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Inclusão como modo de viver: bem viver

Inclusion as a way of living: well living

RESUMO

Este artigo tem por objetivo trazer à reflexão e discutir inclusão, sob a perspectiva da complexidade de Edgar Morin, visando a uma construção argumentativo-conceitual que dê a esse construto a conotação de modo de vida. Trata-se de um estudo teórico-documental que articula elementos constitutivos da tríade inclusão-complexidade-linguagem, cujos sentidos mantêm estreita relação com os operadores cognitivos do pensamento complexo, pois evidenciam formação e movimentos, ao mesmo tempo, hologramáticos, recursivos e dialógicos, em direção a uma tetralógica de ordem, desordem, interações e organizações, comuns aos sistemas vivos. A tríade é discutida à luz das ideias que versam sobre a complexidade no campo da Educação e de sua interface com a área da linguagem, mais especificamente, com a Linguística Aplicada. A discussão é tecida de forma entrelaçada, por meio de binômios interdependentes que emergiram da convergência dos elementos da tríade com a centralidade teórica da complexidade humana. Os binômios que perpassam a discussão são: (1) singularidade - mundialização, (2) condição humana - ação, e (3) linguagem(ns) - inclusão/exclusão. Finalizando o artigo, apresentamos nossas considerações sobre inclusão, entendida como modo de viver, bem viver - bem pensar.

Palavras-chave:
Inclusão/Exclusão; Complexidade; Linguagem

ABSTRACT

This article aims to discuss inclusion from the perspective of Edgar Morin’s complexity, aiming at an argumentative-conceptual construction that gives this construct the connotation of a way of living. This is a theoretical-documentary study that articulates constitutive elements of the triad inclusion-complexity-language, whose meanings are closely related to the cognitive principles of complex thinking, since they show formation and movements, simultaneously hologramatic, recursive, and dialogical, towards a tetralogic of order, disorder, interactions, and organizations, common to living systems. The triad is discussed in the light of ideas about complexity in the field of Education and its interface with the area of language, more specifically, with Applied Linguistics. The discussion is woven together, through interdependent binomials that emerged from the convergence of the elements of the triad with the theoretical centrality of human complexity. The binomials that permeate the discussion are: (1) singularity - mundialization, (2) human condition - action, and (3) language(s) - inclusion/exclusion. To conclude the article, we present our considerations about inclusion, understood as a way of living, well-living - well-thinking.

Key words:
Inclusion/Exclusion; Complexity; Language

1. Introdução

Eu também queria uma escola que ensinasse a conviver, a cooperar, a respeitar, a esperar, a saber viver em comunidade, em união. (Panciera, 1983)4 4 Excerto da poesia Para Sara, Raquel, Lia e para todas as crianças, de Maria Teresa Del Prete Panciera (1983).

Muito se tem debatido sobre inclusão e se adjetivado esse substantivo ao longo das últimas décadas. Pesquisadores, professores, gestores e pais têm visões próximas ou distintas sobre o assunto, provocando não apenas discussões conceituais, mas também declarações sobre em quem recai a responsabilidade de promovê-la, de cuidar para que seja preservada e de investigar suas implicações e decorrências.

No entanto, muito se tem produzido nesse sentido e já existem referências muito pertinentes nesse viés. Por essa razão, deliberadamente, direcionamos o rumo de nossa reflexão a uma trilha díspar, cunhando uma fissura argumentativa que evidencie nosso comportamento epistemológico e assinale conhecimentos construídos em uma região transdisciplinar, situando-a entre, através e além de campos característicos do saber, notadamente, Educação e Linguística Aplicada.

Partindo desse propósito, começamos por afirmar que compreendemos inclusão como modo de viver, como forma de estar no mundo, nos diferentes espaços sociais, em nível local, ou seja, mais situado; global, isto é, um pouco mais abrangente; e planetário, no sentido visionário de buscar uma totalidade que já sabemos inacessível. Pensamos que, mais do que saber sobre inclusão, é preciso tê-la introjetada como fundamento para o modo de pensar, de ser e de agir no mundo. Esse sentido que expressamos sobre a vida e suas relações com o mundo, os outros e o si-mesmo foi construído com base na epistemologia da complexidade e por meio de uma elaborada reforma do pensamento - ensinamentos apropriados de Edgar Morin, no conjunto de sua obra.

Morin (2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil., p. 8) nos ensina que viver a complexidade envolve “transformar o conhecimento da complexidade em pensamento da complexidade”. Refletindo sobre essa afirmação, construímos o pressuposto de que é preciso transformar o conhecimento sobre inclusão em pensamento inclusivo pois, ao converter o saber em pensar inclusivo, tem-se a consciência de que é preciso viver a inclusão - e isso implica considerar a complexidade humana em sua multidimensionalidade constitutiva.

Se a inclusão estiver introjetada como modo de vida, deixa de ser parte isolada de um conhecimento e de um discurso fragmentado, para ser concebida como unidade hologramática na relação sistêmica parte-todo-parte que, de modo recursivo e reflexivo, evidencia “sua multidimensionalidade, sua complexidade” (Morin, 2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil., p. 64). A consciência da complexidade humana pode ser um vetor para a construção interior de uma perspectiva de um modus vivendi, de uma consciência terrena, planetária, que tenha a inclusão como modo de vida (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 101).

Depois de expor nosso ponto de partida, esclarecemos que este artigo tem por objetivo trazer à reflexão e discutir inclusão sob a perspectiva da complexidade de Edgar Morin, visando a uma construção argumentativo-conceitual dessa noção como modo de vida. Trata-se de um estudo, uma exposição teórico-documental que articula elementos constitutivos da tríade inclusão-complexidade-linguagem. Nossa discussão teórica está amparada nas ideias presentes em obras de Morin, marco da educação planetária, que versam sobre a complexidade no campo da Educação e na interface desse, com a área da linguagem, mais especificamente, com a Linguística Aplicada.

Metodologicamente, nossa discussão contém uma tessitura entrelaçada, formada por binôminos interdependentes, emergentes da convergência entre os elementos da tríade acima citada e a centralidade teórica de Morin sobre a complexidade humana. Os três binômios que perpassam a discussão, pontualmente, são:

  1. singularidade - mundialização,

  2. condição humana - ação, e

  3. linguagem(ns) - inclusão/exclusão.

