo. Por exemplo, é possível reparar que as duas frases ocupam posições correspondentes nos respectivos textos, embora na versão em inglês tenha um valor (a rapidez) que parece omitido em espanhol. Então instituímos essa “ausência de um aspecto da ação” como um deslocamento. Chegaremos a um ponto em que teremos compilado uma série desses deslocamentos, com a esperança de que isso resulte na formação de padrões (que manifestem algum tipo de estrutura), que possam melhorar nossa compreensão sobre o que é a tradução. Será que há algo errado com isso? Já que “sit up” (levantar-se) foi apresentado como sendo um exemplo relativamente fácil tanto para Hermans quanto para Munday, vale a pena dedicar algum tempo à procura das possíveis dificuldades que isso implica:

  • Para começar, como podemos ter certeza que o valor semântico de “repentinamente” não está na palavra em espanhol? O verbo “enderezó” está no tempo pretérito (na verdade, no pretérito indefinido), o que, em espanhol, tem um valor oposto ao pretérito imperfeito (o pretérito imperfeito, resultando na forma “enderezaba”), uma conjugação que não existe em inglês. Isto é, nas duas línguas é possível dizer que “Ele estava no processo de se levantar”, mas o inglês não tem um tempo verbal no passado para esse tipo de ações prolongadas; o espanhol tem. Podemos então argumentar, de modo puramente estruturalista, que a própria escolha desse pretérito em espanhol, carrega em si o sentido de “suddenly”. O deslocamento seria então do advérbio inglês para o tempo verbal espanhol, e seria justificado pelas diferenças entre os dois sistemas de conjugação.

  • Alternativamente (embora por razões possivelmente similares), podemos analisar um corpus um pouco maior de inglês e de espanhol e perceber que o verbo inglês “sit” vem acompanhado por advérbios e partículas frasais, com bem mais frequência do que o verbo espanhol “enderezarse” (levantar) (nos dois casos “sit up” (“endireitar-se”) e “sit down” (“sentar-se”) não tem equivalência nas línguas românicas). Neste caso, o tradutor poderia ter omitido o valor “suddenly” (o que poderia ser expresso [tanto no espanhol como no português] por “de repente”) simplesmente porque isso não soa bem; isso teria sido uma colocação pouco usual (para comparar os verbos de movimento em espanhol e em inglês, ver Mora Guriérrez 2001, Slobin 1996, 2003). Podemos encontrar uma alternativa que sirva de justificativa não estrutural para a decisão do tradutor, sem que neguemos a lógica subjacente das estruturas.

  • Mais complicado ainda seria tentar aplicar esse tipo de análise ao nosso exemplo “sexta-feira 13” (“Friday the 13th”). Como podemos ter certeza que o não-deslocamento se relaciona à forma ou à função? Nesse contexto de superstição, será que “martes y 13” (terça-feira 13) seria a forma padrão? O não-deslocamento? A tradução esperada? Que direito temos de escolher uma tradução e considerá-la como a “certa” ou a “esperada”, e assim relegar as outras possibilidades à categoria de “deslocamentos”?

  • Finalmente, existem muitos casos nos quais a própria correspondência formal implica algum tipo de deslocamento. Por exemplo, em inglês americano, o termo democracia (democracy) correspondia formalmente ao termo da Alemanha Oriental Demokratie (“democracia”, como na Deutsche Demokratische Republik [República Democrática da Alemanha]), mas com um impressionante deslocamento de conteúdo ideológico (o exemplo é usado em Chesterman e Arrojo, 2000). Mas se for assim, será que a própria correspondência formal não representaria um deslocamento?

Em todos esses casos, percebemos que a análise ascendente dos deslocamentos pressupõe sem muita reflexão que os significados da linguagem sejam claros e estáveis (i.e. não sujeitos à interpretação), e que por isso, haja um núcleo (o “architransema”) comum e estável a partir do qual todos os outros poderiam ser considerados como “deslocamentos”. A esta altura, a abordagem tem muito mais a ver com o paradigma da equivalência do que com os preceitos da descrição científica. Mesmo que não se questione o modo fundamentalmente arbitrário a partir do qual os transemas foram identificados, restam ainda algumas dúvidas sobre a identificação do deslocamento e de sua causa. A acumulação de deslocamentos ascendentes tende a ser metodologicamente imprecisa, e a grande lista de diferenças raramente resulta em descobertas pertinentes no que se refere a análises mais acuradas. Esta abordagem pode trazer mais dúvidas e um volume ainda maior de dados. No final das contas, ela segue a orientação de algumas poucas teorias reducionistas. Esta é uma das razões pelas quais o paradigma descritivo está cheio de teorias.

5.4.1.2 A análise descendente dos deslocamentos

O trabalho descritivo na Europa Central tendia a ser muito mais teórico do que a descrição ascendente dos deslocamentos, delineada por Catford e aprofundada por van Leuven-Zwart. Em Leipzig, Kade (1968) explicitamente afirmou que uma abordagem ascendente (“indução”) tinha que ser acompanhada por uma análise descendente (uma abordagem hipotético-dedutiva), para que um mínimo de resultados teóricos fossem alcançados (isto é, para que a “necessidade” e a “regularidade” da tradução fossem compreendidos). Na Bratislava e em Nitra a análise dos “deslocamentos de expressão” estava acontecendo praticamente nos mesmos anos do trabalho de Catford (cf. Popovič 1968, 1970; Miko 1970), mas o foco não era exatamente o mesmo. Para muitos estudiosos europeus, especialmente os provenientes dos estudos literários, os deslocamentos poderiam surgir quase de maneira independente do simples desejo de se manter uma equivalência. Seriam passíveis, portanto, de serem abordados no sentido descendente, isto é, partindo das hipóteses mais importantes sobre como podem existir e como participam da formação de tendências.

Popovič, por exemplo, defendia que existem “duas normas estilísticas no trabalho do tradutor: a norma do original e a norma da tradução” (1968/70:82). Isso parece simples a ponto de ser óbvio. Todavia, é importante considerar: assim que as duas “normas estilísticas” foram anunciadas, a multiplicidade de deslocamentos já está teorizada em termos de modelos coerentes (“normas” é um termo que encontraremos adiante). Este tipo de abordagem se conecta facilmente aos estudos de estilística literária, caso em que podemos distinguir as duas normas que estão em interação, como as vozes do autor e do tradutor. Em outra instância, os deslocamentos poderiam ser categorizados de maneira diferente, devido a fatores históricos (a natureza do sistema receptor, mecenato, propósito do novo texto, diferentes concepções sobre o que é tradução etc.). Ou ainda, alguns deslocamentos poderiam ocorrer como simples resultado do próprio processo de tradução (esses deslocamentos vieram a ser considerados “universais” em potencial). Em todos esses níveis, a análise descendente dos deslocamentos procura fatores causais (o porquê dos deslocamentos), que são muito diferentes daqueles do paradigma da equivalência. Essas abordagens descritivas poderiam, obviamente, juntar forças com as análises ascendentes conduzidas pelos linguistas, mas suas pressuposições teóricas eram fundamentalmente diferentes. Com efeito, a despeito da imprecisão do conceito “descritivo”, essas teorias procuravam as possíveis causas (pessoais, institucionais, históricas) que explicassem por que as pessoas traduzem de maneira diferente.

Como um exemplo de análise descendente de deslocamentos de tradução relacionados à história, consideremos a questão básica: o que fazer com um texto fonte que está em verso? Isso foi analisado em um artigo fundamental de James S Holmes (1970), apresentado pela primeira vez na conferência “A Tradução como uma Arte” (“Translation as an Art”) na capital da Eslováquia, em maio de 1968 e publicado em um volume co-editado pelo próprio Holmes (um americano residente em Amsterdam), Frans de Haas (Amsterdam) e o eslovaco Anton Popovič (o que fez do livro uma publicação chave, na qual várias vertentes se reuniram).

