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A tristeza de ser sociólogo no século XXI

The sadness of being a sociologist in the 21st century

De la tristesse d’être sociologue au XXIe. sièle

Resumos

This article analyzes the limits of sociology in understanding recent transformations in modernity. Of particular interest are the epistemological difficulties found at the theoretical roots of sociology in dealing with the tasks arising from the biotechnological revolution currently under way and its eugenic impacts on future society. The paper’s argument is that the main task is an interdisciplinary review of relations between the concept of human nature and prevailing social and political values. In order to better comprehend the radical challenge of modernity in the 21st century vis-à-vis classical modernity’s values, two heuristic figures are presented: the dilemma of technical modernity and the contradiction of sociology.

social theory; modernity; human nature; eugenics


Ce texte examine les limites de la sociologie lorsqu’il s’agit de comprendre les changements récents de la modernité. Limites surtout devant les difficultés épistémologiques qui se trouvent dans les racines théoriques de la sociologie face aux questions survenues avec la révolution biotechnologique en cours et ses impacts eugéniques sur la société à venir. On suggère que, parmi ces questions, la principale consiste à faire la révision interdisciplinaire des relations entre le concept de nature humaine et les valeurs sociales et politiques en cours. Pour mieux saisir l’enjeu radical de la modernité du XXIe. siècle face aux valeurs de la modernité classique, on présente deux figures heuristiques: le dilemme de la modernité technique et la contradiction de la sociologie.

théorie sociale; modernité; nature humaine; eugénie


social theory; modernity; human nature; eugenics

théorie sociale; modernité; nature humaine; eugénie

A Tristeza de Ser Sociólogo no Século XXI* * Este artigo foi originalmente apresentado no GT de Teoria Social, do XXIV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs, Palácio Quitandinha, Petrópolis, RJ, 23-27 de outubro de 2000.

Héctor Ricardo Leis

"Tornaram-nos familiares com os pontos de vista materialísticos sobre a Natureza, desde a infância, e só aqueles que são congenitamente muito místicos alguma vez pensam em os considerar como não razoáveis. Mas no que concerne à Humanidade, a educação é de uma espécie inteiramente diferente. A criança é criada com entidades metafísicas estranhas, tais como o Bem Absoluto, Sistemas Políticos e Econômicos Absolutamente Perfeitos, Razão Pura, Direitos Naturais, e muitos outros monstros sobrenaturais da mesma espécie. O resultado deste estado de coisas é muito claramente visível no mundo moderno. Comparadas com a ciência ocidental, as ciências sociais são rudimentares. Estão, mais ou menos, naquele estado que estava a ciência quando os fenômenos exteriores eram julgados ainda em termos de uma filosofia introvertida. É de desejar que chegue o tempo em que aquelas atividades humanas cujo cenário é o mundo exterior sejam tratadas como matérias de fato, como nós tratamos agora os objetos não humanos".

Aldous Huxley (c. 1927)

"É claro que qualquer avanço importante não pode depender de correções acidentais dos sintomas sociais e políticos, ou de arranjos casuísticos nas engrenagens políticas do mundo, ou ainda de uma melhor educação. Precisamos contar, cada vez mais, com a elevação do nível genético das habilidades práticas e intelectuais do homem."

Julian Huxley (c. 1937)

I

Sempre houve festas. Na América Latina, das décadas de 60 e 70, aconteceram algumas tão difíceis de esquecer, como de tornar compreensíveis para as gerações atuais. Dentre as melhores estavam as organizadas pela sociologia. De certa forma, recriando o sucesso tido na Europa e nos Estados Unidos várias décadas antes, as festas eram movidas por um insaciável espírito sociológico. É verdade que os sociólogos sempre padeceram de alguns males como, por exemplo, acreditar que a realidade era eminentemente social e que qualquer problema podia ser evitado ou dirimido através da ação social. Mas também é verdade que esses defeitos ainda não eram graves e se compensavam longamente assumindo-se que nenhum tema ou suspeita sobre os fundamentos teóricos ou práticos da sociologia eram levianos. Desse modo, ao lado de polêmicas mais tradicionais em torno de positivismo, materialismo histórico, democracia liberal ou revolução social, surgiam permanentemente intensos debates sociológicos que iam de Walt Disney até os movimentos sociais do Terceiro Mundo, das últimas expressões do cinema e teatro europeus até os discos voadores, das novas teorias sobre os signos aos problemas internacionais da guerra e da paz etc. Enfim, tudo servia de escusa para organizar uma alegre festa sociológica.

Comparado com isto, o presente da sociologia é certamente uma tristeza. Parece claro que ela se domesticou e perdeu seu poder de convocatória em face da sociedade e, em particular, das novas gerações. Para quem não sabe (ou não gosta de lembrar), a sociologia hoje quase não é procurada pelos jovens que ingressam nas universidades e, quando isto acontece, na maioria dos casos é como segunda opção de carreira profissional. Nos anos 60 e 70, pelo contrário, a sociologia era procurada como primeira opção por uma proporção maior de jovens, em muitos casos os melhores representantes de sua geração. Melhores em relação à sua preocupação altruísta com o bem comum, melhores em relação à sua capacidade intelectual e muitos outros atributos. As causas dessa mudança devem ser procuradas nas características da juventude de hoje? Certamente que não, não podemos culpar os jovens (e também não a algum presidente sociólogo) pela baixa atual da sociologia. Ela não resulta de uma visão de marketing errada, nem dos supostos avanços da burguesia ou retrocessos da universidade pública, nem muito menos da suposta perda de sentido da utopia por parte da juventude. Estes fatores podem contribuir em algum grau, mas eles não são decisivos. A causa principal dessa crise não é externa, mas interna, reside no estancamento e perda de iniciativa da própria sociologia nas últimas décadas. Em outras palavras, a sociologia parece estar em um processo no qual, ao mesmo tempo que aumenta seus defeitos, diminui suas virtudes. Ela conservou e aumentou seu reducionismo e moralismo de origem, porém limpando-os progressivamente dos conteúdos irreverentes e transgressores que a acompanhavam também na origem, perdendo assim grande parte de sua capacidade crítica que tão bem a identificava. Parece-me que isto explica melhor a atração que ela exercia sobre a juventude dos 60 e 70, e a falta de apelo de hoje.

Embora as causas desse insucesso sejam basicamente internas à sociologia, isto não quer dizer que a realidade não mudou. Nas últimas décadas o mundo pisou no acelerador, mudando vertiginosamente para rumos desconcertantes, mas, paradoxalmente, a sociologia começou a pisar no freio, ficando presa a paradigmas que se tornaram cada vez mais obsoletos. Parece que a sociologia percebeu sua obsolescência, porém, em vez de revisar seus pressupostos e paradigmas científicos para seguir avançando na compreensão da realidade, ela procurou a saída dando um salto para o abismo que estava dentro dela mesma. Ela não fugiu nem para o passado, nem para o futuro, fugiu para dentro de si mesma. Por isso, a sociologia hoje está muito mais perto de uma disciplina moral do social, que da outrora indisciplinada ciência do social.

