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ELYSIO DE CARVALHO: TRADUTOR DE OSCAR WILDE E ESCRITOR DECADENTISTA OLVIDADO PELA CRÍTICA?

ELYSIO DE CARVALHO: OSCAR WILDE’S TRANSLATOR AND DECADENTIST AUTHOR OVERLOOKED BY CRITICS?

Resumo

O presente texto busca apresentar o escritor Elysio de Carvalho na sua vertente de tradutor e escritor da viragem do século XIX para o século XX, levando em consideração principalmente a sua contribuição na disseminação da literatura de Oscar Wilde no Brasil e o legado estético de sua escrita e tradução. Essas facetas são pouco estudadas quando confrontadas ao caráter decisivo de Carvalho como editor e como intelectual das letras, planos que convergem com sua atividade política, seu envolvimento com correntes do pensamento anárquico e, posteriormente, seu posicionamento ideológico conservador. Os trabalhos dos muitos teóricos e críticos literários, do calibre de Edmundo Bouças Coutinho (2006), Peter Raby (2010), entre outros, são consultados para embasamento da discussão literária acerca dessas temáticas. Em seguida, são investigadas suas traduções do poema A balada do cárcere de Reading, por ele intitulada A ballada do enforcado, em 1899, inaugurando a literatura de Wilde no sistema literário brasileiro e da peça teatral wildiana Uma tragédia Florentina, realizada em 1922. Busca-se descobrir marcas do seu projeto por meio da análise de suas escolhas tradutórias e verificar a transposição estética, estilística e cultural de Carvalho das obras de Wilde. Para essa finalidade, utilizam-se como norte teórico os textos de Susan Bassnett (2005), André Lefevere (2007) e com o embasamento fundamental da Teoria dos Polissistemas de Itamar Even-Zohar (1990), teórico fundador da vertente dos estudos culturais da tradução. Constata-se a relevância da tradução de Carvalho na transferência das marcas literárias e estéticas de Oscar Wilde, por meio das imagens, das construções metafóricas e semânticas presentes do poema e da peça teatral.

Palabras-clave
Elysio de Carvalho; Oscar Wilde; Tradução; Esteticismo; Decadentismo

Abstract

The present study attempts to present the writer Elysio de Carvalho within the context of his activities as a translator and writer at the turn of the 19th to the 20th centuries, by mainly taking into account his contribution in the dissemination of Oscar Wilde’s literature in Brazil and the aesthetic legacy of his writing and translation. These facets are little studied when confronted with Carvalho’s decisive character both as an editor and as an intellectual of Letters. These facets converge to his political activity and his involvement with anarchic tenets and, his future conservative ideology. Literary theoreticians’ and critics’ works, among whom Edmundo Bouças Coutinho (2006), Peter Raby (2010), among others, are used as a basis for literary discussion regarding these themes. After that, a translation, by Elysio de Carvalho, of Oscar Wilde’s poem The ballad of Reading Gaol, by Carvalho entitled A ballada do enforcado, was translated in 1899, in this way introducing Oscar Wilde’s literature within the Brazilian literary system and the theater play entitled Uma tragedia Florentina, written in 1924. In this study, we seek to uncover marks of his translation project by means of an analysis of his translational choices and Carvalho’s aesthetic, stylistic and cultural transposition of Wilde’s works. For this purpose, the theoretical texts by Susan Bassnett (2005), Andre Lefevere (2007) are utilized, as well as the foundations of Itamar Even-Zohar’s Polysystems Theory (1990), theoretician who founded the Cultural Studies in Translation. The relevance of Carvalho’s translation is verified by means of the transference of Oscar Wilde’s literary and aesthetic marks, through the images, metaphorical and semantic constructions present in both the poem and the theater play.

Keywords
Elysio de Carvalho; Oscar Wilde; Translation; Aestheticism; Decadentism

Introdução

Elysio de Carvalho nasceu em Penedo, cidade interiorana do Estado de Alagoas, no ano de 1880, com uma vida repleta de polêmicas, convergindo para com o seu também controverso posicionamento político e intelectual, característica refletida nas biografias sobre ele escritas. Segundo Menezes (2004)Menezes, Lená Medeiros. Elysio de Carvalho: um intelectual controverso e controvertido. Revista Intellectus, v.4, n. 2, 2004., entre 1887 e 1896 passou por Olinda e Recife em estudos teológicos e, alegadamente, na área de direito. Explora-se, ainda sua passagem por escola de medicina, mas a informação também é incomprovável por documentos. Comprova-se sua atuação como jornalista em Penedo e na cidade do Rio de Janeiro, em jornais locais e nacionais, como a revista Ilustração Brasileira. Menezes (2004)Menezes, Lená Medeiros. Elysio de Carvalho: um intelectual controverso e controvertido. Revista Intellectus, v.4, n. 2, 2004. informa que entre os anos de 1899 e 1905, Elysio de Carvalho dirigiu vários periódicos, como A Meridional e America Brasileira (1922-1924).

Sua atuação junto a revistas internacionais se faz presente na América do Sul, onde publicou na Libre Examen (1904), na Revista Nueva (1901), entre outras. No continente europeu, contribuiu nas revistas Natura, de Barcelona (1904), e La Régénération Humaine de Paris (1904).