Sabemos que em algumas culturas de chegada (especialmente na francesa, pelo menos até o final do século XIX), formas estrangeiras de versificação podem ser efetivamente vertidas em prosa. Nesse caso, a questão fica resolvida: os tradutores sabem o que fazer (traduzir em prosa), e os leitores sabem o que esperar (versos são somente para textos originalmente escritos em francês). Isso seria uma forma evidente de deslocamento, que, notavelmente, tem muito pouco a ver com a equivalência linguística. Entretanto, em outras situações culturais, deslocamentos alternativos podem ser considerados convenientes. Holmes (1970) formalizou esses deslocamentos adicionais em quatro opções (além da estratégia banal de verter verso em prosa): o tradutor pode usar uma forma que se parece com a do texto-fonte (“forma mimética”); pode selecionar uma forma que cumpre uma função similar (“forma analógica); pode desenvolver uma nova forma baseada no conteúdo do texto (“forma orgânica”); ou pode inventar sua própria solução individual (“forma excêntrica”).

Um modelo de opções para tradução de versos (por Holmes, 1970)

  1. Verso em prosa: todo verso estrangeiro é vertido em prosa, como tem sido a norma em traduções para o francês.

  2. Forma mimética: O tradutor escolha uma forma na língua de chegada que seja a mais próxima possível daquela usada na língua de partida. Por exemplo, um soneto inglês pode muito bem ser reproduzido como um soneto espanhol, ainda que a métrica de pés em inglês não corresponda à métrica silábica do espanhol. É comum que isso envolva a proposição de uma nova forma na cultura alvo, como quando a terza rima foi modelada no inglês a partir da forma italiana de versificação.

  3. Forma analógica: O tradutor identifica a função da forma na tradição da língua de partida, e em seguida encontra a forma correspondente na tradição da língua de chegada: “O argumento dessa escola é o de que, já que a Ilíada e Jerusalém Libertada são épicos, uma tradução para o inglês deve ser feita em um verso apropriado ao épico em inglês: verso branco ou dístico heroico” (Holmes 1970: 95). Essa opção poderia ser uma aplicação do paradigma da equivalência em um nível textual superior. Deve ser distinguida da opção trivial “verso em prosa”, na medida em que pressupõe a identificação do modo pelo qual a forma específica do texto-fonte funciona na cultura de partida.

  4. Forma orgânica ou derivativa de conteúdo: O tradutor se recusa a considerar exclusivamente a forma do texto fonte (como acontece nas opções anteriores) e em vez disso, se concentra no conteúdo, “permitindo a incorporação de uma forma poética singular à medida que a tradução avança” (Holmes 1970: 96).

  5. Forma excêntrica: Em algumas situações, o tradutor pode adotar uma escolha que não tenha conexão alguma nem com a forma nem com o conteúdo do texto fonte, e que não seja prescrita por nenhum modelo banal de tradução da cultura de chegada. Em outras palavras, tudo pode acontecer.

Holmes considera essas opções apropriadas às diferentes situações históricas. A forma mimética ocupa o primeiro plano “no momento em que os conceitos de gênero se tornam fracos, as normas literárias são questionadas, e a cultura de chegada, como um todo, se abre aos impulsos externos” (Holmes 1970:98). Isso pode ter sido o caso da língua alemã na primeira metade do século XIX. Por outro lado, “a forma analógica é o que se espera como escolha de um período que se configura hegemônico e excludente” (Holmes 1970:97), tal como a França neoclássica oitocentista. No que toca a forma “orgânica”, Holmes a considera como sendo “fundamentalmente pessimista em relação às possibilidades de transferências crossculturais6 6 N.T. A noção de “crossculturalidade” (cuja tradução, para o português, até hoje é inexistente) surgiu nos anos 1970 com o advento da globalização, mas começou a aparecer na comunicação e nas produções literárias nas décadas de 80, notadamente com Ourselves Among Others: Cross-Cultural Readings for Writers (1988) de Carol J. Verburg, e Guidelines: A Cross Cultural Reading Writing Text (1990) de Ruth Spack. Os “estudos crossculturais” estudam as diferenças, os diálogos e/ou relações entre duas ou mais culturas/áreas de conhecimento. Não obstante, sua introdução nos estudos de tradução e/ou interpretação se deu com a professora Sandra Hales (Universidade de New South Wales, na Australia). Propomos essa tradução com base no advérbio “cross” já existente no português, e que pode ser substituído por “entre”, ou “inter”. Considerado como morfema, torna-se essencial e, portanto, inseparável da outra parte. Temos como resultado a palavra crosscultural que transmite melhor a ideia de “ponte” entre culturas. ” (1970: 98) e a associa ao Modernismo do século XX. Finalmente a forma “excêntrica” é considerada, de modo não muito convincente, como tendo “uma existência obstinada ligada a uma forma minoritária underground [...] à qual recorriam particularmente metapoetas inclinados à imitação” (1970: 99).

Nesse ponto, a análise de Holmes indica que as decisões dos tradutores são sempre determinadas pela cultura, à exceção de alguns “metapoetas” rebeldes. Quando questionados sobre como as decisões deveriam ser feitas, os descritivistas sempre poderão responder, “depende da cultura (alvo).” Afinal de contas, de quantas coisas diferentes pode depender uma decisão? Será que existe alguma forma de modular o enorme leque de variáveis que abrigam ideias como “a situação sociocultural dos tradutores”? Os descritivistas fizeram uso de pelo menos três conceitos que nos ajudam aqui: sistemas, normas, e (na falta de um termo melhor) privilegiamento da cultura-alvo.

5.4.2 Sistemas de Traduções?

O que Holmes faz em seu breve estudo é sistemático, em certo sentido: ele identifica e classifica as opções disponíveis, e lhes confere uma certa lógica simétrica, principalmente graças a algumas distinções imprecisas entre a forma, a função e o conteúdo. Essa é, de fato, uma teoria com um funcionamento ascendente: o teórico conceptualiza as alternativas e procura por exemplos históricos. Deve-se, no entanto, ter cuidado com o estatuto dessa sistematização. Holmes, nesse ponto, é sistemático (ordenado, meticuloso, completo), mas não necessariamente sistêmico (no que tange provavelmente a um sistema em que todos os termos, de alguma forma, dependem uns dos outros).

Se estivermos falando de um sistema de linguagem (como no trabalho de Halliday, um funcionalista sistêmico), poderíamos observar o falante produzir uma série de palavras, de modo que em cada momento há um conjunto restrito que define quais palavras podem vir em seguida. O sistema de linguagem limita as escolhas que podem ser feitas. O mesmo vale para o tradutor enquanto produtor de linguagem, uma vez que a língua de chegada impõe conjuntos limitados de escolhas, que variam à medida que prosseguimos com a tradução. No entanto, será que o mesmo método de decisão se aplica ao modo como vertemos um verso estrangeiro? É certo que o tradutor pode escolher entre uma das cinco opções de Holmes, e essa escolha pode ser relevante em relação à história geral das formas europeias de versificação, mas será que esta é uma decisão como aquelas em que somos obrigados a escolher entre um certo verbo ou adverbio? Será que esta decisão é realmente sistêmica? De certo modo, sim: todas as culturas de recepção têm gêneros literários, que em sua maioria mantém relações estruturais entre si. Por outro lado, não: esses conjuntos de gêneros não precisam ter semelhança alguma com quaisquer das cinco alternativas de tradução delineadas por Holmes. A cultura de recepção é uma coisa; os conjuntos de alternativas teóricas são outra completamente diferente. Neste caso, o tipo de processo de escolha delineado por Holmes certamente não pode ser considerado uma realidade psicológica. Se o tradutor traduzia para a língua alemã, no princípio do século XIX, havia uma gama de fatores culturais e sociais que não somente tornavam apropriado o uso da forma mimética, mas também tornavam as alternativas de Holmes relativamente inaplicáveis. A cultura germânica, sem estar ligada a uma nação, estava preparada para se nutrir de outras culturas para que pudesse se desenvolver. As traduções de Homero trouxeram o hexâmetro para o alemão, e as traduções de Shakespeare, o verso branco. De fato, em 1813 Schleiermacher viu essa capacidade de se recorrer a outras culturas como a chave para estrangeirizar traduções, o que foi considerado uma estratégia tipicamente germânica. Um tradutor literário treinado nesse ambiente cultural enxergaria a “forma mimética”, ou “estrangeirizante”, como o caminho normal para traduzir. O tradutor poderia até entender que este é o modo verdadeiro, ou correto, pelo qual todas as traduções deveriam ser feitas, em todos os contextos socioculturais. Pode resultar daí uma teoria prescritiva (“Todas as traduções devem usar a forma mimética!”); algumas oposições estruturais poderiam ser apontadas em forma de teoria (“A forma mimética alemã é melhor do que as traduções francesas em prosa!”); mas as escolhas não são feitas dentro de um sistema abstrato constituído por opções puramente tradutórias.