Para alguns esta transformação se assemelha à da lagarta em borboleta. Mas estão enganados se pensam que isto é motivo de orgulho. É verdade que as aparências sedutoras da moral e da borboleta parecem aproximá-las, mas também é verdade que a beleza da borboleta depende da feiúra da lagarta. E assim como não existe borboleta sem lagarta, no mundo moderno também não existe uma moral autêntica desvinculada da ciência. A pretensão da sociologia de comportar-se moralmente é tão superficial e ingênua como seria a pretensão da borboleta de querer nascer diretamente borboleta. Não obstante, estamos assistindo a uma "borboletização" da sociologia, já que além de continuar achando que tudo é social, agora não parece considerar necessário fazer suas incursões a outras disciplinas para nutrir-se de elementos enriquecedores. Antes, a sociologia era explicitamente reducionista e implicitamente interdisciplinar. E era esta conexão interdisciplinar que a tornava crítica, ainda querendo ser borboleta. O retrocesso é tão grande que hoje já resulta difícil saber se a transformação das principais correntes da sociologia em moralizações do social se deve ao fato de ter perdido sua conexão interdisciplinar ou, vice-versa, se esta situação aconteceu por causa de sua transformação em uma doutrina que patrulha o social para dizer o que está certo e o que está errado do ponto de vista moral e dos costumes (ou opinião das massas) .

Hoje, a sociologia se apresenta como uma disciplina politicamente correta, como um saber cujos objetivos são perseguir bandidos e ajudar mocinhos (sejam estes atores ou processos). A moralização atual da sociologia é tal que as coisas "ruins" que habitam a sociedade (economia, Estado, indivíduos etc.) tendem a ser empurradas para os campos de pesquisa de outras ciências. Para dar esse pulo para dentro de seu próprio abismo, a sociologia se viu obrigada a recriar seus fantasmas. Na sua origem, e durante muito tempo, ela travou uma luta heróica contra os fantasmas do passado, luta que, com os olhos de hoje, seria considerada politicamente incorreta, porque esses fantasmas, em não poucos casos, recebiam um enorme apoio popular. Em outras palavras, na idade de ouro da sociologia não eram as massas que demandavam as mudanças recomendadas pelos sociólogos. Pela esquerda ou pela direita (seja contra os anseios de Marx ou contra os de Durkheim, para colocar em termos mais sociológicos), a maioria da população tinha saudades do passado e medo do futuro (lembremos que até muito pouco tempo a sociologia era preconceituosa em relação à ampla maioria da população mundial que vivia no meio rural, longe das luzes das cidades e da fumaça das indústrias). É fato que nem o capitalismo nem o comunismo vieram acompanhados pelo consentimento da maioria. Foram as elites, burguesas num caso e revolucionárias no outro, que fizeram as coisas acontecer (à custa de muito sofrimento e milhões de mortos, diga-se também).

Parece que ninguém se perguntou ainda como uma ciência que na sua origem e desenvolvimento posterior de muitas décadas foi politicamente incorreta em fortes doses (circunstância que de um modo ou de outro ainda se aplicava ao seu contexto de inserção na realidade latino-americana dos anos 60 e 70), deu a virada atual. Em outras palavras, como se explica que a sociologia lutava ontem contra os fantasmas do passado e hoje lute contra os fantasmas do futuro? Até os anos 60 e 70 os sociólogos colocavam o perigo no passado e a salvação no futuro, como então pode ter passado despercebido, sem uma reflexão apropriada, o fato de que hoje as coisas estão quase invertidas, que eles passaram praticamente de arautos do futuro a saudosistas do presente? Como se explica o paradoxo de a sociologia se sentir agora ameaçada pelos poderes da história, amo que ela antes servia e elogiava? Isto é uma reviravolta oportunista ou epistemológica? Qual é a culpa inconfessa que está por trás do não-reconhecimento dessas mudanças?

II

Não se pense que estou falando apenas da sociologia no Brasil. Todavia, assim como em outras coisas, o Brasil aqui também exagera um pouco, porém os males da sociologia aparecem como um problema mundial e não local ou regional. Mas, já que estamos no Brasil, não seria de todo ruim dar uma olhada (indiscreta) nos papers apresentados pelos sociólogos nos congressos (Anpocs, SBS etc.), em seus projetos de pesquisa financiados pelo CNPq ou em seus artigos publicados nas revistas mais prestigiosas de nosso meio (Revista Brasileira de Ciências Sociais ¾ RBCS, Dados, Novos Estudos Cebrap, Lua Nova etc.). Veríamos, então, que a maioria (não todos, obviamente) dos trabalhos e projetos dos sociólogos aborda temas tradicionais da sociologia de um modo sociológico tradicional. Não pretendo entrar na polêmica estéril de definir o que é tradicional e o que não é (que o leitor examine e julgue), mas, de qualquer forma, parece-me que a questão central a ser elucidada não se refere tanto aos temas e/ou objetos de estudo, mas à forma de abordá-los. Se for preciso um indicador para comprovar as afirmações anteriores, sugiro percorrer as referências bibliográficas da produção dos últimos anos. Não é muito difícil verificar, então, que a grande maioria dos trabalhos sociológicos contemporâneos utiliza marcos teóricos exclusivos e repetitivos. Embora, sociologicamente falando, isto não esteja errado, fica difícil diferenciar nesses trabalhos o que surge da análise do objeto, daquilo que já se sabia a partir do marco teórico utilizado tradicionalmente pelos pesquisadores desse campo. Não é que não existam, mas são pouco freqüentes os exemplos onde podemos verificar a utilização de uma bibliografia com expressiva interface com outras disciplinas (talvez um dos melhores antídotos contra a excessiva confusão entre objeto e marco teórico que denuncio).

Volto a reiterar que nas festas dos anos 60 e 70 as coisas não eram assim. A sociologia mantinha um espírito mais ensaístico e não se apresentava tão separada das outras ciências sociais (nem mesmo da filosofia). Isto criava um clima vital e alegre no qual ninguém se perguntava muito se o que se fazia era sociologia ou qualquer outra coisa, mas tocava para a frente todas as questões que apareciam. Aliás, foi isto o que sempre fizeram nossos grandes sociólogos, de Gilberto Freyre a Florestan Fernandes. Ambos, por exemplo, quando se depararam com o desafio de estudar o tema das relações raciais no Brasil, idealizaram projetos que produziram uma fascinante fusão teórica e empírica de perspectivas que hoje seriam consideradas como exclusivas da sociologia, antropologia, psicologia, história ou filosofia. As observações acima não têm poucas implicações epistemológicas. Se o fundamental é observar e explicar a realidade tal como ela é (como foi escrito com letras maiúsculas pelo grande Maquiavel ao inaugurar os trabalhos científicos sobre as realidades social e política nos primórdios da época moderna), o fato de utilizar uma bibliografia bem disciplinada poderia sugerir (dentre outras coisas) que as principais linhas da sociologia estão mais interessadas em mostrar como deveria ser a realidade do que em pesquisar como ela é efetivamente. É difícil saber se a sociologia foi alguma vez uma ciência crítica em tempo integral, mas certamente ela nasceu com esta vocação, ela surgiu, sobretudo, da luta contra pensadores que se apoiavam no senso comum e na moral da época para fazer suas afirmações.

