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O Debate Legislativo sobre Aborto e Diversidade Sexual e as Eleições de 2018: Uma Mirada Antropológica Sobre a Onda Conservadora

The Legislative Debate on Abortion and Sexual Diversity in the 2018 Elections: An Anthropological Look at the Conservative Wave

Le Débat Législatif Sur l’Avortement et la Diversité Sexuelle aux Elections de 2018: Un Regard Anthropologique sur la Vague Conservatrice

El Debate Legislativo sobre Aborto y Diversidad Sexual en las Elecciones de 2018: Una Mirada Antropológica Sobre la Onda Conservadora

Resumo

O artigo aborda o debate sobre aborto e diversidade sexual em três instâncias do Poder Legislativo no ano das eleições de 2018: a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é analisar quais referências aos temas do aborto e da diversidade sexual foram vinculadas a candidatos e partidos, entendendo que o resultado das eleições concretizou a onda conservadora. Em pesquisa qualitativa, usando metodologia de análise de discurso, são examinados pronunciamentos levantados nos mecanismos de busca das casas legislativas através de palavras-chaves. Também são analisados materiais de campanha produzidos por lideranças evangélicas. Aborto e diversidade sexual informam elementos acionados em disputas discursivas no campo político polarizado: conservadores e religiosos incluem aborto e “ideologia de gênero” em suas estratégias de acusação, enquanto a defesa da diversidade e de minorias e a denúncia de fake news são mote do lado progressista.

aborto; diversidade sexual; debate legislativo; eleições 2018; onda conservadora

Abstract

The article addresses the debate on abortion and sexual diversity in three instances of the Legislative Branch in the 2018 election year: the House of Representatives, the Federal Senate, and the Legislative Assembly of the state of Rio de Janeiro. The goal is to analyze which references to abortion and sexual diversity were linked to candidates and parties, considering that the election results solidified the conservative wave. In qualitative research, we use discourse analysis methodology to examine statements searched in the legislative houses’ search engines through keywords. We also analyzed campaign materials produced by evangelical leaders. Abortion and sexual diversity report elements used in discursive disputes in a polarized political arena: conservatives and religious groups include abortion and “gender ideology” in their accusation strategies. At the same time, the progressive side protects diversity and minorities and denounces fake news.

abortion; sexual diversity; legislative debate; 2018 elections; conservative wave

Résumé

L’article aborde le débat sur l’avortement et la diversité sexuelle dans trois instances du pouvoir législatif, l’année des élections de 2018 : la Chambre des Députés, le Sénat Fédéral et l’Assemblée Législative de l’État de Rio de Janeiro. L’objectif est d’analyser quelles références aux thèmes de l’avortement et de la diversité sexuelle étaient liées aux candidats et aux partis, sachant que le résultat des élections matérialisait la vague conservatrice. Dans la recherche qualitative, utilisant la méthodologie d’analyse du discours, les déclarations émises dans les moteurs de recherche des chambres législatives sont examinées à l’aide de mots-clés. Le matériel de campagne produit par les dirigeants évangéliques est également analysé. L’avortement et la diversité sexuelle informent des éléments déclenchés dans les disputes discursives du champ politique polarisé : conservateurs et religieux incluent l’avortement et « l’idéologie de genre » dans leurs stratégies accusatrices, tandis que la défense de la diversité et des minorités et la dénonciation des fake news sont la devise du camp progressiste.

avortement; diversité sexuelle; débat législatif; élections de 2018; vague conservatrice

Resumen

El artículo aborda el debate sobre el aborto y la diversidad sexual en tres instancias del Poder Legislativo en el año de elecciones de 2018: la Cámara de los Diputados, el Senado Federal y la Asamblea Legislativa del Estado de Rio de Janeiro. El objetivo es analizar cuáles referencias a los temas del aborto y la diversidad sexual fueron vinculados a candidatos y partidos, entendiendo que el resultado de las elecciones concretizó la onda conservadora. Por medio de una investigación cualitativa y usando metodología de análisis del discurso, son examinados pronunciamientos que se encuentran en los mecanismos de búsqueda de las casas legislativas a través de palabras clave. También son analizados materiales de campaña producidos por los grupos evangélicos. Los temas de aborto y diversidad sexual evidencian elementos activados en disputas discursivas en un campo político polarizado: conservadores y religiosos incluyen aborto e “ideologia de género” en sus estrategias de acusación, mientras que la defensa de la diversidad y de minorías y la denuncia de fake news son lemas del lado progresista.

aborto; diversidad sexual; debate legislativo; elecciones 2018; onda conservadora

Introdução

Este artigo examina como os temas do aborto e da diversidade sexual foram associados às eleições de 2018 em discursos proferidos por parlamentares de três casas legislativas: Senado, Câmara e Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Serão considerados discursos de parlamentares (senadores/as e deputados/as federais e estaduais), estratégia que possibilita analisar eventos significativos em uma temporalidade curta, como é o caso do ano eleitoral, uma vez que expressam opiniões, posicionamentos e valores de quem os proferiu. O objetivo é analisar quais referências aos temas do aborto e da diversidade sexual foram vinculadas a quais candidatos e partidos, tendo em vista as articulações políticas na construção dos discursos e o resultado das eleições como concretização da chamada “onda conservadora”. A comparação entre Câmara, Senado e ALERJ proporciona correlações significativas sobre o avanço da onda conservadora e suas especificidades nacionais e regionais. A Câmara é a principal caixa de ressonância desse debate, que tem repercutido menos no Senado. Na ALERJ, pode-se observar o alinhamento do cenário estadual ao federal.

O levantamento foi realizado mediante o uso dos mecanismos de busca no portal de cada casa legislativa1 1 . O levantamento foi realizado como parte do projeto “Aborto e diversidade sexual no debate público sobre direitos humanos no Brasil: estatuto do nascituro, ‘ideologia de gênero’ e cura gay na interface natureza/cultura, direito e religião”, agraciado com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq para Naara Luna. Agradecemos aos assistentes de pesquisa Thaynara de Lima Alves (bolsa PIBIC CNPq), pelo levantamento na Câmara de Deputados, e Renan Benevides Chiletto (FAPERJ), pelo levantamento no Senado Federal e na ALERJ no ano de 2018. Agradeço também a Amanda Neves Fiusa Dias pelo trabalho na localização das referências dos discursos. . Foram apurados discursos contendo palavras-chave que são empregadas, com frequência, no debate sob exame2 2 . Para a temática do aborto, foram consideradas as palavras-chave “aborto” e “nascituro”. Para a de diversidade sexual foram consideradas as seguintes: “LGBT”, “orientação sexual”, “homossexual”, “homossexuais”, “homossexualidade”, “homossexualismo”, “gay”, “gays”, “homofobia”, “bissexual”, “bissexuais”, “bifobia”, “lésbica”, “lésbicas”, “lesbofobia”, “transgênero”, “transgêneros”, “transexual”, “transexuais”, “travesti”, “travestis”, “transfobia”, “união homoafetiva”, “opção sexual” e “ideologia de gênero”. , considerando todos os meses de 2018. Uma palavra-chave em especial é “ideologia de gênero”, concebida como categoria de acusação ( Luna, 2017Luna, Naara.. (2017), “A Criminalização da ‘Ideologia de Gênero’: uma Análise do Debate sobre Diversidade Sexual na Câmara dos Deputados em 2015”. Cadernos Pagu, v. 50, pp. e175018. ). No eixo temático referente a aborto, foram localizados 48 discursos na Câmara, 6 no Senado e 6 na ALERJ. Um número significativamente maior foi localizado referente à temática da diversidade sexual: 153 pronunciamentos na Câmara, 6 no Senado e 14 na ALERJ. Na impossibilidade de mostrar todos os discursos apurados dentro dos limites de extensão deste artigo, foi utilizado o critério de selecionar os que mencionavam o embate eleitoral ou que faziam referência aos candidatos. Assim, são efetivamente citados 48 discursos da Câmara, 3 proferidos no Senado e 11 na ALERJ.3 3 . O apêndice no final do artigo mostra o corpus utilizado com a totalidade dos discursos. Trata-se de pesquisa qualitativa, que emprega como metodologia a análise de discurso, considerando como o texto “funciona diante de um determinado contexto social e histórico” (Capelle et al., 2003:13).

Vale apontar alguns antecedentes desses debates. Em 2010, a posição sobre o aborto virou um indicador da moralidade dos candidatos às eleições presidenciais, com ataques e acusações dirigidos à candidata do PT, Dilma Rousseff. Há uma produção que analisa a dinâmica desse período eleitoral em si, como Machado (2012)Machado, Maria das Dores. (2012), “Aborto e Ativismo Religioso nas Eleições de 2010”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 7, pp. 25-54. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0103-33522012000100003>.
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, que explora a relação com o tema do aborto, e Luna (2014)Luna, Naara. (2014), “A Controvérsia do Aborto e a Imprensa na Campanha Eleitoral de 2010”. Cadernos CRH, v. 27, n. 71, pp. 367-391. , que discute como este tema se tornou uma polêmica na cobertura das eleições presidenciais de 2010. Natividade (2016)Natividade, Marcelo. (2016). Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro, Garamond. analisa as percepções da diversidade sexual também nessas eleições de 2010, revelando reações religiosas e como o tema foi “demonizado”.

Considerando as manifestações na Câmara dos Deputados e na ALERJ acerca do aborto ( Luna, 2019Luna, Naara.. (2019), “O Debate sobre Aborto na Câmara de Deputados no Brasil entre 2015 e 2017: Agenda Conservadora e Resistência”. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 33, pp. 207-272. DOI: <https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.33.12.a>.
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; Luna e Owsiany, 2019Luna, Naara; Owsiany, Laryssa. (2019), “Aborto e Luta por Direitos Humanos na ALERJ: Religiosos e Feministas em Disputa”. Religião & Sociedade, v. 39, n. 2, pp. 49-77. ) e a articulação do movimento antigênero no Legislativo (Rezende, Ávila e Teixeira, 2020), o quadriênio iniciado em 2015, e seu desenrolar até 2017, sinalizou a consolidação do avanço conservador no debate legislativo. Conforme explicitado nessas pesquisas e em anteriores ( Machado, 2015Machado, Maria das Dores. (2015), “Religião e Política no Brasil Contemporâneo: uma Análise dos Pentecostais e Carismáticos Católicos”. Religião & Sociedade, v. 35, n. 2, pp. 45-72. ; Machado, 2017Machado, Lia Zanotta. (2017), “O Aborto Como Direito e o Aborto Como Crime: o Retrocesso Neoconservador”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e17504. DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/18094449201700500004>.
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; Natividade, 2016Natividade, Marcelo. (2016). Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro, Garamond. ), diversos segmentos marcados pela presença de militantes ligados a instituições religiosas se colocavam contra o avanço dos direitos LGBT e da pauta feminista, especialmente no tocante ao direito ao aborto legal, o que constituiu um ativismo religioso conservador no qual se destacam a aliança entre evangélicos e católicos4 4 . Vale considerar que, em relação ao aborto, há nuances nos posicionamentos públicos de algumas instituições do campo cristão, que mesmo reafirmando o “valor da vida” ( Gomes e Menezes, 2008 ) admitem o abortamento em determinadas situações, conforme discutido por Gomes (2009) , em particular, os da Renovação Carismática ( Luna, 2017Luna, Naara.. (2017), “A Criminalização da ‘Ideologia de Gênero’: uma Análise do Debate sobre Diversidade Sexual na Câmara dos Deputados em 2015”. Cadernos Pagu, v. 50, pp. e175018. ; Machado, 2015Machado, Maria das Dores. (2015), “Religião e Política no Brasil Contemporâneo: uma Análise dos Pentecostais e Carismáticos Católicos”. Religião & Sociedade, v. 35, n. 2, pp. 45-72. , 2017Machado, Lia Zanotta. (2017), “O Aborto Como Direito e o Aborto Como Crime: o Retrocesso Neoconservador”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e17504. DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/18094449201700500004>.
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; Vaggione, 2017Vaggione, Juan Marco. (2017), “La Iglesia Católica Frente a la Política Sexual: la Configuración de una Ciudadanía Religiosa”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e175002. DOI: <https://doi.org/10.1590/18094449201700500002>.
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). Assim, parlamentares com identidade religiosa pública são os atores mais visíveis, embora o campo não se limite a eles. A presença de mulheres é reduzida, talvez menor do que sua proporção nas casas legislativas (Miguel, Biroli e Mariano, 2017)5 5 . Artigo de Miguel, Biroli e Santos (2017) sobre o direito ao aborto no Legislativo brasileiro revela a presença menor de mulheres entre parlamentares que discursam sobre o tema na Câmara dos Deputados (1991-2016). Isso sugere que a presença menor de falas de mulheres em 2018 não é um dado casual, nem mero resultado da menor proporção de mulheres no Parlamento. . A defesa da família é a principal justificativa acionada por esses segmentos.

Nota-se que o ano eleitoral de 2018 adquiriu uma dinâmica própria nas casas legislativas. Além do debate rotineiro com reações contra o dito ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao aborto e à crítica a manifestações LGBT consideradas desrespeitosas, a retórica de defesa da família grassa por meio da categoria acusatória “ideologia de gênero” – que marcou da mobilização antigênero. O termo assumiu centralidade nos discursos dos parlamentares, embora a construção de sua incorporação no linguajar cotidiano já estivesse disseminada6 6 . Vale lembrar os acontecimentos, então recentes, ocorridos em 2017, em torno desse debate: cancelamento da exposição QueerMuseu, em Porto Alegre; as polêmicas envolvendo nudez no Museu de Arte de São Paulo; e a controvérsia no âmbito da visita de Judith Butler ao país, acusada por grupos religiosos conservadores de promover “ideologia de gênero”. Segundo Butler, “Não sei ao certo que poder foi conferido à palestra sobre gênero que se imaginou que eu daria. Deve ter sido uma palestra muito poderosa, já que, aparentemente, ela ameaçou a família, a moral e até mesmo a nação”. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573806-judith-butler-escreve-sobre-sua-teoria-de-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil >. . Segundo Kuhar e Paternotte, o termo “ideologia de gênero” foi criado “para contestar o ativismo pró-direitos de mulheres e da população LGBT, bem como os estudos que desconstroem pressupostos essencialistas e naturalizantes a respeito do gênero e da sexualidade” (apud Rezende et al., 2020Rezende, Daniela Leandro; Avila, Luciana Beatriz; Oliveira, Camila. (2020), “Cidadania Religiosa e Movimentos Antigênero na Câmara dos Deputados Brasileira: uma Análise dos Discursos de Legisladores/as, 2014-2017”. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCAR, v. 10, n. 2, pp. 585-612.: 588)7 7 . Para uma genealogia da expressão “ideologia de gênero” ver Junqueira (2018) , que localiza a primeira vez que o termo foi utilizado em uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideologia de género: sus peligros y alcances, produzida pelo ultraconservador monsenhor Oscar Alzamora Revoredo. Disponível em < https://www.koinonia.org.br/tpdigital/uploads/Ideologia-de-Genero-KN_out_2018.pdf >. .