Conforme Toury mais tarde esclareceu (1995a: 15-16), o sistema nesse caso depende da experiência do tradutor (as opções teóricas disponíveis), o que deve ser distinguido das alternativas realmente disponíveis ao tradutor no momento da tradução, o que, por sua vez, é bastante diferente de como o tradutor de fato trabalha. Toury, então, faz uma distinção entre três níveis de análise: “tudo que a tradução [...] PODE implicar,” “o que ela DE FATO implica, sob diferentes circunstâncias,” e “o que é PROVÁVEL que implique, sob um ou outro conjunto de condições específicas” (1995a: 15).

Três níveis de análise em Estudos Descritivos da Tradução (DTS)

Delabastita (2008: 234) expande os três níveis de análise de Toury, relacionando-os à noção de norma, como se segue:

Nível de sistema: possibilidades teóricas (“pode ser”) Para cada problema de tradução ou de texto de partida, é possível vislumbrar toda uma gama de possibilidades ou de soluções teóricas, ou de textos alvo (como faz Holmes). Nível das normas: restrições culturais (“deve ser”) No nível intermediário das normas, algumas dessas relações serão recomendadas ou até mesmo exigidas como as únicas capazes de gerar traduções “genuínas”, enquanto outras serão descartadas, ou ainda simplesmente ignoradas. Nível da performance: prática discursiva empírica (“é”) Podemos, então, observar quais relações são realmente produzidas em uma dada configuração cultural. Por definição, essas relações empíricas constituem um subgrupo das relações possíveis; sua frequência em uma dada situação cultural é uma indicação crucial de que certas normas estão em operação.

A abordagem descendente torna-se bastante evidente nesse ponto (ainda que se possa também trabalhar, ao mesmo tempo, no sentido contrário). Notemos, no entanto, que o termo “sistema” é usado nesse caso somente no sentido de “possibilidades teóricas”. Isso é muito diferente do tipo de sistema social ou cultural apresentado como contexto no qual as traduções funcionam. O valor relativo desse segundo sentido mais geral de sistema varia de um teórico para outro. É possível que os níveis “deve ser” e “é” sejam propriamente sistêmicos em qualquer sentido forte?

Quando Holmes tenta explicar por que uma opção particular de tradução é associada a um período particular, ele cita uma gama de fenômenos muito profundos: “conceitos de gênero”, “normas literárias”, “permeabilidade/impermeabilidade cultural”, “pessimismo/otimismo em relação à transferência crosscultural”, e assim por diante. Todos esses elementos estão localizados na cultura alvo; eles não pertencem a nenhum tipo de “sistema de traduções” distinto. Holmes se refere a esses fenômenos de maneira bastante informal; ele os faz parecer separados, isolados. No entanto, é possível ver tais fatos como sendo, até certo ponto, agrupados, como diferentes aspectos de uma mesma cultura. Essa segunda visão exige que entendamos as culturas como sendo sistêmicas em si. No trabalho de Holmes, esses sistemas parecem estar ligados de maneira um tanto frouxa; não há uma homogeneidade obrigatória nem uma fatalidade determinista. Para outros teóricos, particularmente aqueles mais ligados à herança do Formalismo Russo, os sistemas culturais podem impor lógicas bastante preponderantes. Lotman e Uspenski (1971: 82), por exemplo, falam sobre culturas inteiras que são “orientadas para a expressão” (“expression-oriented”) ou “orientadas para o conteúdo” (“content-oriented”, além de várias outras classificações complexas), nunca duvidando que tais orientações caracterizem o sistema cultural inteiro. Quanto mais preponderante a lógica pela qual se presume que o sistema opera (i.e. quanto mais sistêmico ele parece ser), mais esse sistema pode ser visto como determinante da natureza das traduções.

Aqui retornamos à forma pela qual Even-Zohar tratou a ideia de “polissistema”. O “poli-”, que faz parte do termo, pode ser visto como uma indicação de que, em oposição à abordagem de Lotman e Uspenski, esses sistemas são bastante flexíveis. A lógica interna de uma cultura não determinará tudo o que pode ser feito nela. Para Even-Zohar, a literatura traduzida pode ser considerada como um tipo de subsistema que ocupa uma posição dentro do polissistema literário que a hospeda. As relações são, todavia, nítidas o suficiente para que algumas tendências gerais possam ser observadas. As traduções podem se tornar um elemento chave na literatura (e, portanto, com um status “inovador” e “central”), ou podem ser secundárias e sem importância (de status “conservador” e “periférico”). Nesses termos, a tradução é vista como uma das formas pelas quais um polissistema interfere em outro, sendo que nesse contexto o verbo “interferir” não carrega nenhum sentido pejorativo (ver Even-Zohar 1978 e artigos posteriores em seu website). Even-Zohar propõe, entre várias outras coisas, que as traduções desempenham um papel inovador e central quando

(a) um polissistema ainda não está cristalizado, isto é, quando uma literatura ainda está “jovem” em seu processo de consolidação; (b) quando uma literatura é “periférica” (dentro de um vasto grupo de literaturas correlatas), ou “fraca”, ou ambas; e (c) quando há mudanças de paradigma, crises, ou vácuos literários em uma literatura. (1978: 47)

Esses três tipos de condições são descritos como “simples manifestações da mesma lei” (1978: 47), de cuja natureza falaremos no próximo capítulo.

A forma de pensamento de Even-Zohar, ainda que lapidada em sua maneira de se expressar, vai muito além da preocupação de Holmes em explicar por que as traduções são como são. Sua conceptualização dos sistemas como dinâmicos e plurais permite a Even-Zohar questionar o que as traduções podem de fato fazer dentro de sua cultura alvo, e como elas evoluem a partir das relações entre culturas (particularmente em termos de inferioridade e prestígio). Assim, ele agrega vários elementos a descobertas iniciais, tais como o alerta de Mukařovsky฀ de que a literatura se desenvolve graças à tradução. A descoberta geral de Even-Zohar é algo negativa, já que conclui que “a posição ‘normal’ ocupada pela literatura traduzida tende a ser periférica” (1978:50), isto é, que as traduções tendem a ter um efeito conservador, que consolida ao invés de revolucionar e inovar. É improvável que tal descoberta encontre aceitação no contexto de uma disciplina inclinada a ver as traduções como uma motivação sub-reptícia para mudanças. Even-Zohar mesmo assim insiste que a tradução é um elemento essencial para a compreensão de qualquer sistema cultural, uma vez que nenhuma cultura é uma entidade totalmente independente.

Por isso, o significado e a importância do termo “sistema” variam de um teórico para o outro. Em cada caso, vale a pena ler as descrições com rigor, dando-se uma atenção especial aos verbos e seus agentes (quem está fazendo o quê). Em teorias fortes de sistemas, podemos notar que os próprios sistemas agem como se fossem pessoas. Em outras abordagens, as pessoas aparecem como agentes que atuam nos sistemas de restrições. Essa é uma diferença crucial, que tem consequências em questões fundamentais, tais como a liberdade humana, a lógica determinista da história, e, em alguns casos, até o papel e a natureza das traduções.

