Open-access Sentidos da Cultura em suas Relações com a Religião:Políticas Culturais e Diversidade Religiosa no Brasil*

Meanings of Culture in Relation to Religion: Cultural Policies and Religious Diversity in Brazil

Les Significations de la Culture dans leur Relations avec la Religion: Politiques Culturelles et Diversité Religieuse au Brésil

Sentidos de la Cultura en sus Relaciones con la Religión: Políticas Culturales y Diversidad Religiosa en Brasil

RESUMO

Que sentidos assume a noção de cultura em políticas públicas que implicam agentes religiosos no Brasil? Apresentar respostas para tal pergunta é o objetivo deste artigo. Para tanto, analisam-se três áreas nas quais ocorrem investimentos estatais relacionados à “cultura” que incidem sobre universos religiosos: projetos que buscam recursos por meio da assim chamada Lei Rouanet; projetos contemplados como Pontos de Cultura; e projetos que visam o fortalecimento do turismo cultural relacionado à religião. Com a utilização de estatísticas e o emprego de narrativas etnográficas, o texto analisa o modo como se concebe e se apropria a categoria “cultura” considerando os pressupostos das políticas públicas abordadas e as configurações assumidas por situações concretas. O pano de fundo para a análise são discussões acerca da objetificação da noção de cultura, que tem se tornado parte de vernáculos sociais e tem se vinculado a demandas por direitos ou se envolvido em amplos conflitos de interpretação. As conclusões salientam a relação dos vários sentidos assumidos por essa noção com quadros mais ou menos pluralistas acerca da diversidade religiosa no Brasil atual.

cultura; políticas culturais; catolicismo; evangélicos; religiões afro-brasileiras

ABSTRACT

What meanings does the notion of culture take in public policies that involve religious agents in Brazil? Presenting answers to such a question is the aim of this article. To this end, three areas in which state investments related to “culture” target religious universes are analyzed: projects that seek resources through the so-called Rouanet Law; projects contemplated as “Points of Culture”; and projects aimed at strengthening cultural tourism related to religion. Using statistics and ethnographic narratives, the text analyzes the way in which the category of “culture” is conceived and appropriated, considering the assumptions of the public policies addressed and the configurations assumed by concrete situations. The background for this analysis concerns the objectification of the notion of culture, which has become part of social vernaculars and has been linked to demands for rights or involved in wide conflicts of interpretation. The conclusions highlight the relationship of the various meanings assumed by this notion with more or less pluralistic contexts about religious diversity in Brazil today.

culture; cultural policies; catholicism; evangelicals; afro-brazilian religions

RÉSUME

Quelle signification la notion de culture prend dans les politiques publiques qui impliquent des agents religieux au Brésil? Le but de ce texte est de présenter des réponses à une telle question. A cet effet, on analyse trois domaines dans lesquels interviennent les investissements de l’Etat liés à la «culture» qui affectent les univers religieux: les projets de recherche de ressources à travers la Loi Rouanet; projets envisagés comme Pontos de Cultura; et des projets visant à renforcer le tourisme culturel lié à la religion. Avec l’utilisation de statistiques et l’utilisation de récits ethnographiques, le texte analyse la manière dont la catégorie “culture” est conçue et appropriée compte tenu des hypothèses des politiques publiques abordées et des configurations assumées par les situations concrètes. Le scénario de l’analyse est caracterizé par discussions sur l’objectivation de la notion de culture, qui est devenue une partie des langues vernaculaires sociales et a été liée à des revendications de droits ou impliquée dans de larges conflits d’interprétation. Les conclusions mettent en évidence la relation des différentes significations assumées par cette notion avec des images plus ou moins pluralistes de la diversité religieuse au Brésil aujourd’hui.

culture; politiques culturelles; catholicisme; évangéliques; religions afro-brésiliennes

RESUMEN

¿Qué sentidos asume la noción de cultura en políticas públicas que involucran a agentes religiosos en Brasil? Presentar respuestas para tal pregunta es el objetivo de este texto. Para ello, se analizan tres áreas en las cuales ocurren inversiones estatales relacionadas a la “cultura” que inciden sobre universos religiosos: proyectos que buscan recursos por medio de la así llamada Lei Rouanet; proyectos contemplados como Puntos de Cultura; y proyectos que buscan el fortalecimiento del turismo cultural relacionado a la religión. Con el uso de estadísticas y el empleo de narrativas etnográficas, el texto analiza el modo en cómo se concibe y se apropia la categoría “cultura” considerando los presupuestos de las políticas públicas abordadas y las configuraciones asumidas por situaciones concretas. El telón de fondo para el análisis son las discusiones acerca de la objetivación de la noción de cultura, que se ha tornado parte de vernáculos sociales y se ha vinculado a demandas por derechos o se ha visto involucrado en amplios conflictos de interpretación. Las conclusiones resaltan la relación de los distintos sentidos asumidos por esa noción con perspectivas más o menos pluralistas acerca de la diversidad religiosa en el Brasil actual.

cultura; políticas culturales; catolicismo; evangélicos; religiones afrobrasileñas

INTRODUÇÃO

Encontramos em Roy Wagner (2010) uma das mais interessantes e sofisticadas elaborações sobre a noção de cultura na antropologia contemporânea. Ao sustentar que a cultura é inventada, seu livro aponta uma solução interessante para dilemas que apenas alguns anos depois da sua publicação se tornaram candentes. Refiro-me a debates sobre a noção de cultura frequentados por posições que demandam sua defesa (Sahlins, 1997), sua revisão (Overing, 2000; Trouillot, 2003) ou seu descarte (Abu-Lughod, 1991). Quanto mais nos aproximamos do final do século passado, mais fica evidente como nesses debates havia uma preocupação em reagir ao que se denomina objetificação da cultura, a saber, a constatação de que a categoria cultura volta a ter lugar destacado em vernáculos sociais, vinculada a demandas por direitos ou envolvida em amplos conflitos de interpretação (Wright, 1999; Cowan e Dembour, 2001; Comaroff e Comaroff, 2009; Kuper, 2002a; Velho, 1997). O livro de Wagner não foi escrito com esse pano de fundo, mas o modo como propõe sua noção de cultura permite contemplar situações que são o foco de debates sociológicos atuais.

Deu-se, com razão, destaque à proposta wagneriana da antropologia reversa, por sua valorização de ontologias e epistemologias que não dependem da palavra cultura para se relacionar com a alteridade (Goldman, 2011). Mas essa operação reflexiva permite empreender um movimento em outra direção, ou seja, voltado diretamente para a sociedade que inventou e continua a adotar a categoria cultura, pois Wagner não isola o uso antropológico dessa categoria de outros usos. Ao contrário, esboçando uma genealogia que outros (Eagleton, 2003; Kuper, 2002b; Williams, 2007) saberão elaborar em detalhe, sugere que eles podem ser conectados pela ideia de extensão. Ou seja, o conceito antropológico de cultura é uma derivação de outras concepções da mesma palavra que existiam anteriormente. Embora seja possível ler o argumento de Wagner como uma tentativa de consolidar a distinção permitida por essa extensão, ele também autoriza que nos perguntemos como diferentes entendimentos e empregos da categoria cultura continuam a conviver em uma dada sociedade.

A partir dessas considerações é possível fazer a problemática wagneriana dialogar com debates sociológicos acerca da democratização da cultura. Dois exemplos desse debate podem ser referidos, ambos voltados para a realidade brasileira, também o contorno do campo empírico deste artigo. Isaura Botelho (2016) refere-se a concepções antropológicas e a concepções sociológicas como componentes de políticas públicas. Para ela, a articulação entre essas concepções – mais do que a valorização do popular diante do erudito – é um ponto necessário a qualquer proposta de democracia cultural. Lima e Ortellado (2013) intervêm no debate sinalizando para duas possibilidades de democratização da cultura. Uma que parte de um conceito restrito de cultura, o qual opera por hierarquizações e especializações profissionais, que seria difundida por políticas públicas a fim de atingir o maior número possível de pessoas, e outra, que depende de um conceito ampliado (“cultura como experiência ordinária, vinculada à formação de significados e valores e, em última instância, aos modos de vida” (Lima e Ortellado, 2013:356)) e que por essa razão apoia a cultura como produção generalizada mais do que como consumo de produtos específicos. Vale assinalar que esses debates acerca da democratização da cultura envolvem dimensões políticas e econômicas, quando a cultura se associa a demandas identitárias e a processos de mercantilização1.