Enquanto sua atividade intelectual e editorial tem suscitado investigação relativamente constante nos últimos dez anos, sua vertente de tradutor e de escritor ficcional tem sido, aparentemente, relegada a segundo plano pela crítica. Elysio de Carvalho não figura com destaque em grande parte das coleções de proeminência da história da literatura brasileira, bem como não consta em publicações especializadas em escritores pré-modernos, tampouco sua obra é citada como contributo para o desenvolvimento das correntes finisseculares no Brasil.

Elysio de Carvalho, escritor decadentista brasileiro

Boa parte da obra de Elysio de Carvalho fica circunscrita ao primeiro quartel do século XX. Entretanto, encontramos o poeta em registros de publicação de poesia no Brasil do final do século XIX, como sua tradução para a The ballad of Reading Gaol (1898), de Oscar Wilde, a primeira realizada para a língua portuguesa, no ano de 1899.

Elysio produziu sua própria literatura, em prosa, como seu romance Five o’clock (1909) e poesia, como o poema Solar Antigo. Em manuscrito sem data, encontrado nos arquivos da Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional, deparamo-nos com um soneto decassílabo, manuscrito, assinado pelo autor, no qual percebe-se uma notória inflexão gótica:

Fig. 1
BN. B869.1 – s/d.
Solar Antigo (n’uma agua-forte anonyma) N’um elevado outeiro penhascoso De fundas vallas sêccas rodeado, Levanta-se um solar arruinado, Semelhante a um phantasma pavoroso. De cada lado um torreão musgoso Alteia-se: o castello abandonado Conserva ainda o escudo enferrujado, E a couraça, e o montante valoroso. As funereas corujas agoureiras Habitam escurissimas setteiras Nas vetustas paredes derrocadas. E as armaduras pendem das muralhas, Como espectros envoltos em mortalhas, Ao longo do salão enfileiradas... Elysio de Carvalho.

Rio de Janeiro.

Estamos diante de um documento raro. A escolha se deu pelo soneto decassílabo e o subtítulo do “Solar Antigo” revela que provavelmente o objeto de inspiração foi uma gravura “agua-forte”. A influência aqui imediatamente percebida é de Edgar Allan PoePoe, Edgar Allan. A queda da casa de Usher. In: Histórias Extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 7-27., apenas para citarmos um dos maiores representantes do gótico na literatura do Século XIX. Não é incomum nos textos de Poe a referência a Castelos, Casarões e toda uma sorte de construções que remetem a tempos remotos e, por isso, designem espaços de ruína, de decadência, de deterioração, ambientes predispostos a se tornarem o habitáculo de seres ligados ao universo do mau-agouro (corujas, corvos, morcegos), ou mesmo a residência de fantasmas e espectros. É possível perceber a pertinência da afirmação sobre a presença do elemento gótico no soneto de Elysio de Carvalho, provavelmente herdado de suas leituras das literaturas de língua inglesa, o que não descarta, outrossim, confirma a influência também de Oscar Wilde em sua matriz poemática, assunto do qual nos ocuparemos na segunda parte desse breve estudo.

A influência de Oscar Wilde, o esteticismo-decadentismo e as primeiras traduções Elyseanas de Oscar Wilde

A relação da obra de Elysio de Carvalho e de Oscar Wilde perpassa as vertentes esteticista e decadentista que ambos adotariam, inspirados pela estética poesia francesa finissecular, que influenciou tanto a Inglaterra vitoriana quanto o Brasil, cuja literatura percebia o esgotamento de poéticas anteriores, estagnadas nos ideais realistas e naturalistas. Carvalho, da mesma forma que João do Rio (Paulo Barreto), encanta-se com o novo movimento literário acolhido por Oscar Wilde, que fora gestado pela arte dos pré-rafaelitas, como Dante Gabriel Rossetti e James Whistler e pelos preceitos poéticos e filosóficos de John Ruskin.

Encontrando-nos em solo brasileiro, expressivo foi o número dos escritores do final do século XIX que se inspiraram na obra e nas estéticas wildianas, conforme nos explica Gentil de Faria (1988)Faria, Gentil Luiz de. A presença de Oscar Wilde na “Belle époque” literária brasileira. São Paulo: Pannartz, 1988.. Porém, não se pode negligenciar que foi João do Rio, no contexto da belle époque carioca, quem replicou o modus vivendi do mestre Oscar Wilde, com seu brilhantismo jornalístico-literário de As Religiões do Rio (1904), A Alma Encantadora das Ruas (1908Wilde, Oscar. Miscellaneous: A florentine tragedy, with opening scene by T. Sturge Moore, 1908. Project Gutenberg. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/1308/1308-h/1308-h.htm. Acesso em: 05.05.2019.
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), a peça teatral A bela madame Vargas (1912) e as traduções brasileiras das obras wildianas Salomé, Intenções e O retrato de Dorian Gray.