A tessitura dos entrelaces teóricos evidencia-se relacional e sistêmica, pois considera a conexão recursiva e recíproca entre partes-todo; interliga saberes de diferentes naturezas de modo não linear e não segmentado, aspirando a uma totalidade que se sabe inconclusa; considera as incertezas, imprevisibilidades e ambiguidades como constituintes do ser humano, de sua existência e do planeta que habita.

Nosso tecer se inicia pelo enfoque à complexidade no contexto de nosso habitat vivencial, a América Latina, por considerar as características definidoras de nossa individualidade em um contexto planetário. A seguir, abordamos a inclusão ao longo do tempo e no contexto mundial, motivadas pela polissemia do termo e pela carência de sentidos consistentes para embasar ações inclusivas. Buscamos compreensão sobre noções balizares da condição humana, para que possamos identificar uma concepção que contemple o termo com uma conotação complexa. Para tal, recorremos à ampla documentação nacional e internacional, no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1990. A partir desse levantamento, deparamo-nos com a emergência do binômio singularidade - mundialização, que nos permite tecer reflexões acerca do perigo de padronização mundializada de qualidades próprias, emergentes e singulares, constitutivas dos diferentes espaços do mundo planetário.

Dando prosseguimento à nossa tessitura, discutimos a noção de inclusão no contexto planetário, articulando saberes visionados por Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) para a educação. Emerge, assim, o binômio condição humana - ação, evocando inclusão como princípio e ação como meta, dimensionando a consciência da complexidade na compreensão e respeito ao outro, com suas características, seu modo de ser, de pensar, com todas as suas semelhanças, diferenças e complementaridades. Esse binômio articula, talvez mais do que os outros e de forma mais pontual, saberes identificados por Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) como essenciais à educação para o século XXI, uma vez que associa a compreensão humana, a condição humana e a identidade terrena, interligando-as com fios de solidariedade, complexidade e inclusão em todos os sentidos.

Na sequência, relacionamos linguagem e inclusão, discutindo o ambíguo papel da primeira na promoção de cenários inclusivos e de ambientes avessos à inclusão e ao bem-viver. A lente pela qual focalizamos a linguagem que, na argumentação, pluralizamos para linguagens, é a da comunicação, da mediação do pensar e agir, bem como da forma e meios pelos quais interagem e se comunicam mutuamente, destacando as linguagens que usam para estar no mundo, com o mundo e com os outros. Emerge o binômio linguagens-inclusão/exclusão que evidencia a contradição entre pensar e agir inclusivamente e pensar e agir de forma avessa à inclusão e a sua decorrente necessidade de enfrentamento.

Concluindo o artigo, tecemos considerações acerca da argumentação e reflexões feitas e esclarecemos como a discussão dos três binômios apresentados nos conduziu à percepção de um último, mais abrangente, que evidencia inclusão como um modo de vida, de ser e estar no mundo, como bem viver - bem pensar.

2. Complexidade na América Latina: O Pensamento do Sul

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (Santos, 2003Santos, B. de S. (Org.). (2003). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. (Col. Reinventar a Emancipação Social - Vol. 3). Civilização Brasileira., p. 56)

Pensador transdisciplinar que, mais do que problematizar ciências e paradigmas, nos tem feito questionar a nossa própria existência, nosso modo de vida, o ser e o estar no mundo, Edgar Morin é o humanista planetário, arquiteto de uma epistemologia complexa, integrador de pessoas e saberes, pós-moderno indisciplinado, que tem sido, ao longo de um século, inspiração de ousadia e aventura, sobretudo, para as novas gerações.

Seu pensamento complexo na educação da América Latina não apenas torna-se relevante para refletirmos sobre as nossas características comuns, mundializadas, planetárias, mas também sobre as nossas qualidades particulares, como a identidade da cultura, que nos individualiza e distingue de outros contextos.

Com Morin (2011aMorin, E. (2011a). Anais. Encontro Internacional para Um Pensamento do Sul. SESC. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional. Rio de Janeiro, agosto 2011.), compreendemos que existe uma relatividade geográfica entre norte e sul, ocidente e oriente, e uma heterogeneidade dialógica, considerando as diferenças saudáveis e as especificidades locais de cada tempo, povo e lugar. Cada sociedade oferece possibilidades e contradições: o que cada uma tem de melhor. Local e global, micro e macro são contradições, opostos e complementares, mas, ao mesmo tempo, apresentam qualidades próprias, emergentes, singulares. A padronização do mundo coloca em risco autonomias individuais, tradições, originalidades culturais, étnicas, nacionais. A padronização sempre toma um como referência e esse confere continuidade ao processo hegemônico, aniquilando as singularidades que, se diferentes do modelo, sofrem um apagamento pernicioso.

Compartilhamos uma realidade comum com problemas semelhantes que envolvem o paradoxo do mais e do menos; ou seja, o que há de melhor e o que há de mais sofrido em nossas antigas e conhecidas desigualdades, historicamente constituídas e arraigadas no cerne de nosso cotidiano latino-americano, que dois anos da pandemia de COVID-19 escancarou, de maneira imperativa.

Em que pese o que guardamos de menos - pobreza, violência, difícil acesso aos bens culturais, econômicos, sanitários -, também concentramos uma gama de mais, com potencialidades, que nos diferenciam, no mundo ocidental - alegria, música, dança, calor humano, energia solar, imaginário, resiliência. A essa tessitura de características peculiares, metaforicamente, Morin (2011aMorin, E. (2011a). Anais. Encontro Internacional para Um Pensamento do Sul. SESC. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional. Rio de Janeiro, agosto 2011.) nomeou Pensamento do Sul: uma noção que não contempla conotação geograficamente limitante ou definitiva, mas que é, invariavelmente, relativa. Para um sul, sempre haverá um norte e outro sul e, assim, recursivamente, relacionalmente, como é o pensamento complexo.

Por meio do Pensamento do Sul, nos deparamos com o binômio singularidade - mundialidade e fortalecemos como âncora cultural a necessidade de que cada povo conheça e valorize o conhecimento que o singulariza, constituindo-se, ao mesmo tempo, parte de um todo planetário. Nessa circunstância, local e global são mutuamente includentes, porém complementares em um contexto planetário que se tornam iguais e diferentes, simultaneamente, sem perder suas propriedades constitutivas ou amortecer a integração das diversas heranças culturais do Planeta.