Ainda falando sobre dificuldades terminológicas, devemos reparar um problema similar com o termo “função”. Para os estudos descritivos, a “função” de uma tradução geralmente está ligada à sua posição dentro do sistema correspondente, o que vai ao encontro de uma metáfora espacial. Quando definimos que, dentro de um dado sistema cultural, uma tradução é relativamente “central” ou “periférica” (ou algo no meio disso), efetivamente dizemos que a sua função é ou mudar ou reforçar (ou algo no meio disso) a língua, a cultura ou a literatura de chegada. A função, nesse caso, é o que o texto faz no sistema. Para o paradigma de propósito, por outro lado, a “função” de uma tradução está geralmente amalgamada ao escopo (Skopos), à finalidade que a tradução deveria possibilitar em situações específicas; assim como se assume que a função de um texto fonte seja o objetivo para o qual ele é usado (ensinar, expressar, vender etc.). Embora ambos os paradigmas possam reclamar para si o termo “funcionalista”, “função” tem um significado para a teoria de sistemas (uma posição e um papel dentro de um conjunto de relações de larga escala) e outro para a teoria de ação (uma ação dentro de uma situação que envolve vários agentes). Deve existir, obviamente, um ponto de contato entre as duas concepções, porém poucos teóricos efetivamente chegaram a procurá-lo. Esta é uma via pela qual podemos pensar esta relação: na superfície, pode parecer que o propósito da tradução, o escopo (Skopos), varia em contextos diferentes. Todos os contextos são diferentes, mas todos sofrem restrições sociais e culturais mais amplas, que os limitam e orientam. Deve ser possível, portanto, conectar alguma função sistêmica mais abrangente a funções situacionais mais restritas.

A Teoria do Escopo (Skopostheorie) permaneceu relativamente indiferente ao descritivismo descendente, assim como os estudos descritivos estruturalistas tradicionalmente se distanciaram do olhar mais aproximado da dinâmica das situações (a análise que Lefevere fez em 1992 do mecenato é uma notável exceção). Ambos os paradigmas são fortemente relativistas; ambos se recusam a ver o texto fonte como o único fator determinante da tradução. Ainda assim, há muito tempo eles seguem direções distintas.

Se existe uma ponte histórica digna de nota entre as duas noções de função, talvez ela possa ser encontrada na noção de normas.

5.4.3 Normas

Em seu esquema tripartido (que reproduzimos acima), após o nível do que “pode ser”, Toury abre um espaço para o que “deve ser”, que ele descreve como “normas”. As normas estão, portanto, colocadas em algum lugar entre possibilidades abstratas (tais como as alternativas de Holmes) e o que os tradutores realmente fazem (os tipos de pragmática com os quais a Teoria do Escopo realmente lida). Para Toury, normas são

a tradução de valores ou ideias gerais compartilhadas por uma comunidade [...] na forma de instruções de performance apropriadas e aplicáveis a situações particulares, que especificam o que é prescrito e o que é proibido assim como o que é tolerado e o que é permitido em uma certa dimensão comportamental. (1995a: 55)

O termo “instruções de performance” poderia sugerir que as normas correspondem às exigências de um cliente ou a um Escopo. Poderia também ser erroneamente associada a um conjunto de regras ou diretrizes oficiais (que são de fato chamadas normas em espanhol). No paradigma descritivo, entretanto, o termo norma costuma funcionar em uma esfera mais social, mais ampla. Poderíamos, por exemplo, dizer que no século XIX a norma para traduzir versos de outra língua para o francês era vertê-los em prosa. Não existia uma regra oficial que dissesse que isso deveria ser feito, mas havia um acordo tácito coletivo. Quando os tradutores se deparavam com o texto estrangeiro, tomavam como certo que seu trabalho não era imitar nem sua forma, nem sua sonoridade. Quando os editores contratavam tradutores, era isso que esperavam deles. E quando os leitores se defrontavam com uma tradução literária, da mesma maneira aceitavam que poesia estrangeira deveria simplesmente ser traduzida em prosa. É claro que a norma não era respeitada por todos os tradutores; normas não são leis que todos devem seguir. Basicamente, são a prática padrão comum a partir da qual todas as outras se definem. Até aqui, não há quase nenhum problema.

Por que a norma “verso em prosa” surgiu? Sob vários aspectos diferentes, ela incorporava indubitavelmente a ideia geral de que a cultura francesa era superior às outras. Segundo Toury, pelo menos essa parcela das “ideias e valores principais” da sociedade é transmitida. Aceitando-se essa superioridade, não existia nenhuma razão para se admitir qualquer influência estrangeira sobre o sistema existente de gêneros literários neoclássicos. Segundo Even-Zohar, o reconhecimento do prestígio do sistema de chegada conferia à tradução um papel periférico e, portanto, um leque muito conservador de formas aceitáveis. Ademais, se seguimos Toury, há também algum tipo de penalização social (mas não jurídica) envolvida sempre que o tradutor não adere à norma. Por exemplo, um texto que se afaste radicalmente dos gêneros estabelecidos pode ser considerado peculiar, feio, ou simplesmente não digno de crédito. Em toda cultura, a natureza de uma boa tradução é determinada por tais normas, já que “traduções ruins” são penalizadas de alguma maneira, mesmo que apenas por adjetivos banais como “ruim”. Naturalmente, em meios sociais governados por uma lógica vanguardista, o desrespeito às normas pode, pelo contrário, ser a marca de uma tradução superior. A quebra de normas pode, portanto, caracterizar não apenas traduções que são ruins, mas também aquelas que são excepcionalmente boas.

O conceito de normas cobre várias coisas relacionadas, mas diferentes. Toury faz uma distinção básica entre as “normas preliminares”, que dizem respeito ao tipo de texto e ao modo de traduzir (direto e indireto etc.), e “normas operacionais”, que justificam todas as decisões tomadas no ato de tradução. No entanto, como no exemplo “verso em prosa”, normas também têm dimensões sociais e epistemológicas diferentes. Isso diz respeito ao que os tradutores acreditam que devem fazer, o que os clientes acham que os tradutores deveriam fazer, como os leitores pensam que as traduções devem ser e quais traduções devem ser consideradas repreensíveis ou especialmente louváveis no sistema. Chesterman (1993) organiza esses vários aspectos através da distinção entre “normas profissionais”, que cobrem tudo que se relaciona ao processo de tradução, e “normas de expectativa”, que são o que as pessoas esperam que seja o produto da tradução. Se os tradutores em uma dada sociedade costumam acrescentar inúmeras notas explicativas, isso pode ser uma norma profissional. Se os leitores ficam frustrados quando essas notas não aparecem, ou quando aparecem em um lugar inusitado (talvez no início do texto, em vez de no rodapé), essa frustração estará relacionada às normas de expectativa. Idealmente, os diferentes tipos de norma reforçam uns aos outros, de modo que os tradutores tendem a fazer o que os clientes e leitores esperam deles. Em tempos de mudança cultural, os vários tipos de normas podem, todavia, entrar em conflito, resultando numa tensão considerável. De fato, em sistemas de mudanças auto induzidas, uma lógica vanguardista extrema pode significar que todos os produtores de texto, incluindo os tradutores, comecem a quebrar normas, e os leitores então esperem que as normas sejam quebradas. Isto é, a quebra de normas pode se tornar a norma, como ocorreu no Modernismo extremo.

A ideia de normas e de quebra de normas se mostra importante pela forma como a pesquisa descritiva se relaciona com outros paradigmas da teoria da tradução. Se aplicarmos seriamente o conceito de normas, devemos provavelmente desistir da ideia de definir de uma vez por todas o que uma boa tradução deva ser (embora talvez seja possível dizer com o que se parece um efeito social bom ou ruim, e assim avaliar o modo pelo qual as normas funcionam, cf. Pym 1998b). De fato, a própria noção do que é tradução deve ser relativizada. Como dissemos, esse relativismo seria um importante ponto de contato com o paradigma do Escopo (e com o paradigma da incerteza que conheceremos no próximo capítulo). Entretanto, o mesmo relativismo vai de encontro à boa parte dos estudos linguísticos feitos dentro do paradigma da equivalência. Quando um linguista analisa um texto fonte para saber como ele pode ou deve ser traduzido, assume-se de início que as respostas virão da natureza do texto fonte e, portanto, que a natureza da tradução é bastante clara; não há muito relativismo envolvido. No paradigma do Escopo, as respostas provêm da situação em que a tradução é feita, de tal forma que não importa muito se o texto é uma tradução ou uma reescrita livre. No paradigma descritivo, no entanto, qualquer questão sobre as fronteiras entre traduções e não traduções pode encontrar sua resposta nas normas, que por sua vez manifestam valores oriundos de um sistema mais abrangente dentro do qual o tradutor está atuando. Nesse sentido, a teoria das normas coloca a tradução em algum lugar entre a certeza relativa da equivalência e a indiferença relativa da teoria do Escopo.