A característica fundamental de 2018 foi a polarização política; porém, não mais a polarização entre PT e PSDB ( Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. ). O acirramento da polarização política relaciona-se ao recrudescimento do antipetismo, ao ressurgimento de temores anticomunistas, à disseminação de pânicos morais provocados por notícias falsas, ao repúdio à classe política, e ao enfraquecimento das candidaturas de centro e centro-direita. Assim, a eleição se tornou um plebiscito sobre o PT e seus líderes, o que abriu espaço para a extrema-direita arregimentar os votos antipetistas, anticorrupção e antissistema político ( Mariano e Gerardi, 2019Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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: 69). Machado e Miskolci alertam sobre o papel das redes sociais na construção dessa polarização, pois, além de gerar bolhas de opinião e possibilitar a disseminação notícias falsas, elas permitem a privatização da política e a sua inserção em uma gramática moral (2019:950).

A dinâmica própria do ano eleitoral passa também pela conformação de candidaturas e pelo modo como estas são associadas a tais temas nas campanhas para o Legislativo e Executivo. Assim, parlamentares serão identificados no texto por partido e estado (no Senado e na Câmara). Quando possível, o pertencimento religioso8 8 . Segundo Nicolau (2014) , sexo, idade, escolaridade e religião são variáveis exploradas pela literatura sobre comportamento eleitoral nas democracias tradicionais e no Brasil. será indicado, uma vez que essa variável tem repercutido nas preferências eleitorais – em particular, quando questões relacionadas a direitos reprodutivos e sexualidade são consideradas. Por serem importantes para a identificação de posicionamentos de parlamentares sobre aborto e diversidade sexual, serão incorporados à análise materiais de campanha produzidos por lideranças evangélicas. Nesse sentido, a análise das ações e discursos empreendidos por parlamentares nas casas legislativas, em 2018, é relevante para identificar como foram acionados os temas abordados e de que forma impactaram no processo eleitoral9 9 . Os discursos foram coletados a partir dos seguintes meios oficiais: Diário da Câmara dos Deputados (DCD), Diário do Senado Federal (DSF) e Diário do Congresso Nacional (DCN). No caso específico do Rio de Janeiro, o acesso aos discursos foi realizado por meio do site oficial da Assembleia Legislativa (SOAL). .

Vislumbrando as eleições: preâmbulos do período eleitoral nas casas legislativas

Durante o primeiro semestre de 2018 foram poucas as alusões diretas à campanha eleitoral nos discursos proferidos nas casas legislativas. As eleições aparecem indiretamente nos comentários acerca da prisão do ex-presidente Lula, candidato do PT à presidência. São também embutidas questões como aborto e pedofilia, no sentido de marcar distinção, dando sequência à construção do “outro”, do inimigo público ( Schmitt, 2015Schmitt, Carl. (2015), O Conceito do Político. Edições 70, Lisboa. ), por uma via discursiva político-moral na qual este é construído como impuro, criminoso e imoral. Os discursos estão aqui organizados em ordem cronológica para se avaliar o desenrolar da argumentação ao longo dos acontecimentos daquele ano, separados também por casa legislativa: Senado, Câmara dos Deputados e ALERJ.

No Senado, a primeira fala localizada foi o pronunciamento de Magno Malta (PR-ES), evangélico batista10 10 . Será informada a religião do/a parlamentar na primeira menção no artigo, sempre que for identificada. Conforme dito de início, identidade religiosa pública é uma característica de várias pessoas envolvidas no debate. , em 5 de fevereiro. O senador abordou a CPI dos Maus-tratos Infantis e um caso de pedofilia que ocorreu nos Estados Unidos. Contrastando com o Brasil, afirmou que aqui eles são defendidos, inclusive, por parlamentares. Comentou uma imagem, adulterada e veiculada em mídias sociais, na qual figurava a Deputada Maria do Rosário11 11 . Foi constatado, depois, que a foto da Deputada Maria do Rosário e do Deputado Jean Wyllys foi editada para acusá-los de defender a pedofilia. Disponível em < https://veja.abril.com.br/blog/me-engana-que-eu-posto/jean-wyllys-e-maria-do-rosario-querem-descriminalizar-pedofilia >. : “Eu vi até uma placa, a Deputada Maria do Rosário com uma placa na mão – Deputada Maria do Rosário, Senadora Kátia: ‘Pedofilia não é crime’. E o que é que é então?” (Brasil, DSF , 06/02/2018, p. 36). Para finalizar seu discurso, opinou sobre a condenação do ex-presidente Lula pelo TRF4, por 3 votos a 012 12 . O senador se refere à rejeição do recurso contra a condenação de Lula, pelo Juiz Sérgio Moro, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do apartamento triplex de Guarujá. A decisão foi tomada pelo TRF4 em 24/01/2018. “Em decisão unânime, tribunal condena Lula em segunda instância e aumenta pena de 9 para 12 anos”. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/julgamento-recurso-de-lula-no-trf-4-decisao-desembargadores-da-8-turma.ghtml >. . Para ele, esse placar representa aqueles que: “defendem o nascituro”, “não querem conviver com a ideologia de gênero, incesto, com direitos humanos” (Brasil, DSF , 06/02/2018, p. 38), assim como os “brasileiros que não querem conviver com homens de dezessete anos, dezoito, catorze, quinze, dezesseis que estupram, sequestram e matam e são tratados como crianças por essa gente” (Brasil, DSF , 06/02/2018, p. 39). Termina seu discurso dizendo: “O meu desejo, Senador Elmano, é que em 2019 o Brasil eleja um Presidente da República que, ao tomar posse, mande a embaixada do Brasil para Jerusalém. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei aquele que te amaldiçoarem” (Brasil, DSF , 06/02/2018, p. 39).

O discurso de Malta foi um dos raros a empregar vocabulário religioso explícito ligando nomes de candidatos e acusação de “ideologia de gênero”. Embora menos frequente, no material examinado adiante aparecem outras menções à pedofilia por parte de parlamentares religiosos, ou de religiosos empreendedores morais ( Becker, 2008Becker, Howard. (2008), Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. ). Pedofilia tem sido associada a acusações de “ideologia de gênero” e sexualização infantil, como na crítica ao material de combate à homofobia desenvolvido pelo Ministério da Educação no governo da presidente Dilma Rousseff, apelidado pejorativamente de kit gay (Vital da Cunha e Lopes, 2013; Balieiro, 2018Balieiro, Fernando de Figueiredo. (2018), “Não se Meta com Meus Filhos”: a Construção do Pânico Moral da Criança Sob Ameaça”. Cad. Pagu, v. 53, pp. e185306. DOI: <https://doi.org/10.1590/18094449201800530006>.
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).

Na Câmara dos Deputados também ocorreu tal vinculação. O discurso do deputado Lincoln Portela (PRB-MG), pastor da Igreja Batista, proferido em 27 de fevereiro, “alerta às comunidades cristã e evangélica em relação a candidatos em campanha nas igrejas”, dado que os candidatos “votam a favor do aborto” e “trabalham a ideologia de gênero”, sendo “os primeiros a massacrarem as igrejas evangélicas”. Por fim, sinaliza que “Jesus Cristo é o Senhor” (Brasil, DCD , 28/02/2018, p. 130). Sua fala é orientada para eleitores evangélicos, com ênfase na pauta de costumes, e assume a retórica de perseguição ao alertar contra candidatos vistos como inimigos da moral cristã. Tal retórica tem sido acionada por lideranças de igrejas evangélicas como defesa contra acusações provenientes de outros segmentos sociais, de intolerância/racismo religioso, lgbtqia+fobia, charlatanismo, operações fraudulentas, entre outras, e atua como motor que impulsiona a retórica da superação ou vitória ( Gomes, 2011Gomes, Edlaine (2011), A Era das Catedrais: a Autenticidade em Exibição (Uma Etnografia). Rio de Janeiro, Garamon; FAPERJ. )13 13 . Está expressa nesse processo a junção entre “teologia do domínio” e “teologia da prosperidade” (cf. Vital da Cunha e Evangelista, 2019), na qual se assume o trecho bíblico “o governo de Deus sobre todas as nações” e a percepção que não cabe ao “crente” uma vida de sofrimento, mas sim que seja próspera “no mundo” – conquista a ser efetivada por meio de disciplina e da disposição em colocar a “fé em ação” em todas as esferas sociais e individuais ( Gomes, 2011) . .

No Senado, em 13/03/2018, a senadora Marta Suplicy (MDB-SP) cumprimentou o STF por reconhecer o direto de pessoas trans retificarem o nome em seus documentos sem a necessidade de passarem por uma cirurgia de redesignação sexual – como previsto no Projeto de Lei N° 658/2011 de sua autoria – e o STJ por permitir que pessoas trans se candidatassem com o nome escolhido por elas, bem como por serem contabilizadas nas cotas de gênero. Trata-se de raro discurso de comemoração do avanço progressista no tocante à pauta de gênero, indicando o STF como agente favorável (Brasil, DSF , 13/03/2018, p. 37).

Na ALERJ, em 03 de abril, o Deputado Jânio Mendes (PDT), católico, iniciou seu discurso comentando sobre a declaração do General de Exército da reserva, Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, que disse que se STF permitisse a candidatura à Presidência da República do ex-presidente Lula e se este fosse eleito, a alternativa seria aplicar uma intervenção militar14 14 . Disponível em < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2018/04/03/stf-pode-ser-indutor-de-violencia-diz-general-da-reserva.htm >. . Afirmou que essa declaração era uma “violência à Constituição da República” e que “qualquer que seja o resultado da Suprema Corte amanhã, há que ser respeitado por todos os setores da sociedade”. Repudiou a declaração do Ministro Barroso, de que a Constituição deve ser interpretada de acordo com o clamor das ruas, afirmando que: “Não. A Constituição deve ser cumprida”, e completou afirmando que só os Legisladores podem reformar a Constituição. A defesa da Constituição também baseia suas críticas ao posicionamento do STF sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, manifestada em outros discursos (Rio de Janeiro, SOAL , 03/04/2018).

Se a declaração do deputado foi ambígua acerca da candidatura de Lula, em contraste, seu discurso foi totalmente empenhado no combate à descriminalização do aborto. Ele aproveitou uma declaração do ministro Roberto Barroso para questioná-lo introduzindo o tema do aborto – objeto de sua militância – e questionando as interpretações da Constituição Federal pelo STF, que iriam contra os legisladores (o Congresso Nacional) e o que ele considerava ser a vontade popular. Dizer-se seguindo a vontade popular é retórica consagrada do segmento antiaborto ( Luna, 2019Luna, Naara.. (2019), “O Debate sobre Aborto na Câmara de Deputados no Brasil entre 2015 e 2017: Agenda Conservadora e Resistência”. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 33, pp. 207-272. DOI: <https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.33.12.a>.
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).

A prisão do ex-presidente Lula, então líder das pesquisas de intenção de voto, ocorreu em 07 de abril de 2018, após condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e constitui um dos principais fatos a afetar o campo político no ano eleitoral ( Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. ; Mariano e Gerardi, 2019Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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)15 15 . Discutir o processo extremamente complexo que levou à condenação do presidente Lula está fora do escopo deste artigo. Para a análise do processo judicial e suas consequências ver Botelho e Peruzzo (2018) no tocante à suspeição do juízo. O livro inteiro organizado por Proner, Cittadino, Ribocom e Dornelles (2018) trata do processo. Sobre a cobertura da imprensa, ver Gobatto (2019) . . A repercussão da prisão será aqui examinada nas casas legislativas apenas à medida que parlamentares o relacionaram aos temas do aborto e da diversidade sexual.

No âmbito federal, o deputado Ezequiel Teixeira (PODE-RJ), pastor evangélico da Igreja Projeto Vida Nova, em discurso no dia 10 de abril, citou trechos da crônica sobre a prisão do ex-presidente Lula, assinada por Ricardo Ribeiro – jornalista cristão da Associação dos Jornalistas do Estado de São Paulo (AJESP):

Quando eu vi o Lula apoiar o aborto de inocentes, eu disse a Deus: Faz justiça, Senhor!

Quando eu vi o levantar a bandeira LGT (sic) [LGBT] e apoiar casamento gay, eu disse a Deus: Faz justiça, Senhor!

Quando eu vi o Lula ameaçar prender pastores e padres por não aceitarem as práticas homoafetivas, eu disse a Deus: Faz justiça, Senhor! Quando eu vi o Lula liberar 300 milhões de reais para paradas gays, enquanto dizia não ter recursos para saúde, segurança e educação, eu disse a Deus: Faz justiça, Senhor! [...]

E hoje, quando eu vi o Lula preso na Polícia Federal, meus olhos se encheram de lágrimas e lembrei o que disse Jesus em Mateus, capítulo 5: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

E assim eu disse: Obrigado, Senhor, por tua justiça, reto Juiz dos juízes.

Engana-se quem acha que a Lava-Jato começou em Curitiba. A Lava-Jato começou no céu de justiça plena (Brasil, DCD , 11/04/2018, p. 282).

O deputado leu esse texto como uma interpretação da prisão do ex-presidente calcada em uma teodiceia ( Weber, 1982Weber, Max. (1982), “A Psicologia Social das Religiões Mundiais”, in: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, pp. 309-346. ): Lula teria recebido a justa retribuição divina por supostamente ter apoiado práticas condenadas pelo jornalista cristão, o que é endossado no discurso do deputado.

Outro tema levantado nos discursos se refere ao vínculo de Lula com políticas antidiscriminação e pró-diversidade. Muitas reações contrárias à prisão de Lula mencionaram o tema da diversidade sexual. O primeiro exemplo compara a prisão de Lula à detenção arbitrária de categorias sociais discriminadas: negros, mulheres e gays. Em 12 de abril, na ALERJ, a deputada estadual Enfermeira Rejane (PCdoB) levantou questionamentos acerca da democracia brasileira e da constitucionalidade da prisão do ex-presidente Lula. Iniciou seu discurso dizendo que a democracia brasileira vem sendo colocada “em xeque” desde o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, acrescentando comentário sobre o processo midiático e jurídico na condenação do ex-presidente Lula, qualificado como “um conluio da Rede Globo e da mídia com o Judiciário” (Rio de Janeiro, SOAL , 12/04/2018). Isso porque, mesmo sem provas, a mídia afirmou que o ex-presidente era culpado, e porque o Judiciário sobrepôs-se à Constituição ao condenar Lula à prisão ainda cabendo recursos à condenação – agindo, portanto, inconstitucionalmente. Gays são mencionados em exemplo sobre a sobreposição de poderes à Carta Magna no tocante à prisão em segunda instância:

Até porque, Sr. Presidente, se hoje estão votando diferente, amanhã pode simplesmente o Judiciário decidir o seguinte: vamos prender todos os negros que existem no país; vamos prender todas as mulheres; vamos prender todos os gays, porque ninguém tem que respeitar a lei, nenhuma. Se o Judiciário decidir que a 2ª instância é o momento de prender alguém, rasga a Constituição. Rasga os Poderes, porque, infelizmente, isso tem um nome: fascismo, que é quando um Poder decide por todos os outros.