Esse tipo de pensamento - do Sul - é o que (re-)liga e integra o que há de mais positivo na hegemonia do norte, como o desenvolvimento técnico, científico, econômico, ao que nos torna felizes, como nossos costumes, a mestiçagem, o nosso modo de viver, resistir e enfrentar os desafios, com amor, poesia, sabedoria - também título de uma obra do autor (Morin, 1998Morin, E. (1998). Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. Bertrand Brasil.).

Um pensamento complexo na educação para os nossos povos e nações latino-americanos é mais do que viável, é intrínseco porque religa os saberes dispersos, as práticas polifônicas revestidas de sentido, nossas experiências de miscigenação, e nossas linguagens únicas e plurais, híbridas, multidimensionais. A complexidade reconecta a prosa do cotidiano à poesia da vida - isso, nós, latino-americanos, já fazemos muito bem! O pensamento complexo quer ainda, revitalizar a ética, regenerar o humanismo, as responsabilidades e a fraternidade.

Uma antropologia de complexidade que é o próprio pensamento do sul poderia propor a integração das diversas heranças culturais do Planeta, de modo a minimizar os efeitos perversos de uma policrise (Morin & Kern, 2011Morin, E., & Kern, A. B. (2011). Terra-Pátria. Trad. Paulo Neves da Silva. 6. ed. Sulina.), decorrente do desenvolvimento subdesenvolvido e desenfreado da quantidade em detrimento da qualidade do bem viver.

Precisamos de uma reforma do pensamento e de uma reforma da educação que promovam o enfrentamento e a superação do reducionismo, e isso pressupõe novas aprendizagens, saberes, audácia e persistência, indicadas por Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.), em Os sete saberes necessários à educação do futuro, livro que se tornou um marco na orientação educacional para o milênio que, então, se iniciava.

A América Latina pode estimular reflexões e ações que expressem a amplitude e as múltiplas perspectivas de conhecer o nosso próprio conhecimento, levando em conta:

  • politização do pensamento, pressupondo a mudança da visão linear para o complexus, o que é tecido junto, conectada e presente na intencionalidade no processo educativo que visa à emancipação e à autonomia dos sujeitos para a justiça social;

  • valorização das artes com suas múltiplas manifestações, expressões culturais e linguagens que fazem transcender o aqui e o agora; e

  • metamorfose de ações predadoras em práticas ecologizadas, inclusivas, humanitárias e fraternais.

Para isso, apostemos nas possibilidades criativas e regeneradoras dos sujeitos, renovemos a esperança e a utopia não do melhor dos mundos, mas de um mundo melhor que, só por meio da Educação, conseguiremos construir.

3. Inclusão no contexto internacional e nacional

Apesar da relevância e urgência de reflexões acerca do tema, tanto na teoria quanto na prática cotidiana nas sociedades contemporâneas, o termo inclusão ainda carece de sentidos consistentes capazes de fundamentar ações inclusivas e de inserção.

Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, entende-se que o direito à dignidade humana deve ser preservado, senão por princípio ético, ao menos, por uma lei que exija de todos e de cada um, a observância e o cumprimento, a despeito de qualquer diferença.

Desde o preâmbulo da Declaração (Unesco, 1948UNESCO (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos . Acesso em 10 jul. 2021.
https://www.unicef.org/brazil/declaracao...
), essa ideia já é mencionada:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher (...)

O corpo do documento (Unesco, 1948UNESCO (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos . Acesso em 10 jul. 2021.
https://www.unicef.org/brazil/declaracao...
) reforça essa concepção, como indicam o artigo 1 (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”) e o artigo 2 (“...sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”) que, reafirmando igualdade de direitos, promete que “Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa.” Além desses, o artigo 7 reafirma equanimidade e garante proteção contra qualquer forma de distinção ou discriminação excludentes. No entanto, mais de sete décadas após a proclamação e adoção do documento, o mundo ainda assiste à marginalização e desrespeito à condição humana, preconceito, exclusão do direito, único e singular, de a pessoa ser como é, como pode ou como quer ser e viver a própria vida. O modo de cada um ser e estar no mundo será sempre único, singular.

Muitas iniciativas ao redor do mundo ocorreram antes e depois da proclamação da Declaração: reuniões, conferências internacionais, cartas, documentos, apoiadores e o despontar de lideranças internacionais, a favor da inclusão. Diante das incertezas de novos tempos, da convivência com o mal e o sofrimento, o mundo estava carente de respeito, dignidade e afeto. É assim que surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Unesco, 1948UNESCO (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos . Acesso em 10 jul. 2021.
https://www.unicef.org/brazil/declaracao...
) que viria também a se constituir em uma base fundamental para o avanço do Direito Internacional.

Nessa perspectiva de garantir direitos fundamentais à pessoa, em tempos mais recentes, acontece em Jomtien, Tailândia, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em março de 1990, considerando “(...) que a educação é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro” (Unesco, 1990UNESCO (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-mundial-sobre-educacao-para-todos-conferencia-de-jomtien-1990 . Acesso em 10 jul. 2021.
https://www.unicef.org/brazil/declaracao...
, Preâmbulo). A ideia de equidade, justiça social parte da noção de inclusão que a educação pode e deve promover.

Continua, ainda no Preâmbulo (Unesco, 1990UNESCO (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-mundial-sobre-educacao-para-todos-conferencia-de-jomtien-1990 . Acesso em 10 jul. 2021.
https://www.unicef.org/brazil/declaracao...
), o documento aprovado na Conferência de Jomtien e abarcado pela ONU, considerando a importância de a humanidade se colocar contra a ignorância e a favor do conhecimento como ferramenta fundamental para o desenvolvimento, a emancipação social, a felicidade humana e a preservação do planeta: “Entendendo que a educação pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional”.

Vale também lembrar que a perspectiva da educação como mola propulsora de inclusão social, no Brasil, não está só presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação NacionalBrasil. (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br . Acesso em 11 jul. 2021.
https://www.gov.br/mec/pt-br...
, número 9394/96 e nas leis anteriores do contexto educacional brasileiro, mas já constava na Constituição, de 1988, quando afirmava que, “a educação é direito de todos e dever do Estado e da família” que deve ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. A constituição deveria também assegurar ao estudante o “pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (Brasil, 1988Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: Disponível em: https://direitodescomplicado.com/download/constituicao-de-1988-em-pdf/ . Acesso em 11 jul. 2021.
https://direitodescomplicado.com/downloa...
), em prol da inclusão social.