O melhor exemplo [...] foi Paulo Barreto (1881-1921), conhecido como João do Rio, o mais famoso discípulo de Oscar Wilde no Brasil, reputado homossexual, tradutor da obra de Wilde e propagador tanto de suas maneiras como de suas ideias. De fato, João do Rio foi um dos primeiros a navegar pelas fronteiras entre a estética e o estilo de vida decadente no Brasil, tornando imprecisas quaisquer distinções entre o dândi, com sua proverbial auto-invenção, de um lado, e o curioso, ainda que distanciado, observador flanêur, do outro. (90)

Nesse embate de figuras ilustres, entretanto, de certa forma imêmore pela crítica literária e tradutória, desponta Elysio de Carvalho, primeiro tradutor de Oscar Wilde em terras brasílicas e autor sob sua guisa e à sua sombra. Conhecera a obra wildiana nesse interstício literário, entre o realismo que findava e o pré-modernismo que despontava no horizonte. Assim, o esteticismo decadentista viria a preencher o vácuo deixado pelos movimentos esgotados, como nos alertam os preceitos teóricos de Itamar Even-Zohar (1990)Even-Zohar, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, [s/l], v. 11, n. 1, 1990, p.10-27. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>. Acesso em: jan. 2014.
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, a respeito da estagnação dos polissistemas literários.

Por meio do culto à beleza em tempos sisudos, da retomada das artes puras em meio à melancolia do final desse século XIX, mesmo em terras brasileiras, a belle époque tardia finalmente aportava e por Elysio de Carvalho era celebrada. Acrescentada à poesia de amoedo gótico e simbolista, a inspiração de esteticismo-decadente está manifesta no romance de Carvalho intitulado Five o’clock, de 1909. Rodrigues (11)Rodrigues, Kelen Cristina. Cenografia, ethos e autoria: uma abordagem discursiva do romance The picture of Dorian Gray. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia. 2009. nos apresenta a definições desse estetismo-decadentista, cunhado por Wilde por meio da influência de seus caros predecessores, Walter Pater, Baudelaire, Gautier, HuysmansHuysmans, Joris-Karl. Às avessas. Trad. de José Paulo Paes; introdução e notas de Patrick McGuiness. São Paulo: Penguin, 2011., entre tantos, que imiscua elementos das duas poéticas rebeldes da “turn of the century”:

O estetismo-decadentista prega que a obra artística é superior a qualquer discurso racional sobre ela. Além disso, preconiza uma reação estética frente a movimentos anteriores, como o realismo naturalista e, em parte, afirma um novo papel moral da arte (que nada deve ter de moralidade) e do artista frente à sociedade. Assim, podemos dizer que o estetismo-decadentista é um ideal moral, mas que se trata de uma moral ‘amoral’, no sentido de a arte não ter que se reportar a questões sociais ou coletivas.

(Rodrigues, 11Rodrigues, Kelen Cristina. Cenografia, ethos e autoria: uma abordagem discursiva do romance The picture of Dorian Gray. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia. 2009.).

Dessa forma, Carvalho elabora seu Five o’clock, constituído de elementos das duas estéticas, por vezes trazendo o Dândi, cansado da sua época e da falta de beleza do seu ambiente e, em outras feitas, apresenta o requinte dos recintos fechados e alegres da belle époque brasileira, nos quais certamente transitava o escritor. Ao mesmo tempo, bem aos moldes Wildianos, a personagem de Carvalho está a “postular no dandismo um cinismo revisor de papéis, atento aos apelos inaugurais da considerada fachada de progresso” (Bouças Coutinho, 13Bouças Coutinho, Luiz Edmundo. Prefácio. Carvalho, Elysio. Five o’clock. 1909. Organização: Luiz Edmundo Bouças Coutinho e Marcus Salgado. Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura – UFRJ, Rio de Janeiro: Editora Antiqua, Coleção OCULTURA, 2006.).

Expandindo sua disseminação literária, o autor e tradutor contribuiu para revistas brasileiras1 1 Elysio de Carvalho dirigiu, além de America Brasileira, A Meridional (1899). , nas quais disseminou como editor textos e autores decadentistas e simbolistas. Uma das revistas que se destacam neste sentido é America Brasileira, da qual foi diretor. No seguinte excerto, a revista anuncia a publicação de obra simbolista que, em muitos aspectos, se confunde e sobrepõe ao movimento decadentista:

Trata-se de uma série de ensaios em que o Sr. Antoine Orliac estuda os escriptores que criaram esse grande movimento de lyrismo e arte, especialmente os que, perpetuando a tradição, enriqueceram-na com sua contribuição pessoal. O primeiro volume trata de Mallarmé [...]

(America Brasileira, 90).
Fig. 2
Revista America Brasileira

Escrevendo uma resenha para a revista sobre o lançamento da primeira tradução do único romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, enaltece a obra e autor irlandês, mas tece comentários críticos quanto à atuação de João do Rio:

Oscar Wilde: O retrato de Dorien Gray. Ed Garnier, 1923. A Livraria Garnier, publicando a collecção de Autores Celebres das Literaturas Extrangeiras, em portuguez, à guisa do que já fez em francez, presta os mais inestimáveis serviços à obra de nossa cultura, que já lhe deve tantos favores. O admirável livro de Wilde, O retrato de Dorien Gray, nos dá, agora, através da brilhante traducção de João do Rio, feita com muito sabor e procurando não tirar ao dialogo, sobretudo aquella côr incomparável, que foi o grande milagre da factura de Wilde. Nem sempre conseguiu o saudoso escriptor brasileiro essa fidelidade, não de traducção, que é honesta, mas de prestigio de expressão, de força e brilho das palavras. Isso, comtudo, não chega a prejudicar o livro, que se lê com grande prazer, nessa versão de todo conscienciosa.