Na mesma direção, a maior parte das menções favoráveis ao ex-presidente Lula na Câmara Federal foi relacionada às políticas de inclusão promovidas por seu governo. A deputada Erika Kokay (PT-DF), em 26 de abril, declarou: “foi o Governo Lula que criou o Programa Brasil sem Homofobia para que este país pudesse permitir o amor, para que ninguém tivesse que carregar hematomas na alma ou na pele por amar” (Brasil, DCD , 27/04/2018, p. 30). Em outro discurso, em 17 de maio, a mesma deputada recordou que “Luiz Inácio Lula da Silva ousou fazer um programa multissetorializado para combater a homofobia no Brasil”, lembrando que a data é o dia mundial de combate à LGBTfobia:

Dia 17 de maio, retirou-se a homossexualidade do código internacional de doenças. E ainda hoje setores obscurantistas, fundamentalistas, que estão na gênese do golpe que foi imposto a este país, tentam falar em ‘cura gay’, como se fosse doença a homossexualidade e não uma forma de expressão da sexualidade, já pontuada por Freud, algo que sempre existiu na história da humanidade (Brasil, DCD , 17/05/2018, p. 32).

Em 7 de junho, outra deputada federal do PT, Luizianne Lins (PT-CE), mencionou em seu discurso o lançamento da pré-candidatura do ex-presidente Lula à sucessão presidencial. A parlamentar denunciou o golpe que demoveu “uma presidente legitimamente eleita” do governo e afirmou que o motivo por trás seria impedir Lula de disputar as eleições de 2018: “dois anos depois que começa o golpe, o Lula é preso de forma injusta, sem provas” (Brasil, DCD , 08/06/2018, p. 78). Ela mencionou “homossexuais” ao descrever o momento em que o povo passou a votar no Lula, “porque o Lula era igualzinho a eles: eles tinham capacidade, sim, de governar este país”, referindo-se a “trabalhadores rurais, mulheres, homossexuais, a população LGBT, as mulheres de forma geral, os homens do campo e da cidade, em especial os jovens, que voltaram a sonhar com um Brasil melhor” (Brasil, DCD , 08/06/2018, p. 79).

A temática pró-diversidade apareceu com referência a outro candidato à presidência, ressaltando a igualdade de direitos. O deputado federal Beto Mansur (MDB-SP), discursando em 19 de junho, defendeu a candidatura de Henrique Meirelles (MDB) à Presidência da República. Mansur afirmou que “a sociedade quer igualdade de direitos das mulheres, dos homens, dos homossexuais, de quem quer que seja” (Brasil, DCD , 20/06/2018, p. 259).

A campanha no segundo semestre e os discursos sobre aborto e diversidade sexual

A associação entre o posicionamento antiaborto e a campanha eleitoral também se estendeu à demanda por votos no Legislativo – diante da premência da disputa eleitoral para o Congresso Nacional para as duas Casas, Senado e Câmara Federal –, bem como para as Assembleias Estaduais. Tais associações passaram a ocorrer a partir do início do segundo semestre, com a definição dos candidatos das legendas entre 5/07 e 7/08, conforme os prazos do TSE16 16 . Confira o calendário oficial do Tribunal Superior Eleitoral: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/calendario-eleicoes-2018/rybena_pdf?file=http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/calendario-eleicoes-2018/at_download/file .

A audiência pública da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ação movida no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PSOL, que visa a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação, gerou reações contundentes. Na ALERJ, o deputado estadual Márcio Pacheco (PSC), católico ligado à Renovação Carismática, se posicionou duas vezes contra a ADPF. Sua posição antiaborto conduziu seu discurso sobre as eleições que se aproximavam, convocando os eleitores a votarem apenas em candidatos “pró-vida”; isto é, contra a legalização do aborto. No dia 2 de agosto, teceu críticas ao PSOL e ao STF ao apresentar a moção de repúdio à ADPF 442, afirmando que a maioria dos deputados a assinou e marcaram posição: “Não ao aborto”. O deputado acusou o STF de ativismo jurídico e disse que, ao decidir sobre o direito de escolha da mulher, estaria se sobrepondo ao direito constitucional à vida (Rio de Janeiro, SOAL , 02/08/2018).

Em fala fundamentada na biologia sobre a existência de direitos legais para o embrião, o deputado afirmou que “esse embrião, desde a concepção, com seu DNA intacto, absolutamente independente, resguardado no ventre, já detém direitos. E direitos previstos na legislação”. Criticou também a Audiência Pública promovida pelo STF para discutir a descriminalização do aborto, afirmando que a maioria dos que discursariam eram favoráveis à descriminalização. Ele também denunciou que o PSOL ajuizou a ADPF porque o Supremo Tribunal Federal, infelizmente, parece, em sua maioria, não acreditar que a vida começa no ventre”. Para finalizar, chamou atenção para o seu direito, enquanto cidadão cristão, de ser contrário ao aborto:

Não se trata de uma bandeira religiosa, mas que bom que ela ainda existe, que bom que as igrejas estão falando. Porque as igrejas não são formadas de anjos e santos; são formadas por cidadãos que também têm direitos e que também podem se manifestar, não por causa da sua fé, mas porque são cidadãos que acreditam num povo que defenda a vida. Ainda bem que existe a União dos Juristas Católicos, a União dos Juristas Evangélicos, a União Espírita, a União dos Homens e Mulheres Ateus, que acreditam na vida, com ou sem religião! Ainda bem! (Rio de Janeiro, SOAL , 02/08/2018).

Os bispos do Regional 1 da CNBB publicaram um manifesto contrário à ADPF 442, convocando os católicos e todas as pessoas que desejavam “um país democrático, pacífico e protetor da vida a se posicionarem contrários ao que está sendo proposto através desta medida judicial”17 17 . O manifesto está disponível em < http://diocesepetropolis.com.br/mobilizacao-da-igreja-contra-a-descriminalizacao-do-aborto-no-brasil.html >. . Tal manifesto orientava seus fiéis a participarem de um ato público: que todas as igrejas do Estado do Rio de Janeiro tocassem seus sinos no dia 02/08, às 15 horas. O Deputado Márcio Pacheco relatou ter participado do ato e solicitou que os cidadãos votassem apenas em candidatos favoráveis à vida:

Eu conclamo esta nação a não votar em ninguém que defenda a morte, e faço isso como cidadão, porque eu tenho o direito de falar, eu tenho o direito de me expressar. Espero, senhores e senhoras, que o Brasil acorde com o sinal dos sinos e que os ministros do Supremo acordem amanhã pensando que um dia estiveram no ventre e só chegaram aonde chegaram porque tiveram o direito de nascer (Rio de Janeiro, SOAL , 02/08/2018).

O deputado defendeu o direito de manifestação para pessoas religiosas, aspecto relacionado à concepção de Estado laico adotada por esses grupos ( Mariano, 2011Mariano, Ricardo. (2011), “Laicidade à Brasileira: Católicos, Pentecostais e Laicos em Disputa na Esfera Pública”. Civitas, v. 11, n. 2, pp. 238-258. ). O apelo de parlamentares que defendem a bandeira antiaborto visa a eleitores/as com voto pró-vida, mobilização característica do ativismo religioso conservador, assim como a denúncia da cultura da morte associada ao aborto ( Vaggione, 2017Vaggione, Juan Marco. (2017), “La Iglesia Católica Frente a la Política Sexual: la Configuración de una Ciudadanía Religiosa”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e175002. DOI: <https://doi.org/10.1590/18094449201700500002>.
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). Tanto as organizações citadas como os eleitores representam o exercício da cidadania religiosa ( Vaggione, 2017Vaggione, Juan Marco. (2017), “La Iglesia Católica Frente a la Política Sexual: la Configuración de una Ciudadanía Religiosa”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e175002. DOI: <https://doi.org/10.1590/18094449201700500002>.
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).

O combate ao aborto e as posições antidiversidade, em geral expressadas na categoria de acusação “ideologia de gênero”, constituem bordões para captar votos religiosos e conservadores. Na Câmara, o deputado federal Arolde de Oliveira (PSD-RJ), evangélico da Igreja Batista, proferiu um discurso nessa linha em 7 de agosto. Ao anunciar sua candidatura ao cargo de Senador da República, afirmou que continuaria defendendo “os valores que emanam da Bíblia Sagrada pela família, pela vida, contra o aborto, contra a ideologia de gênero, contra a doutrinação nas escolas” (Brasil, DCD, 08/08/2018, p. 179).

Desde que esse discurso emergiu como tema relevante, no final de 2014, em reação às propostas contra discriminação de gênero e orientação sexual no Plano Nacional de Educação, a defesa das crianças e o combate à “ideologia de gênero” foram fortemente associados ( Luna, 2017Luna, Naara.. (2017), “A Criminalização da ‘Ideologia de Gênero’: uma Análise do Debate sobre Diversidade Sexual na Câmara dos Deputados em 2015”. Cadernos Pagu, v. 50, pp. e175018. ).

No tocante à acusação de “doutrinação nas escolas”, há duas tendências que evoluíram de forma independente mas que informam esse discurso. A primeira delas provém do Movimento Escola sem Partido. Inicialmente o foco desse movimento era a crítica à suposta “doutrinação marxista” nas escolas, o que depois confluiu para o combate à chamada “ideologia de gênero” – reação às políticas contra a homofobia e o sexismo nas escolas ( Miguel, 2016Miguel, Luís Felipe. (2016), “Da ‘Doutrinação Marxista’ à ‘Ideologia de Gênero’: o ‘Escola Sem Partido’ e as Leis da Mordaça no Parlamento Brasileiro”. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, pp. 590. ). O resultado disso é a ênfase em um modelo único de família e contrário a diversidade. Movimento posterior com essa última ênfase surgiu no Peru, em 2016: “ Con mis hijos no te metas ” (não se meta com meus filhos), de “oposição a programas educacionais que visassem promover a igualdade de gênero e o respeito às diferenças no currículo escolar” ( Balieiro, 2018Balieiro, Fernando de Figueiredo. (2018), “Não se Meta com Meus Filhos”: a Construção do Pânico Moral da Criança Sob Ameaça”. Cad. Pagu, v. 53, pp. e185306. DOI: <https://doi.org/10.1590/18094449201800530006>.
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, nota 2), e depois se difundiu por países latino-americanos como Argentina, Costa Rica e Colômbia, com suporte de correntes católicas e/ou evangélicas conservadoras ( Araújo, 2020Araújo, Viviane da Silva. (2020), “Não se Meta com Meus Filhos: Gênero, Família e Discurso Conservador na Crise Democrática Latino-americana”. Revista Transversos, n. 18, pp. 86-106. ).

O discurso do deputado federal Givaldo Carimbão (AVANTE-AL), católico (presidente da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana), em 8 de agosto, referente à ADPF 442, apontou em tom de denúncia que “a Ministra do STF, Rosa Weber, tem feito audiências públicas para discutir o aborto. Aborto é competência do Congresso Nacional – é nossa! –, e não do Supremo Tribunal Federal”. Ressalta a importância de que aqueles que “são contra o aborto perguntem ao seu deputado: ‘ O senhor é contra ou é a favor do aborto ?’. Aqueles que são a favor, se você for dessa linha, elejam esses Deputados”. Por fim, anuncia que entrará com um requerimento, junto à bancada católica, para realizar na Câmara um debate sobre o aborto (Brasil, DCD , 09/08/2018, p. 76).

No mesmo período, ocorreram discursos públicos alinhados à diversidade e à candidatura de Lula nas casas legislativas. Na Câmara, Luizianne Lins (PT-CE), em 14 de agosto, incluiu o segmento LGBT entre os grupos apoiando a intenção do registro da candidatura de Lula à presidência, referente a um arco de segmentos discriminados:

Amanhã, com milhares de sem-terra, de sem-teto, de quilombolas, de lideranças populares, de índios, de negros e negras, da população LGBT, da maioria do povo brasileiro, nós vamos fazer a inscrição da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência (Brasil, DCD , 15/08/2018, p. 185).

A data é estratégica, pois o dia 15/08 foi o último para registro de candidatura no TSE. Contudo, em 1º de setembro, com base na Lei da Ficha Limpa, o TSE proibiu a candidatura de Lula. Essa proibição imprimiu novo rumo à dinâmica eleitoral: Jair Bolsonaro passou a liderar as pesquisas de intenção de voto e Fernando Haddad assumiu a cabeça da chapa petista na campanha presidencial ( Mariano e Gerardi, 2019Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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).

Com o decorrer da campanha, ainda antes do primeiro turno das eleições, as menções aos temas do aborto e da diversidade sexual estavam associadas ao candidato Jair Bolsonaro, primeiro colocado nas pesquisas eleitorais. Na ALERJ, os deputados estaduais Waldeck Carneiro (PT) e Wanderson Nogueira (PSOL) fizeram discursos com críticas ao candidato presidencial Jair Bolsonaro, todas alegando que este incitava ódio às minorias sociais: negros, indígenas, mulheres e LGBTs.

Em 26 de setembro, Waldeck Carneiro (PT) discursou sobre a construção do ato contrário à candidatura de Jair Bolsonaro à presidência, o ato “#elenão”. O deputado disse que, no Brasil, vinha crescendo “uma forma de pensamento que se baseia no ódio, na intolerância, que tem uma matriz fascista e emite posições que revelam preconceito contra pobres, negros, mulheres, contra a comunidade LGBT”. Relatou o caso de um jovem homossexual que foi agredido por conta de sua orientação sexual: “pessoas estão se sentindo no direito de julgar e punir outras pessoas por sua confissão religiosa, por sua crença, por sua fé, por sua origem étnico-racial, por sua orientação sexual”. Comentou a cultura do estupro: “há quem acredite e afirme que o estupro parece ser agora uma questão de mérito: há mulheres que merecem ser estupradas e há mulheres que não merecem ser estupradas, ou seja, é uma espécie de meritocracia do estupro”, em alusão a uma fala de Bolsonaro dirigida à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), na qual disse que não a estupraria porque ela não merecia18 18 . Maria do Rosário discursou contra a ditadura militar e em comemoração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, denunciando as práticas de tortura. O deputado Jair Bolsonaro falou na tribuna em seguida, ofendendo a deputada. Cf. reportagem de Fernanda Galgaro, no canal G1, em 9/12/2014: “Bolsonaro repete que não estupra deputada porque ela ‘não merece’”. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/bolsonaro-repete-que-nao-estupra-deputada-porque-ela-nao-merece.html >. . Carneiro justificou ter comentado sobre esses temas por se preocupar com o avanço do fascismo no Brasil. (Rio de Janeiro, SOAL , 26/09/2018).