Inclusão social não se refere apenas a incorporar pessoas na sociedade, mas, em especial, significa incluí-las na sociedade-mundo dos habitantes do planeta. Mais um documento a favor da inclusão surge no mundo, em junho de 1994, em Salamanca, na Espanha, como resultado da Conferência Mundial sobre Educação Especial, promovida pelo Governo espanhol em cooperação com a Unesco. A Declaração de Salamanca, como resolução das Nações Unidas, trata do direito à educação para todas as crianças, a despeito de qualquer necessidade especial e dispõe sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais que, de múltiplas formas, visam à inclusão. Trata-se de um documento internacional que defende o direito que todas as crianças têm de aprender juntas, ressaltando que “(...) independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais e ou culturais,” todas “devem ser acolhidas pelas escolas regulares, as quais devem se adaptar para atender às suas necessidades” (Unesco, 1994UNESCO (1994). Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas em Educação Especial. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf . Acesso em 10 jul. 2021.
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/...
).

Além disso, entende que, escolas inclusivas, “constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias, criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos (...)” (Unesco, 1994UNESCO (1994). Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas em Educação Especial. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf . Acesso em 10 jul. 2021.
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/...
). É um manifesto à equidade social, cultural, educacional, de igualdade de direitos da pessoa e contra a exclusão e a marginalização discriminatória.

4. Inclusão na perspectiva da complexidade

Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 55).

Compreender inclusão como modo de viver significa dimensionar que esse termo tem como espinha dorsal a consciência da complexidade humana, considerando as incertezas, imprevisibilidades e ambiguidades constituintes do ser humano, pois “a compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana” (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 101). Compreender o outro é respeitá-lo como é, com suas características e seus pensares, constituído em polos antagônicos e ao mesmo tempo complementares, como homo sapiens-demens. Compreender o outro, em sua conotação mais elementar, significa respeitar a condição humana e, complexamente, garantir-lhe a individualidade, a subjetividade na diversidade, a singularidade na multiplicidade de seres que compõem a espécie humana.

Petraglia (2021Petraglia, I. (2021). Enfrentando las incertidumbres. In Posibles, aún invisibles: Edgar Morin y el realismo de la utopía: los siete saberes y la Agenda 2030. (UNESCO). (pp. 99-103)., p. 100) compartilha dessa opinião ao afirmar que “O ser humano é complexo e respeitar o outro como diferente é uma tarefa necessária e urgente que deve ser estimulada em todas as esferas da sociedade mundial: no trabalho, na escola, no lazer”.

Nesse sentido, inclusão como modo de viver tem como princípio nodal a compreensão do ser humano e da condição humana. Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) prognostica que uma educação que não a tenha como princípio, não poderá conceber um mundo inclusivo, que considere a multidimensionalidade constitutiva do ser, respeitando sua condição humana. A partir disso, atestamos a emergência do binômio condição humana - ação, por meio do qual discutimos a inclusão na interface com pressupostos da complexidade.

Falar, apenas, sobre a relevância e obrigação de ensinar a condição humana, em si, pouco significa, pois palavras sem ações, não raro, se perdem no ar. Torna-se essencial que o discurso se fundamente em modos de ser, de pensar e, especialmente, em modos de agir. É oportuno e imprescindível transformar o saber ensinar a condição humana - um dos sete saberes necessários à educação do futuro, segundo Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) - em compreensão sobre a condição humana, transformando informações em saberes; esses, em vida e essa, em ação, tornando toda essa cadeia cognitiva e agentiva em hábito cotidiano que nos faça retomar a noção contida no binômio condição humana - ação, indicadora e contínua sinalizadora do tipo de inclusão que comentamos.

Somos todos membros de uma única comunidade de destino. Somos Terra ao mesmo tempo em que habitamos a terra. Somos todos: uma expressão que contempla e condensa um princípio inclusivo; desse modo, temos a inclusão como princípio educativo constitutivo do ser, geratriz de ação efetiva que, tendo-a como prática na vida, de modo introjetado, converte-se em modo de vida. Nesse caso, o pensar planetário, composto pelo pensar de cada um, tem em cada ser a possibilidade de ação concreta no espaço que ocupa. Essa ação, ainda que individualmente em algum momento, pode, como ondas, mobilizar a coletividade para uma transformação social que, ética e justa, desenvolva ações, tendo como fulcro a compreensão da condição humana.

De fato, Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) recomenda que é preciso educar para a compreensão humana, o que implica saber sobre a compreensão, compreender a compreensão forte e profundamente. O autor (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., pp. 94-95) ressalta a existência de duas formas de compreensão: uma intelectual ou objetiva que comporta a inteligibilidade e a explicação; outra intersubjetiva que comporta um conhecimento de sujeito a sujeito, em que

O outro não apenas é percebido objetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nos identificamos e que identificamos conosco, o ego alter que se torna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.

O autor esclarece que compreender o humano e a condição humana, também é compreender sua unidade na diversidade e, inversamente, sua diversidade na unidade, em todos os âmbitos, pois nesse conhecimento reside a “missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade” (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 93). Essa missão significa que povos, grupos sociais, culturas, ainda que diferentes e peculiares, todos pertencem ao mesmo planeta e isso nos torna seres complexos, ou seja, iguais na essência e em nossos destinos, entrelaçados e inseparáveis - o da espécie humana, o individual, o social, o histórico.

É preciso exercitar a compreensão, alerta Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.), é necessário que nos compreendamos como seres humanos que somos, pois “a incompreensão de si é fonte muito importante da incompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências e fraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fraquezas dos outros” (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 97). A compreensão de si pode ser desenvolvida pelo exercício da metacompreensão durante as relações interpessoais, pois “nos compreender entre os seres humanos, compreender-nos entre pessoas, grupos e sociedades, é condição para uma convivência mais humana” (Gonzáles, 2021Gonzáles, E. L. (2021). La comprensión, médio y fin de la comunicación humana. In Posibles, aún invisibles: Edgar Morin y el realismo de la utopía: los siete saberes y la Agenda 2030. (UNESCO). (pp. 117-121)., p. 120), que una, que aproxime os diferentes, considerando a diversidade e a complexidade humana. Explica o autor que a metacompreensão, entendida como prática permanente de autoexame que desvela as próprias deficiências, colabora para a compreensão do outro por meio da compreensão de si, vetor motriz para o desenvolvimento do pensamento inclusivo.