(America Brasileira, 90).

Percebe-se aqui certa divergência entre os tradutores de Wilde, em vista do comentário de Carvalho sobre a tradução do romance wildiano por João do Rio. Entretanto, mesmo essa aparente competição clama atenção à obra de Wilde em tradução brasileira. Tamanha era a admiração de Elysio de Carvalho pelo escritor irlandês, que o tradutor brasileiro de A ballada do enforcado apresentava Wilde de maneira inconformada, no prefácio a essa tradução, publicada em 1899, pela editora Brasil Moderno:

Cremos desnecessario falar-se mais uma vez da historia dolorosissima, a tragedia horrível de Oscar Wilde, o grande poeta inglez, moço, fidalgo, rico, distincto, elegante, que a fingida pruderie britannica sepultou numa enxovia imunda[...]

(Carvalho, 9Fonseca, Thais Carvalho; Rocha, Vanda Maria Sousa. O amor em Uma mulher excepcional: aspectos decadentistas e psicanalíticos no conto de João do Rio. Revista Littera, v. 1, n. 1, jan-jul, 2010.).

Percebemos a relevância do resgate histórico e tradutório desse poema, bem como a tradução do texto teatral Uma tragédia Florentina, por Carvalho. Citando o texto de Bassnett (12)Bassnett, Susan. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Leticia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005., entendemos a necessidade da pesquisa sobre a história da tradução e, no caso, sobre como uma tradução realiza a inserção de um autor em um sistema literário em plena efervescência:

Um ponto importante (sic) desenvolvimento nos estudos da tradução desde os anos 70 tem sido a pesquisa sobre a história da tradução, já que uma análise da forma como a tradução ajudou a moldar nosso conhecimento de mundo no passado nos faz mais capazes de moldar nosso próprio futuro.

(Bassnett, 12Bassnett, Susan. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Leticia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.)

Considerado o mais popular poema de Wilde e resultante de um misto de estilos, segundo Beckson e Fong (in Raby, 67)Beckson, Karl; Fong, Bobby. Wilde as poet. In: Raby, Peter. The Cambridge Companion to Oscar Wilde. Cambridge: CUP, 2011, p. 57-68., The ballad of Reading Gaol (1898) fora escrito pelo autor em seu autoexílio na França após seu biênio na prisão. No continente Europeu, sob o pseudônimo de Sebastian Melmoth, o autor compila um volume com seus aforismos e, além disso, escreve a obra poética oriunda de suas memórias prisionais, expressando sua dor e revolta ao testemunhar a execução de um cavaleiro da guarda real pela forca.

Elysio de Carvalho, por sua vez, possivelmente impelido pela injustiça das iniquidades cometidas contra Wilde, como apreciador de sua obra e seu primeiro tradutor no Brasil, manifesta sua revolta em seu prefácio de tradutor:

Mesmo no horror do carcere, onde sofreu, entre outros o barbaro supplicio da roda e desfiou cordas alcatroadas, e exerceu o officio de cavouqueiro, quebrando as unhas, ensanguentando as suas finas mãos patrícias, o genial poeta escreveu! E compoz esta ballada.

(Carvalho, 9Carvalho, Elysio. Solar Antigo. BN. B869.1 – s/d. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss_I_07_10_073/mss_I_07_10_073.pdf, Acesso em: 12.12.2019.
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).

Ainda em seu prefácio, o primeiro tradutor brasileiro de Oscar Wilde oferece algumas explanações significativas. Sendo o poema escrito em estrofes de seis versos, em alternância de quatro e três pés iâmbicos, Carvalho faz a opção por uma tradução em prosa. Esclarece ainda que realizou uma tradução livre ao máximo permitido, baseando-se no poema de Wilde e na tradução para a língua francesa, por Henry D. Davray. Veneziani (50)Veneziani, Cesar Luiz. Tradução do metro de balada inglês: uma experiência com The ballad of Reading Gaol, de Oscar Wilde. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018. aponta que essa é uma tradução indireta, por utilizar-se também do texto em língua francesa, além do texto originário de Wilde. Justificou-se Carvalho, igualmente, a respeito da omissão de trechos do poema e da sua preferência por uma tradução semântica:

[...]Fomos até forçados a supprimir estrophes, que são, para nós, absolutamente nonsenses. [...] respeitámos sempre o pensamento do poeta, e não desprezámos uma só das muitissimas bellezas, nenhuma das innumeras imagens, as mais das vezes symbolicas – dessa obra incomparavel,[...]

(Carvalho, 11-12Carvalho, Elysio. Five o’clock. 1909. Organização de Luiz Edmundo Bouças Coutinho e Marcus Salgado. Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura – UFRJ, Rio de Janeiro: Editora Antiqua, Coleção OCULTURA, 2006.).

Evidencia-se, na tradução de Carvalho, apesar da omissão de trechos do poema originário, o arranjo cuidadoso dos elementos marcantes da Ballada. Aqui, ratifica-se uma intertextualidade gótica, que já presente em O retrato de Dorian Gray, dialoga com “A máscara da morte rubra” (1842), de Edgar Allan Poe:

Fazendo caretas de gestos funambulescos, vimol-os passar, quaes Sombras impalpáveis, dando-se as mãos... Gyrando, gyrando em grande roda phantastica dansaram uma sarabanda... Os passos de dansa desses Arlequins do Diabo tão floreados eram, tão caprichosamente feitos, que faziam lembrar os arabescos impressos pelo Vento na areia.