É à luz desses debates que se estrutura a análise que apresento a seguir. Ela intersecciona as discussões acima referidas em um ponto bastante específico: quais os entendimentos e empregos da categoria cultura quando ela se relaciona com o universo das religiões no Brasil contemporâneo? Quando me refiro ao universo das religiões, um traço fundamental é a consideração da diversidade (Giumbelli, 2008). Essa diversidade é contemplada, para fins analíticos, tendo por critério uma classificação bem estabelecida em debates intelectuais sobre o campo religioso brasileiro (Montero, 1999). Com base nisso, três segmentos desse campo estarão especialmente em foco: o catolicismo, o dos evangélicos, e o das religiões afro-brasileiras. Também três são as áreas que serviram para a sistematização de dados – todas elas, mas com várias especificidades, voltadas para o incentivo cultural. Na próxima seção, detalho essas políticas estatais e aponto como elas incidem ou envolvem a variável religiosa. A existência dessa variável foi adotada como critério para a escolha dessas políticas. Outro ponto fundamental é a caracterização das concepções de cultura que estão em jogo em cada uma das políticas circunscritas, o que permite retomar a discussão acima esboçada. Minhas fontes são documentos ou análises que dão acesso às definições básicas das três políticas públicas.

Nas três seções seguintes, busco apresentar dados que articulam perspectivas etnográficas (não apenas de minha autoria) e levantamentos estatísticos. O objetivo, nesse caso, é produzir uma aproximação dos modos pelos quais agentes religiosos ou projetos que envolvem religião se relacionam com políticas públicas que dependem de referências a cultura. Para cada uma das políticas, apresento dados quantitativos2que permitem avaliar o modo como a diversidade religiosa, nos termos acima definidos, é contemplada. Além disso, em cada uma das políticas relato casos que remetem a um dos três segmentos do campo religioso, buscando mostrar como se configuram situações específicas de relação entre religião e políticas públicas. Essas configurações não estão dissociadas das concepções de cultura que informam as políticas públicas enfocadas aqui. Tanto os casos etnográficos quanto os levantamentos estatísticos certamente merecem abordagens mais aprofundadas, mas espero que os resultados discutidos adiante sejam relevantes para produzir diálogos entre antropologia e sociologia e para pensarmos sobre as variadas relações entre cultura e religião no Brasil, pelo menos nos pontos para os quais chamo a atenção nas considerações finais.

Antes de prosseguir, vale ressaltar dois pontos. Primeiro, reconheço que a discussão wagneriana acerca do conceito de cultura está longe de ser a única possível para referenciar a análise que proponho. Aposto, no entanto, que o recurso às elaborações de Wagner contribui para pluralizar o modo como esse autor é acionado, a saber, não para tratar de situações de encontro intercultural, mas para refletirmos sobre a pluralidade de concepções de cultura em uma mesma sociedade. De todo modo, e esse é o segundo ponto, a principal contribuição pretendida por este artigo é analítica. Trata-se de caracterizar, por meio de operações estatísticas e recursos etnográficos, as relações que se instauram entre cultura e religião, mais especificamente, entre políticas culturais e diversidade religiosa. Enquanto que estão bem estabelecidas as constatações de pluralidade tanto de concepções de cultura quanto de formas religiosas no Brasil, relacionar essas variáveis permanece uma abordagem pouco comum. A contribuição deste artigo incide nesse ponto, tomando a reflexão wagneriana, e sua relevância, como referência.

APRESENTAÇÃO GERAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E SUAS CONCEPÇÕES DE CULTURA

Este artigo é parte de um projeto cujo tema geral são as relações entre cultura e religião no Brasil, consideradas ambas como categorias sociais. Tendo já desenvolvido análises a partir de cada universo religioso específico – católico, evangélico e afro-brasileiro (respectivamente, Giumbelli, 2019, 2018a, 2018b) –, faltava trabalhar em terrenos em que esses universos aparecessem conjuntamente. E não se trata meramente de justapor evidências e conclusões anteriores, mas de fazer uma nova contribuição, propondo outra articulação entre dados e perspectivas analíticas. Para tanto, ocorre uma inversão do sentido em que se desenham as questões de pesquisa, agora focando na “cultura” para chegar na “religião”. Na construção dessa abordagem, um critério definidor foi se tratar de políticas estatais, seguindo a ênfase do projeto de referência sobre as relações entre religião e espaço público. Apresento, assim, universos que produzem o encontro entre políticas estatais e referências religiosas. Nesta seção, minha preocupação é apontar as diferentes concepções de cultura em jogo, considerando as feições de certas políticas públicas, e sinalizar para a ocorrência de referências religiosas3.

Comecemos pelas políticas de incentivo cultural propiciadas pelo sistema de procedimentos vinculado à assim chamada Lei Rouanet. Trata-se de um sistema montado e consolidado ao longo dos anos 1990, envolvendo renúncia fiscal por parte do Estado como contrapartida à participação privada como doador/patrocinador em projetos culturais (Belem e Donadone, 2013). Se analisarmos a principal norma que orienta esse sistema, constatamos que a concepção de cultura que nela predomina é a que Wagner (2010) se refere como a da “sala de ópera” e que Lima e Ortellado chamam de “conceito restrito”. Em outras palavras, cultura é entendida como atividade especializada (música, cinema, teatro, exposições, edição de livros etc.), com seu universo de produtores (artistas) e de instituições correspondentes (museus, casas de espetáculos, bibliotecas, arquivos etc.). Um produtor cultural elabora um projeto e o submete para avaliação a fim de que possa ser aprovado para a captação de recursos.

A intersecção do sistema vinculado à Lei Rouanet com o universo religioso ficou evidente com a criação da Lei 12.580, de 2011. Por meio dessa lei, “ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas”. “Música gospel” é como têm sido identificadas as produções musicais de vários gêneros com temática cristã e voltadas ao consumo de massa. Articulando reivindicações simbólicas de pertencimento à narrativa nacional com as demandas de consolidação econômica de um expressivo circuito de produção cultural, a “lei do gospel” foi uma iniciativa de um deputado federal ligado à Frente Parlamentar Evangélica (Sant’ana, 2013). Ela levantou duas perguntas: com que iniciativas esse dispositivo tem se relacionado e que outras religiões aparecem associadas a demandas elaboradas em projetos apoiados pela Lei Rouanet?

As mesmas perguntas foram dirigidas tendo como referência um segundo universo, delimitado pelo Programa Cultura Viva, criado pelo Ministério da Cultura, em 2004, e depois desenvolvido em parcerias com as Secretarias Estaduais. Esse programa financia instituições que elaboram projetos para se constituírem como “pontos de cultura”. O leque de atividades e dimensões que estão cobertos pela proposta dos Pontos de Cultura é mais amplo que o da Lei Rouanet e mantém relação com ideias de cidadania digital e de organização em rede. Isso se deve, ao menos em parte, à presença de outra concepção de cultura, como deixa clara a seguinte apresentação:

Trata-se de uma política cultural que ressalta a capacidade (...) de qualquer pessoa, conectada a um computador, poder participar da formação cultural do seu país, atuando na produção de textos, vídeos, fotos, websites e o que mais houver no horizonte. Afinal, a cultura de um país é formada nas conversas e embates que acontecem no cotidiano, no dia a dia, e não apenas pelo cânone que passa pelo filtro do mercado cultural. (Ferraz e Lemos, 2011:10)

A relação com o universo religioso foi percebida em notícias que apontavam a constituição de Pontos de Cultura em instituições nas quais havia a prática de religiões afro-brasileiras. O terreiro que será apresentado adiante é um exemplo disso. O edital que serviu de referência para a elaboração do projeto menciona explicitamente a categoria que nos interessa:

O programa parte de um conceito amplo de cultura, como redes de signos e significados socialmente construídos, compartilhados e transformados ao longo da história, produzidos pelos produtores das diferentes e semelhantes formas de perceber, pensar e agir no mundo, sendo as manifestações artísticas uma de suas expressões. (Rio Grande do Sul, 2012)

Note-se que, distintamente da Lei Rouanet, as manifestações artísticas são deslocadas de uma posição de parâmetro. Esse deslocamento vai ao encontro do que Wagner propõe ser uma concepção antropológica de cultura, com sua ênfase na totalidade (por oposição à segmentação) e na autodeterminação (no sentido de que qualquer pessoa é um produtor cultural)4.