A esse respeito, Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., pp. 76-77) alerta para a necessidade de nos imbuirmos das consciências antropológica, ecológica, cívica terrena e espiritual, “que decorre[m] do exercício complexo do pensamento e que nos permite[m], ao mesmo tempo, criticar-nos mutuamente e autocriticar-nos e compreender-nos mutuamente”. O autor adverte para a importância de unir vidas, unir linguagem, unir os diferentes e “integrá-los no universo concreto da pátria terrestre”, o que é sinônimo de incluir, como já dissemos, considerando-se as incertezas, imprevisibilidades e ambiguidades como constituintes do ser humano.

Nesse sentido, ensinar a condição humana é, pois, viver a condição humana, tendo a inclusão como princípio; é viver a inclusão em uma perspectiva complexa que tenha, como afirmaGuérios (2021Guérios, E. (2021). Prática pedagógica na perspectiva da complexidade: articulação entre educação matemática e educação para a vida. Revista Polyphonía, 32(1), 100-117. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/sv/article/view/67393 . Acesso em 15 jul. 2021.
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), a humanidade planetária como princípio formativo, a promoção da autonomia como objetivo, a justiça social como meta e a educação para o exercício da cidadania de indivíduos humanizados, éticos, solidários e conscientes de seu lugar no mundo.

5. Linguagem(ns) e inclusão/exclusão

Na esfera da sociedade, existe a unidade/diversidade das línguas (todas diversas a partir de uma estrutura de dupla articulação comum, o que nos torna gêmeos pela linguagem e separados pelas línguas), das organizações sociais e das culturas (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 56, grifo do autor).

Compreender o ser humano e inclui-lo, genuinamente, na vida terrena, ligando-o e religando-o a seus pares, aos eventos sociais em que atuam e à ecologia dos espaços que habitam significa associar as formas e os meios pelos quais interagem e se comunicam, contemplando a linguagem que utilizam para estar no mundo, com o mundo e com os outros, decifrando-se, compreendendo a si e aos outros, e interagindo mutuamente.

Sistêmica, relacional, encadeando signos, símbolos, sons, cores, imagens; gerando palavras, esboços, gestos e expressões, não raro polissêmicos; dando origem a frases, orações, períodos, esboços, formas diversas, tipos de texto e vários gêneros em suportes diferenciados, a linguagem revela uma “organização hologramática de sentido” (Morin, 2011bMorin, E. (2011b). O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes, organização. Trad. Juremir Machado da Silva. 5. ed. Editora Sulina., p. 209), assinalando sua função mediadora do pensamento e das práticas que origina e em que se constitui.

Particularizando a linguagem humana, Morin (2011bMorin, E. (2011b). O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes, organização. Trad. Juremir Machado da Silva. 5. ed. Editora Sulina., p. 199) argumenta:

Polivalente e polifuncional, a linguagem humana exprime, constata, transmite, argumenta, dissimula, proclama, prescreve (os enunciados “performativos” e “ilocucionários”). Está presente em todas as operações cognitivas, comunicativas, práticas. É necessária à conservação, transmissão, inovação culturais. Consubstancial à organização de toda sociedade, participa necessariamente da constituição e da vida da noosfera (grifo do autor).

Como elucida o autor, a linguagem humana está presente em todas as atividades intelectuais, comunicativas e práticas, estabelecendo uma conexão fundamental com a cultura e consolidando a organização do pensamento, da vida e da sociedade, pois tudo - do pensar ao agir, com suas implicações e decorrências - se concretiza por seu intermédio. Sob esse enfoque, revela traços autônomos e pode se manifestar de maneira independente em certas situações; no entanto, em outras, está subordinada e dependente de condições particulares, partilhadas pelos interagentes. Tal caracterização empresta à linguagem humana uma conotação complexa, pois destaca a complementaridade dialógica dos antônimos autonomia/dependência (Morin, 2011bMorin, E. (2011b). O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes, organização. Trad. Juremir Machado da Silva. 5. ed. Editora Sulina., p. 203) que, inseparáveis, portam-se como os dois lados de uma mesma moeda.

Considerando as especificidades dos seres humanos, observamos que sempre parece haver algo muito particular, subjetivo em nós, que fica incomunicável; contudo, argumenta Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 123), “graças à linguagem, podemos comunicar, pelo menos, nossa incomunicabilidade”. Interpretamos que, embora incomunicável, esse pensamento particular, secreto, subjetivo, se traduz para nós, interiormente, por meio da linguagem, a mesma que medeia nossa comunicação com o mundo exterior, materializando-se por meio de alguma expressão linguística ou pela linguagem do silêncio.

Concebendo linguagem como mediadora do pensar e do agir, que quando usada, permite transmitir e apreender mensagens, torna-se relevante ressaltar o fato de que é essencial que esteja contextual e culturalmente situada para que possa ser veiculada e, assim, compreendida. A linguagem se refere, portanto, à comunicação, porém essa só se materializa caso uma conexão concomitantemente linguística, social e cultural se realizar, na prática, e for compartilhada por todos os envolvidos no ato comunicativo.

Refletindo sobre os primeiros parágrafos desta seção, a partir das considerações acima, torna-se mais apropriado pluralizar o termo linguagem e a noção a ele atribuída, pois lançamos mão de várias linguagens, simultaneamente ou em tempos distintos, como forma de comunicação e expressão, além das modalidades oral e escrita, que são mais imediatamente associadas ao humano, como na citação de Morin (2011bMorin, E. (2011b). O método 4: as ideias, habitat, vida, costumes, organização. Trad. Juremir Machado da Silva. 5. ed. Editora Sulina., p. 199).

Podemos, então, transmitir mensagens, organizando e sistematizando ideias, ao mesmo tempo, por meio de várias linguagens, articulando, por exemplo, imagens, sons, movimentos, cores e palavras, na produção de textos multimodais (Kress, 2010Kress, G. (2010). Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. Routledge.). Esses, multidimensionais, unos na sua forma e múltiplos nas suas tramas sistêmicas, envolvem vínculos linguísticos, comunicativos e, especialmente, culturais que, se ausentes, nos colocariam somente frente a sinais, cores ou sons fragmentados, desordenados e, muitas vezes, sem sentido.