Tais comparações de paradigmas podiam ser exploradas nos anos 80, quando as diferentes abordagens começavam a se cristalizar em uma disciplina experimental chamada Estudos da Tradução. Os estudiosos que estavam trabalhando com o paradigma descritivo, geralmente com um pé nos estudos literários, tinham legitimidade para criticar o limitado trabalho “prescritivo” feito no paradigma da equivalência. Como pode uma teoria querer dizer a alguém como traduzir, quando a própria noção de tradução varia tanto de uma época a outra e de uma cultura a outra? Inicialmente, o convite para o descritivismo foi de certa forma uma negação direta do tipo de prescrição associada ao paradigma da equivalência. De maneira análoga, enquanto o paradigma da equivalência suscitava as análises a começarem a partir do texto fonte e de seu papel na situação de partida, o paradigma descritivo favorecia o texto alvo e sua posição no texto de chegada. Toury (1995a) explicitamente recomenda começar a análise a partir da tradução e não do texto fonte; assim ele criou espaço para uma pesquisa que absolutamente não leva o texto fonte em consideração. Por exemplo, é possível simplesmente comparar diferentes traduções, ou comparar traduções com não traduções dentro do sistema alvo. Esse tipo de oposição ferrenha contribuiu para que Toury se tornasse o enfant terrible de sua época.

A noção de normas, no entanto, permitiu que um certo prescritivismo fosse introduzido nos estudos descritivos, quase de modo sub-reptício. Mesmo que o papel da teoria não fosse o de dizer aos tradutores como traduzir, uma abordagem descritiva poderia identificar as normas pelas quais uma tradução seria considerada boa em um dado contexto. Isso propiciou a aplicação dos estudos descritivos no treinamento de tradutores e intérpretes. Toury (1992) sugeriu, por exemplo, que se propusesse a estudantes verter um mesmo texto, seguindo normas diferentes (e.g. traduzir como um tradutor do século XII, em Toledo, ou sob a batuta da censura). O estudante perceberá então, que há várias formas diferentes de se traduzir, cada uma com suas vantagens e desvantagens. Obviamente, o mesmo tipo de exercício pode ser proposto dentro do paradigma do propósito: traduzir um texto de diferentes formas para alcançar diferentes propósitos. Paradigmas diferentes podem levar a atividades semelhantes de treinamento.

Procurando por um modo alternativo de compatibilidade, Chesterman (1999) propõe que o estudo das normas deverá capacitar professores e alunos a prever o relativo sucesso mercadológico de uma ou outra estratégia. Nenhum professor pode dizer a um aluno que essa é a única maneira de traduzir (já que há muitas normas disponíveis), mas um estudo empírico pode tornar possível prever o sucesso ou o fracasso de quando as normas dominantes forem respeitadas ou violadas. Chesterman (1999) formulou sua posição reconciliadora da seguinte maneira:

Afirmações como “Em princípio, em textos de autoridade e expressão [as metáforas do original] devem ser traduzidas literalmente” (Newmark 1988: 112), ou “traduções devem tentar produzir nos leitores o mesmo efeito que o texto original teve nos seus”, ou “tradutores devem traduzir de modo transgressor, não de modo fluente”; podem ser parafraseadas aproximadamente assim: “Prevejo que se os tradutores não traduzirem da maneira que eu estou prescrevendo, o resultado será de que os leitores não irão apreciar suas traduções / que o editor irá rejeitar o texto / que as relações interculturais irão se deteriorar” e assim por diante.

De todas essas maneiras, o conceito de normas ajudou a construir pontes sobre as lacunas entre o descritivismo e o prescritivismo.

Um problema de ordem metodológica diz respeito à forma como as normas podem ser descobertas. Uma abordagem ascendente poderia agrupar várias traduções, procurar pelos deslocamentos, e entender qualquer padronização constante desses deslocamentos como uma “norma”. Isso dá muito trabalho e não esclarece devidamente por que as normas estão lá; mas pode ser uma contribuição valiosa. De modo alternativo, Toury (1995a) dá uma atenção especial a “pseudotraduções”, entendidas como textos apresentados sob a forma de traduções, mas que são, na verdade, criações originais. Em húngaro, por exemplo, as narrativas de ficção científica são frequentemente apresentadas como traduções do inglês americano, ainda que tenham sido escritas diretamente em húngaro, com autores inventados, biografias inventadas, e toda a pompa de um produto estrangeiro (Sohár 1999). Essas pseudotraduções são encontradas em várias culturas, com inúmeras funções diferentes (Santoyo 1984). Para Toury, no entanto, o seu maior interesse reside no fato de que elas podem indicar como a cultura alvo espera que as traduções sejam e frequentemente como essa cultura se relaciona com outras em termos de prestígio. Isso pode indicar um atalho para a identificação e possível explicação das normas.

Uma abordagem descendente para a descoberta de normas começaria com dados peritextuais tais como revistas e críticas, que nos informariam sobre as normas de expectativa envolvidas na recepção de uma tradução. Uma pesquisa mais minuciosa pode economizar recursos ao se concentrar, particularmente, nos debates públicos sobre normas e quebras de normas, assim identificando e analisando as mudanças de normas à medida que elas acontecem (cf. Pym 1997). Uma abordagem como essa ajuda a conectar a teoria descritiva com visões mais dinâmicas (e talvez menos sistêmicas) da história cultural.

Dessa forma, o conceito de normas contribuiu para a aproximação de várias abordagens, ao mesmo tempo em que a descoberta empírica das normas sem dúvida aumentou a nossa compreensão histórica da forma como operam as traduções. O conceito fundamental, entretanto, não é tão nítido quanto parece. Consideremos, por exemplo, o modo pelo qual o sociólogo alemão Niklas Luhmann (1985) descreve as normas legais como “expectativas contrafactuais”, no sentido de que elas não levam em conta a forma como as pessoas se comportam. Quando essas expectativas são frustradas (por exemplo, descobrimos que há criminosos), as normas legais não se conformam à mudança (ou seja, criminosos devem ser punidos, pouco importando quantos existam). É possível que muitas das normas de expectativa relacionadas à tradução sejam também de natureza contrafactual. Por exemplo, não importa quantas vezes identifiquemos traduções como domesticadoras (ou extrangerizantes, ou explicativas, ou repletas de deslocamentos, etc.), o público consumidor pode ainda insistir que não é assim que deveria ser. Se for assim que algumas normas funcionam, então o levantamento ascendente de ocorrências jamais terá relação com os ditames sociais do que é ou não aceitável. Esse é basicamente o motivo pelo qual uma abordagem descritiva das normas demanda conceitos teóricos. Ao mesmo tempo, é a razão do paradigma descritivo estar cheio de teorias.

Sempre que os teóricos falam sobre normas, devemos perguntar como exatamente eles as descobriram. No caso de uma análise ascendente, é possível que nem todos os padrões empíricos tenham o mesmo status de fato social ou psicológico. E no caso de uma análise descendente, deveríamos nos perguntar onde os teóricos encontraram as categorias de análise, e por quê.

5.4.4 Traduções “assumidas”

Aqui se encontra outro problema teórico que afeta o coração das metodologias empíricas. Se resolvermos descobrir a diversidade histórica e cultural das normas de tradução, será que, já de início, podemos fingir ter certeza do que significa o termo “tradução”? Se a resposta for sim, quais exatamente devem ser os critérios que utilizaremos para reunir um conjunto de elementos que definiriam “traduções”? Se não, como poderíamos evitar impor nossas próprias normas de tradução a outras épocas e culturas? Essa é uma das aporias teóricas clássicas que tendem a assombrar pesquisadores de culturas ocidentais dominantes.