A campanha ao Legislativo: destaques de material apresentado por lideranças evangélicas

Os temas do aborto e da diversidade sexual foram acionados na campanha eleitoral por parte de lideranças religiosas bastante conhecidas, compartilhando perspectivas adotadas por candidatos que apoiavam e indicavam aos eleitores sob sua influência. Mariano e Gerardi (2019)Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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descrevem como, por volta de setembro de 2018, com o avanço eleitoral de Bolsonaro e de Fernando Haddad (recebendo transferência de votos de Lula), igrejas evangélicas se tornaram bastiões do antipetismo. Bolsonaro passou a ser encarado como o único que poderia vencer o PT e as ameaças atribuídas ao partido: “implantar o comunismo, perseguir os cristãos, abolir o direito dos pais de educar os filhos, reorientar a sexualidade das crianças, destruir a família” (2019:69). Almeida (2019)Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. se pergunta onde e como o “evangelismo” e o conservadorismo se articularam na crise brasileira contemporânea que teve como um dos resultados a eleição de Bolsonaro para a presidência. Ao abraçar a pauta de costumes, Bolsonaro articulou-se com uma “base parlamentar evangélica”, bem como ao eleitor evangélico que sempre foi sensível a essas temáticas. O autor considera que os crentes já haviam migrado para a candidatura de Bolsonaro quando líderes como Edir Macedo, da Igreja Universal, anunciaram seu apoio eleitoral a ele uma semana antes do 1º turno ( Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213.: 202).

O engajamento na campanha eleitoral pode ser ilustrado com o panfleto do Pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Com foto de Malafaia na capa, o material pedia votos para Samuel Malafaia e Sóstenes, candidatos a deputado estadual e federal, respectivamente, ambos pelo partido Democratas (DEM). O panfleto alertava na página interna: “querem destruir a família, legalizar o aborto, ensinar ideologia de gênero, legalizar a pedofilia, legalizar o uso de drogas, transformar seus filhos em comunistas, destruir valores morais e espirituais”. Na página seguinte, eles eram apresentados como deputados na Assembleia Legislativa e na Câmara dos Deputados que vinham “cumprindo a missão de defender nossos valores”, acrescentando o qualificativo: “deputados ficha-limpa”. A capa posterior trazia uma reprodução da cédula eleitoral preenchida somente com os nomes desses candidatos a deputado estadual e a deputado federal. Devemos situar essas candidaturas: ambos são deputados federais desde 2015; Sóstenes Cavalcante é teólogo, pastor e membro da Assembleia de Deus; e Samuel Malafaia é irmão de Silas e pastor da mesma igreja.

Um segundo panfleto de Silas Malafaia, em fase posterior da campanha, trazia na capa a foto de uma barriga de grávida, com as mãos segurando o ventre. Outra mão segura um revólver com o cano apontado para a barriga. O corte da foto permite ver apenas o corpo em sua parte central, o tronco, na altura das mamas até acima da virilha19 19 . A foto de uma mulher sem rosto e centralizada na barriga revela a ênfase nos direitos do feto, eixo do debate antiaborto, e despersonaliza a gestante. . Acima da foto vem escrito: “Isso te espanta? Aborto é assassinato!”. O texto continuava: “Ao ler este informativo você não é mais inocente e sim responsável!”. Na página interna, consta a informação: “Existem mais de 800 projetos na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional que contrariam nossos princípios e valores. O seu voto vai determinar se essas leis serão aprovadas ou não. Meus candidatos são ficha-limpa”. Na página seguinte, vinha o apelo ao voto e a apresentação dos mesmos candidatos do primeiro panfleto. O folheto alerta: “os ‘esquerdopatas’, com certeza, não anulam nem votam em branco. Por isso peço seu voto para…”, e na sequência constam os nomes dos candidatos apoiados e seu número. Na contracapa, a cédula representada tem uma importante alteração: o acréscimo do candidato à presidência: Bolsonaro, número 17, com o nome grafado com a bandeira do Brasil circundando a letra “o” central.

O missionário R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus) também se engajou na campanha. Aparecia na capa do panfleto com o apelo: “Não podemos nos calar! A nação passa por momentos trágicos e enormes desafios. Não se omita, ou os maus governarão a nossa pátria! Diga sim ao seu direito de cidadão”. A página interna enumera vários tópicos e o apelo “Vamos dizer não”:

À legalização do aborto: querem matar os bebês.

À ideologia de gênero: menino é menino e menina é menina. À pedofilia: querem dar amparo legal a essa monstruosidade.

À destruição da família: (...) deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne (Mateus 19.5).

À destruição dos valores morais: respeito a todos principalmente às crianças, aos deficientes e aos idosos.

À perversidade com os animais: querem aprovar a conjunção carnal do ser humano com animais. Não a toda aberração. Precisamos de paz, amor e prosperidade!

Na página seguinte constava a pergunta “podemos merecer seu voto?”, seguida dos nomes, números e das fotos dos candidatos Filipe Soares (deputado estadual) e Marcos Soares (deputado federal) – conforme apuramos, filhos do missionário, ambos também concorrendo pelo DEM. Sobre os dois constava o carimbo de “candidato ficha-limpa”. A contracapa trazia a cédula eleitoral, com a sugestão apenas desses dois candidatos.

A categoria de acusação “ideologia de gênero” aparece como palavra de ordem em discursos de parlamentares. Tal concepção está mais explicitada no panfleto de R. R. Soares. Segundo Butler (2019)Butler, Judith. (2019), “Ideologia Anti-gênero e a Crítica da Era Secular de Saba Mahmood”. Debates do NER, ano 19, n. 36, pp. 219-235. , a ideologia antigênero “pode ser melhor entendida como uma reação à recente incursão de movimentos sociais na última jurisdição da religião no contexto do Estado secular: a esfera privada da família” (2019:219). A rejeição ao feminismo e às reivindicações do movimento LGBT seria efeito da defesa da família heteronormativa “contra a devastação das forças de mercado” (2019:225), o que representaria também a defesa do privilégio do modelo familiar dos críticos da perspectiva de gênero e sexualidade. Nesse contexto, apresenta-se a categoria sexo como adequada para descrever a criação feita por Deus.

As acusações feitas em nome de evangélicos e católicos de direita contra o conceito de gênero presumem que ‘sexo’ seja uma categoria adequada para descrever as distinções naturais, dadas por Deus, entre homens e mulheres, que a hierarquia entre elas também deriva da natureza e da autoridade bíblica, que qualquer orientação sexual que não se conforme com o mandato da heterossexualidade dentro do casamento é uma afronta às leis naturais, e que qualquer um que assuma um gênero legal que desvie daquele designado ao nascer comete uma monstruosidade ( Butler, 2019Butler, Judith. (2019), “Ideologia Anti-gênero e a Crítica da Era Secular de Saba Mahmood”. Debates do NER, ano 19, n. 36, pp. 219-235. , p. 229).

Butler segue advertindo que, embora seja tentador apontar a religião como a origem desse posicionamento, uma vez que os textos que fundamentam os acusadores são religiosos, os argumentos contra o gênero são “modernos e orquestrados em debates seculares” (2019:229). Esse tipo de “fantasia” de que professores estariam a sexualizar as crianças ou as ensinando a se tornarem homossexuais – elementos mobilizados por Malafaia e Soares – sugere, para Butler, que as acusações infundadas seriam “fantasmas políticos reveladores” do temor de perder a jurisdição sobre tais questões (2019:32). A aversão a movimentos feministas e “LGBTQI” se relaciona ao conceito de liberdade social proposto por estes, pois “o conceito de liberdade social avançado por esses movimentos aparece como uma intervenção colonizadora por parte do secularismo e do ateísmo” ( Butler, 2019Butler, Judith. (2019), “Ideologia Anti-gênero e a Crítica da Era Secular de Saba Mahmood”. Debates do NER, ano 19, n. 36, pp. 219-235.: 232). Argumentos desse tipo transparecem nos panfletos dos religiosos e de parlamentares vistos acima. Concordando com a interpretação de Butler, o objetivo desses religiosos seria “alertar a comunidade cristã para as incursões da cultura pública no domínio da família, isto é, no domínio próprio da Igreja” (2019:233). Concomitantemente, tais segmentos religiosos se dedicam no investimento de levar uma “cultura privada” (religiosa) para o espaço público, que é disputado por meio de discursos e posturas de cunho exclusivista-conservador em uma sociedade plural.

Nos panfletos difundidos por Silas Malafaia e R. R. Soares, o apelo contra o aborto e contra a ideologia de gênero, associados à destruição da família, conjugam-se ao discurso anticorrupção (em especial, identificados a candidatos ficha-limpa), que será uma das características da mobilização bolsonarista ( Cesarino, 2019Cesarino, Letícia Maria. (2019), Identidade e Representação no Bolsonarismo. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, pp. 530-557. ).

A atuação na campanha também ocorreu via correspondência enviada por Malafaia: uma carta dirigida nominalmente, iniciada com “querido irmão” mais o nome do endereçado. “Como você bem sabe, eu, Pr. Silas Malafaia, tenho caminhado ao lado de importantes nomes no cenário político brasileiro para garantir que os interesses do Povo de Deus sejam defendidos em todas as esferas”. Pede o engajamento:

Se nós não ficássemos em cima, pressionando aqueles que fazem as Leis, nossa sociedade estaria em um ponto muito pior do que se encontra. Os políticos da bancada evangélica evitaram que fossem aprovadas barbaridades como ideologia de gênero, liberação do aborto, liberação das drogas, casamento gay e muitas outras coisas que nem chegam ao conhecimento do grande público.

A carta prossegue apresentando os candidatos: Fábio Silva, continuador de seu pai que criou a primeira estação FM evangélica, a Rádio Melodia, hoje conduzida por Fábio. Silas Malafaia diz conhecer Sóstenes Cavalcante de longa data: missionário na Argentina, ordenado ao ministério pastoral aos 22 anos, foi também “diretor na Associação Vitória em Cristo”20 20 . Sóstenes foi eleito deputado federal em 2014 e reeleito em 2018. Fábio Silva foi eleito em 2018 para seu quinto mandato como deputado estadual na ALERJ. .

Outro que recorreu a essa estratégia foi Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, da Assembleia de Deus. Cunha escreveu, da prisão, uma carta destinada a seus eleitores dizendo que todos acompanhavam o seu “calvário causado por ter sido responsável pelo impeachment de Dilma e a retirada do PT do Governo”. A carta cita textos bíblicos para construir a imagem de encarceramento injusto. Ele pede votos para sua filha Danielle Cunha que concorre para a Câmara Federal pelo mesmo partido e com o mesmo número do pai. Cunha resumiu assim sua atuação: “Minha atuação como deputado, teve além da defesa de nossas bandeiras, como o combate ao aborto”, renovar a concessão da “amada Rádio Melodia”. A carta, iniciada com a posição antipetista, mostra a conjugação de elementos da pauta moral e interesses práticos de grupos evangélicos de manter os meios de comunicação. Antipetismo e a pauta moral estiveram fortemente associados nessa campanha ( Mariano e Gerardi, 2019Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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, Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. ).

A pauta moral, representada por uma agenda de costumes, está relacionada a uma retórica da perda. Vital da Cunha e Evangelista (2019:91) analisaram esse aspecto a partir da postura de candidatos/as evangélicos/as: “líderes religiosos – alguns deles também políticos – apresentam-se como vítimas de perseguições variadas em razão de serem (alegadamente) guardiões de comportamentos morais que geravam segurança social”. Trata-se da defesa dos papéis tradicionais de gênero (e família, acrescento eu) como essenciais para estruturar a vida em sociedade, clamando pelo retorno à ordem. A emergência dessa retórica se relaciona ao aumento simultâneo da diversidade no âmbito político (especialmente a diversidade de gênero) e da visibilidade de atores e discursos conservadores no âmbito da moral. “A retórica da perda é uma narrativa fundada, portanto, em uma insegurança moral diante de mudanças sociais evidentes e que buscam reconhecimento” (2019:91).

Entre turnos: o acirramento dos discursos

Após o primeiro turno, com as eleições para as casas legislativas finalizadas e com o resultado parcial para a presidência da República – quando Jair Bolsonaro (PSL) obteve 46% dos votos válidos e Fernando Haddad (PT), 29%, – foram observados outros pronunciamentos referentes a aborto e/ou diversidade sexual. As menções apareceram especialmente em apoio ao candidato Jair Bolsonaro, o que confirma o comentário de Almeida (2019)Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. sobre as pautas de costumes assumidas por Jair Bolsonaro agradarem as forças cristãs no Congresso Nacional.

Assinala-se uma das poucas declarações que fugiram da polarização entre o candidato da direita e o da esquerda. Em 11 de outubro, na ALERJ, o deputado estadual Paulo Ramos (PDT) fez uma série de questionamentos acerca do respeito à Constituição pela sociedade e pelo STF. Para ele, “fora da Constituição não há salvação” (Rio de Janeiro, SOAL , 11/10/2018). Sendo assim, ela deve ser respeitada e cumprida em sua totalidade. O deputado questionou a posição de partidos e parlamentares que denunciaram a inconstitucionalidade na prisão do ex-presidente Lula mas que não se manifestaram sobre a prisão do ex-governador Garotinho e de deputados que estariam presos inconstitucionalmente. O tema da diversidade sexual e social no pronunciamento ilustram essa “seletividade” em defender a Constituição:

É assim: ‘Eu sou do campo da esquerda!’ Há setores da esquerda que só defendem a Constituição para os seus. Defendem a Constituição para os negros, para os gays, lésbicas ou para as religiões afrodescendentes, mas a Constituição é uma só. Eu também defendo, mas eu defendo a Constituição como um todo. Eu defendo a Constituição em homenagem ao Jair Bolsonaro esfaqueado, que o autor responda ao devido processo legal, que as provas sejam colhidas pela prática desse crime hediondo (Rio de Janeiro, SOAL , 11/10/2018).

Foi a única menção neste levantamento ao atentado a faca sofrido pelo candidato do PSL, associando a igualdade de todos perante a Constituição para grupos marginalizados, citando negros, gays e lésbicas e também o candidato esfaqueado. A acusação de aplicar seletivamente a Constituição remete ao sistema relacional identificado por DaMatta em “Sabe com Quem Está Falando?” (1997) como característico da sociedade brasileira, que pede os rigores da lei para os inimigos e a generosidade aos amigos. A observação universalista de Paulo Ramos, no tocante à aplicação de Constituição, é também indica um disfarce para a posição antipetista assumida por adeptos de Ciro Gomes, candidato do PDT de Ramos, que não chegou ao segundo turno.

Na Câmara, vários celebraram sua própria reeleição, enfatizando manter compromissos com a defesa de bandeiras conservadoras, especialmente o combate à ideologia de gênero e ao aborto, bem como a defesa da família. O agradecimento inclui uma rede de apoio constituída pelas comunidades evangélicas. O discurso do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), da Assembleia de Deus, em 9 de outubro, agradeceu aos eleitores, que o reelegeram para “continuar prestando meus serviços aqui por mais quatro anos, na defesa dos valores de família, contra a ideologia de gênero, a favor da vida, contra o aborto”. Mencionou “vários pastores que nos abraçaram e, como cidadãos, recomendaram nosso nome aos membros de igrejas” e prometeu continuar “lutando a favor dos valores de família, lutando contra a legalização do aborto” (Brasil, DCD , 10/10/2018, p. 97).