Assim, se as linguagens vão se tornando mais sofisticadas em suas conexões, proporcionalmente vai se expandindo a nossa necessidade de enfrentá-las articulada e adequadamente para emitir e compreender mensagens ou textos5 5 Vários são os conceitos de texto disponíveis na literatura. Ricœur (1986, p. 152, 156 apud Fiorin, 2012, p. 146), por exemplo, refere-se ao sentido do texto como o criado no jogo interno de dependências estruturais e nas relações com o que está fora dele. De modo geral, podemos afirmar que um texto corresponde a qualquer signo ou conjunto de signos usados para expressar uma mensagem que será compreendida por quem compartilha do mesmo código ou códigos linguísticos e culturais utilizados na emissão daquela mensagem. , pois vai se formando um círculo hermenêutico comunicacional que produz um movimento recursivo retroativo contínuo, cada vez mais rápido, entre o transmitir e o apreender. Esse círculo demanda habilidades específicas de produção e compreensão, entendidas, por exemplo, pelo Grupo de Nova Londres (Cazden et al., 1996Cazden, C., Cope, B., Fairclough, N., Gee, J. et al. (1996). A pedagogy of multiliteracies: Designing social futures. Harvard Educational Review; 66, 1; Research Library, p. 60-92.), por Rojo e Moura (2012Rojo, R., & Moura, E. (2012). Multiletramentos na escola. Parábola.) e pela Base Nacional Comum Curricular, BNCC (Brasil, 2018Brasil. (2018). Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.), como multiletramentos, ou, sob um enfoque teórico distinto, defendido por Thomas et al. (2007Thomas, S., Joseph, C., Laccetti, J., Mason, B., Mills, S., Perril, S., & Pullinger, K. (2007). Transliteracy: Crossing divides. First Monday, vol. 12, no. 12-3. Disponível em: Disponível em: https://journals.uic.edu/ojs/index.php/fm/article/view/2060/1908 . Acesso em 10 jul. 2021.
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), Sukovic (2017Sukovic, S. (2017). Transliteracy in complex information environments. Elsevier Ltd.), Scolari (2018Scolari, C. A. (2018). Teens, media, and collaborative cultures: exploiting teens’ transmedia skills in the classroom. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra. Disponível em: Disponível em: http://transmedialiteracy.upf.edu/sites/default/files/TL_Teens_e . Acesso em 10 jul. 2021.
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) e Freire (2020Freire, M. M. (2020). Transmidia storytelling: from convergence to transliteracy. D.E.L.T.A., 36 (3), p. 1-22.), entre outros, como transletramento.

Uma linguagem, de forma geral, organiza pensamentos e emerge nas práticas comunicativas, agregando indivíduos no propósito de produzir e compreender mensagens que demandam um certo grau de letramento6 6 Por não corresponder ao objetivo do artigo, as especificidades desse conceito não serão aqui discutidas, bem como as referentes a multiletramentos e transletramento, citados anteriormente. para conectar e entender signos linguísticos, imagéticos, sonoros e gestuais, bem como sociais e culturais, compreendendo-lhes os sentidos implícitos, a polissemia e possíveis nuances ilocucionárias e perlocucionárias.

Morin (2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Editora Sulina., p.25) adverte que viver implica tomar decisões e, para isso, fazer escolhas que constituem desafios, como ensina o pensamento complexo. Lançar mão de uma linguagem, ou de várias, analogamente, nos coloca frente a escolhas que, em cadeia, nos conduzem a decisões que nos levam a enfrentar desafios, especialmente se não estivermos familiarizados com o contexto e/ou com nossos interlocutores. Nessa situação, ou nessa aventura, “que implica incertezas sempre renovadas, eventualmente com as crises ou catástrofes pessoais e/ou coletivas”, como ressalta o autor (op. cit.), o caminho se bifurca à nossa frente, sinalizando direções possíveis, como as delineadas nos exemplos a seguir:

  • a incerteza nos domina e o medo do fracasso torna-se tão insuportável que desistimos de uma apresentação para a qual fomos convidados, promovendo nossa autoexclusão; ou,

  • apesar da incerteza, decidimos enfrentar o desafio, mas nossa apresentação acaba sendo desastrosa. Em decorrência disso, somos excluídos de qualquer futura oportunidade ou de outro convite; ou ainda,

  • apesar da incerteza, enfrentamos o desafio e somos bem-sucedidos, sendo imediatamente convidados para novas apresentações. Nesse caso, não fomos apenas incluídos, mas também considerados para novos convites, ainda mais desafiadores, não só em termos linguísticos.

A situação hipotética exposta revela que do binômio linguagens/exclusão, ilustrado nas duas primeiras direções, emergem dois tipos de repercussão: a primeira, de natureza intrassistêmica, verificada pela incerteza e desconforto subjetivos, geram uma opção pelo não enfrentamento da situação e, portanto, pela autoexclusão voluntária; e a segunda, de caráter intersistêmico, na qual, apesar de uma decisão pessoal pela superação do desafio, o resultado alcançado abre espaço para que o outro se torne o agente de exclusão. Essa segunda direção exemplifica a “ecologia da ação”7 7 De acordo com o autor: “Uma vez iniciada, qualquer ação tende a escapar das intenções e da vontade de seu ator para entrar em um jogo de interação e de retroação com o meio (social ou natural), que pode modificar seu curso e, por vezes, até mesmo invertê-lo. Trata-se do que denomino “ecologia da ação” (Morin, 2015, p. 46). (Morin, 2005Morin, E. (2005). Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Editora Sulina., pp. 80-81; 2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Editora Sulina., p. 46), pois o apresentador, seguramente, não aceitou o desafio para o fracasso: esse escapou de suas intenções e vontade para entrar em “um jogo de interação e retroação com o meio que modificou seu curso”, invertendo o resultado, como explica Morin (2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Editora Sulina., p. 46).

A incerteza que circunscreve a situação hipotética descrita poderia promover um efeito totalmente contrário ao comentado e gerar a terceira direção apresentada, ilustrando um episódio de inclusão, pois a insegurança inicial foi enfrentada e vencida, abrindo possibilidades para futuras vivências similares. O contraste entre essa direção e as duas anteriores sugere que a relação linguagens-inclusão/exclusão talvez seja mais apropriada para representar a emergência das três situações, pois o construto linguagens nos parece abrigar potencial mais decisivo para, criando ambientes inclusivos ou totalmente avessos à inclusão e ao bem-viver, fazer insurgir a dialógica inclusão/exclusão, ligando os dois conceitos opostos, porém complementares e interdependentes, colocando um deles em evidência, dependendo de fatores subjetivos e contextuais.