O moralismo na sociologia expressa o desejo de realizar um determinado projeto ou modelo de sociedade. O problema não reside na existência de um modelo concebido com fins hermenêuticos, mas sim na confusão do mesmo com a boa ordem, com a ordem correta do ponto de vista moral. Isto leva a que, quanto mais a realidade se aparta desses projetos da "boa ordem", maior seja o abandono da ciência pelos sociólogos e maior sua transformação em moralistas. A rigor, não ver a realidade tal como ela é deriva tanto de déficits epistemológicos quanto de excessos moralistas, ambos agindo de forma interligada. Quando a análise da realidade social ganha em cientificidade (caso de Maquiavel, por exemplo), a separação entre ciência e moral fica bem clara e não existe subordinação nenhuma dos conteúdos da primeira em relação à segunda. Mas, quando acontece o contrário, quando as análises se recusam a observar a realidade de modo coerente, a separação entre ciência e moral fica confusa e a primeira tende a subordinar-se à segunda para melhor justificar-se. Obviamente, em cada época histórica os problemas epistemológicos são diferentes. No começo da Idade Moderna, o pensamento rebelou-se contra as concepções teológico-metafísicas sobre a natureza humana e a sociedade, por isto ele caminhou na direção da constituição de saberes científicos disciplinares. No presente, parece-me evidente que, entre outras tarefas, o pensamento deve insurgir-se contra as concepções ideológico-positivistas-racionalistas que permeiam as diversas disciplinas, indo na direção da constituição de saberes científicos interdisciplinares sobre a natureza humana e a sociedade.

A sociologia pensa a sociedade deixando entre parênteses sua concepção da Natureza em geral e da natureza humana em particular. Com poucas exceções, os sociólogos arrepiam os cabelos quando ouvem falar da hipótese da existência de uma natureza humana. Quase que reivindicando o relato do Gênese, onde os primeiros seres humanos (pelos delitos associados de Eva, Adão e Caim) são violentamente colocados para fora da Natureza primitiva e condenados a depender exclusivamente de seus próprios esforços vivendo em sociedade, a sociologia pretende também substituir ou transformar a natureza humana em algo eminentemente social, cujos resíduos naturais pouco importam. Porém, para deixar claro que se trata de uma disciplina secularizada, a sociologia inverte o mito do Gênese em um aspecto essencial. Se na mensagem bíblica a sociedade aparecia ligada indissociavelmente à "queda" do Paraíso, para a sociologia é o inverso. Se na Bíblia a salvação está fora da sociedade, para a sociologia a salvação estará dentro, induzindo-nos a pensar que a sociedade é progressivamente boa e que a Natureza é apenas um obstáculo a ser superado no caminho do progresso e aperfeiçoamento social. Assim sendo, os seres humanos teriam tudo a ganhar esquecendo sua natureza humana e concentrando-se apenas na sua condição social1 1 . Não é demais lembrar que o conceito de condição humana, desenvolvido por Hannah Arendt (1958), embora destinado a superar as aporias de um pensamento reduzido a analisar apenas a condição social do homem moderno, nunca conseguiu penetrar a fundo a teoria sociológica, permanecendo no campo das filosofias social e política. .

III

O conhecimento científico não autoriza a ninguém a ser otimista ou pessimista em relação ao significado extracientífico de seus fatos. Se duas galáxias colidem, ainda que com isto sejam hipoteticamente destruídos milhões de mundos como o nosso, os astrofísicos certamente não ficam nem mais deprimidos nem mais alegres. Se as ciências naturais descobrem uma relação familiar insuspeita entre os humanos e o resto dos primatas, isto também não torna mais otimista ou pessimista nenhum naturalista. Max Weber (1967) lembra-nos que na atividade científica não estão em jogo para os seres humanos as conseqüências derivadas dos avanços do conhecimento (seja teórico ou tecnológico), embora estes possam trazer-lhes alegrias ou tristezas. O que está em jogo na ciência, precisamente, é o próprio avanço do conhecimento científico. A sociedade pode destinar recursos para a pesquisa científica caminhar em uma direção ou em outra, os avanços podem surgir de forma impensada e imprevista, mas sempre que acontece um verdadeiro descobrimento ele se incorpora à realidade como fato, sendo a sociedade que, posteriormente, lhe atribuirá ou não um determinado sentido ou valor. Isto quer dizer que a ciência muda nossa percepção da realidade, mas a valoração desta é um processo social mais amplo. Nenhum europeu do século XIX deixou de lado seu etnocentrismo após o descobrimento de Darwin, nem ninguém pensa hoje que tem algo errado no cosmos quando duas galáxias entram em rota de colisão. Por isso, acredito que os únicos sentimentos permitidos na ciência (mesmo quando se assume posições críticas ou interpretativas) dizem respeito aos avanços ou retrocessos do conhecimento como tal. O que significa, então, a tendência permanente ao otimismo exibida pelas principais correntes da sociologia contemporânea, independentemente de os seus fantasmas terem se deslocado do passado para o futuro?

Certamente, esse otimismo não é generalizável. Por exemplo, autores como Weber e Pareto, nos primórdios da sociologia, ou como Foucault e Luhmann, mais recentemente, não me parece que encorajem seus leitores a ver as sociedades modernas como lugares de salvação. Por isso, o sentido último de suas análises é sempre derivado do juízo de valor do leitor. Porém, a massa dos sociólogos contemporâneos não comunga com os fundamentos epistemológicos das obras desses autores, ainda que se aproveite deles para realizar suas análises. A maioria dos sociólogos sente-se mais confortável ao lado de autores clássicos como Marx e Durkheim, ou de contemporâneos como Touraine, Giddens e Habermas, para os quais o mundo social é (ou pode chegar a ser em determinado momento) muito mais o resultado da ação de atores ou sujeitos conscientes e/ou de forças sobre as quais estes exercem algum tipo de controle. Por este caminho, a ação social deriva em ação moral e a sociologia em otimismo.

De fato, não tenho nada contra o otimismo no plano pessoal (os médicos até comentam que faz bem à saúde). Mas insisto, na ciência a questão do otimismo (ou pessimismo) não tem cabimento. No caso da sociologia, o otimismo é a manifestação mais visível do reducionismo, que transforma tudo o que é humano em uma questão social, e tudo o que é social em algo que depende, em última instância, de nossa vontade. Desse modo, a natureza humana acaba transformada em algo "bom" ou, na pior das hipóteses, em algo neutro. Se nosso destino depende de nossa própria vontade não temos como não ser otimistas! O ingresso do otimismo no pensamento social foi garantido por Rousseau, com tanta sorte (ou desgraça) que até hoje continua inspirando a maioria dos que navegam pelas diversas vertentes da sociologia. Ora, diz Rousseau, se as coisas estão mal é porque os seres humanos fizeram a sociedade errada, trata-se então de fazer a sociedade certa e tudo ficará bem. A dignidade da espécie humana foi salva! Antes de viver em sociedade nossa espécie era moralmente neutra. Os seres humanos eram considerados "bons selvagens", possuídos por uma compaixão natural eles não tinham que se preocupar com sua natureza, senão com a chegada da civilização.