Em 9 de outubro, o deputado federal Lincoln Portela (PR-MG), batista, indicou apoio à eleição de Bolsonaro para a Presidência da República, pois queria um presidente “contra o aborto”, “contra a liberação das drogas” e “contra a ideologia de gênero nas escolas com as nossas crianças” (Brasil, DCD , 10/10/2018, p. 29). Aqui, a expectativa de realização do projeto conservador é projetada na eleição de Bolsonaro para presidente, o que ocorre também em outras falas associadas ao antipetismo. No mesmo dia e na mesma lógica discursiva, o deputado Vinicius Carvalho (PRB-SP), evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus, agradeceu a reeleição e indicou a continuidade “da defesa da família, da proteção de crianças e adolescentes, contra a ideologia e a perspectiva de gênero” (Brasil, DCD , 10/10/2018, p. 99).

O deputado Vinicius Carvalho (PRB-SP) discursou, em 10 de outubro, agradecendo pela reeleição e indicando que continuaria “lutando pelo direito da família” e se colocando contrário a “todo pensamento, toda intenção que diz respeito à ideologia de gênero, perspectiva de gênero, ao ensinamento, dentro das escolas de ensino fundamental ou de ensino médio, dessa questão de perspectiva de gênero”. Por fim, colocou que “o partido que trouxe isso para o Brasil há 14 anos estava querendo novamente voltar para concretizar o seu intento no que diz respeito a essas ideologias” (Brasil, DCD , 11/10/2018, p. 99). O deputado alertou para a possibilidade de o PT voltar ao poder, associando esse partido à “ideologia de gênero” – argumento constante nessa campanha eleitoral ( Mariano e Gerardi, 2019Mariano, Ricardo; Gerardi, Dirceu André. (2019), “Eleições Presidenciais na América Latina em 2018 e Ativismo Político de Evangélicos Conservadores”. Revista USP, n. 120, pp. 61-76. DOI: <https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76>.
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).

O discurso do deputado Célio Silveira (PSDB-GO), católico, proferido no mesmo dia, agradeceu por continuar “na luta pela família, a favor da vida, contra o aborto, contra a ideologia de gênero, contra kit gay para crianças e a favor do Brasil” (Brasil, DCD , 11/10/2018, p. 57). Esse foi o único pronunciamento afirmando a existência do “kit gay”, expressão criada pelo deputado Jair Bolsonaro, em 2011, para desqualificar o material encomendado pelo MEC para a campanha “Escola sem Homofobia” (Vital da Cunha e Lopes, 2013), e fomentando pânico moral que ressurgiu na campanha presidencial de 2018. Pânico moral é uma categoria utilizada para compreender como a sociedade reage a situações e identidades sociais que supõem certa forma de perigo, de modo que desvios da norma geram forte reação coletiva ( Miskolci, 2007Miskolci, Richard. (2007), “Pânicos Morais e Controle Social: Reflexões sobre o Casamento Gay”. Cadernos Pagu, v. 28, pp. 101-128. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0104-83332007000100006>.
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: 111). Nesse contexto, alimenta-se o pânico moral por informações que correm velozmente em redes sociais como o WhatsApp, o Twitter e Facebook ( Almeida, 2018Almeida, Raquel. (2018), “Fake News: Arma Potente na Batalha de Narrativas das Eleições”. Ciência e Cultura, v. 70, n. 2, pp. 9-12. ).

Em contrapartida, após o primeiro turno os discursos favoráveis à diversidade sexual enfatizaram a opção entre uma sociedade inclusiva e outra caracterizada pelo fascismo e o autoritarismo. Surgiram as primeiras denúncias contra as mentiras consubstanciadas no “kit gay”, além de menções à violência contra sujeitos LGBT. Foi denunciado o uso de redes sociais e de aplicativos de troca de mensagens, como o WhatsApp, como lugar de geração e difusão de fake news ( Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213. ). Esse aplicativo “favorece uma interatividade mais instantânea, próxima e circunscrita”, de modo que informações memes e fake news circularam em grupos fechados superpostos às pequenas redes de família, grupos de trabalho, de amigos e de comunidades religiosas ( Almeida, 2019Almeida, Ronaldo. (2019), “Bolsonaro Presidente: Conservadorismo, Evangélicos e a Crise Brasileira”. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, n. 1, p. 185-213.: 190).

Em discurso anunciado no dia 9 de outubro, o deputado Marcon (PT-RS), católico, afirmou que o “futuro Presidente”, Fernando Haddad, “vai salvar o país da atual crise” e “tem planos de governar pela justiça social, pelos pobres, negros, mulheres, índios, comunidade LGBT” (Brasil, DCD , 10/10/2018, p. 43).

Dias depois, em 15 de outubro, a deputada Erika Kokay (PT-DF) disse que a democracia enfrentava um período “dramático” com o processo eleitoral, referindo-se a Bolsonaro: “Este que quer assumir a Presidência da República fala como fala da população negra deste país; fala como fala da população LGBTI deste país, dizendo que é preciso desumanizar, primeiro simbolicamente, depois literalmente, aqueles que são diferentes”. Por fim, a deputada afirmou sua convicção de que “no dia 28 de outubro não vai emergir das urnas o fascismo, não vão emergir das urnas aqueles que acham que as mulheres, os negros, a população LGBT não têm direito de viver a sua própria humanidade” (Brasil, DCD , 15/10/2018).

Kokay discursou duas vezes naquele 16 de outubro. No primeiro pronunciamento, discorreu sobre a candidatura “construída através de mentira” de Bolsonaro, citando que “o TSE já mandou retirar a discussão do kit gay, porque ele não existe”. Além disso, indaga quem “votou contra o Haddad, em função de um kit gay, como está se sentindo tendo sido alvo de uma mentira?” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 93). No segundo, ela questionou o caráter “fascista” do candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro:

Falam de Cristo, da Bíblia, mas é muito importante deixarmos que Cristo fale através de nossos exemplos. Aqui se fala da mentira, mas a mentira maior está sendo exalada por este candidato fascista à Presidência da República, que faz uma campanha pautada na violência e diz que as mãos de criança têm que se transformar em armas. Armas simbólicas estimulam a literalidade das armas, que estão apontadas para as cabeças das mulheres, da população LGBT, dos negros (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 109).

Esse é um dos raros discursos do campo progressista a tomar a argumentação religiosa monopolizada pelo campo conservador, denunciando também a violência e a mentira. As armas mencionadas remetem ao gesto marca do candidato em apontar o dedo como se fosse uma arma de fogo.

Há uma sequência de pronunciamentos, em 16 de outubro, marcadamente de deputados do Partido dos Trabalhadores, que respondem às intensas correntes de fake news e aos posicionamentos conservadores sobre diversidade sexual.

O discurso do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), católico, discorre sobre as notícias falsas: “o TSE já disse que é mentira, não pode ficar na rede o tal do kit gay” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 210).

Valmir Assunção (PT-BA), católico, agradeceu aos “companheiros e companheiras do movimento de juventude, do movimento de mulheres, do movimento LGBT, da CECAF e das comunidades Fundo e Fecho de Pasto” pela reeleição (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 84). Aqui, a diversidade sexual apareceu no apoio de segmentos de eleitores.

Jorge Solla (PT-BA), criticou os pronunciamentos do presidenciável Jair Bolsonaro, que incentivava seu eleitorado a cometer “atrocidades”, como matar Moa do Katendê21 21 . Segundo o inquérito policial, o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê foi “motivado por uma discussão político-partidária”. Moa, conforme apontam as investigações, disse “que era contra o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL)”. Em depoimento, o autor “afirmou que não cometeu o crime por conta da divergência política, e sim porque foi xingado após se desentender com o capoeirista, por causa das preferências políticas de cada um”. Disponível em: < https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/10/17/investigacao-policial-conclui-que-morte-de-moa-do-katende-foi-motivada-por-briga-politica-inquerito-foi-enviado-ao-mp.ghtml >. . Denunciou: “agrediram mais de 50 pessoas em todo o país. E, neste momento, todas as mulheres, todos os gays, todos os negros de periferia estão com medo de serem a próxima vítima” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 39-40).

A deputada Maria do Rosário (PT-RS), católica, indicou que Bolsonaro é “contra o trabalhador, contra as mulheres, contra os negros, contra os gays, contra a população das periferias, mas, sobretudo, contra o serviço público, a educação, a segurança pública, o emprego, a saúde pública” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 223).

Luiz Couto (PT-PB), católico, criticou o presidenciável Jair Bolsonaro, que “não deveria disseminar o ódio nem incitar a discriminação, a hostilidade e a violência contra uma pessoa ou grupo em virtude de raça, religião, nacionalidade, orientação sexual, gênero, condição física ou outra característica” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 51).

Jorge Solla (PT-BA), discorreu sobre a “fé em um país civilizado, em um país que preza a cultura da paz contra a violência, contra o racismo, contra a homofobia” (Brasil, DCD , 17/10/2018, p. 86), criticando o presidenciável Jair Bolsonaro.

A deputada Erika Kokay (PT-DF) discursou, novamente, no dia 17 de outubro:

A previdência social que praticamente inexiste hoje no Chile é consequência de uma ditadura que querem impor a uma candidatura que representa o fascismo, que é o fascismo sem modéstia, que é um fascismo desnudo, um fascismo como ele é, com uma crueldade imensa, uma candidatura misógina, uma candidatura sexista que ataca negros, que ataca a população LGBT e que se diz candidatura da ordem. (Brasil, DCN , 18/10/2018, p. 82)

No mesmo dia, o deputado João Daniel (PT-SE), católico, fez referência direta ao candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, como manifestante de “opinião preconceituosa, nazista e fascista, sobre pobres, negros, mulheres, gays, lésbicas e LGBTs” (Brasil, DCN , 18/10/2018, p. 58).

Considerando os elementos mobilizados nesses extratos de pronunciamentos, as ênfases estão nas denúncias da mentira acerca do “kit gay”, na violência associada ao candidato contra a população LGBT e outros segmentos sociais, no fascismo revelado em suas falas e ações, na negação da cidadania por meio do discurso da ordem. Essas perspectivas também são exploradas em discursos no Senado no período após o primeiro turno, em perspectiva pró-diversidade.

Discursando em 17 de outubro, a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), católica, acusou o candidato Jair Bolsonaro de responsabilidade pela violência durante as eleições de 2018. Após agradecer por sua eleição para a Câmara dos Deputados, ela fez várias acusações ao candidato. Primeiramente, afirmou ser culpa dele a série de violências ocorridas no período das eleições, pois “libera ações e reações das pessoas” (Brasil, DSF , 18/10/2018, p. 27). Usando dados do site mapadaviolência.org, disse que, somente em outubro, foram mais de 104 registros de violência decorrentes da política e que quase 100% dos agressores eram eleitores de Bolsonaro. Hoffmann citou casos como o do mestre Moa do Katendê e da travesti que foi assassinada em 16 de outubro aos gritos de “Bolsonaro”22 22 . O nome da vítima não é citado no discurso nem na notícia veiculada pelo canal G1. Disponível em < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/10/16/travesti-e-morta-a-facadas-durante-briga-em-bar-no-centro-de-sp.ghtml >. .

Além disso, Hoffmann o acusou de fraudar as eleições com a produção e disseminação de fake news nas redes sociais, por meio de esquemas pagos fora do país, que impulsionavam suas notícias. Concluindo, cita um texto bíblico para qualificar o candidato de hipocrisia:

Como diz Mateus, no capítulo 23, versículo 27: ‘Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade’. (...) Deputado Jair Bolsonaro, e está conduzindo este país ao precipício da violência, da mentira e da ditadura (...) o seu programa de campanha é o ódio ao PT, é o desprezo às mulheres, o ódio aos gays , o preconceito aos negros e aos indígenas e o ódio aos diferentes. Esse é o seu programa de campanha, usando em vão o nome de Deus (Brasil, DSF, 18/10/2018, p. 29).

O discurso da senadora é um raro exemplo de uso da linguagem explicitamente religiosa para criticar a candidatura de Bolsonaro e o discurso conservador.

Na esfera estadual, os discursos seguiram argumentos semelhantes. Em 10 de outubro na ALERJ, Flávio Serafini (PSOL), após agradecer os votos da reeleição, comentou a crise econômica, política e institucional no Brasil, assim como o enfraquecimento da democracia. Alertou contra o aprofundamento da crise diante de possibilidade da eleição de Jair Bolsonaro para a presidência: um candidato que “não tem o mínimo de zelo e respeito pela democracia” (Rio de Janeiro, SOAL , 10/10/2018 ) . O deputado disse que não dá para aceitar um candidato à Presidência que defenda tortura, se refira a negros quilombolas em arrobas, que retire direitos dos trabalhadores e que pretenda interromper o ativismo no Brasil:

Em entrevista dada na segunda-feira ao Jornal Nacional, ao mesmo tempo que dizia ser escravo da Constituição Federal, afirmava a disposição em interromper quaisquer ativismos no Brasil. O que ele quer dizer com isso? Vai proibir as instituições da sociedade civil que atuam pelos direitos humanos, em defesa da educação, da saúde e dos direitos LGBT ’s de continuarem existindo? Vai proibir os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária e pelo direito à moradia?

Concluindo seu discurso, Serafini disse que estão em jogo a liberdade e a vivência democrática, e que irá enfrentá-lo a fim da manutenção do Estado democrático de direito.

No mesmo dia, o deputado Waldeck Carneiro (PT) discursou afirmando que há, no Brasil, o desafio de impedir o avanço do ódio e da intolerância, reafirmar valores e reestabelecer a democracia. Carneiro também citou episódios de violência motivada por intolerância sexual, de gênero, política e religiosa, como os casos do Mestre Moa do Katendê; do jovem agredido por usar um boné do MST na UFPR23 23 . Disponível em < https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2018/10/10/rapaz-fica-ferido-apos-confusao-em-frente-a-casa-da-estudante-da-ufpr.ghtml >. ; da jornalista que foi agredida e ameaçada de estupro após votar em Pernambuco24 24 . Disponível em < https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/10/08/policia-investiga-agressao-a-jornalista-apos-saida-de-local-de-votacao-no-recife.ghtml >. ; do estudante que, ao sair da UFF, foi agredido por ser homossexual e outros casos recorrentes de intolerância contra religiões de matriz africana. Por isso, declarou voto no candidato de seu partido, Fernando Haddad, alegando ser a “perspectiva da cidadania, da inclusão dos mais pobres, do combate à desigualdade, do alargamento dos direitos” (Rio de Janeiro, SOAL , 10/10/2018). Alertou também sobre a composição da ALERJ após as eleições de 2018, abordando a necessidade de enfrentar esse desafio naquela casa legislativa. Assim, concluiu:

Será preciso que as bancadas na Alerj dos partidos que tradicionalmente, independentemente de suas posições de caráter mais ideológico, têm apreço pela democracia, pela experiência democrática, dialoguem mais do que nunca para conter a prevalência do ódio, da intolerância e da barbárie no plenário Barbosa Lima Sobrinho. (Rio de Janeiro, SOAL , 10/10/2018).

