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Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito

NOTAS SOBRE LIVROS

Cássio Florêncio Rubio

UNESP/São José do Rio Preto/FAPESP

SCHERRE, Maria Marta Pereira. 2005. Doa-se Lindos Filhotes de Poodle: Variação Lingüística, Mídia e Preconceito. São Paulo: Parábola Editorial. ISBN 85-88456-37-0. 160p.

Apesar de já se ter avançado muito nos estudos sobre concordância de número no português, principalmente em sua variedade coloquial, até então, não se havia conseguido reunir em um único volume, o que há de mais recente sobre o estudo da regra variável de marcação de plural, de forma crítica e comparativa. Temos agora Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito, uma obra oferecida por uma das mais experientes sociolingüistas do Brasil, a Profa. Maria Marta Pereira Scherre, atualmente membro do Programa de Estudos sobre o Uso da Língua/UFRJ e pesquisadora associada sênior da Universidade de Brasília, atuante na áreas de sociolingüística e dialetologia, teoria e análise lingüística e língua portuguesa.

A obra, uma luta exemplar contra o preconceito lingüístico por parte da mídia brasileira, traz em seus quatro capítulos, reescritos de textos publicados entre 1993 e 2003, a análise de trabalhos de pesquisa da autora e de lingüistas brasileiros e europeus, os quais corroboram a concepção de que a concordância de número no português é um fenômeno variável, mesmo em sua variedade escrita monitorada, o que faz o leitor repensar sua posição em relação às verdadeiras funções da comunicação e refletir sobre os conceitos de erro exacerbados pelos gramáticos normativos.

O capítulo 1 nos mostra o preconceito lingüístico da mídia em relação à variedade popular do português. O que foge ao padrão é considerado equivocado. É-nos evidenciado, porém, que as concepções de certo e errado podem ser relativizadas se forem considerados outras línguas e contextos. Assim, a leitura de dados lingüísticos, tema central do capítulo, revela as verdadeiras regras seguidas pelos falantes da língua portuguesa. A variação é apontada tanto na língua falada quanto na língua escrita. Diversos fatores de natureza lingüística e extralingüística podem influenciar a aplicação da regra de marcação de plural, o que pode ser percebido com maior clareza na vasta bibliografia citada ao final do capítulo.

No segundo capítulo, podemos comprovar que o preconceito lingüístico é facilmente perceptível em renomados jornais e revistas de circulação nacional. A mídia expõe um paradigma bilateral entre linguagem padrão e linguagem coloquial, atribuindo à última, rótulos de pobreza, simplicidade e mesmo de incoerência, revelando uma confusão entre língua e gramática normativa, entre língua falada e língua escrita e, nas palavras da própria autora, "as deprimentes associações entre língua e inteligência/burrice, competência/incompetência, beleza/feiúra; sucesso/insucesso", um desserviço que só vem a reforçar "um dos aspectos mais sórdidos do ser humano: a divisão entre classes e a exclusão social" (p.88 e 89).

Ao revelar os resultados das mais recentes pesquisas realizadas com amostras de fala e de escrita, tanto do português brasileiro quanto do português europeu, a autora comprova que a variação é inerente a todas as produções lingüísticas e, assim sendo, fatores de natureza social e/ou lingüística podem influenciar a variação na concordância de número. Textos extraídos de jornais impressos, ao final do capítulo, permitem ao leitor refletir sobre a intolerância da mídia, observada contra a linguagem coloquial.

Partindo-se do pressuposto de que a análise da transitividade verbal deve deter a vista em toda a cadeia sintagmática, e não apenas no elemento verbal isolado, o capítulo 3 explicita e justifica o título da obra, demonstrando que as construções consideradas passivas sintéticas pela gramática normativa preferentemente aproximam-se das construções classificadas como ativas de sujeito indeterminado. Novamente, a fim de opor-se à desmedida aversão da mídia às formas não-gramaticais – aqui no sentido normativo do vocábulo – faz-se necessário apresentar os inúmeros exemplos de variação no uso das construções com a partícula se, inclusive em comunicação escrita monitorada. É de fundamental importância, nesse ponto, a menção às palavras do lingüista americano Noam Chomsky, em consideração à aquisição da língua materna pela criança e às reais regras seguidas pelos falantes de uma língua.

No último capítulo, encontramos referência às duras críticas feitas aos lingüistas, especialmente, aos sociolingüistas, por atuarem na defesa das manifestações lingüísticas populares e por considerarem a língua um instrumento de comunicação vivo e mutante. Ao apontar a variação existente no imperativo e na concordância de número no português brasileiro, chega-se à conclusão de que o conceito de erro ou pobreza é extremado em produções lingüísticas que denunciam classe social, como é o caso da aplicação da regra de marcação de plural do português. Em contrapartida, produções que não denunciam classe social, como a variação no imperativo, ainda que não se projetem de acordo com as regras normativas, não são, ou são muito menos estigmatizadas pelos meios de comunicação. Este último capítulo se encerra com uma reflexão da autêntica concepção de língua materna: aquela adquirida naturalmente, a qual todo indivíduo falante nativo domina plenamente, diferentemente da variedade normativa, ensinada na escola.

A obra se conclui com um convite a toda a classe de lingüistas e interessados pela língua portuguesa, para que se conheça a real dimensão do preconceito lingüístico, o qual reside, antes de qualquer coisa, no preconceito social e na "subjugação do outro". Aos interessados em travar contato de forma aprofundada com o tema enfocado na obra, uma vasta referência bibliográfica anexa-se ao compêndio.

Doa-se lindos filhotes de poodle: variação lingüística, mídia e preconceito não é apenas uma reunião de trabalhos de pesquisa sociolingüística sobre variação no português; mais do que isso, é uma obra de reflexão que, apoiada no conhecimento científico, propõe-se, em primeiro lugar, a refutar as idéias e atitudes imponderadas, que, infelizmente, perduram nos órgãos de imprensa, fazendo com que o preconceito se difunda, impedindo a livre manifestação lingüística. Em segundo lugar, o livro procura despertar o discernimento crítico na sociedade, a fim de minimizar o preconceito social.

Email: cassiorubio@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2006
  • Data do Fascículo
    2006
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