Com piruetas de marionettes, dansavam agilmente nas pontas dos pés. Soprando nas flautas do Medo, atordoavam-nos os ouvidos ao celebrarem aquella horrenda Mascarada... Cantavam ruidosamente, longamente cantavam, porque cantavam para despertar os Mortos...

(Wilde, 46Wilde, Oscar. A ballada do enforcado. Tradução de Elysio de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediccção do Brasil Moderno, 1899. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital0170/bndigital0170.pdf. Acesso em: 04.04.2018.
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, grifo nosso).

A criação das expressões e metáforas, na tradução de Carvalho para as construções descritivas dos prisioneiros, por Wilde, revela o que aparenta ser a ênfase que Bassnett (106)Bassnett, Susan. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Leticia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005., a partir de Lefevere (161-179)Lefevere, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru/SP: EDUSC, 2007., denomina como a estratégia da Interpretação, para a tradução poética. Aqui, a substância do poema wildiano é transferida, por meio das ricas imagens, figuras de linguagem e novas combinações lexicais de Carvalho, enquanto o metro, a rima, e, portanto, a forma do texto fonte, não aparecem na tradução. A construção desses sintagmas metafóricos, como “caretas de gestos funambulescos”, “Arlequins do Diabo”, e “aquella horrenda Mascarada” refletem a busca da sintonia temática e estética entre autor e tradutor, o poema fonte e a tradução de Elysio de Carvalho.

A oposição semântica perceptível nos versos a seguir, com os vocábulos “posição saliente” versus “Cadafalso”, “agradável” versus “horrível” e “Amor e Vida propicios” em contraste a “pendurado pelo pescoço”, remete à construção antitética típica de Wilde, em que se utiliza das figuras com a finalidade de provocar, ironizar e despertar sua crítica social. Aqui pode-se conjeturar o uso do elemento tragicômico como recurso, na descrição da vida em alta sociedade e do nefasto destino do soldado, de modo a refletir o próprio drama da biografia do escritor:

Não há quem não ambicione subir... subir... até occupar posição saliente, alto logar na Sociedade... Para esse fim, convergem todos os esforços humanos... Qual esse, porém, que quererá achar-se no alto de um Cadafalso, e, dahi, contemplar pela derradeira vez o Firmamento?!...

E’ deliciosamente agradavel dansar-se ao som de violinos, flautas e alaúdes, quando o Amor e a Vida nos são propicios... Ah! Mas é horrivel dansar-se no Espaço, pendurado pelo pescoço!...

(Wilde, 31-32).

Além desses elementos, torna-se visível aqui e ali na tradução do poema o wildiano por Carvalho, a manutenção e transferência da adjetivação ácida, o sentido dúbio, e a expectativa quebrada ao fim do paradoxo. Stokes (78)Stokes, John. Wilde as journalist. In: RABY, Peter. The Cambridge Companion to Oscar Wilde. Cambridge: CUP, 2010, p. 69-79. define o recurso linguístico e estilístico de Wilde: “[...]uma forma distinta de marcação, que transforma seus leitores em conhecedores de sua oposição”2 2 […]a mode of fine discrimination, turning his readers into connoisseurs of his contrariness. .

A seguir, empreendemos nossa descrição e análise da tradução de Uma tragédia Florentina assinada por Elysio de Carvalho. Essa peça de Wilde, parcamente citada e estudada no contexto brasileiro, está presente na edição da revista Ilustração Brasileira, de 15 de agosto de 1922. Segundo Ruffini (76)Ruffini, Mirian. A tradução da obra de Oscar Wilde para o português brasileiro: paratexto e O retrato de Dorian Gray. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2015. 238p. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/135503Florianópolis, SC, 2015. 238 p.
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, a peça fora encontrada em fragmentos pelo detentor dos espólios literários de Oscar Wilde, Robert Ross. Por ocasião da encenação de Salomé no “Literary Theatre Society”, em 1906, o testamenteiro e melhor amigo do dramaturgo, solicitara a Thomas Sturge Moore que a complementasse, de maneira a possibilitar sua inclusão no programa daquele teatro.

Inicialmente, segundo conta Ross, em seu prefácio à seção Oscar Wilde Miscellaneous - da edição de 19173 3 Da editora Merthuen e Co., disponibilizada pelo Projeto Gutenberg em 1998. , pensara que parte da peça Uma tragédia Florentina fora roubada da casa de Wilde, na Tite Street, em Londres, após a perda de suas posses por causa de seu processo na justiça. Porém, ao comparar o manuscrito de que tinha posse a outro encontrado, percebe que a peça se iniciava realmente no que aparentava ser uma segunda cena. Sobre o trabalho de Sturge Moore, Robert Ross é elogioso:

Quanto ao estilo, o Sr. Sturge Moore realizou um feito nessa reconstrução, não importando as opiniões dos admiradores ou dos caluniadores de Wilde sobre Uma tragédia florentina. Essa conquista é especial porque o Sr. Sturge Moore não tem nada em comum com Wilde a não ser aquilo que é compartilhado por todo verdadeiro poeta ou dramaturgo: Ele é um morador do Parnaso, não um invasor.