Em 24 de outubro, Carneiro voltou a discursar sobre a democracia brasileira e as eleições presidenciais. Para ele, em 2016, no impeachment de Dilma Rousseff, a democracia brasileira foi enfraquecida, resultando na ascensão do fascismo na sociedade. O pronunciamento mencionou LGBT em perspectiva inclusiva da diversidade na população, simbolizada pelas cores da bandeira:

Essas quatros cores não são monopólio de ninguém. Essas quatro cores são as cores nacionais, da nossa Nação, de cada brasileiro, de cada brasileira: negros, mulheres, comunidade LGBT, nordestinos, sulistas, cariocas, fluminense, acreanos, gaúchos (Rio de Janeiro, SOAL , 24/10/2018).

Em 25 de outubro, antevéspera do segundo turno, o deputado abordou a determinação do TSE de retirar do horário eleitoral televisivo o programa do PT, que mostrava uma série de discursos de Jair Bolsonaro ferindo os direitos humanos: “declarações sobre tortura, com apologia a ela, sobre mulheres, sobre negros, sobre a comunidade LGBT”. Carneiro classificou a medida como uma “anomalia institucional em que transcorrem estas eleições de 2018”, pois o TSE é dotado de poder para interferir e controlar as eleições, mas não se “interessa em investigar o chamado ‘Escândalo do WhatsApp’” (Rio de Janeiro, SOAL , 25/10/2018)

Cesarino comentou a produção de uma “atmosfera de caos”, por várias mídias, especialmente os grupos constituídos pelo aplicativo WhatsApp. De acordo com monitoramento na época, disparos favoráveis ao candidato Bolsonaro “foram impulsionados por perfis e celulares que supostamente não faziam parte da sua campanha oficial” (2019:535), salientando que a eficácia resultou da replicação espontânea desses conteúdos alarmistas e conspiratórios. A universalização dos smartphones e do próprio aplicativo de troca de mensagens foram essenciais para isso.

Essa percepção foi expressada pelo próprio deputado estadual Waldeck Carneiro em sua crítica supracitada. Carneiro apresentou uma série de declarações de Jair Bolsonaro nas quais ele defendia a tortura, dizia que a ditadura deveria ter assassinado 30 mil pessoas (inclusive o ex-Presidente Fernando Henrique), dentre outras. Lembrou também a homenagem feita por Bolsonaro, na ocasião do impeachment de Dilma Rousseff, ao Coronel Brilhante Ustra – responsável pelas torturas executadas contra a até então presidente. Segundo o deputado tais declarações evidenciam que:

Na verdade, a disputa que está posta é entre democratas, humanistas, aqueles que defendem o primado dos direitos, o respeito às liberdades coletivas e individuais e à diversidade como um valor e um outro campo, o do fascismo, do obscurantismo, da barbárie, da repressão, da violência, do ódio, da intolerância.

[...] Será que cabe no antipetismo dessas pessoas a tortura? Será que cabe no antipetismo dessas pessoas a apologia a um torturador? Será que cabe no antipetismo dessas pessoas o preconceito contra mulheres, negros, comunidade LGBT, a criminalização da pobreza, a violência? (Rio de Janeiro, SOAL , 25/10/2018)

O deputado Wanderson Nogueira (PSOL) fez um discurso no mesmo dia sobre sua preocupação com o segundo turno. Declarou ser a hora de escolher entre ditadura ou democracia, liberdade ou autoritarismo, tanto no nível nacional quanto no estadual – comparando o candidato a governador, Wilson Witzel (PSC), a Jair Bolsonaro, e declarando seu voto em Eduardo Paes e em Fernando Haddad. Fez críticas diretas a Bolsonaro e Witzel denunciando as frases prontas e chavões próprios do candidato Bolsonaro: como acabar com o “coitadismo” de negros, LGBT’s, mulheres e nordestinos (Rio de Janeiro, SOAL, 25/10/2018). Esses elementos foram mobilizados em memes e na campanha partidária, expressando, por meio da inversão de acusações, a rejeição às políticas de identidade. Segundo Cesarino, “as políticas de identidade – na figura do ‘vitimismo’ do movimento negro, feminista e LGBT, ou do ‘privilégio’ da política de cotas – é que apareciam como dividindo a sociedade brasileira e propagando discursos de ódio” (2019:543).

Discursos após o segundo turno: o leite derramado

A vitória de Jair Bolsonaro fez aumentar os discursos referentes a ameaças à diversidade sexual. A maior parte das menções ao kit gay apareceu, nesse momento, como denúncia das mentiras que circularam na campanha. Na Câmara, no período posterior ao segundo turno, foram proferidos 20 discursos pró-diversidade e contra o presidente eleito Jair Bolsonaro.

Em 30 de outubro ocorreram cinco discursos de deputados federais. A deputada Erika Kokay (PT-DF) disse que: “saímos de uma eleição em que ficou inconteste a utilização de várias mentiras. Ali se promulgou a existência de um kit gay que nunca existiu e que nunca foi implementado em qualquer escola”. Além disso, apontou que “as pessoas que fazem parte da comunidade LGBT têm também direito à família” (Brasil, DCD , 31/10/2018, p.114). Aqui, a deputada ressalta a família, um elemento que o campo conservador pretende monopolizar ofertando-o um modelo único e hegemônico.

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apontou a gravidade de uma possível eleição de Bolsonaro:

A ditadura militar, sustentada no discurso de Jair Bolsonaro durante todo o tempo em que defendeu a tortura, a ditadura e a redução da maioridade penal, autorizou a violência, desqualificou as mulheres, os pobres, os negros, a comunidade LGBT. É muito grave, portanto, em se tratando de democracia e de liberdade (Brasil, DCD , 31/10/2018, p. 84).

O deputado Pepe Vargas (PT-RS) discorreu sobre as mensagens a respeito do candidato Fernando Haddad, em que “uma pesquisa mostra que número significativo de pessoas deu crédito a diversas fake news , como à questão do kit gay, como à questão da apologia ao incesto ou coisa do gênero” (Brasil, DCD , 31/10/2018, p. 72).

A deputada Zenaide Maia (PHS-RN) declarou nutrir orgulho pela “maioria dos eleitores do meu Estado, que votou contra a homofobia, contra o racismo, contra a violência” (Brasil, DCD , 31/10/2018, p. 71), indicando a preferência eleitoral no Rio Grande do Norte contrária à candidatura Bolsonaro.

Chico Alencar, deputado do PSOL (RJ), católico, demonstrou apreensão com a gestão de Bolsonaro, considerando que o mesmo costuma dizer que “a verdade vos libertá”, mas fala “de um seminário LGBT infantil aqui na Câmara que jamais existiu” (Brasil, DCD , 31/10/2018, p. 99). Assim, o deputado criticou o uso de citação bíblica sobre a verdade por quem disseminou mentiras. No dia seguinte, Alencar discursou novamente sobre retrocessos que se anunciavam com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência. Ele citou uma reportagem de O Globo (21/10/2018) intitulada “Os ex-lulistas que escolheram Bolsonaro”. Comentou alguns exemplos, como o do “ex-PM Valter Miranda, 51 anos, de Sobradinho, no Distrito Federal. É uma espécie de ‘desiludido movediço’”, pois o mesmo diz ter votado “no Lula porque ele era mais para o lado do trabalhador. Mas não cumpriu o que prometeu. O PT é o culpado pelo desemprego, pelas badernas nas manifestações e essa porcaria toda de legislação LGBT” (Brasil, DCD , 1/11/2018, p. 33). O deputado acrescentou “hipóteses” acerca do futuro governo Bolsonaro: “implementará incessantemente ataques às políticas públicas, notadamente de educação e saúde, aos direitos de trabalhadores e de povos indígenas e quilombolas, população LGBT e demais minorias” (Brasil, DCD , 1/11/2018, p. 36). Por fim, colocou que “a candidatura Boulos/Sônia Guajajara, da coligação PSOL/PCB, realizou, no Rio de Janeiro, um ato público o ‘Encontro de Causas’, contando com as propostas de diversos movimentos sociais” (Brasil, DCD , 1/11/2018, p. 38), inclusive para defender os direitos da população LGBT.

No mesmo dia 31 de outubro, Reginaldo Lopes (PT-MG), católico, referiu-se à candidatura de Bolsonaro: “se for verdade o que ele prometeu e o que falou nesses 28 anos de vida pública, a democracia brasileira corre sério risco, em especial as maiorias deste país, que são os negros, as mulheres, as domésticas, a comunidade LGBT” (Brasil, DCD , 1/11/2018, p. 111-112).

Tal receio também foi explicitado no discurso do deputado Chico Lopes (PCdoB-CE), no mesmo dia, no qual citou o jornal Le Monde Diplomatique sobre a eleição de Bolsonaro: “Brasil: Preocupante retorno ao passado” e “o Brasil acaba de eleger um Presidente racista, sexista, homofóbico e defensor da tortura”. Reitera que o “currículo daquele que vai ascender ao posto mais alto da Nação é de alguém sexista, defensor da tortura, contra os homossexuais” (Brasil, DCD , 01/11/2018, p. 54).

Erika Kokay (PT-DF), em 7 de novembro, censurou o futuro governo de Bolsonaro: “tem razão Pedro Aleixo: ‘o que nos preocupa são os guardas da esquina’, e esses guardas da esquina têm aumentado o nível de ataques à população LGBT, às mulheres e aos negros” (Brasil, DCD , 8/11/2018, p. 147).

A deputada discursou novamente no dia seguint8 de novembro: é “impossível defender um governo que se constrói na lógica misógina, LGBTfóbica, racista”. Acrescentou: “aqui está o PT, defendendo a soberania nacional, defendendo o direito de amar da população LGBT, defendendo o direito de ser das mulheres, dos negros”. Por fim indagou: “Querem calar as escolas? Querem proibir professor de falar a palavra ‘gênero’? Quem são esses?”, concluindo que esses “são os que querem que a população LGBT vá para dentro de armário” (Brasil, DCD , 09/11/2018, p. 41 No mesmo dia, o deputado Freitas do PT (PT-TO) discursou: “Neófito, que sou, nada sei. 57 anos, nunca vi o kit gay” (Brasil, DCD , 09/11/2018, p. 90).

Em 12 de novembro, ocorreram dois discursos de parlamentares que mencionaram a diversidade. Chico Alencar (PSOL-RJ) citou a “resolução de tática para o período”, que consistia em “organizar a resistência e a unidade popular contra Bolsonaro”. Dito isso, apontou que “devemos estimular, portanto, a criação de espaços de ação de base, como comitês da juventude sem medo, mulheres sem medo, LGBTs sem medo, além dos espaços territoriais já existentes” (Brasil, DCD , 13/11/2018, p. 76). Luiz Couto (PT-PB) comentou “Os Dez Mandamentos de Bolsonaro, segundo o jornalista Alex Solnik, pela fonte Brasil 247”, citando o sétimo mandamento “acabar com casamento gay”, o que é uma tarefa de “governos autoritários”, que “sempre combateram os diferentes, como na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler” (Brasil, DCD , 13/11/2018, p. 39).

Jorge Solla (PT-BA) discursou duas vezes no dia 13 de novembro. Primeiro, teceu críticas às eleições marcadas “por falsos dilemas morais: pelo tal kit gay que nunca existiu”. No segundo, expressou críticas ao governo recém-eleito, de Bolsonaro, pois não adiantaria “continuar mentindo como se estivesse em campanha, continuar falando em kit gay, mamadeira erótica ou coisa do gênero, para encobrir o desastre econômico que eles querem fazer” (Brasil, DCD , 14/11/2018, p. 136).

No mesmo dia, Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) falou “de uma carta apócrifa endereçada a duas estudantes de Geografia, do campus da UFPA de Altamira, no dia 31 de outubro”, que afirmava “vamos passar por cima de cada gay, sapatão, preto e preta. Vamos exterminar cada um de vocês” e “se preparem porque a tortura vai começar. Viva Bolsonaro! Viva a Ditadura! Viva o Fascismo! Viva Carlos Alberto Brilhante Ustra!” (Brasil, DCD , 14/11/2018, p. 128).

O discurso da deputada Erika Kokay (PT-DF), em 28 de novembro, criticou o futuro governo Bolsonaro que “banaliza e naturaliza a violência contra as mulheres, aquele que despreza a população LGBT” (Brasil, DCD , 29/11/2018, p. 199).

Em 4 de dezembro, o deputado Leo de Brito (PT-AC), discorreu sobre as eleições presidenciais de 2018, avaliando que a “radicalização da econômica neoliberal é acompanhada por uma agenda regressiva de ataque aos direitos humanos”, dentre eles, “da comunidade LGBT”. Posto isso, afirmou que atuaria, junto a seu partido, na “oposição nos espaços institucionais, mas principalmente nas ruas por meio da mobilização política, social e na organização popular buscando nesse processo dialogar com todos”, o que deve ser fortalecido por vários movimentos, inclusive os LGBTs (Brasil, DCD , 5/12/2018, p. 68).

Henrique Fontana (PT-RS), discursando em 6 de dezembro, questionou o projeto Escola Sem Partido. Apontou ter ocorrido a “eleição de um Presidente de extrema-direita – eu sou oposição a esse Governo”, assim, se coloca contra a tentativa do governo de “impor de forma autoritária uma visão preconceituosa contra qualquer pessoa que tenha qualquer religião, contra qualquer pessoa que tenha a sua opção sexual e contra qualquer pessoa que tenha a sua opção partidária” (Brasil, DCD , 7/12/2018, p. 49).

Os posicionamentos da oposição seguem. O discurso da deputada Erika Kokay (PT-DF), em 13 de dezembro, traçou uma comparação com os manicômios de Barbacena: “era para lá que eles mandavam os homossexuais, as pessoas com deficiência, as mães solteiras, os tidos como indesejáveis pela sociedade patriarcal”, sendo isso o que “quer impor a fala desta que será a Ministra dos Direitos Humanos” (Brasil, DCD , 14/12/2018, p. 98). Ela repudiou as declarações de Jair Bolsonaro, justificando que “sua vitória foi construída sobre mentiras: mentiras sobre o kit gay” (Brasil, DCD , 14/12/2018, p. 95). Comentou estimativas de violência sexual, segundo as quais “500 mil mulheres são estupradas todos os anos neste país, o quinto em feminicídio, onde mais se mata a população LGBT” (Brasil, DCD , 14/12/2018, p. 96), e acrescentou:

Uma Promotora de Justiça diz: Este projeto, que impede que se discuta e se use a palavra gênero, que impede que se discuta a orientação sexual, que faz com que o professor não possa falar sobre os direitos, é um projeto que protege o abusador, porque os abusadores sexuais, por regra, estão dentro da família (Brasil, DCD , 14/12/2018, p. 97).