É difícil não cair nas armadilhas de Rousseau. Não obstante, ainda que caindo nelas, os erros de pensadores como Marx e Durkheim foram sem culpa, e nenhuma crítica lhes pode ser feita em nome da ciência. As visões da natureza humana oferecidas pelos filósofos sociais clássicos (Rousseau incluído) e pelas outras disciplinas da época (biologia e psicologia incluídas) eram tão pobres e/ou fantasiosas que bem podiam ser ignoradas na hora de fundamentarem a nova ciência da sociedade. De certa forma, isto continuou valendo até a revolução da psicologia (leia-se também psicanálise), que explodiu já faz um certo tempo, e a da biologia (leia-se também ecologia), que explodiu mais recentemente. É por isso que Marx e Durkheim não cometeram grandes erros, embora tenham errado muito mais que Weber e Pareto. Mas, hoje, o isolamento disciplinar da sociologia que a obra de um Habermas ou Giddens reflete, constitui, sem dúvida, erro grave e culposo. Suas teorias são um retrocesso em relação ao espírito de um Weber ou de um Pareto, em cujas obras não encontramos nada parecido às esperanças oferecidas por uma teoria da ação comunicativa ou da modernidade reflexiva, as quais nos levam a acreditar que, por maiores que sejam as mudanças e por mais graves que sejam as circunstâncias, os seres humanos continuam sempre tendo ao seu alcance ferramentas capazes de construir a sociedade certa. Seguindo a interpretação desses autores, pareceria que a espécie humana nunca perde sua dignidade, apenas perde seu tempo.

Aqueles sociólogos que neutralizam ou descaracterizam a importância da natureza humana para compreender a vida social e que, em uma operação convergente, pressupõem a bondade da ação social, estão afirmando algo mais (ou algo menos) que uma hipótese científica. Eles estão transformando estes supostos em fundamentos míticos ou religiosos de seus trabalhos, de modo tal que os mesmos não podem ser discutidos (na maioria das vezes porque não são sequer explicitados), e muito menos refutados (não existe nenhum acontecimento deste mundo que possa demonstrar o contrário). O mais engraçado disto é que esses sociólogos não percebem que estão operando de um modo não científico. Precisamente, seu reducionismo impede-os de ver que seus supostos são mais religiosos que científicos.

Anteriormente, levantei a hipótese de que a sociologia, quando de algum modo percebeu sua obsolescência, acabou dando um salto para dentro dela mesma, evitando assim reabrir o debate de seus antecedentes e pressupostos epistemológicos, o qual teria implicado, certamente, rever sua relação com a ciência em geral. No que se refere à biologia, esta revisão está cheia de obstáculos, derivados particularmente do promíscuo relacionamento entre ambas no passado. Os principais autores clássicos fundadores da sociologia construíram suas teorias reagindo, precisamente, contra explicações do social de fundo biológico (Leis, 1999). De Aristóteles e Tomás de Aquino até Spencer e Comte, as explicações da sociedade e da política eram dadas por analogia com as concepções biológicas da época. A sociedade era quase sempre comparada a um organismo vivo e as instituições sociais, que deviam adaptar-se funcionalmente ao seu ambiente, aos órgãos do corpo humano. Em Durkheim, a metáfora organicista não desaparece totalmente, mas é evidente que enfrentou o evolucionismo biológico de Spencer e outros, afirmando claramente que os fenômenos sociais não podem ser explicados a partir de variáveis biológicas como raça, instinto etc. No caso de Marx, sua teoria da luta de classes rejeita fortemente a analogia organicista, assim como também enfrenta decididamente qualquer reducionismo biológico dos problemas sociais (como aparece claramente na sua polêmica com Malthus). Embora Weber e Pareto tenham participado igualmente do esforço reducionista para fundar a sociologia, eles certamente foram muito mais abertos que Marx e Durkheim para pensar a sociedade dentro de modelos multicausais onde os fatores biológicos (dentre outros) foram considerados de forma mais equilibrada. Resumindo, os clássicos da sociologia desenvolveram um pensamento relativamente marcado pelas reações contra interpretações da sociedade apoiadas em fatores biológicos. Tal como comentado anteriormente a respeito dos erros de Marx e Durkheim, seria incorreto ver as teorias dos clássicos como um retrocesso em relação às anteriores. Pelo contrário, os clássicos, sempre que contextualizados historicamente, representam um avanço sobre as teorias sociais de sua época. De fato, o retrocesso ficou por conta de seus discípulos que, por estarem excessivamente presos aos ensinamentos recebidos, não souberam nem avançar nem retroceder.

IV

Será que a sociologia do século XXI terá coragem de recuperar os grandes temas civilizatórios sem preconceito de nenhum tipo? Será que conseguiremos resgatar os olhares de um Tocqueville, no século XIX, ou de um Weber, no século XX, capazes de enxergar, através das águas turvas do presente, a história do futuro? Será que a recente recaída moralista da sociologia não é mais que o recrudescimento dos sintomas antes da cura completa do paciente? Ou será que a sociologia está em uma fase terminal, condicionada fortemente pelo subjetivismo dos diversos projetos dos atores sociais? Será que (oh!) as concepções da ordem social que dominam a sociologia desde a sua fundação constituem uma reação e inversão do objetivismo das concepções dos cientistas naturais? Ou será, no final das contas, que ainda existe uma disputa pendente entre as ciências da sociedade e as ciências da vida?

Tratemos de encontrar algumas pistas e hipóteses que nos ajudem a responder a estas perguntas. Sabemos que a modernidade promoveu grandes mudanças sociais, exemplificadas notoriamente na Revolução Francesa. Na época em que essas coisas aconteciam, a sociedade estava estruturada em torno de hierarquias esclerosadas que há muito tempo não facilitavam o progresso humano. De certa forma, a modernidade derrubou uma sociedade baseada em um princípio de hierarquia total (na teoria ninguém é igual a ninguém em nenhuma circunstância), para promover uma outra sociedade baseada em um princípio de igualdade total (também na teoria todo mundo é igual a todo mundo em qualquer circunstância). Da mesma forma que na sociedade pré-moderna, por culpa de uma hierarquia imposta artificialmente, era cada vez mais difícil reconhecer e aproveitar os verdadeiros méritos das pessoas e, desse modo, a sociedade se tornava cada vez mais injusta e degradada; hoje também, por culpa de uma igualdade imposta artificialmente, torna-se cada vez mais difícil obter reconhecimento e fazer justiça com os esforços e virtudes de cada indivíduo. Obviamente, apesar de os resultados serem parecidos, não é fácil compará-los, na medida em que respondem a princípios de organização social opostos (hierarquia e igualdade). De qualquer forma, atrevo-me a fazer, pelo menos, uma comparação. Como resultado da degradação social produzida pela incapacidade de reconhecer os méritos das pessoas, encontramos na sociedade medieval um forte parasitismo social e mental entre as classes altas, enquanto na sociedade atual o parasitismo encontra-se ampliado, envolvendo tanto os setores mais altos como os mais baixos da sociedade. Sair do radicalismo hierárquico para cair no igualitário parece ter servido para popularizar o parasitismo social, não para suprimi-lo.