O terceiro universo sobre o qual este texto se debruça não é uma política de incentivo à cultura no mesmo sentido que as duas anteriores. Mas também depende da noção de cultura e envolve a ação estatal. Trata-se da categoria “turismo cultural” tal como adotada pelo Ministério do Turismo. Em uma publicação oficial sobre marcos conceituais (Brasil, 2006), lemos que: “Turismo Cultural compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura”. Não há uma definição para o termo “cultura”, mas podemos depreender que ela depende de uma oposição com a natureza – à qual se associam outros “segmentos turísticos” (por exemplo, “ecoturismo”) – e deixa de fora “estudos e intercâmbio” e “negócios e eventos”. Ou seja, a concepção de cultura que orienta essas elaborações não é a das manifestações artísticas, mas se beneficia como essa de mecanismos de distinção – no caso, conferidas por agentes que autenticam reivindicações de “patrimônio” ou que se relacionam com outras políticas públicas e/ou empreendimentos econômicos. Além disso, é uma concepção que valoriza mais produtos (“bens”) do que o processo (tal como vimos no caso anterior), entrando em sintonia com o entendimento descrito por Yúdice (2006) no qual cultura é um recurso que gera e atrai investimentos. Em termos wagnerianos, podemos afirmar que essa concepção é uma extensão estabelecida a partir de outros sentidos conferidos à mesma categoria.

Segundo o mesmo documento (Brasil, 2006), o turismo cultural pode ser “cívico”, “religioso”, “místico e esotérico”, “étnico” e/ou “gastronômico”. Em abril de 2013, o Ministério do Turismo lançou um “processo seletivo de projetos de fortalecimento do turismo religioso no Brasil” (Brasil, 2013)5. O processo mobilizou recursos que seriam destinados a cinco projetos, um para cada macrorregião brasileira (Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste). Em resposta ao edital foram enviados 193 projetos até julho de 2013, a maior parte deles propostos por secretarias estaduais e, sobretudo, prefeituras municipais. Se retornamos ao documento já citado, encontraremos que turismo religioso “configura-se pelas atividades turísticas decorrentes da busca espiritual e da prática religiosa em espaços e eventos relacionados às religiões institucionalizadas.” (Brasil, 2006). Admitindo que muitos lugares “representam importante legado artístico e arquitetônico das religiões”, o documento esclarece que “as viagens motivadas pelo interesse cultural ou apreciação estética do fenômeno ou do espaço religioso serão consideradas simplesmente Turismo Cultural”. Ou seja, é preciso que o deslocamento tenha como motivação a fé. Daí as perguntas que buscarei responder adiante, considerando os resultados do edital de 2013: Que religiões são contempladas pelos projetos de turismo religioso? E, tomando um caso específico, quais concepções de cultura são fortalecidas?

A LEI ROUANET E AS RELIGIÕES

Situado na região metropolitana de Porto Alegre, o município de São Leopoldo abrigava, de acordo com o Censo de 2010, pouco mais de 200 mil habitantes. Na cidade, em 2012, ocorreu pela segunda vez a Marcha para Jesus. Trata-se de um evento que começa a ser promovido no Brasil nos anos 1990 e que se tornou um dos momentos de maior visibilidade pública dos evangélicos e parte importante dos processos que produzem essa identidade coletiva (Sant’ana, 2017). Em 2010, uma lei municipal instituiu o Dia do Evangélico em São Leopoldo. Em 2011, aproximadamente 10 mil pessoas compareceram à Marcha para Jesus na cidade gaúcha. Para isso, contou com o envolvimento de um pastor que já participara da organização de várias edições em São Paulo, foco pioneiro desse acontecimento que junta passeata, música e política. Em São Leopoldo, esse pastor, que criou uma empresa de eventos, foi introduzido ao Conselho de Pastores local (CONPAS-SL), o qual deu apoio à Marcha para Jesus. Em 2012, cerca de 30 mil pessoas caminharam na contramão pela principal avenida da cidade, concentrando-se afinal diante do palco onde tiveram a oportunidade de escutar, entre números musicais e pregações religiosas, as palavras do então governador do Rio Grande do Sul (Oliveira, 2015).

A edição de 2015 da Marcha para Jesus em São Leopoldo foi acompanhada por Fabio Vaqueiro Oliveira, que elaborou seu Trabalho de Conclusão do Curso em Ciências Sociais sobre o tema (Oliveira, 2015). Com esse acompanhamento, foi possível acessar várias dimensões da preparação e realização do evento. Em 2015, o próprio CONPAS-SL assumiu a organização do evento. Oficialmente, os preparativos se iniciaram dois meses antes do dia da Marcha, que ocorreu em data significativa para os herdeiros da Reforma – 31 de outubro. Houve um jantar de lançamento, ao qual compareceram 90 casais representantes de congregações da cidade, cobrindo um leque denominacional que ia desde algumas igrejas históricas, algumas igrejas históricas avivadas (ou renovadas) e muitas igrejas pentecostais e neopentecostais. Durante o jantar, houve a apresentação de cartazes, panfletos e camisetas temáticas da Marcha, além de depoimentos de artistas e produtores locais e de um deputado estadual, tudo com a transmissão de uma rádio evangélica. Alguns dias antes da Marcha, tiveram lugar atividades de “evangelismo” – uma vigília dentro de um templo e uma visita a um monte que terminou na consagração da praça onde ocorreria o evento. Esse se iniciou com a convocação feita por dois músicos, com um discurso do prefeito e com a oração do pastor. A multidão pôs-se em movimento, acompanhada por dois trios elétricos, em um circuito que passou pela Câmara de Vereadores e retornou ao ponto inicial. Então aconteceu o show de música gospel que tradicionalmente encerra as Marchas. Estrelado por artistas nacionalmente conhecidos, durou cerca de 90 minutos com a performance de hinos tradicionais em ritmo pop.

Chamo a atenção para dois tópicos na promoção da Marcha para Jesus em São Leopoldo. O primeiro tem a ver com a série de eventos que sua preparação e realização envolve. Jantares sociais, vigílias, visitas a montes, consagrações que fazem parte da organização e o próprio show com que culmina a Marcha encenam variantes de culto. Ou seja, em todas essas ocasiões há a presença de pastores e se invocam forças divinas, mas a feição que elas assumem depende de sua combinação com o que Meyer (2019) chama de formas sensoriais. Essas formas são definidas pelos lugares em que os eventos ocorrem (nunca apenas templos), pelos atores que eles reúnem (nunca apenas religiosos), pelas tecnologias que mobilizam (nunca apenas a comunicação direta pela voz). O segundo tópico refere-se à relação com a cidade, evidenciada pelo trajeto percorrido pela Marcha: a ocupação de pontos centrais. A relação com a cidade também é evidenciada nos discursos que emanam ou justificam a Marcha, que passam necessariamente pela ideia de “ganhar São Leopoldo para o Senhor Jesus Cristo”. Ambos os tópicos dependem e promovem a unidade evangélica, ainda que ela seja sempre relativa e contingente. Mas é isso que é literalmente performado pelo material visual especialmente preparado para o evento e renovado a cada ano.