A dialógica inclusão/exclusão nos faz também ponderar que não há possibilidade de um indivíduo ser totalmente incluído ou totalmente excluído pois, como argumenta Morin (2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil., p. 192), citando Adorno, “a totalidade é a não verdade. A totalidade é, ao mesmo tempo, verdade e não-verdade, e a complexidade é isso: a junção de conceitos que lutam entre si.”

Partindo dessa consideração, compreendemos que a exclusividade de uma postura, uma totalidade, é a “não verdade”, apontada por Adorno e ratificada por Morin, pois somos incluídos em alguns contextos/situações e, naturalmente, excluídos de outros(as). A consciência da complexidade nos permite compreender que a relação de complementaridade entre inclusão/exclusão, como conceitos opostos, vai na direção da totalidade almejada, mas não representa a totalidade integral, completa, pois essa nunca será atingida. Na complexidade, se a totalidade é a não verdade, ela é, também, sempre inconclusa, incompleta.

Ilustrando essa questão sob uma perspectiva linguística, uma pessoa pode estar apta a interagir em língua estrangeira, eficientemente e com desenvoltura, em um certo número de contextos, nos quais podemos considerá-la incluída; contudo, pode não ser capaz de fazê-lo em outros, dos quais se encontra excluída ou se autoexclui. Então, podemos identificá-la como incluída e excluída, simultaneamente, no que concerne à interação em práticas sociais bilíngues ou no idioma estrangeiro, ora saindo-se bem e alcançando seus propósitos comunicativos, ora deixando-se dominar pela incerteza e insegurança provocadas por fatores diversos, sendo excluída de determinadas situações.

Em se tratando desse recorte linguístico, o dilema inclusão/exclusão demanda enfrentamento e busca por uma saída para a contradição nele implícita. Para tanto, nos fundamentamos em Morin (2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil., p. 8) quando argumenta: “Se a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar, por sua vez o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo e, às vezes, a superá-lo”.

Essa citação nos motiva à reflexão, direcionando-a à dialética inclusão/exclusão como o desafio a enfrentar. Se a dialética se torna esse desafio, a contradição nele implícita não é o que o evita ou suprime, mas o que auxilia na sua revelação, na sua superação. Em outras palavras, a contradição contida na dialética inclusão/exclusão ajuda a revelar, e talvez a superar, o desafio tácito, traduzido como: cenários inclusivos x ambientes avessos à inclusão e ao bem viver. Interpretando-o, temos que o desafio parece estar, preliminarmente, estigmatizado nos cenários e ambientes, individualizando uma dimensão ecológica que passa a exigir novos atores, ações, práticas, linguagens, diálogos e tudo o que puder enriquecê-la, transformando-a e concedendo-lhe uma configuração realmente inclusiva, sem rastros de preconceito e vestígios de hegemonia, em qualquer sentido.

Morin (2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil.), como já apontamos, ainda nos ensina que viver a complexidade compreende transformar o conhecimento da complexidade em pensamento da complexidade. Seguindo a mesma linha de pensamento, podemos pensar que viver a inclusão compreende transformar o conhecimento que temos sobre inclusão em pensamento inclusivo. Associando essas analogias, a fim de enfrentar o desafio da dialética em discussão, transformando inclusão em pensamento inclusivo, encontramos uma possível alternativa para o enfrentamento da contradição, definindo uma atitude de pensar de forma inclusiva em ambientes inclusivos propensos ao bem-viver.

Nesse sentido, pensar de forma inclusiva corresponderia a pensar e conceber a inclusão como possibilidade real, concreta, viável, mantendo um olhar equânime a todos, reconhecendo neles o mesmo potencial, os mesmos direitos e deveres. Compreendemos que pensar de forma inclusiva em ambientes propensos ao bem viver se traduziria em uma forma de “bem pensar”: um modo de pensar que permite “apreender, em conjunto, o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e o global, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as condições do comportamento humano” (Morin, 2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 100). Aliado a essa forma de pensar, teríamos ambientes inclusivos propensos ao bem-viver que corresponderiam à concepção e manutenção de espaços inclusivos de vida, muito mais relevantes do que simples lugares de sobrevivência.

O pensamento inclusivo com essa conotação teria o poder conscientizador sobre a necessidade de transformar, com urgência, contextos, ambiências e parâmetros sociais excludentes, vislumbrando essa mudança como uma possibilidade concreta de realização, excluindo-a do plano da utopia para incluí-la nas agendas públicas dos direitos de todos, bem como nas agendas individuais, como dever comum.

Talvez essa proposta de transformação seja interpretada como visionária e pouco factível, permitindo que muitos optem por permanecer em suas zonas de conforto que, ambiguamente, se caracterizam pelo apego às incertezas, como subterfúgio para a inércia. A esses, mais contundente que as nossas, trazemos, como resposta, as palavras de Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO., p. 91): “A estratégia, assim como o conhecimento, continua sendo a navegação em um oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas”.

Concordando com o autor, não temos certezas a compartilhar - não acreditamos em certezas -, mas temos uma escolha refletida sobre a decisão de lutar contra as incertezas, contra a exclusão, pretendendo superá-las, quando possível. Essa luta começa pela ação das várias linguagens que, juntas, organizam nosso pensar - bem pensar - e agir, podendo transmitir todas as nossas mensagens a quem puder entre, através e além das linguagens, compreender e buscar fazer deste planeta um lugar sempre e cada vez mais inclusivo e acolhedor ao bem viver de todos os seres.

6. Considerações

A pior simplificação é aquela que manipula os termos complexos como termos simples, os liberta de todas as tensões antagônicas/contraditórias, lhes esvazia as entranhas de todo o seu claro-escuro. A pior simplificação seria repetir aos quatro ventos “tudo é complexo, tudo é hipercomplexo”, isto é, expulsar precisamente a resistência do real, a dificuldade de conceito e de lógica, que a complexidade tem a missão de revelar e manter (Morin, 2008Morin, E. (2008). Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 11. ed. Bertrand Brasil., p. 337, grifos do autor).