A sociedade humana, nos melhores momentos de sua história, sempre manteve um equilíbrio entre as virtudes das classes altas e aquelas das classes baixas, assim como também uma responsabilidade social proporcional entre elas pelo desenvolvimento da sociedade em seu conjunto. Mas o que acontece quando, como agora, temos uma população que cresceu quase sem limites nos setores mais baixos e desqualificados, os quais, em muitos casos, para sobreviver se vêem condenados a demandar dos demais mais do que eles, inclusive, podem oferecer? Aqueles que reclamam saúde e educação (além de outras políticas públicas) de forma igualitária para todos pressupõem que esses fatores, se corretamente implementados pelo Estado, igualariam do mesmo modo a população humana em um padrão comum, onde tendencialmente seria impossível encontrar qualquer base para o surgimento da desigualdade social que não tivesse sua origem em fatores sociais preexistentes (como a propriedade privada, por exemplo). Quem assim pensa esquece o que até o próprio Rousseau, um dos maiores defensores do igualitarismo, reconhecia: que existem também desigualdades naturais a serem levadas em conta. Obviamente, tais desigualdades naturais ou genéticas são extremamente difíceis de avaliar e não vai ser um teste para medir a inteligência lógico-matemática ou o QI das pessoas que vai resolver a questão. Da mesma forma que com as "bruxas", podemos não acreditar nas desigualdades naturais, mas que elas existem, existem... e não adianta esconder a cabeça como faz o avestruz (ou a sociologia).

Não são poucos os testemunhos de vida (como aconteceu com Florestan Fernandes, por exemplo) que sem um acaso favorável teriam sido talentos perdidos. É precisamente entre as classes baixas que podemos encontrar um maior número de homens e mulheres inteligentíssimos e virtuosos, mas que nunca tiveram oportunidade para desenvolver suas aptidões. A massificação das sociedades pelo aumento da população e da miséria, por um lado, e as dificuldades para avaliar corretamente os méritos dos indivíduos, por outro, são os principais fatores que dificultam a descoberta e o aproveitamento desses talentos. O que fazer, então? Limitar o crescimento populacional? Aprofundar a implementação de políticas públicas? Deixar as coisas como estão e ver o que acontece? Lutar pela revolução? Avaliar o desempenho de todos os indivíduos como condição para o exercício de todas as suas atividades (incluindo a cidadania)? Um pouco de tudo e mais ainda? Como já antecipei, acredito que não cabe ao sociólogo dizer o que deve ser feito diante de um problema qualquer, mas cabe sim a ele dissecar o problema para que os atores responsáveis pelas eventuais soluções possam estar bem informados, equacionando corretamente todas as variáveis em jogo.

Mas quais são as variáveis aqui? A sociologia fala como se as conhecesse todas, porém isto não é verdade. A sociologia não conhece nem sabe como tratar homens e mulheres individualmente, conhece, em todo caso, os cidadãos e os diversos setores sociais que integram a sociedade. De fato, quando se pede mais educação, mais políticas públicas em geral, está se renunciando ao desenvolvimento dos seres humanos concretos, identificando-os apenas com suas capacidades socialmente valiosas. O restante da personalidade, o que os seres humanos têm de mais humano (incluindo sua espiritualidade) fica de fora. Não pesquisar a relação entre a expansão da massificante educação atual e a expansão ou não dos méritos, em geral, e dos diversos tipos de inteligência existentes nos seres humanos (não apenas a lógico-matemática), em particular, é continuar pensando a evolução da humanidade em termos reducionistas. Que a educação influi fortemente no desenvolvimento humano é uma verdade evidente; mas, embora não seja tão evidente, não é menos verdade que existe um desenvolvimento hereditariamente condicionado que sugere caminhos diversos para a realização da felicidade humana e que essa mesma educação massificante ignora (Huxley, s/d). Fora da sociologia (e das chamadas ciências da educação, obviamente) não parece ser tão difícil aceitar que os seres humanos não são iguais, nem do ponto de vista social nem do natural, e que são tanto um resultado diferenciado de seu ambiente e educação como de seus fatores hereditários.

Os pensadores realistas sabem que a política não deve adaptar-se à racionalidade humana, mas à natureza humana; que as instituições sociais existem para os seres humanos, não os seres humanos para as instituições sociais. Portanto, se queremos instituições que funcionem devemos colocá-las em sintonia com a natureza humana. Mas como julgar as instituições existentes ou imaginar novas se não conhecemos a natureza humana ou, se como fazem os sociólogos, ignoramos que ela existe? Por incrível que pareça, os aspectos centrais de nossos princípios e instituições políticos e sociais atuais foram definidos, entre os séculos XVII e XIX, por um amplo espectro de pensadores (Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Montesquieu, Hegel, Marx, Stuart Mill etc.) que apoiavam seus trabalhos nas diversas concepções de natureza humana disponíveis na época. Isto significa um belo qüiproquó, já que as ciências sociais, de modo geral, continuam atribuindo legitimidade às instituições imaginadas por autores que, de acordo com a ciência contemporânea, apresentam concepções quase mitológicas da natureza humana. Será que com os conhecimentos produzidos no século XX pela psicologia e, especialmente, pela biologia não deveríamos repensar nossas idéias tradicionais sobre os indivíduos, a sociedade, o Estado e a democracia, por exemplo?

As novas idéias e pesquisas biológicas (em um espectro que cobre da ecologia dos grandes ecossistemas até a bioneurologia do cérebro humano, passando pela engenharia genética) convocam-nos a repensar nossas instituições tanto quanto convocam a sociologia a dedicar uma boa parte de seus esforços ao trabalho interdisciplinar, especialmente com a biologia. Ainda que a sociologia não seja imputável pelos trabalhos dos filósofos sociais dos séculos XVII a XIX, ela não pode ficar moralizando ou criticando de fora os descobrimentos científicos e as possibilidades tecnológicas que recolocaram, no final do século XX, a questão da natureza humana no centro do cenário. Afirmei mais acima que a sociologia dá a impressão de ter medo do futuro. A recusa a entrar com força total no debate aberto pela atual revolução biológica confirmaria esta hipótese, na medida em que suas conseqüências para a evolução da humanidade são dramáticas. Estamos falando, nada mais nada menos, de discutir em profundidade e sem preconceitos as implicações teóricas e práticas das transformações eugênicas que, em muito pouco tempo, estarão sendo produzidas pela engenharia genética (associada, especialmente, ao Projeto Genoma Humano, o qual recentemente concluiu o mapeamento genético de nossa espécie).