A solução de Toury para o problema foi deixar a invenção de definições para as pessoas que são nosso objeto de estudo. Para ele, “será considerado uma ‘tradução’ qualquer enunciado que seja apresentado ou visto como tal na língua de chegada, sob qualquer pretexto” (Toury 1995a: 20). Em outras palavras, devemos esperar para ver o que cada cultura e cada época têm a dizer sobre o que é ou não uma tradução. A solução é o conceito operacional de “tradução assumida” o que significa simplesmente que uma tradução é de fato uma tradução somente enquanto alguém assume que ela o seja. Uma pseudotradução é vista como tradução somente enquanto o truque funciona, e se torna uma não-tradução para aqueles que estão cientes do falso pretexto.

Essa solução permanece cheia de dificuldades lógicas. Por exemplo, se cada língua tem diferentes palavras para “tradução”, como podemos saber se essas palavras são traduções umas das outras? Para escolher as palavras, teríamos de ter certeza do nosso próprio conceito de tradução, ou mesmo algumas opiniões claras sobre o que são traduções boas ou ruins. O debate sobre essa questão foi uma das atividades mais essenciais, porém mais abstrusas nos Estudos de Tradução (cf. entre outros Gutt 1991; Toury 1995b; Hermans 1997, 1999; Halverson 2004, 2007; Pym 1998a, 2007a). Para alguns deles o problema simplesmente não tem solução, já que se usarmos nossos próprios conceitos para descrever um termo de outra cultura “naturalmente traduzimos esse outro termo conforme nosso conceito de tradução e para o nosso conceito de tradução; e, ao domesticá-lo, inevitavelmente o reduzimos” (Hermans 1997:19). No outro extremo, podemos argumentar que os dados empíricos são tão diversos e irregulares que devemos fazer uma imposição ou seleção inicial, para que a pesquisa possa pelo menos ser iniciada (cf. Pym 2007a; Poupaud et al. Ainda a ser publicado). O melhor que podemos fazer é sermos honestos e autocríticos sobre nossos princípios e critérios iniciais e abertos à descoberta de novos conceitos no curso da pesquisa. Por mais diferentes que possam parecer essas duas opções, ambas aceitam que conceitos de tradução são cultural e historicamente relativos e que podem ser descritos em termos explícitos. Ambas estão, portanto, dentro do paradigma descritivo. É interessante que as duas abordagens diferem do conceito de Toury de traduções assumidas. A diferença fundamental entre os dois lados está mais relacionada ao papel atribuído ao indeterminismo, que discutiremos em um capítulo próximo.

5.4.6 A Prioridade do Contexto de Recepção

Como notamos, Toury provocou um distúrbio nos estudos de tradução baseados em linguística, não somente por se opor ao prescritivismo, mas mais fundamentalmente por insistir que as traduções devem ser estudadas em função de seus contextos de recepção e não em relação aos de partida (ver Toury 1995b: 136). Isso levou a uma posição extrema: nas palavras de Toury, “traduções devem ser consideradas como fatos das culturas de recepção” (1995b: 139; cf. 1995a: 29). Essa proposição deve ser entendida como parte de uma metodologia específica de pesquisa; ela não implica que traduções de alguma maneira não tenham textos fonte (o que resultaria no absurdo de que todas as traduções são na verdade pseudotraduções). O argumento de Toury parte de que todos os fatores necessários para descrever as especificidades de funcionamento das traduções podem ser encontrados no sistema de recepção. Isso decorre da aceitação de que os tradutores “operam antes de qualquer coisa nos interesses da cultura para qual estão traduzindo” (1995a: 12), ou para reforçar as normas da cultura alvo ou para preencher “lacunas” (gaps) observadas.

Esses preceitos metodológicos gerais deram bons frutos. Quando se estuda, por exemplo, um corpus de teatro inglês traduzido para o espanhol (Merino 1994) ou traduções censuradas na Espanha Franquista (Merino e Rabadán 2002), mesmo quando o material está organizado em pares inglês-espanhol, os deslocamentos fazem sentido no que diz respeito às normas do sistema hospedeiro espanhol, especialmente quando se trata da censura sistêmica do regime de Franco e suas várias representações ao longo do tempo (para uma visão mais ampla do projeto sobre tradução e censura, ver Merino Álvaraz 2005; para projetos de pesquisa associados ao desenvolvimento inicial do paradigma descritivo, ver Lambert 1988, 1995). Nesses e outros estudos de caso, as traduções são de fato entendidas como elementos da cultura de chegada, e muitos dados quantitativos foram obtidos usando essa orientação.

O princípio da prioridade do contexto de recepção, portanto, nunca foi contestado. Os pesquisadores que estavam trabalhando na tradução literária em Göttingen nos anos 90 em geral preferiam um modelo de “transferência” que explicitamente demarcasse os movimentos entre culturas fonte e alvo. Outros pesquisadores protestaram contra a separação em duas culturas, argumentando que os tradutores tendem a trabalhar em um espaço “intercultural” que as sobrepõe (cf. Pym 1998a). De modo geral, assim como o problema de definir as traduções, a oposição binária entre fonte e alvo tem sido cada vez mais criticada de dentro do paradigma indeterminista, como veremos posteriormente.

5.5 Os Estudos da tradução como disciplina acadêmica

A transformação do descritivismo em ciência é em muitos aspectos uma aspiração estruturalista, forjada na crença de que a pesquisa metodológica revelará relações ocultas. Supostamente deve haver uma lógica mais ampla sob os fatos observáveis. Esse movimento é às vezes levado ainda mais adiante; “A ciência pela ciência” (“Sciences qua sciences”), afirma Toury, “é caracterizada por uma incessante busca por leis” (1995a: 259, buscando apoio em Even-Zohar 1986). Assume-se então que o objetivo dos Estudos da Tradução seja o de descobrir leis, e no próximo capítulo consideraremos algumas das leis propostas até agora. O que nos interessa mais aqui é o modo pelo qual essa orientação foi capaz de moldar um movimento. Na visão de Toury, Os Estudos Descritivos da Tradução não apenas têm um ponto de partida (a identificação metodológica e a análise dos fatos) como também um objetivo coletivo geral (a formulação de leis abstratas baseadas em abundantes fatos observados). Este é um paradigma que pode levar a algum lugar.

Curiosamente, dado o contexto histórico, a crença geral na ciência e nos seus objetivos concedeu pouco espaço para uma análise autocrítica da comunidade científica ou mesmo dos efeitos sociais da própria pesquisa. Na época em que o paradigma descritivista estava se desenvolvendo, tais questões pareciam irrelevantes. Havia tanta convicção no projeto, e os pesquisadores estavam, presumivelmente, tão autoconfiantes, que esse se tornou o primeiro paradigma capaz de se posicionar perante os outros. De fato, foi graças a essa nova postura que a disciplina dos Estudos da Tradução passou a ser entendida como um empreendimento coordenado e coletivo. Isso pode ser visto na figura 5, que mostra a proposta original de Holmes para os Estudos da Tradução (ainda que na verdade o diagrama tenha sido desenhado por Toury):

Quadro de Holmes (imagem)

Figura 5
Concepção de Holmes dos Estudos da Tradução (por Toury 1991: 181; 1995: 10)

Reproduzimos aqui o diagrama para destacar três coisas. Primeiro, a divisão inicial entre “Puros” vs. “Aplicados” significa que o lugar da equivalência e dos paradigmas orientados ao propósito está muito longe do trabalho descritivo: presumivelmente, eles estão mais próximos da parte “aplicada”, enquanto o ramo “Descritivo” é “puro” o bastante para formar um par independente com “Teoria”. Se a busca por leis é vista como o propósito primordial da disciplina (e não a melhora das traduções ou dos tradutores, por exemplo), então a disciplina se torna mais pura à medida que as categorias se tornam mais abstratas. De fato, o diagrama justifica as razões pelas quais os tradutores e formadores tendem a não gostar das teorias da tradução. Segundo, somos compelidos a achar publicações em cada uma das lacunas que encontramos. Mesmo dentro do ramo descritivo, por exemplo, nos deparamos notavelmente com poucas pesquisas que possam ser consideradas “orientadas para função”, que presumivelmente lidariam com o que as traduções realmente fazem dentro das culturas e sociedades, ou como as traduções são realmente recebidas. Quanto à série de compartimentos sob “Parcialmente Teóricos”, há algum estudo que nela se encaixe perfeitamente? E terceiro, não existe um espaço real para pessoas nesse esquema, nem para tradutores, nem para pesquisadores ou teóricos. O paradigma descritivo parece, então, mal equipado para pensar sobre suas próprias falhas epistemológicas.