A questão que interessa a este artigo pode ser formulada nos seguintes termos: como variantes de culto e formas discursivas e espaciais de ocupação da cidade se transformam em “cultura”? Encontramos uma resposta direta em uma proposta encaminhada ao Ministério da Cultura visando a obtenção de recursos por meio da Lei Rouanet. Intitulado “Música gospel na Marcha para Jesus. Agenda 2014”, o projeto incluía a cidade de São Leopoldo no seu escopo. É preciso notar que, segundo Oliveira (2015:25), entre 2011 e 2013 houve apoio financeiro da prefeitura ao evento, “caracterizado como subvenções sociais, no item Projetos de Fomento às Iniciativas na Música, gerido pela Secretaria de Cultura do município”. Sempre houve outras fontes de receita, como a contribuição das igrejas participantes, a venda de camisetas e o patrocínio de empresários locais – do evento resultava a arrecadação de produtos não perecíveis, que, em 2015, atingiram 250kg (Oliveira, 2015). Mas é o envolvimento de agentes estatais que merece ser destacado, e como isso passa pelo acionamento da categoria “cultura”.

O projeto, que visava a captação de recursos fundamentado em uma lei federal, cobria seis municípios, não muito distantes de São Leopoldo6. Ele era explicitamente motivado pelo êxito da Marcha para Jesus na sua edição de 2012, que consolidou a cidade como sede do “maior evento interdenominacional do estado do Rio Grande do Sul”. O projeto apostava na possibilidade de articular a realização de marchas com apresentações musicais e também de dança e teatro, além de “palestras e preleções”. Por um lado, o texto da proposta busca retratar os eventos como abertos a um “público constituído por todas as classes sociais, econômicas, e religiosas”, caracterizar seus objetivos como ecumênicos (“a unidade das religiões através da cultura”) e enfatizar os resultados seculares de suas ações (“o resgate de famílias e principalmente nossos jovens que estão cada dia mais expostos à violência urbana e uso de drogas”). Por outro, não é difícil enxergar o viés religioso que informa essa proposta, como mostram a inclusão de pastores como palestrantes, a identidade gospel das atrações musicais, a peça teatral que se intitula Gênesis e mesmo a apresentação de dança destinada a encenar passagens da vida de Cristo, descrita como “a mais linda história de amor que atravessou épocas e mudou a trajetória da humanidade”. Em suma, sem deixar de adotar livremente um formato que segue a concepção de cultura como belas artes, a proposta integra atividades, dimensões e finalidades religiosas.

O texto ainda faz uma menção direta à lei de 2012 que incluiu o gênero gospel entre os beneficiários de recursos da Lei Rouanet. Depois dessa menção, o projeto afirma almejar colocar “tanto a Marcha para Jesus quanto a Música Gospel de forma definitiva no calendário cultural do estado do Rio Grande do Sul”. De acordo com os registros do Ministério da Cultura, não houve captação de sequer um centavo no âmbito desse projeto. Pode-se especular que a razão para isso tenha sido as “parcerias” apontadas por seu proponente, que não incluíram o CONPAS-SL, o qual, por sua vez, se afastaria do ministério acima mencionado para a realização da Marcha para Jesus. Quanto ao proponente, trata-se do proprietário de uma empresa aberta em 2013 voltada para serviços de organização de feiras, congressos, exposições e festas. A única exigência da Lei 12.590 em relação aos proponentes é que as propostas não partam de igrejas. Essa condição, se pode estimular o surgimento de produtoras culturais, levanta a questão de como se firma a relação desses atores com as igrejas que também se envolvem nas Marchas para Jesus.

Especulações à parte, o fato é que o projeto gaúcho remete ao universo de propostas relacionadas à promoção do gospel que vêm sendo aprovadas nos trâmites definidos pela Lei Rouanet. Uma visão geral desse universo nos fornecerá outros elementos para entendermos quais concepções de cultura estão em jogo7. Uma consulta que cobre um período que vai de 2009 a 2018 constata que apenas 0,05% dos projetos aprovados – ou seja, 42 em um universo de 88.946 casos – tem relação explícita com o gospel. Um levantamento mais específico foi realizado tendo como base o ano de 2015. Nesse caso, a partir de palavras-chaves, procurou-se por projetos aprovados que fizessem menção explícita a agentes ou a conteúdos religiosos em geral8. O resultado chegou a 57 registros, o que equivale a cerca de 1% do total, que é de 5.407 projetos naquele ano. Pode-se com esses dados afirmar que é ínfima a participação de projetos com relação explícita com religião no universo de iniciativas passíveis de serem beneficiadas pela Lei Rouanet.

Esse dado não tira o interesse de sabermos quais referências religiosas são essas que surgem nos 57 projetos de 2015. Considerando a divisão tripartite entre catolicismo, religiões evangélicas e religiões afro-brasileiras, temos a seguinte distribuição:

Percebe-se que mais da metade dos registros se referem ao catolicismo. Dos 37 casos, nada menos que 17 estão vinculados a encenações da Paixão de Cristo. Eis aí um universo de eventos pouco analisado ainda. Nele, a relação entre religião e arte (em outro plano, entre comunidade religiosa e performance artística) é algo intrigante. Fica claro que essas encenações são um dos canais privilegiados para a apresentação da religião como cultura no caso do catolicismo. Três outros casos envolvem também a relação entre arte e religião: a produção de um CD de músicas sacras eruditas, um festival de música e a decoração artística de um templo. Em dois casos, templos católicos apenas abrigam festivais artísticos, algo que aponta para a utilidade variada desses locais. Finalmente, uma boa quantidade de registros tem a ver com a relação entre construções católicas e políticas de patrimônio: nove vinculam-se com templos que foram tombados ou são objeto de outras medidas de proteção, e seis propõem obras de restauração em templos dessa natureza. São situações em que se evidenciam processos que associaram o catolicismo a uma concepção de alta cultura, vazada em termos artísticos e/ou patrimoniais. Mas esse não é necessariamente o caso das encenações da Paixão.

Os registros relacionados ao universo afro tratam de diversas situações, na maioria das quais os índices religiosos se encontram imersos e até mesmo indistintos em referências culturais, nem sempre relacionadas ao que Wagner chama de “sala de ópera”: gravação de CD de músicas de afoxé, evento de música percussiva, atividades de blocos que atuam no carnaval, planejamento de um centro cultural e outro de um centro de pesquisas. Em três dos 10 casos, temos projetos mais diretamente ligados à religião: dois livros sobre as mitologias dos orixás e um projeto de “museu do candomblé”. Ainda dois dos três registros que foram agrupados na categoria “outros” têm alguma relação com o universo afro-brasileiro. Trata-se de composições musicais para uma “missa afro-brasileira” e do projeto de uma “vila temática”, que inclui “artesanato sacro”, em torno da igreja do Bonfim em Salvador, cujo vínculo com o sincretismo afrocatólico é bem conhecido. O outro projeto sem relação com o universo afro ou católico é o de restauração do prédio da Igreja Positivista no Rio de Janeiro.