Considerando que nosso objetivo neste artigo foi o de refletir e discutir sobre o conceito de inclusão à luz da epistemologia da complexidade, de Edgar Morin, partimos da possibilidade de atribuir-lhe a concepção de um modo de vida. Elaboramos nossa argumentação em torno da tessitura de três binômios - singularidade-mundialização, condição humana-ação, linguagem(ns)-inclusão/exclusão - cujos sentidos mantêm estreita relação com os operadores cognitivos do pensamento complexo, uma vez que evidenciam formação e movimentos, simultaneamente, hologramáticos, recursivos e dialógicos, em direção a uma tetralógica de ordem, desordem, interações, organizações, comuns aos sistemas vivos.

As ambiguidades e incertezas inerentes às noções desses binômios com os quais encadeamos nosso pensamento e argumentação, podem se colocar tanto opostos quanto complementares, ao mesmo tempo ou cada um, ao seu tempo. Não se trata de uma ode ao pensamento binário, que considera isto ou aquilo; ao contrário, são bipolaridades antropológicas tão inclusivas quanto sapiens-demens, economicus-ludens, faber-religiosus, que levam em conta isto e aquilo. Os binômios reificam e sinalizam para a ideia de simultaneidade, apontando para isto e aquilo, ao mesmo tempo.

A ideia de bipolaridade antropológica ou simultaneidade enfática nos leva a admitir que, então, ao finalizar o artigo, nos deparamos com a emergência de mais um binômio que, relacionado aos anteriores e complementando-lhes a significação, mantém um sentido próprio, atrelado à essência de modo de viver: bem viver - bem pensar.

Morin (2020cMorin, E. (2020c). A aventura de O Método e Para uma racionalidade aberta. Trad. Edgard de Assis Carvalho; Mariza Perassi Bosco. Sesc.) argumenta que vivemos um mal-estar difuso porque é permeado por múltiplos componentes para a mecanização da vida, responsável pelo rebaixamento da qualidade do bem viver. Bem viver não implica soma ou multiplicação da quantidade de bens materiais, mas se justifica pela boa qualidade nas relações que desenvolvemos conosco, com o próximo e com o planeta, ou seja, na vivência do conceito de inclusão como modo de vida.

O bem viver implica bem pensar, na medida em que estabelecemos prioridades pertinentes para as escolhas que fazemos, principalmente, do ser em detrimento do ter. Para bem viver uma verdadeira vida,Morin (2020aMorin, E. (2020a). É hora de mudarmos de via. As lições do coronavírus. Trad. Ivone Castilho Benedetti; colaboração Sabah Abouessalam. Bertrand Brasil.; 2020cMorin, E. (2020c). A aventura de O Método e Para uma racionalidade aberta. Trad. Edgard de Assis Carvalho; Mariza Perassi Bosco. Sesc.) considera autorrealização e comunhão, o que nos remete à necessidade de união, encontro, inclusão, harmonia. Se ninguém é feliz sozinho, entendemos que precisamos de uma política do bem viver inclusiva e fraterna que, seja para a civilização planetária.

Essa perspectiva oferece amparo para pensar a inclusão conexa a pressupostos que possibilitem compreendê-la em sua dimensão terrena, em uma perspectiva de Terra Pátria como Terra de todos, como Terra inclusiva em seu fundamento complexo para o bem pensar. Em outro modo de expressão, o bem pensar a inclusão, como Morin (2000Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. Cortez; UNESCO.) destaca, torna-se um modo de apreensão conjunta entre texto e contexto, ser e meio ambiente, local e global, resultando uma perspectiva ao comportamento humano que é multidimensional, complexa, articulada, tecida em conjunto.

O binômio bem viver - bem pensar sugere e prescinde de uma mudança de Via para o futuro da humanidade, um novo caminho que inclui não somente utopia (ou o lugar nenhum, em grego) e esperança, mas também requer ação política: de nação, de civilização, da humanidade, da Terra para a regeneração do humanismo que, quer um mundo melhor.

Ainda que de difícil realização, Morin (2020bMorin, E. (2020b). Um festival de incertezas. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/599773-um-festival-de-incerteza-artigo-de-edgar-morin . Acesso em 10 jul. 2021.
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) nos ensina que “devemos esperar pelo inesperado” porque, a despeito das incertezas da vida, o inesperado acontece, como a história nos tem demonstrado. No entanto, cada um deve fazer o que lhe cabe. Concluímos com Morin (2020aMorin, E. (2020a). É hora de mudarmos de via. As lições do coronavírus. Trad. Ivone Castilho Benedetti; colaboração Sabah Abouessalam. Bertrand Brasil., p. 85) que, valendo-se de Gandhi, nos convoca à ação, quando afirma: “Sejamos a mudança que queremos ver no mundo”.

Referências

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  • 4
    Excerto da poesia Para Sara, Raquel, Lia e para todas as crianças, de Maria Teresa Del Prete Panciera (1983).
  • 5
    Vários são os conceitos de texto disponíveis na literatura. Ricœur (1986Ricœur, P. (1986). Du texte à l’action: essais d’hermeneutique II. Seuil., p. 152, 156 apud Fiorin, 2012Fiorin, J. L. (2012). Da necessidade de distinção entre texto e discurso. In B. Brait, & M. C. Souza-e-Silva (Orgs.). Texto ou discurso? Contexto., p. 146), por exemplo, refere-se ao sentido do texto como o criado no jogo interno de dependências estruturais e nas relações com o que está fora dele. De modo geral, podemos afirmar que um texto corresponde a qualquer signo ou conjunto de signos usados para expressar uma mensagem que será compreendida por quem compartilha do mesmo código ou códigos linguísticos e culturais utilizados na emissão daquela mensagem.
  • 6
    Por não corresponder ao objetivo do artigo, as especificidades desse conceito não serão aqui discutidas, bem como as referentes a multiletramentos e transletramento, citados anteriormente.
  • 7
    De acordo com o autor: “Uma vez iniciada, qualquer ação tende a escapar das intenções e da vontade de seu ator para entrar em um jogo de interação e de retroação com o meio (social ou natural), que pode modificar seu curso e, por vezes, até mesmo invertê-lo. Trata-se do que denomino “ecologia da ação” (Morin, 2015Morin, E. (2015). Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Editora Sulina., p. 46).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    17 Nov 2021
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