(RossRoss, Robert. Preface. In: Wilde, Oscar. Miscellaneous: A florentine tragedy – a fragment. Project Gutenberg. May 1998. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/gu001308.pdf. Acesso em: 05.05.2019.
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In: Wilde, vii, tradução nossa).

Sturge Moore, poeta, dramaturgo e desenhista de Essex, escreveu Two poems (1893) e The vinedresser and other poems (1899). Na peça de Wilde, a escrita de Moore da primeira cena procura assemelhar-se a duas outras peças melodramáticas de Wilde, Vera ou os niilistas (1893) e a Duquesa de Pádua (1893), nas relações românticas entre as personagens, nos preâmbulos à trama principal e na descrição das personagens femininas oprimidas e submissas aos homens. Aqui percebe-se a acurada tradução de Elysio de Carvalho desses elementos esteticistas inclusos na abertura da peça:

Bianca: Mas onde o encontraste?

Maria: Onde havia de ser senão acolá, naquelle palacio, numa rica sala de paredes pintadas...e pintadas de mulheres nuas, que faziam corar ou sorrir um homem vulgar... Mas ele, como grande senhor, não prestava atenção.

Bianca: E como é que sabes que não é nenhum criado?

Maria: Ora Esta! Como é que sei que há Deus, senão porque os anjos devem ter um amo? Eu bem vi que diante deste senhor todo mundo se inclinava, tirando-lhe o chapeo, varrendo os ladrilhos de marmore com espanadores de lindas plumas.

(WildeWilde, Oscar. The ballad of Reading Gaol (1898). In: Poems by Oscar Wilde. London: Merthuen & Co, 1913. Disponível em: https://www.gutenberg.org/files/1057/1057-h/1057-h.htm#page269. Acesso em: 16.06.2020.
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, s/p, grifo nosso).

De forma similar a muitos textos wildianos, dentre eles a abertura de O retrato de Dorian Gray, a abordagem descritiva dos espaços interiores, ricamente adornados é ressaltada pelas construções “naquelle palacio, numa rica sala de paredes pintadas...e pintadas de mulheres nuas” e “ladrilhos de marmore com espanadores de lindas plumas”. A menção a “mulheres nuas”, tanto por Wilde, escritor decadentista, quanto por Carvalho, seu tradutor e selecionador de tais imagens para a revista Ilustração Brasileira, reflete a opção de ambos por conteúdo inovador e transgressor à moralidade de sua época.

Podemos aqui nos servir do viés polissistemático de Itamar Even-Zohar (1990)Even-Zohar, Itamar. Polysystem Studies. Poetics Today, [s/l], v. 11, n. 1, 1990, p.10-27. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-pss1990.pdf>. Acesso em: jan. 2014.
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, o teórico israelense que nos descreve o movimento entre sistemas literários e culturais distintos, por meio da tradução, e aponta o ingresso de novas poéticas em sistemas literários estagnados ou conservadores, com a introdução dos elementos estrangeiros. Prenúncio do desenvolvimento e amadurecimento posterior do teatro wildiano, o drama teatral Uma tragédia Florentina, de acordo com Lee (34), tem aspectos similares à famosa Salomé, representativa do teatro experimental de Wilde: 4 4 common to both works is a heightened sense of aestheticism as conveyed in lush poetic descriptions of sensual decorative detail and scenic surroundings. They are steeped in the Wildean ethos of symbolism and nihilism, intermingling eroticism and death, love and murder, in a manner redolent of fin-de-siècle decadence. In their disturbing psychological complexities, glazed over but never concealed by rich aesthetic surfaces, they are anxious portraits of the tormented and divided modern subject. (Lee, 34).

[…]comum a ambas as obras é um senso de esteticismo amplificado transmitido em luxuosas descrições poéticas de detalhes decorativos e ambientes cênicos. Elas estão imersas no ethos Wildiano do simbolismo e do niilismo, em uma combinação de erotismo e morte, de forma invocativa da decadência de fin-de-siècle. Em suas perturbadoras complexidades psicológicas, envernizadas, porém jamais camufladas pelas ricas superfícies estéticas, elas são retratos ansiosos do sujeito atormentado e dividido.

(Lee, 34Lee, Sherry D. A Florentine Tragedy, or woman as mirror. Cambridge Opera Journal, nr 18, v1, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p.33–58., tradução nossa)

A trama se passa na Itália no século XVI, incluindo quatro personagens, Guido Bardi, um príncipe Florentino, Bianca, a jovem esposa de Simone, Simone, um velho comerciante de tecidos e Maria, a empregada da casa. Na versão acrescida com a cena introdutória por Sturge Moore, Bianca é cortejada pelo príncipe, que a segue até sua casa para supostamente valor monetário para que a moça fuja com ele e depois, implora-lhe o perdão e lhe faz juras de amor. A tradução de Elysio de Carvalho, a seguir, traduz o tom de melodrama, conferido pela introdução acrescentada por Sturge Moore:

Bianca: - Senhor, é inútil que fiqueis... nem ha razão para isso.

Guido: - Razão, filha! A minha razão... és tu! a minha razão perfeita, incomparavel, absoluta... és tu! Tu és, Bianca, não só a razão para que eu fique, mas o objecto, o fim mesmo da minha vida, pois nasci para amar as cousas mais lindas, as mais preciosas maravilhas de Deus...