Não é de se surpreender que o paradigma descritivo não tenha sido capaz de impor o seu esquema disciplinar a todos os outros. Como disciplina acadêmica, os Estudos da Tradução nasceram dentro desse paradigma, mas o espaço criado foi logo descrito como uma “interdisciplina” (após Toury e Lambert 1989:1), como um lugar a partir do qual muitos outros modelos e metodologias podem ser elaborados. Os proponentes do descritivismo não estavam completamente fechados ao resto do mundo.

5.6 Questões Frequentemente Discutidas

Tentaremos, a partir de agora, reunir algumas observações gerais referentes ao desenvolvimento histórico do paradigma descritivo.

O que se segue são aspectos geralmente considerados positivos:

  1. A variedade e vitalidade históricas da tradução foram reveladas.

  2. O paradigma desempenhou um papel central na legitimação dos Estudos da Tradução como disciplina acadêmica.

  3. Proporcionou um entendimento que é potencialmente útil para todos os aspectos dos Estudos da Tradução, inclusive para as abordagens prescritivas às quais originalmente se opunha.

  4. Rompeu com muitas opiniões prescritivas do paradigma da equivalência, embora isso tenha resultado na invenção de suas próprias ilusões de objetividade.

Para contrabalançar esses pontos positivos, uma série de argumentos sobre as falhas aparentes do paradigma:

  1. O empreendimento descritivista é, em última análise, positivista, e não consciente de sua própria posição e papel históricos. Ele sofre das mesmas desvantagens que o resto do estruturalismo.

  2. A definição de “tradução assumida” é circular, e eventualmente se apoia nos critérios do próprio teórico.

  3. As descrições não nos ajudam no contexto de formação, no qual as prescrições são fundamentalmente necessárias.

  4. Todos os modelos se referem a textos e sistemas, mas não a pessoas (ver mapa de Holmes, no qual não há espaço para estudos sobre tradutores).

  5. O foco sobre a recepção não pode explicar todas as relações (particularmente no caso da tradução em contextos pós-coloniais, ou sempre que as assimetrias de poder sejam tão preponderantes que a cultura de partida simplesmente não possa ser ignorada).

  6. O foco nas normas promove posições conservadoras, permitindo que o “deve ser” seja derivado do “é”. Isso impede o trabalho sobre ética crítica.

Muitos estudiosos reagiram a essas questões. Toury (1992), por exemplo, aponta as vantagens das descrições nos contextos de formação, já que podemos apresentar alternativas para ilustrar que “tudo tem seu preço”. Reparamos acima como Chesterman (1999) também argumentava que uma pesquisa empírica deveria reforçar o treinamento, já que pode ser utilizada para prever o sucesso ou o fracasso de certas estratégias. Quanto à aparente sanção do conservadorismo, Toury propõe que treinemos os estudantes para quebrar normas, como ele mesmo fez dentro dos Estudos da Tradução.

Em relação à suposta falta de uma dimensão humana, o conceito abstrato de normas de Toury é contrabalanceado por um sério interesse sobre como os tradutores se formam (1995: 241-258), e os recentes movimentos dentro do projeto descritivista têm sido na direção de incorporar modelos sociológicos, particularmente o conceito de “habitus” de Bourdieu (de forma variada após Herman 1999 e Simeoni 1998). Isso coincidiria com a ideia de entender a história da tradução como a história dos tradutores (cf. Delisle e Woodsworth 1995, Pym 1998a). Também se relaciona aos muitos estudiosos da tradução que têm se engajado na escrita da história literária, frequentemente com um entendimento humanista, no qual os tradutores têm papel de destaque.

Não obstante esses argumentos, uma considerável resistência ao descritivismo é encontrada em instituições de formação, que, de maneira geral, foram mais longe que as teorias de propósito germânicas. Ao mesmo tempo, o impulso básico dos estudos relacionados à recepção ameaça retirar dos departamentos tradicionais de línguas modernas aquilo que eles fazem de melhor (ensinar línguas e literaturas de partida), e, sendo assim, é improvável que consiga apoio nessa área. Assim, a teoria descritiva procurou operar nas margens das comunidades de formação mais estabelecidas, tornando as teses de doutorado úteis para propostas de emprego.

Para onde irá o paradigma descritivo a partir daqui? Indicações recentes apontam para uma “virada sociológica”, para algum tipo de aliança com uma disciplina melhor equipada para lidar com variáveis contextuais. Theo Hermans (1999), por exemplo, finaliza seu relatório sobre o paradigma apontando o caminho para as sociologias de Bourdieu e Luhmann. Mas depois de virarmos essa esquina, o que encontramos? Na maioria dos casos, uma miríade de dados, com poucas categorias capazes de organizá-los em termos de comunicação crosscultural. As grandes sociologias Modernistas são baseadas no mesmo estruturalismo que alimentava a história do próprio paradigma descritivo, embora nesse caso tendo mais espaço para a autorreflexão (o sociólogo pode fazer a sociologia dos sociólogos). Mais problemático ainda, essas sociologias são em sua vasta maioria voltadas a sociedades individuais, a sistemas que funcionam no esquema que sempre prevaleceu nesse paradigma: “ou uma coisa, ou outra”. Elas se encaixam tão bem com a orientação para a recepção das abordagens descritivas que correm o risco de contribuir com muito pouco. De fato, os estudos literários descritivos das décadas de 70 e 80 já faziam um tipo de sociologia sistemática. Uma nova “virada sociológica” corre o risco de nos fazer andar em círculos.

Resumo

Esse capítulo esboçou o background histórico e intelectual do paradigma descritivo da teoria da tradução. O paradigma foi desenvolvido principalmente por estudiosos trabalhando em culturas minoritárias. Embora baseado numa pesquisa empírica, tem um conjunto de conceitos verdadeiramente teóricos, muitos dos quais podem ser traçados do Formalismo Russo para o trabalho feito na Europa central, para a Escola de Tel Aviv, e para os estudiosos de Holanda e Flandres. A disciplina acadêmica dos Estudos da Tradução começou a ganhar forma com as trocas entre esses grupos. De maneira geral, as teorias descritivas se opõem ao paradigma da equivalência na medida em que procuram não ser prescritivas, colocando seu foco nos “deslocamentos”, e não nos tipos de equivalência, sem se empenhar em análises extensivas da cultura de partida. Elas tendem a ser como as abordagens de escopo (Skopos) voltadas ao propósito, no sentido de que elas enfatizam o contexto da cultura de chegada e a função das traduções dentro desse contexto. Elas, ainda assim, diferem das abordagens voltadas ao propósito no sentido de que enxergam as funções em termos de posições ocupadas pelas traduções dentro dos sistemas de chegada, e não no que se refere a clientes ou exigências. As teorias descritivas também têm interesse nos modos pelos quais as traduções normalmente se configuram em contextos particulares, e não pelos quais elas diferem. São então capazes de falar sobre as “normas” baseadas no consenso, que definem como as traduções são produzidas e recebidas. O paradigma é assim relativista, na medida em que é bem consciente de que o que é considerado uma boa tradução em um contexto histórico pode não ser avaliado dessa maneira em outro. A pesquisa baseada nesses conceitos foi muito importante para que se revelasse a vasta diversidade de práticas tradutórias em diferentes períodos históricos, diferentes culturas e diferentes tipos de comunicação.