Concluindo, a deputada afirmou que a resistência não permitirá que a população LGBT volte “para os armários” (Brasil, DCD , 14/12/2018, p. 98).

Considerando esse conjunto de discursos, proferidos na Câmara dos Deputados depois do segundo turno, os ataques ou ameaças à população LGBT, que estavam acontecendo no período das eleições, foram o tema mais vezes comentado (7 discursos) e pelo maior número de deputados/as (6). Outro aspecto associado foram as ameaças a direitos, representadas pelas falas do presidente eleito e que espera concretizar com sua posse, além de impor uma visão preconceituosa acerca da opção religiosa, sexual e política (1). Relacionado a isso, houve também menções mais específicas, como prever que um dos objetivos do presidente eleito seria acabar com o casamento gay (1), que a população LGBT fique dentro do armário (2) e a necessidade de organizar a resistência (2). O segundo conjunto de temas refere-se à acusação de propagar mentiras e fake news (2), em especial o kit gay (5) e a mamadeira (erótica ou fálica, mencionada em dois discursos). A disseminação de notícias falsas é apresentada como fator determinante para o resultado eleitoral. Um único discurso celebrou que o voto do estado da deputada, no segundo turno, mostrava que a maioria da população se posicionou contra a homofobia.

Foi encontrado apenas um discurso que correlaciona “pró-diversidade” e apoio a Bolsonaro. Na contramão de declarações de opositores ao presidente recém-eleito, o discurso, em 30 de outubro, do deputado Delegado Waldir (PSL-GO), católico, demonstrou apoio ao governo Bolsonaro e afirmou que “A Carta Magna será nosso guia. Teremos respeito à imprensa, às mulheres, aos homens, aos heterossexuais, aos homossexuais, aos brancos, aos negros, aos amarelos, aos índios. Nós vamos unificar este país. Não podemos continuar sendo o país do ódio. Chega de ser o país da divisão!” (Brasil, DCD , 31/10/2018, p. 192). O discurso associou o novo presidente e o tema da diversidade sexual, identificando o respeito à pluralidade de grupos na população brasileira e indicando que essa a divisão é fruto de governos anteriores.

Conforme visto em Cesarino (2019)Cesarino, Letícia Maria. (2019), Identidade e Representação no Bolsonarismo. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, pp. 530-557. , sobre a rejeição às políticas de identidade, ao contrário das acusações de parlamentares de esquerda sobre o caráter excludente dos projetos de governo de Bolsonaro, a declaração do delegado Waldir levanta elementos mobilizados pela militância bolsonarista, que: “teve o cuidado de traçar a fronteira antagonística não entre brancos e negros, homens e mulheres, ou heteros e gays, mas entre a militância feminista, LGBT e do movimento negro e os ‘cidadãos de bem’” (2019:541).

Depois do segundo turno só foi encontrado um discurso que fugiu da polarização, abordou eleições e mencionou aborto. O deputado Marcus Pestana (PSDB-MG), no dia 21 de novembro de 2018, advertiu que se no governo Bolsonaro “o esforço prioritário em torno das reformas previdenciária e tributária se diluir em meio à abordagem de temas como reforma política, desarmamento, maioridade penal, ‘escola sem partido’, aborto, mudanças na legislação penal, será o atalho mais curto para o fracasso” (Brasil, DCD , 22/11/2018, p. 75). O deputado contrapôs a agenda de costumes ao esforço pragmático de reformas no Estado, sendo o último item o que aproxima o PSDB das promessas de Bolsonaro em campanha.

Foi proferido um discurso comemorando a eleição de Bolsonaro, que citou a luta contra a “ideologia de gênero” como uma bandeira ansiada pelo povo. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF), cristão, em 10 de dezembro, discorreu sobre a cerimônia de diplomação Presidente da República, Jair Bolsonaro, que “ratificou o discurso de lutar pelas bandeiras pelas quais o povo brasileiro tanto anseia, como a segurança pública, o desarmamento e a ideologia de gênero nas escolas” (Brasil, DCD , 11/11/2018, p. 83).

Na ALERJ, o tema da diversidade sexual foi retomado após o segundo turno em função do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Em 6 de novembro, Waldeck Carneiro discorreu sobre a importância do ENEM para a simplificação e pluralização do acesso às universidades públicas no Brasil, mas afirmou que ainda há quem não compreenda a importância desse exame bem como do “papel da escola e do processo de escolarização”. Ele afirmou que:

Chamou muito a atenção o fato de que, logo depois da primeira etapa de domingo, do Enem, tenham ecoado as mesmas vozes de agentes públicos que descaracterizam, desqualificam o processo do Enem (...) nessa edição de 2018 (Rio de Janeiro, SOAL , 06/11/2018).

Entre os que desqualificam o ENEM estão Jair Bolsonaro (PSL) e seus filhos Carlos Bolsonaro (vereador no Rio de Janeiro pelo PSL-RJ), católico, e Eduardo Bolsonaro (deputado federal, PSL-SP), evangélico, batista. Waldeck Carneiro elucidou o processo de construção do exame e os agentes que produzem a prova,25 25 . Rebatendo essa acusação, o discurso de Carneiro relatou os vínculos da coordenadora Maria Inês Fini no MEC durante o governo Fernando Henrique Cardoso e seu retorno no governo “ilegítimo” de Michel Temer. Esclareceu o processo de confecção das provas por centenas de profissionais e informou a existência de um banco de questões para selecionar as que serão usadas em cada edição do exame. a fim de rebater a crítica de Carlos Bolsonaro de que “O ENEM continua petista”.

O ponto que traz o tema da diversidade sexual foi a crítica desses atores a uma questão do exame envolvendo o pajubá26 26 . Disponível em < https://g1.globo.com/educacao/enem/2018/noticia/2018/11/05/veja-resolucao-de-questao-do-enem-que-aborda-status-do-pajuba-como-dialeto-secreto-dos-gays-e-travestis.ghtml >. (dialeto LGBT). Eduardo Bolsonaro postou em seu Twitter: “Aviso que não é requisito para ser ministro da educação saber sobre dicionário dos travestis ou feminismo”27 27 . Disponível em < https://twitter.com/bolsonarosp/status/1059411660136423425 >. . Carneiro rebateu e afirmou que a questão “abordou uma linguagem muito comum para a comunicação, para a integração, para a socialização entre pessoas da comunidade LGBT”. Segundo Carneiro:

Essas veiculações críticas ao Enem mal disfarçam, mal dissimulam a frustação de não vê-lo incluir questões que propaguem o ódio, a intolerância, a violência, que desqualifiquem os direitos humanos. (...) é muito importante que a escola siga ensinando valores, siga trabalhando com a perspectiva de visões de mundo plurais sobre as quais os estudantes possam formar o seu juízo, a partir da sua visão, da sua percepção, da sua forma específica, singular e única de assimilação desses conteúdos, valores e temas. (Rio de Janeiro, SOAL , 6/11/2018).

O deputado se contrapôs a uma entrevista na qual o presidente eleito, Jair Bolsonaro, fez a seguinte crítica: “uma questão de prova que entra na dialética da linguagem secreta de travesti não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum”. Assim, Carneiro mostrou a atuação conjunta da família Bolsonaro em prol da agenda conservadora e contra a diversidade sexual.

Considerações sobre os temas controversos e as eleições “polarizadas”

A disputa discursiva acerca do aborto e da diversidade sexual revela como esses elementos são acionados em estratégias de ataque ou de defesa no cenário eleitoral. Os discursos podem ser divididos em dois conjuntos, com argumentos opostos, salvo poucas exceções. Em geral, parlamentares de partidos de esquerda mencionam a população LGBT para defender o grupo e seus direitos. Os conservadores evocam a categoria de acusação “ideologia de gênero” em contraposição aos direitos reivindicados pelos movimentos sociais. Em composição, a temática do aborto emerge nas falas dos parlamentares conservadores vinculando o “outro lado” – no caso, a esquerda – à morte e destruição. O discurso se pauta na luta entre “cultura da morte” e “cultura da vida”, notabilizada por lideranças religiosas cristãs, incluindo católicos. Vale dizer que tal elaboração consta na Encíclica Evangelium Vitae (1995), de João Paulo II: “No contexto social de hoje, marcado por uma luta dramática entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte », importa maturar um forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e as autênticas exigências”. Discernir aqui significa identificar, por exemplo, que o aborto é uma das “novas ameaças à vida humana”.

Considerando os discursos, torna-se evidente a intensa ligação entre posicionamentos conservadores e religião, com a utilização de argumentos de ordem puramente religiosa/filosófica, quando não encobertos por citações jurídicas ou biologizantes por parte de parlamentares com pertencimento religioso. Dado relevante identificado na pesquisa realizada mostra que também há uma abertura maior em relação à diversidade sexual entre católicos do que entre evangélicos, principalmente considerando os integrantes de partidos de esquerda, enquanto os evangélicos estão inseridos nos partidos de centro e de direita, mais conservadores. As questões de diversidade sexual e aborto se cruzam, principalmente, por deputados religiosos, que agora utilizam o termo “ideologia de gênero” como categoria de acusação, na qualidade de uma doutrinação imoral para as crianças (com destaque para a suposta desestruturação da “família natural”) e associando a prática do aborto a uma “cultura de morte”, em termos de argumento religioso mascarado por uma ordem filosófica e pró-vida.

A esquerda é associada ao aborto e à pedofilia pelo campo conservador, imagem negativa amplamente replicada nas mídias sociais durante a campanha eleitoral. Para os que defendem a candidatura Lula, ele aparece associado à causa LGBT e aos direitos. O então candidato à presidência Jair Bolsonaro é posicionado por seus críticos como homofóbico, misógino e racista, características que repercutem suas próprias falas públicas. As manifestações antipetistas, e contra a esquerda em geral, associam Lula ao aborto e à ideologia de gênero como signos de destruição da família. Essa abordagem aparece ainda no primeiro semestre tanto em celebração à prisão de Lula, como em convocar os eleitores para o voto antiaborto e pela família. A defesa desses valores e da moralização dos costumes aparece com maior frequência no segundo semestre, quando a campanha ganhou força. Nesse período ocorreu o maior investimento na disseminação de notícias falsas sobre a candidatura petista, geralmente pautadas em acusações morais; em compasso, nota-se que as adesões antipetistas à candidatura Bolsonaro foram consolidadas. Como o levantamento dos discursos nas Casas Legislativas evidenciou, as falas dos parlamentares foram intensificadas após o primeiro turno, levantando argumentos e contra-argumentos em torno dos perfis dos candidatos à presidência.

À “cultura de vida” versus “cultura de morte” associam-se noções como “cidadãos de bem” e “humanos direitos”, em oposição moral e fracionada das ideias de cidadania e direitos humanos. Essa captura de termos constrói uma gramática com conceitos e ideias aparentemente incomunicáveis com valores defendidos por determinados segmentos político-religiosos, vinculados à extrema-direita, mas que funcionam como argumentos laicos e modernos: democracia, liberdade de expressão, direitos. Além de serem argumentativos, em geral, objetivam alcançar destinatários para além dos limites do Parlamento ( Emediato, 2011EMEDIATO, Wander. (2011), “Diálogos Regulares e Interações discordantes”. Gláuks v. 11 n.1, pp. 145-174. )28 28 . Vale dialogar com estudos sobre “interações discordantes”, que podem ser heurísticas ou erísticas. Para o momento, esta última nos interessa em particular e carece de maiores aprofundamentos, tendo em vista os discursos (amplamente difundidos) de atores sociais em questão. Para o momento é importante destacar que “as refutações erísticas ocorrem em situações em que o antagonismo é fortemente marcado e os interesses individuais e egocêntricos suplantam os interesses comuns. Elas correspondem mais propriamente ao ideal do debate, no qual geralmente há um terceiro ( tiers ), que é o verdadeiro destinatário da argumentação. A situação de debate político, sobretudo eleitoral, é um bom exemplo” ( Emediato, 2011: 155). . Este é um movimento discursivo intensificado nos discursos disseminados com a efetivação do mandado de Jair Bolsonaro, em 2019, embora tenha sido identificado em situações anteriores.

É possível dizer que foi apenas a partir de agosto de 2018 que as eleições, em especial a presidencial, tomaram conta dos discursos proferidos pelos parlamentares nas casas legislativas. No acirramento do debate, os temas diversidade sexual e aborto emergiram como tópicos essenciais nos discursos e argumentos elaborados. De certa maneira, os pronunciamentos díspares, pró e contra, potencializaram e repercutiam o cenário político e midiático. A narrativa da “polarização” ocupou lugar de destaque, evidenciando controvérsias e posicionamentos em disputa, calcados em valores morais, confessionais e não-confessionais. Vale dizer que o acionamento desses temas não se restringe ao momento aqui recortado, mas há um histórico, um processo de inclusão de temas controversos no debate público, que é alimentado por diferentes atores sociais ( Duarte et al., 2009Duarte, Luiz Fernando; Gomes, Edlaine; Menezes, Rachel; Natividade, Marcelo (orgs.). (2009), Valores Religiosos e Legislação no Brasil: A tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond; FAPERJ. ; Machado, 2012Machado, Maria das Dores. (2012), “Aborto e Ativismo Religioso nas Eleições de 2010”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 7, pp. 25-54. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0103-33522012000100003>.
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, 2015Machado, Maria das Dores. (2015), “Religião e Política no Brasil Contemporâneo: uma Análise dos Pentecostais e Carismáticos Católicos”. Religião & Sociedade, v. 35, n. 2, pp. 45-72. , 2017Machado, Lia Zanotta. (2017), “O Aborto Como Direito e o Aborto Como Crime: o Retrocesso Neoconservador”. Cadernos Pagu, n. 50, pp. e17504. DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/18094449201700500004>.
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; Vital da Cunha e Lopes, 2013).

Após o segundo turno, os discursos contrários a Bolsonaro predominaram, em particular, enfocando a preocupação com o Estado de Direito e a Democracia. Considerando esses dados, não há grandes temas novos. São os mesmos temas morais que produzem historicamente as controvérsias e potencializam o discurso da polarização. Tópicos muito mencionados estão em continuidade com questões já levantadas em anos anteriores da mesma legislatura: as repercussões do projeto Escola sem Partido ou da ADPF 442 pela descriminalização do aborto ( Luna, 2019Luna, Naara.. (2019), “O Debate sobre Aborto na Câmara de Deputados no Brasil entre 2015 e 2017: Agenda Conservadora e Resistência”. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 33, pp. 207-272. DOI: <https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.33.12.a>.
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). O chamado kit gay apareceu, nesse momento, principalmente nas denúncias de parlamentares de esquerda, que buscam visibilizar a disseminação de mentiras.