Concluamos a apresentação do universo de projetos com os sete registros atrelados à religião evangélica. Aqui, é interrompida a variedade de situações com que nos deparamos quando partimos seja em busca de referências católicas, seja em busca de referências afro-brasileiras. Os casos são todos relacionados à música gospel, quase sempre festivais, eventualmente incluindo ou se dedicando a gravações de CD ou DVD. Há apenas um caso de espetáculo teatral, mas mesmo aí se trata de encenar a biografia de uma cantora gospel. Isso nos permite afirmar que, no caso evangélico, a tradução de religião e cultura faz-se basicamente por meio do gospel. Se retomamos à situação de São Leopoldo, dois pontos ainda podem ser acrescentados. Primeiro: a existência de uma profissionalização “desde dentro”, ou seja, são evangélicos que se desdobram para criar as estruturas (produtoras) que ficam com o encargo de fazer aquela tradução. Segundo: a elaboração de um discurso moral que, por sua vez, garante a tradutibilidade entre religião e cultura. Por conta dessa característica, em vez de um valor cultural intrínseco que no Brasil se construiu no reconhecimento de heranças católicas e afro-brasileiras (Mafra, 2011), os projetos evangélicos precisam sugerir as vantagens sociais de sua realização. Também isso destoa das referências dominantes nas normas da Lei Rouanet em termos de concepção de cultura. Para uma ilustração, vejamos mais um trecho do projeto analisado acima, “Música Gospel na Marcha para Jesus”, que declara:

(...) oferecer a oportunidade do Ministério da Cultura elevar sua imagem numa série de eventos com massiva aceitação popular, projeto em que sabemos que são respeitados os preceitos e normas de sociabilidade, comportamento e valores humanos e muito mais. (idem)

PONTOS DE CULTURA E AS RELIGIÕES

A Associação Beneficente Cultural Africana Templo de Yemanjá (Assobecaty) é um templo de religião afro-brasileira (batuque e umbanda são praticadas na casa) sob a responsabilidade de mãe Carmen de Oxalá. Ela herdou a casa de sua mãe, que começara as atividades religiosas na cidade de Pelotas e depois as transferiu para Guaíba, município com quase 100 mil habitantes na região metropolitana de Porto Alegre. Apesar de suas muitas ações, como logo veremos, a associação ocupa uma casa de proporções modestas. Mãe Carmen é formada em psicologia e se tornou uma das principais referências no universo afrorreligioso gaúcho. Tive a oportunidade de conhecer a associação e sua liderança em uma ocasião, mas a descrição que ofereço a seguir deriva dos trabalhos de Marcello Múscari (2014, 2015), que realizou lá a pesquisa para sua dissertação de mestrado. Múscari demonstra as articulações entre tradição e modernidade nas ações da Assobecaty e sua capacidade para costurar vetores e agentes de várias naturezas.

Um exemplo é o “telecentro” abrigado pela associação, no mesmo lugar onde havia sido criada uma biblioteca e depois de ter frustrado o projeto de rádio comunitária. Em 2014, cerca de dez computadores de uso público estavam disponíveis e uma ação estimulada era a criação de blogs. Cada máquina era identificada pelo nome de uma mãe-de-santo – nas palavras da sacerdotisa, “de modo que quando alguém ligar uma máquina vai ter contato com seus ancestrais através da história destas personalidades invisibilizadas.” (Múscari, 2004:94) Esse investimento em comunicação e tecnologia digital rendeu à associação a participação em um evento dessa área realizado em Porto Alegre, quando mãe Carmen conduziu um cortejo que terminou em uma oferenda a Oxum levando pedidos dos participantes.

As ações da Assobecaty se desdobravam em várias outras direções. Uma delas era a participação em iniciativas sobre o papel dos terreiros na prevenção e no enfrentamento à epidemia de HIV/Aids e na constituição de uma rede estadual de terreiros apoiada por políticas públicas. Outra, o cadastramento de beneficiários e distribuição de cestas básicas para centenas de famílias, tecendo parcerias com associações comerciais de pequenos agricultores. Registram-se também os esforços no sentido de proteger e reforçar referências afrorreligiosas no território urbano, como lugares de rituais e de memórias, assim como de oferecer espaço para conversas sobre sustentabilidade nos terreiros. Na apresentação da associação, menciona-se:

Ações nas áreas de saúde, segurança alimentar e prevenção às drogas, meio ambiente, comunicação popular e inclusão digital, gênero, cultura, segurança urbana, entre outras ações que são construídas de modo interdisciplinar pelos diferentes grupos que frequentam a casa como filhos e filhas, simpatizantes, voluntários ou simplesmente admiradores desta força de luta. (apudMúscari, 2014:80)

Múscari acompanhou as mobilizações da Assobecaty para apresentar um projeto a fim de se tornar um Ponto de Cultura. O edital data de 2012 e foi possível acessar uma das versões do projeto (Assobecaty, 2012). Nele estavam previstos a continuidade ou início de várias ações: formação em gestão cultural; reciclagem de material descartável; criação e mídia virtual; escola de capoeira; grupo de dança; cultura hip hop; produção artesanal. Oficinas de tambor, grupo de capoeira e grupo de afoxé já eram parte das atividades da associação. Vale mencionar o esforço do projeto em enquadrar as atividades do terreiro propriamente dito como “festas de tradição afro-gaúchas”, com a seguinte justificativa: “Resgatar a memória, presença e participação cultural afrodescendente levando em consideração a necessidade de inscrição de suas práticas, modos de ser e de viver nos autos históricos do estado do Rio Grande do Sul”. O projeto foi contemplado, embora a Assobecaty tenha enfrentado problemas de atraso no repasse de recursos. Desde então, a associação se apresenta como Ponto de Cultura Ilê Axé Cultural9.

O projeto da Assobecaty evidencia uma característica do edital que incide sobre a concepção de cultura adotada por essa política pública. O edital não apenas reforça em seu texto uma ideia de cultura ampla (“como redes de signos e significados socialmente construídos, compartilhados e transformados ao longo da história”) e autodeterminada (“produzidos pelos produtores das diferentes e semelhantes formas de perceber, pensar e agir no mundo”) (Rio Grande do Sul, 2012). Seus formulários contemplam uma lógica múltipla e fractal no modo como enunciam e organizam as categorias que orientam as inscrições. Como se visualiza na imagem abaixo, há várias possibilidades de se definir cultura, assim como há várias possibilidades para um grupo se reconhecer nas categorias. Um grupo como a Assobecaty pode assinalar “manifestações culturais” em “culturas populares”, “cultura afrodescendente” em “grupos étnico-culturais”, e ainda assinalar várias outras opções em “gestão e formação cultural”, “expressões artísticas” e mesmo “ações transversais”. É possível então registrar atividades e projetos de muitas naturezas – e inclusive acomodar suas atividades religiosas.


Formulário de inscrição em Edital da “Rede RS de Pontos de Cultura”

Assim como foi possível fazer no caso da Lei Rouanet, houve um esforço no sentido de construir um quadro geral da ocorrência de referências religiosas nos registros sobre Pontos de Cultura. O Programa Cultura Viva disponibiliza uma planilha por meio da qual podemos visualizar quais são e onde estão os Pontos de Cultura no país, bem como breves apresentações dos projetos aprovados. Com base nessa planilha, acessada em fevereiro de 2018, considerou-se um total de 2.499 registros e nesse universo buscou-se a presença de referências religiosas10. Apenas 87 respondem a essa busca, o que significa 3,5%, um número pouco maior do que o constatado no caso dos projetos aprovados no âmbito da Lei Rouanet. É importante notar que esses registros não incluem festividades populares, como congadas, folias etc., cuja natureza especificamente religiosa é difícil de identificar ou supor. Considerando então os 87 registros, sua classificação chega a um resultado significativo: 80% deles se referem à religiosidade afro-brasileira.

Mas tratemos primeiro dos casos restantes, 18 registros, com situações muito diferentes. Em sete registros, temos grupos dedicados, embora em pelo menos uma ocorrência não exclusivamente, a encenações da Paixão de Cristo – o que reforça a observação apontada na seção anterior. Dois projetos têm um caráter que não se pode automaticamente imputar aos demais: uma igreja luterana que se dedica à “evangelização” e uma rádio cujo objetivo é “mostrar a lógica e a clareza da Doutrina Espírita”. Nos demais registros, a religião nunca está sozinha: um centro cultural reúne diversas “atividades artístico-culturais”, “além da promoção de oficinas e cursos ligados às artes e religião”; um grupo que oferece “oficinas de música, capoeira, artesanato, reforço escolar e educação religiosa”; uma rádio evangélica com diversos projetos sociais em parceria com outras instituições; a montagem de uma biblioteca comunitária a partir de um grupo católico. Em outros casos, arte e religião estão articuladas como meio e fim ou como fim e meio: “fortalecer artistas e grupos artísticos que desenvolvam trabalhos continuados e conceituados nos valores cristãos”; “esporte e cultura para levar princípios morais cristãos”; “assistir os menos favorecidos e acolher o público evangélico” por meio de projetos sociais; um “louvor sertanejo” para “evangelizar através da arte”; a orquestra infantil mantida por um grupo evangélico.