A velha eugenia justifica plenamente a antipatia dos sociólogos. Kevles (1997) mostra claramente como a maioria dos seus defensores de fim do século XIX e primeiras décadas do XX (os quais, curiosamente, se concentravam tanto na Alemanha que iria cair nas mãos de Hitler, como nos liberais Estados Unidos e Inglaterra, que caminhavam para enfrentar o nazismo) estava guiada muito mais pelo ressentimento e preconceitos do que pela pesquisa científica (obviamente, as exceções não eram poucas, dentre elas encontramos proeminente biólogos que militavam na esquerda moderada, como Julian Huxley e Herbert S. Jennings, ou mesmo no marxismo, como Lancelot Hogben e J. B. S. Haldane). As correntes dominantes da velha eugenia queriam, basicamente, mudar a sociedade através de políticas discriminatórias ou genocidas, seja por motivos patológicos, raciais ou religiosos. Era uma eugenia que, paradoxalmente, escondia detrás de suas reivindicações hierarquizantes uma forte meta igualitária ou niveladora, como ficou claro no caso do nazismo, em que o Estado definiu o padrão biológico a que todos os cidadãos deviam adequar-se e aqueles que não se enquadravam deviam ser eliminados através de políticas de extermínio gradual ou total. Os que restassem seriam todos biologicamente iguais.

Mas a atual proposta eugênica guarda distância enorme da anterior. Para começar nem aparece identificada com o nome (Rifkin, 1998, recupera o conceito de alquimia para então sugerir o de algenia para expressar a idéia da nova eugenia). A eugenia do século XXI aparece despolitizada, sem nenhuma vinculação com qualquer questão racial e muito menos religiosa. Ela chega impulsionada pelas pesquisas dos cientistas, pelas forças do mercado e pelo desejo das pessoas de evitar doenças e melhorar suas capacidades físicas e mentais. A distância entre uma e outra proposta fica clara quando observamos que a nova eugenia inverte o paradoxo da anterior: esta agora aparece empacotada em discursos que prometem benefícios para toda a humanidade, mas suas metas são claramente hierarquizantes. O acesso à engenharia biogenética através do mercado vai permitir aos indivíduos que eles estabeleçam seu próprio padrão hereditário (o Estado, no melhor dos casos, continuará fazendo o mesmo que até agora na área da saúde pública, generalizando entre a população apenas uma terapia genética básica para erradicar doenças de grande impacto social).

Porém, as práticas genéticas que se avizinham introduzirão uma hierarquia impensada entre a população, caracterizada por uma elite de pessoas que adquirirão uma base genética superior, que consiste em melhorias substanciais de inteligência, memória e aptidão física, assim como em uma maior longevidade, e uma massa composta por indivíduos que ficarão excluídos da possibilidade de melhorar sua base genética de forma significativa. Nada permite suspeitar que essa hierarquização da sociedade vai acontecer de forma pensada ou consensual, atendendo aos méritos reais das pessoas. Os alcances individuais da engenharia genética poderão, eventualmente, ser decididos reflexivamente (à Giddens) ou comunicativamente (à Habermas), mas o alcance global da mesma simplesmente vai acontecer (acompanhando a ação sistêmica do mercado e/ou das novas tecnologias). E assim como ninguém pensa hoje que seria viável fazer uma campanha para fechar todas as clínicas e hospitais privados do mundo, de modo a garantir a todos igual acesso à saúde através de instituições públicas, que ninguém pense que vai ter alguma viabilidade qualquer campanha moralista (encabeçada pela sociologia?) contra a nova eugenia, destinada a impedir o acesso privado às benesses da engenharia biogenética.

V

Retomemos a comparação entre as sociedades pré-moderna e moderna. Já tivemos uma sociedade tremendamente injusta por culpa da imposição de uma hierarquia artificial que claramente obstaculizava o reconhecimento do verdadeiro mérito das pessoas. Depois de alguns séculos de modernidade, as coisas não são necessariamente melhores. Assim como no passado se incentivava o parasitismo, através de diversos mecanismos hierarquizantes que não garantiam (muito pelo contrário, impediam) que os melhores fossem para a frente, a sociedade atual também incentiva o parasitismo através de diversos mecanismos niveladores que, como no caso anterior, também impedem ou dificultam que sejam os melhores os que vão para a frente. O escândalo sociológico fica evidente quando não registramos qualquer tentativa de análise crítica dos pressupostos que justificam a existência dos mecanismos niveladores em vigor. A crescente emergência de movimentos direitistas neonazis em muitos países do Norte anuncia de modo perverso essa ausência de capacidade crítica da sociedade e de seus intelectuais. Assistimos, assim, a uma saturação mental das possibilidades de continuar expandindo o princípio igualitário, mas sem entender os motivos profundos de tal saturação.

No Sul, as carências críticas parecem até maiores. O populismo é parte integrante da alma popular e das práticas políticas e institucionais. O fato de no Sul padecermos de uma espécie de inversão perversa da sociedade pré-moderna pode ser comprovado com algumas evidências escandalosas. No caso brasileiro, por exemplo, apesar da legislação em contrário, ainda temos algumas universidades federais que se rebelam contra a "arbitrariedade" de normas hierarquizantes e, com o consentimento da maioria de seus integrantes, escolhem suas autoridades (incluindo os reitores) por voto universal, igualando assim, alegremente, na capacidade de escolha para instituições e funções tão complexas e dramaticamente vitais, professores-titulares em fim de carreira com estudantes calouros, servidores técnicos sem o segundo grau com professores-doutores titulados em universidades de excelência. O voto, essa ferramenta vital para o exercício de uma autêntica democracia, é outro exemplo. Em vez de ser incentivada sua transformação em um exercício consciente de uma cidadania esclarecida, ele é constantemente nivelado por baixo. No Brasil de hoje, as autoridades políticas são escolhidas pelo voto praticamente compulsório de um nivelado espectro de pessoas que inclui desde analfabetos a apáticos adolescentes. Quem acredita que votar não requer nenhum mérito especial, não exige uma preparação cuidadosa do cidadão e a correspondente comprovação desse aprendizado, acredita que o exercício da cidadania expressado no voto é mais fácil e menos importante para a vida da sociedade que dirigir um carro na rua (para o qual se requer uma boa preparação e aprovação em um exame de habilitação).

Embora seja difícil saber quais seriam os caminhos mais adequados para garantir melhor o reconhecimento individual e o aproveitamento social dos recursos humanos existentes na sociedade, nem por isso devemos poupar críticas aos modelos disponíveis. O interessante a destacar aqui é que, do mesmo modo que em qualquer outro sistema vivo ou não vivo, as sociedades enfrentam permanentemente a possibilidade de bifurcações ou mudanças profundas (Prigogine, 1983). Em termos gerais, poderia ser dito que as injustiças, ineficiências e qualquer outro tipo de perturbações são sinais de instabilidade que anunciam essas mudanças. Nas atuais circunstâncias, é impossível não considerar provável a hipótese de uma bifurcação associada à emergência da nova eugenia no contexto de uma sociedade baseada em princípios que levam ao nivelamento forçado de boa parte dos indivíduos e facilitam o parasitismo.