Bianca: - Sim: para comprar as mais lindas cousas... que podem ser vendidas...

Guido: - O’ Bianca cruel! Pódes cobrir-me de desprezo... mas eu te digo: nasci para te amar, a ti que não tens preço, que nunca foste levada a nenhum mercado... como as almas aladas que vagam e pairam entre os planetas ou ao redor da lua...

(Wilde, s/pWilde, Oscar. Miscellaneous: A florentine tragedy, with opening scene by T. Sturge Moore, 1908. Project Gutenberg. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/1308/1308-h/1308-h.htm. Acesso em: 05.05.2019.
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, grifos dos autores).

A perspicácia com que o restante do ato é escrito segue-se às primeiras linhas de Moore e desvela a genialidade de Wilde. Simone retorna ao lar e a partir de então comanda e manipula a situação dramática do triângulo amoroso. Sábio e até certo ponto sádico, finge ignorância dos sentimentos dos dois jovens e passa a oferecer suas mercadorias a Guido a preços exorbitantes. Gradualmente, a armadilha de Simone os leva a um duelo. Um típico final wildiano de quebra da expectativa, em que Oscar Wilde subverte o gênero literário, estratégia a qual, segundo RiquelmeRiquelme, Jean Paul. Oscar Wilde’s aesthetic gothic. Walter Pater, dark enlightenment and The picture of Dorian Gray. In: BLOOM, Harold. Oscar Wilde. Bloom’s modern critical views. New York: Infobase Publishing, 2011, p. 71-90. (85 apudRuffini, 84Ruffini, Mirian. A tradução da obra de Oscar Wilde para o português brasileiro: paratexto e O retrato de Dorian Gray. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2015. 238p. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/135503Florianópolis, SC, 2015. 238 p.
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), o escritor faz uso para conferir novos efeitos de sentido e, assim, veicular sua crítica. No caso aqui exposto, o fechamento do melodrama trágico destoa da conclusão convencional da tragédia, pois que, nas seguintes falas traduzidas por Elysio de Carvalho, Wilde surpreende com o tom da comédia:

Guido: - Oh! Bianca! Soccorre-me, Bianca! Tu bem sabes que sou innocente.

Simone: - O que! pois ha vida ainda nesses labios mentirosos! Morre, miseravel! Como um cão, de língua de fóra! Morre! morre! E o Arno, na sua mudez vingadora, levará o teu corpo até o mar, que o ha de ingulir para sempre.

Guido: - Meu Senhor Jesus Christo! Recebei minha alma esta noite.

Simone: - Quanto a isso, amen. Agora a outra (Guido Expira. Simone levanta-se, e encara Bianca. Ella vem para elle, de braços abertos, como attonita).

Bianca: - Porque não disseste nunca que eras tão forte?

Simone: - E tu, porque me não disseste que eras tão bella? (abraça-lhe a cabeça, beijando-a na bocca).

(WildeWilde, Oscar. Uma tragédia florentina. Tradução de Elysio de Carvalho. Revista Ilustração Brasileira, 15 de agosto de 1922. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=107468&pesq=mario%20piragibe&pagfis=5840. Acesso em: 01.06.2020.
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, s/p, grifos dos autores).

Nos excertos acima, percebe-se que o tom de melodrama e de tragicomicidade são cruciais para os efeitos de sentido as opções de Carvalho parecem recompor esses efeitos, na medida em que recuperam a composição de Wilde. Bassnett (105)Bassnett, Susan. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Leticia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. afirma que:

A tradução interlingual deve refletir a própria interpretação (criativa) do tradutor do texto em LF. Além disso, o grau de reprodução da forma, o metro, o ritmo, o tom, o registro, etc. por parte do tradutor será determinado tanto pelo sistema da LF quanto pelo sistema LM e também dependerá da função da tradução.

Portanto, inferimos que a tradução de Carvalho tenha levado em conta tais aspectos, entre outros, pois que se apresenta plena de sentido na língua meta, o português e, muito provavelmente, no seu contexto literário de produção, o Brasil do início do século XX. A análise da tradução literária do texto de Wilde, realizada por Carvalho, deve idealmente ser empreendida de forma abrangente e contextualizada, observando-se, de acordo com os preceitos de Bassnett sobre a tradução poética (88), a organicidade do texto e o alcance da almejada transposição cultural entre polissistemas, no caso desta pesquisa, o britânico e o brasileiro. Bassnett acrescenta (257), ao falar sobre a tradução do texto teatral, que apesar de muitos tradutores desse gênero em particular revelarem que se utilizam das mesmas estratégias para o texto prosaico:

[...]o texto dramático não deve ser traduzido da mesma maneira que o texto em prosa. [...] um texto de teatro é lido de modo diferente. Ele é lido como uma unidade incompleta, já que é apenas na performance que o potencial total do texto se concretiza. E isso representa para o tradutor um grande problema: se deve traduzir como um texto puramente literário ou tentar traduzi-lo a partir de uma função dentro de outro sistema mais complexo.

(Bassnett, 257Bassnett, Susan. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Leticia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.).