Considerando agora os 69 registros encontrados a partir de palavras-chaves ligadas à religiosidade afro-brasileira, é também difícil fazer generalizações. Mas diante dos casos apresentados logo acima, dois pontos podem ser avançados: a ausência do que, sob um termo acusatório, seria tratado como proselitismo e a possibilidade de se apresentar a própria religião como atividade cultural. Ambos os pontos convergem nas ideias de que a religião em sua matriz africana, quando busca se expor ou se disseminar, não pretende converter (Bastide, 1971); de que se trata de uma religião capaz de reivindicar uma natureza intrinsecamente cultural, por sua relação com os legados africanos (Giumbelli, 2008; Morais, 2018). Mesmo assim, tal como nas situações que mobilizam outras religiões, as articulações com atividades de múltiplas naturezas são muito comuns.

Alguns exemplos: as aulas de capoeira que ocorrem em um dos principais terreiros de Salvador; “Oficinas de Artesanato, Samba de Roda, Capoeira, Costura, Sabão da Costa, Coral de Cantigas Sagradas, Culinária Africana, Culinária Alternativa”, além de “Assistência Jurídica, Atendimento com Assistentes Sociais e frequentes workshops sobre higiene”, são oferecidas na sede de outro terreiro. Em um terceiro caso, um “Curso para Ogan” (um tipo de assistente religioso) é incluído na lista de atividades. É interessante citar a proposta de uma casa de umbanda, que divide sua atuação nos âmbitos “religioso”, “cultural” e “assistência social”, explicando: “No âmbito cultural faz investimentos de peso, focada na importância de salvaguardar o patrimônio cultural brasileiro como um todo e, aí, religião e cultura se confundem”. Já outro terreiro estrutura suas ações em linguagem – “a pesquisa em agroecologia, a pesquisa no campo da oralidade ancestral e de seminários temáticos (memória e tradição)” – que contorna termos religiosos sem excluir a religiosidade. A exemplo do que ocorre na Assobecaty, na maior parte dos registros que envolvem referências afro, é difícil restringir o terreiro a atividades religiosas, seja porque elas podem ser consideradas culturais, seja porque o terreiro é sede de atividades não religiosas.

Mas existem Pontos de Cultura que se caracterizam mais definidamente por atividades de advocacy. Há pelo menos dois casos, um deles assim apresentado:

(...) um espaço aberto de encontros para formação, reflexão, debate democrático, formulação de propostas, troca livre de experiências e articulação cultural, para ações que possibilitem a garantia de liberdade litúrgica e de crença religiosa na matriz africana e afro-brasileira e que apontem para formas de eliminar o preconceito e a discriminação a esse segmento. (Brasil, 2018:1)

Por outro lado, há cinco casos em que atividades religiosas são o foco principal, com a suposição ou o argumento de que se tratam elas mesmas de atividades culturais. Por exemplo: a “capacitação” assumida por um terreiro:

(...) se dá por meio principalmente da vivência dos “filhos de santo” com os elementos da cultura das religiões de matriz africana onde são desenvolvidas as oficinas, aulas, e encontros com os grupos da rede sendo a principal forma da continuidade da cultura e única maneira que os rituais efetivamente sejam realizados. (Brasil, 2018:1)

Deve-se notar que há vários registros de grupos com referências africanas que não incluem atividades religiosas. Esses registros não foram computados e mostram que cultura e religião nem sempre andam juntas. Ao mesmo tempo, há também casos de grupos dedicados prioritariamente a atividades não, ao menos estrita ou necessariamente, religiosas (capoeira e afoxé) e que mencionam dimensões religiosas. Tem-se o exemplo de um ponto de cultura que mantém um afoxé e um telecentro, entre outros projetos, e leva a palavra “orixá” em seu nome. Como ponto mais geral, pode-se afirmar que o envolvimento de instituições religiosas na proposição de projetos no âmbito do Programa Cultura Viva é acompanhado, nos termos de Yúdice (2006), por uma “ong-ização”. No caso das instituições afrorreligiosas, podemos ainda levantar a hipótese, inspirada na discussão que realiza o mesmo autor sobre as formas de identificação cultural, de uma performatividade subversiva – ou seja, a cultura surgindo como modo de promoção de atividades e vivências que não são facilmente dissemináveis.

Em suma, com base na variedade de casos expostos na lista de Pontos de Cultura, da qual a Assobecaty faz parte, constata-se a facilidade com que religião e cultura se articulam e até mesmo se equivalem. Embora nem sempre projetos envolvendo referências africanas incluam a religião, os registros com referências afrorreligiosas apontam um outro cenário: a religião demonstra várias razões para se desdobrar, abranger ou mesmo se confundir com cultura. A esse título, vale mencionar um último exemplo. Uma associação presidida por um pai-de-santo declara seu compromisso com a luta pela igualdade racial e anuncia:

Nossa Associação vem divulgando a nossa Cultura Afro-Brasileira no tocante às religiões de Matrizes Africana e Brasileira, desenvolvendo atividades Culturais e Sociais (...) para dar visibilidade a essa Cultura Ancestral. Uma outra versão da mesma capacidade de articular e sobrepor dimensões é a própria apresentação da Assobecaty na mesma planilha: “Um ponto de cultura que enfatiza religiosidade, música, teatro, dança, cinema, fotografia, exposições, vídeo, inclusão digital”. (Brasil, 2018:1)

TURISMO RELIGIOSO, CULTURA E DIVERSIDADE RELIGIOSA

Nova Trento, cidade catarinense com quase 15 mil habitantes, foi um dos cinco municípios contemplados com recursos do Ministério do Turismo previstos no edital divulgado em 201311. Ela representa o Sul no conjunto das cinco macrorregiões brasileiras que orientaram o julgamento das candidaturas. Quatro delas enquadram-se no que se poderia chamar de cidade-santuário (Godoy, 2015), ou seja, cidades que orbitam em torno de santuários católicos. No caso de Nova Trento, o santuário é dedicado à Santa Paulina, religiosa italiana que migrou para o Brasil ainda criança e fundou a congregação que foi a principal responsável por sua canonização. Quando visitei o santuário em 2018, confirmou-se a ideia de que se trata de um complexo que envolve, além das estruturas religiosas, estabelecimentos comerciais, pontos ecológicos e referências históricas. Embora o principal edifício religioso seja recente, a relação com a história é fundamental na construção do santuário. Nessa relação aparece o modo como a noção de cultura se introduz nos discursos oficiais no contexto local.

O projeto apresentado pela prefeitura do município ao Ministério do Turismo12 tem como foco o santuário de Santa Paulina, cujo templo principal foi inaugurado em 2006. Outra data importante é 1991, ano em que houve a beatificação de Paulina, antes da sua canonização em 2002. Segundo o projeto, 1991 foi quando “peregrinos de todo o país começaram a visitar o bairro de Vígolo em Nova Trento”. Disso teria surgido a justificativa para construção do Santuário. O texto da prefeitura argumenta:

Atualmente o município recebe 75.000 visitantes por mês, e nesses anos que se passaram desde 1991 a cidade foi criando um ambiente de prestação de serviços a estes visitantes, como restaurantes, pousadas, hotéis, lojas de produtos coloniais, lojas de produtos religiosos, os postos de combustíveis começaram a abrir aos domingos. Com isto foi se concretizando uma nova atividade que cresce a cada ano com o atrativo cada vez mais visitado. (Prefeitura Municipal de Nova Trento, 2013:4)

Note-se como, em vez de “peregrinos”, é como “visitantes” que são descritas as pessoas que buscam a cidade, a qual se mune de “serviços” para recebê-los, destacando o Santuário como o “atrativo” principal. “Visitantes”, “serviços” e “atrativos” são termos recorrentes nos projetos contemplados no processo de seleção do Ministério do Turismo. Eles evidenciam a perspectiva com a qual os lugares são apresentados a fim de justificar o investimento de recursos em nome do turismo.