Certamente, o resultado dessa bifurcação pode ser pior ou melhor para a sociedade, em comparação ao que temos hoje. Mas a avaliação desse fenômeno é altamente paradoxal. A sociedade é um sistema complexo, não-linear, o qual implica que a dinâmica da realidade pode ser prevista em certo grau, mas o sentido da ordem em gestação dificilmente pode ser percebido antes de as mudanças alcançarem seu clímax. Não se trata, então, de pedir à sociologia que impeça ou ajude no parto de qualquer coisa, apenas de pedir-lhe que cumpra seu papel de ciência e auxilie na compreensão dos acontecimentos da sociedade contemporânea. Que ajude a pensar melhor os falsos dilemas entre medievais e modernos, entre hierarquia e igualdade, entre Natureza e sociedade etc. Que ajude a pensar as bifurcações e os cruzamentos possíveis entre esses fatores. Em suma, que nos ajude a estar melhor preparados para enfrentar o futuro. Que nos ajude a responder quais seriam, por exemplo, os pressupostos científicos e políticos necessários para viabilizar uma sociedade onde os méritos e virtudes individuais não sejam obstaculizados por falsas hierarquias ou igualitarismos, sejam de origem natural, social ou técnica? Que ajude a imaginar uma sociedade democrática que, baseada nos méritos reais das pessoas, expanda tanto o princípio de hierarquia como o de igualdade sobre bases justas. Ou, em outras palavras, que tente pesquisar o olho do ciclone, em lugar de deixar-se levar pelo vento.

Até a década de 80, os sociólogos foram razoavelmente escutados quando afirmavam que apenas por meio de mudanças sociais (educação, políticas públicas, novos valores etc.) seria possível fazer avançar a sociedade na direção de um maior progresso moral e humano. Durante muitas décadas se aceitou que o comportamento humano estava quase exclusivamente associado à educação e aos entornos familiar e social, não restando quase nada para os fatores hereditários ou biológicos. Ainda nos anos 70, a sociobiologia (Wilson, 1978) tentou inverter essa equação, mas foi severamente rejeitada pelos sociólogos, em um caso de rara unanimidade. Mas hoje a compreensão da exclusividade e/ou reducionismo e/ou moralismo dos argumentos sociológicos está chegando ao seu fim e os sociólogos parecem querer ser os últimos a percebê-lo. Se a sociologia se isolar mais uma vez, colocando o rótulo de politicamente incorreto nas pesquisas que estudam os fundamentos genéticos do comportamento social ou que se orientam pela intenção de aperfeiçoar a natureza humana, em pouco tempo estará reduzida a uma seita e, o que é pior, terá perdido a batalha sem lutar, deixando aos biólogos conduzir o debate político-científico com a sociedade para definir o sentido da nova eugenia.

Não aceitar os desafios da biologia deve ser considerado uma deserção dos sociólogos de suas obrigações com a ciência. E mais ainda, na medida em que sem o chão da ciência não existe a possibilidade de desenvolver uma verdadeira moral para a vida moderna, fugir dessa responsabilidade representa também uma atitude imoral. Em outras palavras, o sociólogo não pode dizer, por exemplo, que a eugenia é politicamente incorreta e imoral, que, portanto, qualquer proposta eugênica deve ser rejeitada sem conversa. Uma vez que os avanços da engenharia genética tornam hoje a eugenia uma proposta viável que foge ao controle do Estado, a obrigação dos sociólogos é começar a pesquisar junto com os biólogos, cientistas de outras disciplinas e filósofos, para abrir um debate científico-filosófico produtivo em torno do que é natural e do que é social na natureza humana, assim como as derivações disto para o desenvolvimento humano. A sociologia e a biologia necessitam de uma "terapia de grupo", mais que nunca precisam reconciliar-se e se integrar em equipes interdisciplinares para estudar a hipercomplexa equação que relaciona os fatores genéticos e os sociais em todos os planos do comportamento humano (todos mesmo, recorrendo a toda a gama de um espectro que inclua tanto a política como a religião, o amor como a inteligência, a dança como a amizade).

A sociologia não pode mais continuar desconhecendo a urgência das questões latentes na modernidade técnica atual. Entrevejo que essas questões se organizarão em torno de um dilema que muito precisaria da ajuda de um Sófocles para ser apresentado em toda a sua dramaticidade. Na falta de outros recursos, permitam-me que apresente o dilema como pergunta: a evolução dos indivíduos como espécie (entendendo isto, basicamente, como um melhor desenvolvimento das condições genéticas da espécie enquanto espécie) é contraditória ou convergente com a evolução dos indivíduos como sociedade (entendendo isto, basicamente, como um melhor desenvolvimento das condições materiais e espirituais da sociedade enquanto sociedade)? Dilema hipercomplexo que nos desafia a pensar em transformações profundas nas dimensões social e biológica dos seres humanos. Seria uma expressão de muito provincianismo acreditar que a sociologia pode, na sua atual fase borboleta, responder sozinha, fora de uma abordagem interdisciplinar, às perguntas introduzidas pela técnica moderna à nossa civilização, especialmente pela presente aventura computacional-informática-biotecnológica.

Nas últimas décadas houve festas para as quais os sociólogos não foram convidados. Sabemos que em uma das mais badaladas foi celebrado o casamento entre as ciências da informação e as ciências da vida. Fico imaginando o que seria um ménage à trois, introduzindo as ciências sociais na intimidade do casal. Autores como Luhmann e Castells, embora por ângulos diferentes, acredito que não veriam com maus olhos o namoro da sociologia com as ciências da informação. Mas onde encontrar hoje um cientista social da estatura de um Gregory Bateson, que nos anos 70 era capaz de integrar sem solução de continuidade áreas das mais diversas da vida social, psicológica e natural, além de transitar por elas. Os conhecimentos científicos na área da biologia prometem uma revolução biológica. E então, ninguém melhor que os sociólogos para namorar as revoluções! Ironia do destino, agora que as revoluções sociais (sejam do tipo francês ou russo) não assustam mais ninguém, nos damos ao luxo de ter uma revolução tecnológica cada 24 horas. A de anteontem foi a dos computadores, a de ontem a da informação e a de hoje a biotecnológica. Todas essas revoluções (mais as que estão nos museus) aparecem primeiro com as mãos cheias de promessas e nos deixam bastantes felizes por um tempo. Um pouco depois começam as dúvidas, mais um pouco os problemas e mais outro pouco, quase sem percebê-lo, ficamos cheios de riscos e também de dívidas. De dívidas contraídas para atender aos danos deixados pelo terror revolucionário. Nesse sentido, parece óbvio que a biotecnológica é mais demandante de atenção que qualquer outra revolução anterior. Na medida em que ela promete algo tão valioso como a própria vida, é lógico esperar também uma quota maior de "terror".