Fontes e leituras sugeridas

Um bom relato histórico das teorias de sistemas pode ser encontrado nos primeiros capítulos de Translations in Systems, de Theo Hermans (1999). O resultado das várias conferências em Bratislava, em 1968 (ed. Holmes, de Haan, Popovič, 1970), Leuven, em 1976 (ed. Holmes, Lambert, van den Broeck, 1978) e Tel Aviv em 1978 (ed. Even-Zohar e Toury 1981) estão cheios de soluções ad hoc para o desenvolvimento desarticulado do paradigma, ainda que os livros sejam difíceis de encontrar. O mesmo pode ser dito em relação à importante coletânea The Manipulation of Literature (ed. Hermans 1985), que é mais interessante do que seu título leva a crer. Quem quiser empreender uma pesquisa empírica sobre traduções deve ter se deparado com Descriptive Translation Studies and beyond (1995), de Gideon Toury, mesmo que tenha sido apenas como ponto de referência. Vários artigos sobre os aspectos metodológicos estão disponíveis online nos sites de Itamar Even-Zohar (http://www.tau.ac.il/~itamarez/) e Gideon Toury (http://www.tau.ac.il/~toury/). Uma abordagem descritiva mais interessante da tradução literária está em Translation, Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame (1992), de André Lefevere. Para insights sobre os vários aspectos socioculturais dos estudos descritivos, ver a seleção de artigos de José Lambert em Functional Approaches to Culture and Translation (ed. Delabastita, D’hulst & Meylaerts, 2006). Para um relato crítico dos sistemas e normas, ver Pym (1998a). Uma ampla atualização do trabalho recente sobre o paradigma descritivo pode ser extraída do volume Beyond Descriptive Translation Studies (ed. Pym, Shlesinger, Simeoni, 2008).

Projetos e atividades sugeridas
  • 1. Considere todas as situações linguísticas em que você participa em um dia típico, não apenas nos jornais, televisão ou internet, mas também nas lojas, bancos e serviços públicos. Quanto desse material linguístico deve ter sido traduzido, de uma forma ou de outra? (Considere notícias ou eventos que ocorreram fora da sua linguagem). Quanto desse material está explicitamente assinalado como tradução?

  • 2. Onde os tradutores e intérpretes trabalham na sua cidade? Quais são as leis ou políticas que orientam seus trabalhos?

  • 3. Procure traduções para a sua língua de João 1, similares a estas (retiradas de Nord 2001):

a) In the beginning was the Word, and the Word was with God, and the Word was God.

b) Au commencement était le Logos; et le Logos était près de Dieu, et le Logos était dieu.

c) En el principio existía el Verbo, y el Verbo estaba con Dios, y el Verbo era Dios.

d) Al principio era el Verbo, y el Verbo estaba en Dios, y el Verbo era Dios.

e) No principio era o Verbo, e o Verbo estaba com Deus, e o Verbo era Deus.

f) In principio era il Verbo, e il Verbo era presso Dio e il Verbo era Dio.

g) Im Anfang war das Wort, und das Wort war bei Gott, und Gott war das Wort.

h) Zuerst war das Wort da, Gott nahe und von Gottes Art.

Quais traduções fazem sentido e quais não fazem? Essas diferenças poderiam ser descritas através de normas?

A última tradução, a alemã (h), é de Berger e Nord (1999). Ela poderia ser traduzida para o inglês, aproximadamente como “First the Word was there, near God and in the manner of God”. Isso muda radicalmente as frases que tantas pessoas memorizaram na forma em que foram escritas por Lutero (g), e que poderiam ser traduzidas como “In the beginning was the Word, and the Word was with God, and God was the Word”. Quais podem ter sido as razões para tal mudança? Seria possível descrever essas razões na forma de normas?

  • 4. Use a internet para conhecer a intérprete Mexicana La Malinche (também conhecida como Malineli Tenepatl ou Doña Marina). Dentro de quais sistemas ela trabalhava? Qual a sua relação com os sistemas? Quais normas regulavam seu trabalho? Será que dependendo de quem contasse a história de La Malinche, feministas ou mexicanos nacionalistas, essas normas e sistemas seriam diferentes? (esse mesmo exercício pode ser feito em relação a qualquer tradutor notório, preferivelmente que trabalhe em situações de conflito).

  • 5. Encontre um código de ética para tradutores. Será que algum dos princípios poderia ser descrito como norma? Se sim, que tipo de norma seria? Que relação ela teria com um estudo empírico sobre como os tradutores trabalham? (Para uma análise crítica do código de ética, ver Pym 1992a, Chesterman 1997).

  • 6. Procure uma história oficial da sua literatura nacional predileta (e.g. literatura francesa, russa). Há traduções fazendo parte da história? Elas são mencionadas em um capítulo separado? No índice? Deveriam ser? Será que faz sentido a inclusão da tradução no contexto de uma literatura minoritária pertencente a uma língua majoritária (e.g. literatura australiana). Será que um período de grandes mudanças, como o da Itália renascentista, poderia ter sido realmente escrito sem a interferência de traduções?

  • 7. Localize uma página de um texto literário e uma tradução profissional correspondente. Tente dividi-la em segmentos paralelos (uma unidade do texto fonte corresponde a uma do texto de chegada) e identifique os deslocamentos de tradução. É fácil categorizar esses deslocamentos? Será que todos eles podem ser descritos em termos de equivalência? Sobre quais desses deslocamentos poderíamos dizer que há fatores sociais ou políticos envolvidos? Em vez de “deslocamentos”, deveríamos usar “variações”, ou talvez “desvios”, ou talvez até “erros”?

  • 8. Pesquise sobre The Works of Ossian (1765). É possível dizer que esse texto é uma tradução? Caso contrário, o que ele seria? Ele deve ser analisado pelo campo dos Estudos da Tradução?

  • 9. Confira a definição de pseudotraduções. Você consegue achar alguma pseudotradução nas literaturas das suas línguas? Qual seria sua função cultural? Por que foram apresentadas como traduções?

  • 1
    Tradução do capítulo Descriptions - the intellectual background, que complementao capítulo 5 do livro Exploring Translations Studies (2010), de Anthony Pym.
  • 2
    N.T. Tanto Holland, quanto Netherlands podem ser traduzidos como Holanda. Netherlands, sendo o país aparece acompanhado do artigo “a”. Holland, sendo uma região deste país, aparece sem artigo.
  • 3
    N.T. “Translation Shifts” é um termo que ainda não possui uma tradução definida em português. Propomos aqui “deslocamentos tradutórios”, pois deslocamento abarca bem a ideia de afastamento das normas existentes, como ficará claro ao longo do texto. Igualmente, acreditamos que “tradução assumida” é o melhor termo para se referir a textos que não necessariamente foram traduzidos de um original, mas que, na cultura de chegada, são considerados como uma tradução, como ficará mais claro adiante.
  • 4
    Uma estranha anedota dos Estudos da Tradução afirma que o “S” do nome “James S Holmes” representa o nome de sua mãe; sugere-se que depois da letra não se use um ponto. Os escritos de Gideon Toury consistentemente omitem o sinal.
  • 5
    N.T. Em português, um exemplo semelhante seria o par mínimo “vento” e “bento”, palavras de significados diferentes, distinguidas apenas pelos fonemas /v/ e /b/.
  • 6
    N.T. A noção de “crossculturalidade” (cuja tradução, para o português, até hoje é inexistente) surgiu nos anos 1970 com o advento da globalização, mas começou a aparecer na comunicação e nas produções literárias nas décadas de 80, notadamente com Ourselves Among Others: Cross-Cultural Readings for Writers (1988) de Carol J. Verburg, e Guidelines: A Cross Cultural Reading Writing Text (1990) de Ruth Spack. Os “estudos crossculturais” estudam as diferenças, os diálogos e/ou relações entre duas ou mais culturas/áreas de conhecimento. Não obstante, sua introdução nos estudos de tradução e/ou interpretação se deu com a professora Sandra Hales (Universidade de New South Wales, na Australia). Propomos essa tradução com base no advérbio “cross” já existente no português, e que pode ser substituído por “entre”, ou “inter”. Considerado como morfema, torna-se essencial e, portanto, inseparável da outra parte. Temos como resultado a palavra crosscultural que transmite melhor a ideia de “ponte” entre culturas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016
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