No caso de Nova Trento, o projeto propõe que, juntamente com cidades vizinhas, seria parte dos “Caminhos da Fé”. Além do santuário de Santa Paulina, outros “atrativos” localizados nos arredores são apontados, em apresentações breves. Trata-se de outros três santuários, além de uma “comunidade”, também católica, que é conhecida como “centro de tratamento de dependência química”, e de uma cidade onde se pode encontrar vinícolas e “produtos coloniais”. Os recursos demandados ao Ministério do Turismo visariam construir os meios – palestras de sensibilização, material promocional – para tornar evidente o interesse desses lugares. Na avaliação do projeto, os “consumidores” passam menos tempo do que deveriam na região e “com o plano de posicionamento de mercado e com a comercialização do destino” isso poderia mudar. A aposta é que “o turismo religioso agregue outros atrativos, como vinícolas, produtos coloniais, cachoeiras, trilhas ecológicas, gastronomia alemã, italiana, polonesa, compras de diversas variedades em calçados, roupas, cama, mesa e banho” (Prefeitura Municipal de Nova Trento, 2013:6).

Portanto, no projeto da prefeitura de Nova Trento, a religião é apresentada como algo capaz de integrar várias dimensões, funcionando como um vórtice de “atrativos” para toda uma região. Ou seja, longe de corresponder a um segmento do turismo, a religião aparece com a capacidade de representar toda a cidade, englobando diversos de seus aspectos, não apenas os que poderiam ser classificados como também culturais, mas ainda outros que pertencem ao domínio da natureza. Outro efeito dessa situação é a produção de uma ambiguidade, ou uma incerteza, acerca de como designar as pessoas que procuram pelos atrativos anunciados. Vimos como o vocabulário do projeto de Nova Trento alterna entre “peregrinos”, “visitantes” e “consumidores”. Nesse sentido, a definição do turista religioso como alguém motivado pela fé deixa de corresponder àquilo que descreve o projeto. Eis então um paradoxo do turismo religioso: adequar-se a essa categorização permite multiplicar as motivações, indo além da fé, que aproximam visitantes e lugares.

Foquemos agora na concepção de cultura que está em jogo. A prefeitura valoriza o santuário de Santa Paulina como principal atrativo da cidade – como comprovam os materiais impressos que servem para a sua divulgação e a entrevista que fiz, em 2018, na Secretaria de Turismo. Isso significa que ela reconhece o modo como o santuário apresenta sua figura central. Nessa apresentação, a dimensão histórica é fundamental. Paulina chegou à região como migrante italiana no final do século XIX e ali viveu sua infância e juventude. Uma parcela das estruturas do santuário se dedica a rememorar essa parte da vida da santa. Pode-se afirmar, a partir disso, que tal celebração da história entra em sintonia com certa ideia de patrimônio e sua concepção de cultura – e não por acaso há dois “museus” dentro do complexo que forma o santuário. Por outro lado, a estética que acompanha essa celebração do passado pouco corresponde a protocolos museológicos ou aos padrões das belas artes. Agências estatais dedicadas ao patrimônio não demonstram nenhum interesse em participar da administração desses legados do passado tal como são apresentados no santuário.

Ao mesmo tempo, confirma-se o papel englobante da religião, algo que pode ser também constatado nos outros cinco projetos vencedores do edital do Ministério do Turismo. Em quatro deles, esse papel está articulado com uma fusão entre religião e história. É o que ocorre no caso de Nova Trento, uma vez que a história de Paulina se confunde com a história do povoamento da cidade. Paulina é parte da imagem de Nova Trento como colônia italiana, algo que se estende para a gastronomia tal como as autoridades pretendem promovê-la. Tudo é parte de uma “cultura italiana”. Por outro lado, o mesmo complexo de dimensões permite que a prefeitura possa misturar à religião outros elementos. Por exemplo: parte da programação de uma festa religiosa em que a prefeitura assume participação é dedicada a atrações musicais não religiosas. Isso é visto com tranquilidade pelo secretário do Turismo, com quem conversei em 2018. E isso permite a circulação do termo “cultura” com outros sentidos, que nada têm a ver com religião ou com história. Trata-se da cultura como parte do circuito do entretenimento – um sentido que os evangélicos se dedicam a desenvolver com o “gospel”.

Em termos conclusivos, pode-se afirmar que é difícil constatarmos a realidade apontada pela forma com a qual o Ministério do Turismo concebe as relações entre religião e cultura. Primeiro, porque há várias situações em que a religião determina a cultura, no sentido em que ela é a dimensão que marca de maneira exclusiva ou encompassante os locais turísticos. Segundo, porque a separação entre o interesse religioso e o interesse cultural enfrenta muitas resistências para se estabelecer. Seja nas situações nas quais a religião ajuda a caracterizar algo concebido em termos de patrimônio, seja nas situações nas quais a religião corresponde a determinados eventos, tais operações não delimitam as motivações que levam as pessoas a visitá-las. Terceiro, como o projeto de Nova Trento demonstra, a expectativa de compartimentação raramente se realiza porque a promoção do turismo religioso envolve a mobilização de recursos e competências que ativam outros sentidos da ideia de cultura.

Deve-se enfim notar que os cinco projetos apontados como os mais habilitados para receber recursos estatais pertencem ao universo católico. A única situação que não se enquadra na definição de uma cidade santuário é a de Bragança, cidade paraense, contemplada por sediar uma festa, também católica, singular ainda por seu estatuto ligado a políticas de patrimonialização. Quando se observa o conjunto dos 193 projetos apresentados para o edital do Ministério do Turismo, o quadro não muda muito (Giumbelli, 2019). Sobre 20 projetos (que incluem os ganhadores) houve a possibilidade de acesso ao texto integral. Nesses 20, não mais que um elabora uma proposta que envolve templos religiosos não cristãos. Outros quatro projetos se mostram sensíveis ao tema da diversidade religiosa. Sobre os demais 173 projetos, teve-se acesso apenas ao título. Somente um deles deixa explícita a referência à diversidade religiosa. Quatro mencionam eventos evangélicos, também citados em três dos 20 projetos. Nenhum projeto se dedica específica ou expressamente a referências associadas a religiões afro-brasileiras. Há, portanto, uma afinidade clara entre a promoção do turismo religioso no Brasil e o destaque de eventos e lugares católicos.

ALGUMAS CONCLUSÕES

Qualquer síntese dedicada a cobrir as relações entre cultura e religião no Brasil contemporânea está condenada a ser parcial. Afinal, é possível defender que essa relação é inerente ou mesmo inevitável. Os tópicos cobertos por esse artigo visam contribuir para manter a questão geral em pauta. Em época em que se tornou comum discutirmos sobre “apropriações culturais” e sobre “patrimônio cultural”, a religião será muito provavelmente um ingrediente costumeiro em tais caldeirões. Ao mesmo tempo, muito provavelmente as diferentes religiões investirão em distintos caminhos capazes de as conectarem à “cultura” (achando-a “conveniente” ou utilizando-a como “arma”)13, e talvez esse passe a ser um componente importante do pluralismo no Brasil. Perseguir os sentidos que a categoria assume e assumirá nos levará certamente além daquilo que imaginou Wagner, embora sua perspectiva de fundo continue a ser válida: as formas com as quais a cultura se objetifica são demonstrações de como ela se inventa. Para se avaliar que sentidos adquirem essas objetificações, o recurso a outra categoria, em seus usos sociais, é crucial. Investiu-se aqui nas relações entre “cultura” e “religião”.

Apoiar-se em uma leitura wagneriana e em debates sociológicos para compreender tais relações leva a constatar, em uma sociedade como a brasileira, quais diferentes noções de cultura convivem e circulam. Continua a fazer sentido referir-se a essas ocorrências como objetificações da cultura. Ressalte-se que a cultura não é assumida como categoria e reivindicação apenas por grupos ou segmentos que formam a sociedade civil: ela permeia políticas e ações estatais. Este texto busca apontar a diversidade de sentidos conferidos à cultura em políticas públicas, bem como sinalizar para a produção de quadros ainda mais complexos quando se analisam situações concretas14. A politização que acompanha a objetificação da cultura não se estabelece apenas em casos de conflitos, mas pode ser percebida pelo fato de que o Estado em sua relação com parcelas da sociedade incorpora a noção para estruturar suas ações. Com base em Wagner, pode-se dizer que é como parte das dinâmicas que envolvem esses agentes que devemos compreender o uso, o sentido e a disseminação da categoria “cultura”.