A produção do texto teatral leva em conta outros aspectos envolvidos na performance, como as questões da sua adequação à fala, os seus ajustes aos elementos específicos da montagem teatral em determinadas culturas, e suas convenções particulares da dramaturgia. Entretanto, não conseguimos assegurar que a tradução de Carvalho se destinava à finalidade da encenação, além do fato de constituir material literário inédito em uma seção da revista. Assim, podemos apenas especular a respeito de um possível projeto tradutório, no texto Elyseano, voltado para a manutenção das marcas literárias e estéticas de Oscar Wilde, assim, veiculando sua dramaturgia no Brasil pré-modernista. No trecho abaixo, percebem-se essas escolhas tradutórias:

Guido: - Tua graciosa senhora, cuja belleza é uma lampada que faz empallidecer as estrelas, e furta a Diana os seus dardos, acolheu-me com uma cortezia tão amavel que, se ella e tu m’o permittisseis, viria muitas vezes a esta casa. E, quando tu sahires para os teus negocios, aqui me sentarei para fazer encantadora a sua solidão... salvo se Bianca afligir-se com isso por tua causa... Que dizes, bom Simone?

(Wilde, s/pWilde, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Tradução de José Eduardo Ribeiro. Porto Alegre: L&PM, 2014., grifos nosso).

Percebemos, no excerto selecionado, a manutenção dos elementos esteticistas e decadentistas da peça de Oscar Wilde na tradução. As metáforas que enaltecem a beleza e aludem aos textos clássicos são habitualmente encontradas nas peças do dramaturgo irlandês e a opção por “cuja belleza é uma lampada que faz empallidecer as estrelas, e furta a Diana os seus dardos” apresenta a adaptação dos traços culturais que as compunham. O texto teatral em questão, pleno da ilustre essência retórica wildiana, inclui, por exemplo, alegorias ligadas à luz, como a lâmpada e as estrelas, para designar a amada. Ao descrever Bianca, Guido a compara à deusa da luz e da caça, mais provável por despertar no jovem luminoso sentimento do amor e por sentir-se presa de seu coração.

Considerações Finais

Com a apresentação dos textos de Oscar Wilde em tradução por Elysio de Carvalho, A ballada do enforcado e Uma tragédia florentina, por meio desta breve análise de sua literatura, viabilizou-se nossa, embora modesta e limitada, percepção da valiosa contribuição do escritor alagoano para a literatura brasileira em formação, no período do pré-modernismo.

Escritor e tradutor de eleição esteticista e decadentista, nas palavras de Piazza (42)Piazza, Maria de Fátima Fontes. Tal Brasil, qual América? A américa brasileira e a cultura ibero-americana. Diálogos Latinoamericanos, n.12, México, Universidad de Aarus, 2007., Elysio “não poupou esforços no sentido de dar visibilidade à literatura ibero-americana e às questões pertinentes ao campo cultural dos dois lados das Américas”.

A tradução de Carvalho, do poema em 1899, inaugura a literatura de Oscar Wilde no Brasil e, portanto, constitui profícuo material para futuras pesquisas sobre a poemática wildiana em tradução. A tradução em prosa oferece ricas construções imagéticas e logra a transferência da crítica do autor irlandês sobre sua experiência carcerária.

Uma tragédia Florentina é peça melodramática, porém tragicômica, de Oscar Wilde, traduzida por Elysio de Carvalho em agosto de 1922. Obra de provável relevância e destaque para a época, foi publicada em revista cultural de circulação nacional. A estética e temática do dramaturgo Wilde são, assim, difundidas em momento tão especial da literatura brasileira, no qual se inaugurava o Modernismo.

Por meio deste estudo realizado sobre o repertorio literário e tradutório de Elysio de Carvalho, verificou-se a influência recebida das estéticas e temáticas de Oscar Wilde. Além disso, constatou-se que Carvalho é figura de destaque no Brasil do final do século XIX e início do século XX, pela configuração de seu papel de jornalista, escritor, crítico literário e tradutor, consolidando sua posição avant-garde no cenário editorial na belle époque tropical.

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    Elysio de Carvalho dirigiu, além de America Brasileira, A Meridional (1899A MERIDIONAL: Revista Internacional (RJ) de 28 de fevereiro de 1899, p. 14. Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=353280&PagFis=1, acesso em: 12.12.2019.
    http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader...
    ).
  • 2
    […]a mode of fine discrimination, turning his readers into connoisseurs of his contrariness.
  • 3
    Da editora Merthuen e Co., disponibilizada pelo Projeto Gutenberg em 1998.
  • 4
    common to both works is a heightened sense of aestheticism as conveyed in lush poetic descriptions of sensual decorative detail and scenic surroundings. They are steeped in the Wildean ethos of symbolism and nihilism, intermingling eroticism and death, love and murder, in a manner redolent of fin-de-siècle decadence. In their disturbing psychological complexities, glazed over but never concealed by rich aesthetic surfaces, they are anxious portraits of the tormented and divided modern subject. (Lee, 34Lee, Sherry D. A Florentine Tragedy, or woman as mirror. Cambridge Opera Journal, nr 18, v1, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p.33–58.).

Referências

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  • Wilde, Oscar. O retrato de Dorian Gray Tradução de José Eduardo Ribeiro. Porto Alegre: L&PM, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2020
  • Aceito
    06 Dez 2020
  • Publicado
    Jan 2021
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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