VI

O reducionismo dos clássicos (ainda dos mais recalcitrantes), nunca lhes impediu de entender o social em sentido amplo, isto é, o social nunca deixou de ser pensado por eles de forma interdisciplinar. Embora esta interdisciplinaridade se desse dentro de um campo relativamente restrito, integrado basicamente pelas ciências sociais e humanas (basicamente sociologia, antropologia, psicologia, economia, geografia e história) e a filosofia, de qualquer forma isto evidencia que suas abordagens eram abertas e permitiam o contato com uma diversidade de teorias e dados empíricos que extrapolavam o estritamente sociológico tal como hoje é entendido. Mais acima me perguntava pela culpa inconfessa que levou os sociólogos a ocultar suas manobras e saltos político-epistemológicos. As respostas para explicar esta culpa apontam para duas causas, uma maior e outra menor. A causa maior reside precisamente no fato de os sociólogos contemporâneos não terem querido enfrentar a contradição estabelecida de nascença na sociologia, entre uma proposta (epistemológica) interdisciplinar e uma visão (ontológica) reducionista da realidade. Contradição que está sendo tratada da pior maneira, tentando suprimir um de seus lados. A culpa inconfessa reside no anacrônico reducionismo dos discípulos que, por não quererem avançar na direção de uma maior interdisciplinaridade daquela de seus mestres, estão agora pretendendo estabelecer uma disciplina moral para um objeto cada vez mais complexo.

Além do pulo suicida para o próprio abismo, existe outra falsa saída bastante enganosa que também não resolve. Não tenho bola de cristal, mas não estranharia que a revolução de amanhã (ou de depois de amanhã) fosse interdisciplinar ou transdisciplinar, seja lá o que isto signifique (não foram poucas as vezes que, lendo notas de divulgação científica, encontrei afirmações ininteligíveis do tipo "estamos entrando na era da interdisciplinaridade"). Assim sendo, de repente, a sociologia pode cair na tentação de adotar uma retórica interdisciplinar, mas sem se comprometer com uma reforma epistemológica profunda que mexa com seus supostos básicos. Se a sociologia não se tornar transgressora com ela mesma, se vai à festa dos outros mas não traz também a festa para dentro de casa, chegando até o núcleo de seus fundamentos e redefinindo sua concepção de natureza humana, qualquer mudança será apenas cosmética.

Last but not least, a causa menor da culpa inconfessa. Ela reside no fato de que parte dessa conversão dogmática foi imposta pela lógica das instituições e a política acadêmica. Essa conversão dos discípulos dos mestres não está isenta de um certo interesse material dado pela proliferação e institucionalização dos programas de pós-graduação (em todas as áreas, não apenas na sociologia), que foram abrindo nichos cada vez maiores de especialização (por exemplo, um mesmo curso de doutorado na época de Florestan Fernandes permitia o desenvolvimento de teses que hoje estão separadas entre vários cursos com fronteiras melhor defendidas que definidas).

Concluindo, quando pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial emergiram os problemas ambientais e os sociólogos deixaram os biólogos quase que falando sozinhos sobre a crise ecológica, tivemos uma prova das dificuldades dos primeiros para lidar com questões interdisciplinares de amplo espectro e, em particular, para relacionar-se com os trabalhos dos segundos. Isto se traduziu em uma fraqueza histórica considerável do debate ambientalista, que ficou durante décadas sujeito a vários tipos de catastrofismos, por conta de centrar-se quase exclusivamente em variáveis naturais, por esquecer e/ou não saber como fazer o vínculo com as sociais. Mas a fraqueza do lado sociológico do ambientalismo não é nada quando comparada com a fraqueza da sociologia em assumir a problemática ambiental como um desafio importante para pensar os pressupostos da sociedade moderna. Porém, se a questão ambiental tinha grau 10 de importância, a questão biotecnológica colocada hoje tem grau 100! Deixar outra vez os biólogos praticamente falando sozinhos sobre as bifurcações e meandros da sociedade eugênica (e, por enquanto, nada me faz pensar que não vai ser assim), vai ser um dos comportamentos mais bizarros da história da sociologia. Sua casca de otimismo e moralismo não vai conseguir esconder o medo que os sociólogos sentem por pesquisas que colocam em discussão alguns dos supostos religiosos básicos da sociologia (e da sociedade moderna construída pela sociologia). Se o pior acontecer, talvez isso não seja o fim da sociologia, mas certamente será o de suas festas.

(Recebido para publicação em outubro de 2000)

NOTA:

ABSTRACT

The Sadness of Being a Sociologist in the 21st Century

This article analyzes the limits of sociology in understanding recent transformations in modernity. Of particular interest are the epistemological difficulties found at the theoretical roots of sociology in dealing with the tasks arising from the biotechnological revolution currently under way and its eugenic impacts on future society. The paper’s argument is that the main task is an interdisciplinary review of relations between the concept of human nature and prevailing social and political values. In order to better comprehend the radical challenge of modernity in the 21st century vis-à-vis classical modernity’s values, two heuristic figures are presented: the dilemma of technical modernity and the contradiction of sociology.

Keywords: social theory; modernity; human nature; eugenics

RÉSUMÉ

De la Tristesse d’être Sociologue au XXIe.Sièle

Ce texte examine les limites de la sociologie lorsqu’il s’agit de comprendre les changements récents de la modernité. Limites surtout devant les difficultés épistémologiques qui se trouvent dans les racines théoriques de la sociologie face aux questions survenues avec la révolution biotechnologique en cours et ses impacts eugéniques sur la société à venir. On suggère que, parmi ces questions, la principale consiste à faire la révision interdisciplinaire des relations entre le concept de nature humaine et les valeurs sociales et politiques en cours. Pour mieux saisir l’enjeu radical de la modernité du XXIe. siècle face aux valeurs de la modernité classique, on présente deux figures heuristiques: le dilemme de la modernité technique et la contradiction de la sociologie.

Mots-clé: théorie sociale; modernité; nature humaine; eugénie

  • ARENDT, Hannah. (1958), The Human Condition Chicago, University of Chicago Press.
  • HUXLEY, Aldous. (s/d), Sobre a Democracia e Outros Estudos Lisboa, Livros do Brasil.
  • KEVLES, Daniel J. (1997), In the Name of Eugenics Cambridge, Harvard University Press.
  • LEIS, Héctor Ricardo. (1999), A Modernidade Insustentável Rio de Janeiro, Vozes.
  • PRIGOGINE, Ilya. (1983), Tan Solo una Ilusión? Barcelona, Tusquets.
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  • WEBER, Max. (1967), El Político y el Científico Madrid, Alianza.
  • WILSON, Edward O. (1978), On Human Nature Cambridge, Harvard University Press.
  • *
    Este artigo foi originalmente apresentado no GT de Teoria Social, do XXIV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - Anpocs, Palácio Quitandinha, Petrópolis, RJ, 23-27 de outubro de 2000.
  • 1
    . Não é demais lembrar que o conceito de condição humana, desenvolvido por Hannah Arendt (1958), embora destinado a superar as aporias de um pensamento reduzido a analisar apenas a condição social do homem moderno, nunca conseguiu penetrar a fundo a teoria sociológica, permanecendo no campo das filosofias social e política.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      2000

    Histórico

    • Recebido
      Out 2000
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