Os temas que emergem como potenciais propulsores de controvérsias públicas são basicamente ligados a gênero e sexualidade e, em geral, percebidos como afronta à cultura e à moral cristã, consubstanciados na categoria de acusação “ideologia de gênero”. O outro tema levantado no ano foi o ENEM, em novembro, por conta de uma questão de língua portuguesa sobre o dialeto pajubá, usado por LGBTs – o que gerou reações da família Bolsonaro e repercutiu nas casas legislativas.

Com respeito às eleições, é importante comparar os posicionamentos dos integrantes das Casas Legislativas e dos atores externos, como nos casos de lideranças de igrejas evangélicas e do político Eduardo Cunha. O material de campanha desses religiosos apela diretamente para pontos da moral sexual e reprodutiva como conquistas a serem mantidas para defender a família e a vida, dentro de sua visão de moralidade cristã. Esses mesmos pontos apareceram, em associação com a campanha eleitoral nos discursos de um número significativo de parlamentares. Percebe-se um ritmo no teor dos pronunciamentos que se afinam com o material de campanha de candidatos das igrejas.

As manifestações antiaborto e antidiversidade, no primeiro semestre, são associadas à candidatura de Lula nas casas legislativas. A partir de agosto, esse tipo de posicionamento visou alavancar o voto conservador chamado pelas bandeiras contra o aborto e contra a ideologia de gênero, no sentido de defesa da família. Na Câmara dos Deputados, onde houve um número maior de pronunciamentos, as menções que associam os temas do aborto e da diversidade sexual ocorreram principalmente entre o primeiro e o segundo turnos, no caso dos pronunciamentos antiaborto e antidiversidade. Em geral, são discursos de deputados agradecendo aos eleitores pela reeleição e fazendo campanha para o candidato Jair Bolsonaro. Houve uma quantidade bem menor após o segundo turno celebrando essa eleição.

O debate foi quase todo em torno do discurso da polarização esquerda e direita. Houve um número ínfimo de manifestações referentes a outros candidatos que não os do PT e Bolsonaro. Como reação ao resultado das votações, os pronunciamentos da esquerda aumentaram significativamente em função do primeiro e do segundo turnos. Enquanto até agosto as manifestações da esquerda estão concentradas em celebrar o caráter inclusivo das políticas do PT, especialmente em associação com o governo Lula (além de duas falas comparando a arbitrariedade da prisão à perseguição a minorias, citando aí LGBT), após o primeiro e segundo turnos, tratam-se de falas reativas, de desmentidos de fake news , ou de denúncias acerca da postura antidemocrática e violenta do candidato presidencial Jair Bolsonaro.

Embora houvesse grande número de parlamentares com identidade religiosa pública se pronunciando, especialmente em manifestações conservadoras antiaborto e contra a “ideologia de gênero”, as falas de conteúdo explicitamente religioso não foram a maioria, mas sim a defesa da família, que, afinal, conjuga esses temas por conta de ser concebida no modelo cristão, monogâmico e heteronormativo. Por outro lado, houve um pequeno número de manifestações em linguagem religiosa para combater a candidatura de direita. Ressalta-se a ausência da fala pró-escolha, fato que repete resultados de estudos anteriores ( Luna 2017Luna, Naara.. (2017), “A Criminalização da ‘Ideologia de Gênero’: uma Análise do Debate sobre Diversidade Sexual na Câmara dos Deputados em 2015”. Cadernos Pagu, v. 50, pp. e175018. ). Nota-se que o tema fica submetido como pauta diante do ambiente eleitoral em função de sua impopularidade, já que também se tornou categoria de acusação ( Machado, 2012Machado, Maria das Dores. (2012), “Aborto e Ativismo Religioso nas Eleições de 2010”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 7, pp. 25-54. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0103-33522012000100003>.
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; Luna, 2014Luna, Naara. (2014), “A Controvérsia do Aborto e a Imprensa na Campanha Eleitoral de 2010”. Cadernos CRH, v. 27, n. 71, pp. 367-391. ). Trazer ao debate os discursos pronunciados nas casas legislativas no ano eleitoral, 2018, possibilitou contextualizar a construção e a repercussão do resultado da eleição presidencial, abrindo possibilidades de leituras sobre o contexto político atual.

Referências

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Fontes legislativas(na sequência de surgimento no corpo do artigo)

Notas

  • 1
    . O levantamento foi realizado como parte do projeto “Aborto e diversidade sexual no debate público sobre direitos humanos no Brasil: estatuto do nascituro, ‘ideologia de gênero’ e cura gay na interface natureza/cultura, direito e religião”, agraciado com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq para Naara Luna. Agradecemos aos assistentes de pesquisa Thaynara de Lima Alves (bolsa PIBIC CNPq), pelo levantamento na Câmara de Deputados, e Renan Benevides Chiletto (FAPERJ), pelo levantamento no Senado Federal e na ALERJ no ano de 2018. Agradeço também a Amanda Neves Fiusa Dias pelo trabalho na localização das referências dos discursos.
  • 2
    . Para a temática do aborto, foram consideradas as palavras-chave “aborto” e “nascituro”. Para a de diversidade sexual foram consideradas as seguintes: “LGBT”, “orientação sexual”, “homossexual”, “homossexuais”, “homossexualidade”, “homossexualismo”, “gay”, “gays”, “homofobia”, “bissexual”, “bissexuais”, “bifobia”, “lésbica”, “lésbicas”, “lesbofobia”, “transgênero”, “transgêneros”, “transexual”, “transexuais”, “travesti”, “travestis”, “transfobia”, “união homoafetiva”, “opção sexual” e “ideologia de gênero”.
  • 3
    . O apêndice no final do artigo mostra o corpus utilizado com a totalidade dos discursos.
  • 4
    . Vale considerar que, em relação ao aborto, há nuances nos posicionamentos públicos de algumas instituições do campo cristão, que mesmo reafirmando o “valor da vida” ( Gomes e Menezes, 2008Gomes, Edlaine de Campos; Menezes, Rachel Aisengart. (2008), “Aborto e eutanásia: dilemas contemporâneos sobre os limites da vida”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 18, pp. 77-103. ) admitem o abortamento em determinadas situações, conforme discutido por Gomes (2009)Gomes, Edlaine. (2009), “A religião em discurso: a retórica parlamentar sobre o aborto”, in: Duarte, Luiz Fernando; Gomes, Edlaine; Menezes, Rachel; Natividade, Marcelo (orgs.), Valores Religiosos e Legislação no Brasil: A tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro, Garamond; FAPERJ.
  • 5
    . Artigo de Miguel, Biroli e Santos (2017) sobre o direito ao aborto no Legislativo brasileiro revela a presença menor de mulheres entre parlamentares que discursam sobre o tema na Câmara dos Deputados (1991-2016). Isso sugere que a presença menor de falas de mulheres em 2018 não é um dado casual, nem mero resultado da menor proporção de mulheres no Parlamento.
  • 6
    . Vale lembrar os acontecimentos, então recentes, ocorridos em 2017, em torno desse debate: cancelamento da exposição QueerMuseu, em Porto Alegre; as polêmicas envolvendo nudez no Museu de Arte de São Paulo; e a controvérsia no âmbito da visita de Judith Butler ao país, acusada por grupos religiosos conservadores de promover “ideologia de gênero”. Segundo Butler, “Não sei ao certo que poder foi conferido à palestra sobre gênero que se imaginou que eu daria. Deve ter sido uma palestra muito poderosa, já que, aparentemente, ela ameaçou a família, a moral e até mesmo a nação”. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573806-judith-butler-escreve-sobre-sua-teoria-de-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil >.
  • 7
    . Para uma genealogia da expressão “ideologia de gênero” ver Junqueira (2018)Junqueira, Rogério Diniz. (2018), “‘Ideologia de Gênero’: uma Ofensiva Reacionária Transnacional”. Tempo e Presença, ano 2019, n. 32, pp. 1-22. Disponível em <https://www.koinonia.org.br/tpdigital/uploads/Ideologia-de-Genero-KN_out_2018.pdf>.
    https://www.koinonia.org.br/tpdigital/up...
    , que localiza a primeira vez que o termo foi utilizado em uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideologia de género: sus peligros y alcances, produzida pelo ultraconservador monsenhor Oscar Alzamora Revoredo. Disponível em < https://www.koinonia.org.br/tpdigital/uploads/Ideologia-de-Genero-KN_out_2018.pdf >.
  • 8
    . Segundo Nicolau (2014)Nicolau, Jairo. (2014), Determinantes do Voto no Primeiro Turno das Eleições Presidenciais Brasileiras de 2010: Uma Análise Exploratória. Opinião Pública, v. 20, n. 3, pp. 311-325. , sexo, idade, escolaridade e religião são variáveis exploradas pela literatura sobre comportamento eleitoral nas democracias tradicionais e no Brasil.
  • 9
    . Os discursos foram coletados a partir dos seguintes meios oficiais: Diário da Câmara dos Deputados (DCD), Diário do Senado Federal (DSF) e Diário do Congresso Nacional (DCN). No caso específico do Rio de Janeiro, o acesso aos discursos foi realizado por meio do site oficial da Assembleia Legislativa (SOAL).
  • 10
    . Será informada a religião do/a parlamentar na primeira menção no artigo, sempre que for identificada. Conforme dito de início, identidade religiosa pública é uma característica de várias pessoas envolvidas no debate.
  • 11
    . Foi constatado, depois, que a foto da Deputada Maria do Rosário e do Deputado Jean Wyllys foi editada para acusá-los de defender a pedofilia. Disponível em < https://veja.abril.com.br/blog/me-engana-que-eu-posto/jean-wyllys-e-maria-do-rosario-querem-descriminalizar-pedofilia >.
  • 12
    . O senador se refere à rejeição do recurso contra a condenação de Lula, pelo Juiz Sérgio Moro, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do apartamento triplex de Guarujá. A decisão foi tomada pelo TRF4 em 24/01/2018. “Em decisão unânime, tribunal condena Lula em segunda instância e aumenta pena de 9 para 12 anos”. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/julgamento-recurso-de-lula-no-trf-4-decisao-desembargadores-da-8-turma.ghtml >.
  • 13
    . Está expressa nesse processo a junção entre “teologia do domínio” e “teologia da prosperidade” (cf. Vital da Cunha e Evangelista, 2019), na qual se assume o trecho bíblico “o governo de Deus sobre todas as nações” e a percepção que não cabe ao “crente” uma vida de sofrimento, mas sim que seja próspera “no mundo” – conquista a ser efetivada por meio de disciplina e da disposição em colocar a “fé em ação” em todas as esferas sociais e individuais ( Gomes, 2011)Gomes, Edlaine (2011), A Era das Catedrais: a Autenticidade em Exibição (Uma Etnografia). Rio de Janeiro, Garamon; FAPERJ. .
  • 14
  • 15
    . Discutir o processo extremamente complexo que levou à condenação do presidente Lula está fora do escopo deste artigo. Para a análise do processo judicial e suas consequências ver Botelho e Peruzzo (2018)Botelho, Tiago; Peruzzo, Pedro. (2018), “A Omissão do TRF4 Frente à Incompetência e Suspeição do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba-PR no Processo que Condena à Prisão um Projeto de Democracia e Lula”, in: Proner, Carol; Cittadino, Gisele; Ricobom, Gisele; Dornelles, João Ricardo (eds.), Comentários a um acórdao: O processo Lula no TRF4. São Paulo, CLACSO, pp. 275-280. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/j.ctvn96ggq.43>.
    http://www.jstor.org/stable/j.ctvn96ggq....
    no tocante à suspeição do juízo. O livro inteiro organizado por Proner, Cittadino, Ribocom e Dornelles (2018) trata do processo. Sobre a cobertura da imprensa, ver Gobatto (2019)Gobatto, Lisiane Schuster. (2019), O Silenciamento do Dissenso nas Coberturas Jornalísticas sobre a Prisão de Lula. IX SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO. Anais do IX SEAD, 2019. A Análise do Discurso e suas condições de produção. Disponível em <http://anaisdosead.com.br/9SEAD/POSTERES/P4_LisianeSchusterGobatto.pdf>.
    http://anaisdosead.com.br/9SEAD/POSTERES...
    .
  • 16
  • 17
  • 18
    . Maria do Rosário discursou contra a ditadura militar e em comemoração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, denunciando as práticas de tortura. O deputado Jair Bolsonaro falou na tribuna em seguida, ofendendo a deputada. Cf. reportagem de Fernanda Galgaro, no canal G1, em 9/12/2014: “Bolsonaro repete que não estupra deputada porque ela ‘não merece’”. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/bolsonaro-repete-que-nao-estupra-deputada-porque-ela-nao-merece.html >.
  • 19
    . A foto de uma mulher sem rosto e centralizada na barriga revela a ênfase nos direitos do feto, eixo do debate antiaborto, e despersonaliza a gestante.
  • 20
    . Sóstenes foi eleito deputado federal em 2014 e reeleito em 2018. Fábio Silva foi eleito em 2018 para seu quinto mandato como deputado estadual na ALERJ.
  • 21
    . Segundo o inquérito policial, o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê foi “motivado por uma discussão político-partidária”. Moa, conforme apontam as investigações, disse “que era contra o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL)”. Em depoimento, o autor “afirmou que não cometeu o crime por conta da divergência política, e sim porque foi xingado após se desentender com o capoeirista, por causa das preferências políticas de cada um”. Disponível em: < https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/10/17/investigacao-policial-conclui-que-morte-de-moa-do-katende-foi-motivada-por-briga-politica-inquerito-foi-enviado-ao-mp.ghtml >.
  • 22
    . O nome da vítima não é citado no discurso nem na notícia veiculada pelo canal G1. Disponível em < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/10/16/travesti-e-morta-a-facadas-durante-briga-em-bar-no-centro-de-sp.ghtml >.
  • 23
  • 24
  • 25
    . Rebatendo essa acusação, o discurso de Carneiro relatou os vínculos da coordenadora Maria Inês Fini no MEC durante o governo Fernando Henrique Cardoso e seu retorno no governo “ilegítimo” de Michel Temer. Esclareceu o processo de confecção das provas por centenas de profissionais e informou a existência de um banco de questões para selecionar as que serão usadas em cada edição do exame.
  • 26
  • 27
  • 28
    . Vale dialogar com estudos sobre “interações discordantes”, que podem ser heurísticas ou erísticas. Para o momento, esta última nos interessa em particular e carece de maiores aprofundamentos, tendo em vista os discursos (amplamente difundidos) de atores sociais em questão. Para o momento é importante destacar que “as refutações erísticas ocorrem em situações em que o antagonismo é fortemente marcado e os interesses individuais e egocêntricos suplantam os interesses comuns. Elas correspondem mais propriamente ao ideal do debate, no qual geralmente há um terceiro ( tiers ), que é o verdadeiro destinatário da argumentação. A situação de debate político, sobretudo eleitoral, é um bom exemplo” ( Emediato, 2011EMEDIATO, Wander. (2011), “Diálogos Regulares e Interações discordantes”. Gláuks v. 11 n.1, pp. 145-174.: 155).

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Fev 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2021
  • Revisado
    5 Mar 2022
  • Aceito
    17 Abr 2022
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