No que diz respeito ao foco delimitado por este artigo, ainda dois pontos podem ser mencionados. Primeiro: não há muita correspondência entre as concepções de cultura propostas pelas orientações da Lei Rouanet e do Ministério do Turismo e o que encontramos nos projetos analisados. Boa parte dos projetos que envolvem referências religiosas aprovados na Lei Rouanet não se pauta pela ideia de “alta cultura” – e isso é sempre verdade nos casos que envolvem o gospel. Já os projetos contemplados pelo edital do Ministério do Turismo não adotam uma concepção segmentada de religião, tal como supõem as definições oficiais. Apenas quando passamos ao universo dos Pontos de Cultura é que temos outra situação, exatamente porque a concepção de cultura que o orienta permite e valoriza a autodeterminação. Assim, como vimos com exemplos de diversas referências religiosas, as relações entre religião e cultura não apenas assumem feições muito variadas, mas envolvem concepções e apropriações múltiplas.

O segundo ponto parte de um olhar voltado para a diversidade religiosa, ou seja, quantas e quais religiões aparecem nos universos contemplados por este texto? A diversidade religiosa é mais expressiva no caso da Lei Rouanet e dos Pontos de Cultura, mas com uma diferença importante. A presença significativa de referências afrorreligiosas entre os Pontos de Cultura destoa da invisibilidade e da dificuldade que essas referências sofrem em muitos contextos. Isso parece apontar para os efeitos anti-hegemônicos da concepção de cultura abraçada por essa política, algo já sugerido por Lima e Ortellado (2013). Por outro lado, o fato de existir uma lei que reconhece o gospel como manifestação cultural produziu, a julgar pelos dados aqui analisados, pouco impacto no volume de projetos apresentados à Lei Rouanet. Como observamos, são as referências católicas que sobressaem nesse universo. Essa hegemonia é reiterada, de maneira quase paroxística, no caso do turismo religioso, no qual a presença de outras religiões é bem pequena. Um “Brasil católico” encontra nova plausibilidade pelas vias do “turismo religioso”, sem deixar de ser contestado sobretudo quando a cultura se produz fora das “salas de ópera”.

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  • SANT’ANA, Raquel. (2017), A nação cujo Deus é o Senhor: a imaginação de uma coletividade “evangélica” a partir da Marcha para Jesus. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • SANT’ANA, Raquel. (2013), “A música gospel e os usos da ‘arma da cultura’. Reflexões sobre as implicações de uma emenda”. Revista Intratextos, v. 5, no 1, pp. 23-41.
  • SANTOS, Jocélio T. dos. (2005), O poder da Cultura e a Cultura no poder. A disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Salvador: EdUFBA.
  • SANTOS, Myrian Sepúlveda dos; PEIXOTO, Paulo. (2013), “Patrimônios mundiais: fragmentação e mercantilização da cultura”. In: V. Pereira et al. (orgs.), Cultura, memória e poder: diálogos interdisciplinares. Rio de Janeiro: EdUERJ, pp. 47-68.
  • TROUILLOT, Michel-Rolph. (2003), “Adieu, culture: a new duty arises”.In: Global transformations. Anthropology and the Modern World. New York: Palgrave, pp. 97-116.
  • Velho, Otávio. (1997), “Globalização: antropologia e religião”. Mana, v. 3, no 1, pp. 133-154.
  • WAGNER, Roy. (2010)[1975], A invenção da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.
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  • YÚDICE, George. (2006), A conveniência da Cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: EdUFMG.

NOTAS

  • 1
    . Ver as discussões de Santos e Peixoto (2013) sobre patrimônio e musealização e as de Carneiro da Cunha (2016) sobre políticas culturais para indígenas e dos indígenas. Tais temas não fazem parte do escopo deste artigo.
  • 2
    . O universo dos levantamentos estatísticos e a forma de busca e classificação dos dados serão expostos em cada uma das seções.
  • 3
    . Para outras abordagens que enfocam relações entre religião e cultura no Brasil a partir das ciências sociais, ver Lopes (2010), Burity (2008), Santos (2005), Prandi (2004) e Montero (1995). Em minha abordagem, é fundamental a consideração de políticas públicas que, por meio de agenciamentos determinados, levam a abranger ou alvejar referências religiosas – cobrindo aspectos que não são tratados especificamente por nenhum desses estudos anteriores.
  • 4
    . Botelho (2016) também utiliza, como já foi mencionado, a expressão “concepção antropológica de cultura”. Vale ainda citar a caracterização do Programa Cultura Viva por Lima e Ortellado como algo que abraça “um conjunto significativo de inovações na maneira de se fazer política cultural: a adoção do conceito antropológico de cultura; o financiamento ‘aberto’ destinado a práticas culturais sem objetos predefinidos; o financiamento de práticas culturais já existentes; e a maior valorização do processo, em oposição aos produtos culturais” (2013:361).
  • 5
  • 6
    . As informações sobre o projeto “Música gospel na Marcha para Jesus. Agenda 2014” foram consultadas em seu registro em: http://versalic.cultura.gov.br/#/propostas/138542, acesso em 10/6/2018.
  • 7
    . O levantamento, realizado em 2018, toma como base os dados disponíveis na plataforma VerSalic, apresentada como “uma ferramenta para navegação através dos projetos culturais que recebem incentivos fiscais do Ministério da Cultura”. Ver: http://versalic.cultura.gov.br/#/sobre.
  • 8
    . Cf.: http://versalic.cultura.gov.br/#/home. Foram utilizados os “radicais” vocabulares que possibilitariam encontrar referências ligadas a diversas religiões: “relig”, “espirit”, “evang”, “catolic” e “afro”.
  • 9
    . Para uma atualização das atividades do Ponto de Cultura Ilê Axé Cultural, ver Duarte (2019).
  • 10
    . Disponível em: http://culturaviva.gov.br, acesso em 28/2/2018. Seguiu-se o mesmo método referido na nota 8, apenas ampliando-se os índices que levariam a registros ligados a religiões afro-brasileiras (“ilê”, “terreiro”, “axé”, “orixá”). As citações a seguir são transcrições dos dados da planilha.
  • 11
  • 12
    . O texto do projeto, assim como os demais classificados na avaliação correspondente ao edital, foram acessados em 2014 por meio de: https://www.convenios.gov.br/siconv/proposta/UploadArquivo/UploadArquivo.do
  • 13
    . Os termos são referências diretas aos títulos do livro de Yúdice (2006) e do artigo de Mafra (2011).
  • 14
    . Certamente, a análise realizada nos três itens anteriores não explora vários aspectos relevantes. Entre eles: como os agentes envolvidos com as políticas públicas assinaladas lidam com a burocratização, incluindo seus vocabulários e instâncias, engendrada por aquelas políticas; qual a espécie de mediação entre órgãos estatais e agentes da sociedade civil produzida pelos documentos que orientam e processam cada política; e que montantes, em termos de volume de recursos, cada política mobiliza e aloca. Tais questões, que não puderam ser desenvolvidas em minha análise, foram sugeridas por um dos pareceres emitidos durante a avaliação deste artigo.
  • *
    Este artigo é um dos resultados do projeto “Religião, cultura e espaço público”, apoiado por Bolsa de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (2014-2018). Registro a contribuição de Taylor de Aguiar como bolsista integrado ao projeto. Agradeço as leituras e comentários de Carlos Alberto Steil e Joanildo Burity a versões anteriores, bem como aos pareceristas que contribuíram para aperfeiçoar os argumentos deste texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2019
  • Revisado
    19 Maio 2020
  • Aceito
    8 Dez 2020
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