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OSTERMANN, Ana Cristina; OLIVEIRA, Maria do Carmo Leite de. Você está entendendo? Contribuições dos estudos de fala-em-interação para a prática do teleatendimento. Campinas: Mercado de Letras, 2015.

OSTERMANN, Ana Cristina; OLIVEIRA, Maria do Carmo Leite de. . Você está entendendo? Contribuições dos estudos de fala-em-interação para a prática do teleatendimento. Campinas: Mercado de Letras, 2015.

Palavras-chave:
Análise da Conversa; Teleatendimentos; Intersubjetividade

Key-words:
Conversation Analysis; Helplines; Intersubjectivity

O livro Você está entendendo? Contribuições dos estudos de fala-em-interação para a prática do teleatendimento, organizado por Ana Cristina Ostermann e Maria do Carmo Leite de Oliveira, contém seis capítulos escritos por diferentes autores/as que argumentam que a Análise da Conversa (doravante AC) (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel; JEFFERSON, Gail. 1974. A simplest systematics for the organization of turn taking for conversation. Language, Studies in the Organization of Conversational Interaction, v. 50, n. 4, p. 696-735.) pode contribuir para a descrição dos teleatendimentos de modo a identificar problemas interacionais e a propor possíveis soluções. O argumento que perpassa os seis artigos que compõem a coletânea refere-se aos problemas interacionais oriundos da falta de particularização dos atendimentos às necessidades de cada usuário/a. As análises contidas nos textos da obra sustentam que os conflitos de entendimento nessas interações são frequentemente resultantes de uma elevada orientação às normas contidas nos scripts de cada serviço. Antes de iniciar a apresentação de cada texto que compõe a obra em questão, é crucial expor uma breve introdução sobre a perspectiva teórico-metodológica utilizada ao longo do livro: a AC, que se refere a uma abordagem qualitativa data-driven, desenvolvida pelo sociólogo Harvey Sacks e seus colaboradores no final da década de 1960.

Enquanto estudante de doutorado, Sacks trabalhava no Los Angeles Suicide Prevention Center, onde teve acesso às gravações em fita cassete dos teleatendimentos do setor de prevenção de suicídio. Ao ouvir as ligações incessantemente e transcrevê-las de modo não técnico, Sacks percebeu e descreveu alguns padrões na organização social e interacional daqueles dados. Inspirada na Etnometodologia proposta por Harold (Garfinkel, 1967GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.), a AC visa a descrever os métodos utilizados pelos/as interagentes ao atribuir significado às ações interacionais uns/umas dos/as outros/as (WATSON; GASTALDO, 2005WATSON, Rod. & GASTALDO, Édison. 2015. Etnometodologia & Análise da Conversa. Rio de Janeiro: Editora Vozes e Editora PUC-Rio.).

Logo, a AC preza o estudo de interações naturalísticas, i.e., interações coletadas no local em que ocorrem e que independem da realização do estudo para existirem, gravadas em áudio e/ou em vídeo e transcritas, comumente, conforme as convenções propostas por (Jefferson, 1984JEFFERSON, G. 1984. Transcript notation. In: ATKINSON, J.; HERITAGE, J. Structures of social action: studies in conversation analysis. New York: Cambridge University Press, p. ix-xvi.). É válido salientar que “as transcrições não são consideradas os dados. Os verdadeiros dados são as gravações de áudio e/ou vídeo das quais as transcrições são retiradas” (WATSON; GASTALDO, 2015WATSON, Rod. & GASTALDO, Édison. 2015. Etnometodologia & Análise da Conversa. Rio de Janeiro: Editora Vozes e Editora PUC-Rio., p. 92, grifo dos autores). Dessa forma, as análises realizadas neste e em qualquer estudo que utilize a AC são feitas através do exame dos áudios acompanhados das transcrições, sendo que as transcrições oportunizam aos/às leitores/as a visualização de uma representação dos dados, e, aos/às pesquisadores, a referência aos fenômenos interacionais de forma textual.

A análise dos dados através dessa perspectiva se dá por meio do estudo sobre a sequencialidade dos turnos de fala em busca de regularidades. Portanto, não são analisadas as intenções, as vontades e os pensamentos dos/as interagentes, salvo as situações em que essas características aparecem na fala, pois, nesse caso, elas são passíveis de descrição. O foco dos estudos que utilizam a AC refere-se às ações realizadas em cada turno de fala através de uma perspectiva êmica de análise dos dados, i.e., ao invés de descrever os dados fundamentando-os em teorias apriorísticas (modelo ético), a AC presta “atenção ao modo como os(as) próprios(as) participantes de conversas fazem sentido dos enunciados que eles(as) falam ou ouvem, e a qual ação conversacional estes enunciados realizam” (WATSON; GASTALDO, 2015WATSON, Rod. & GASTALDO, Édison. 2015. Etnometodologia & Análise da Conversa. Rio de Janeiro: Editora Vozes e Editora PUC-Rio., p. 124-125).

Os textos que compõem a obra organizada por Ostermann e Silveira apontam para a importância de estudos de teleatendimentos no contexto brasileiro no que se refere à observância da construção de sentido nessas interações. Graças ao advento do telefone, atualmente, diversas atividades do dia-a-dia não precisam ser feitas presencialmente, como: resolver problemas bancários, solicitar informações, comprar e vender produtos, reclamar de algum serviço, fazer denúncias, solicitar socorro etc. Apesar da praticidade oportunizada pelos teleatendimentos, são frequentes as reclamações sobre problemas de entendimento nesse tipo de interação. Ademais, também são frequentes as reclamações dos/as teleatendentes sobre condições de trabalho adversas, “incluindo rígido controle de tempo, baixos salários e grandes exigências de produtividade” (SILVA, 2004SILVA, Airton Marinho da. 2004. A regulamentação das condições de trabalho no setor de teleatendimento no Brasil: necessidades e desafios. 2004. 90f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública.) -- Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Belo Horizonte. UFMG., p. 11).

Imersas nessa problemática de mão dupla, com vistas a identificar problemas interacionais nesse contexto e a oferecer possíveis soluções, as organizadoras do livro Você está entendendo? Contribuições dos estudos de fala-em-interação para a prática do teleatendimento comparam as análises contidas nos textos que compõem a coletânea com a investigação da caixa-preta de aviões. Do mesmo modo que a análise da caixa-preta auxilia a entender problemas no funcionamento de um avião, a análise interacional de teleatendimentos desvela problemas no funcionamento de instituições que se constituem por interações ao telefone. O agrupamento de pesquisas que envolvem a análise de dados naturalísticos gerados em teleatendimentos em um único volume é uma inovação no contexto brasileiro. Ademais, o único trabalho internacional semelhante a este do qual se tem conhecimento é a coletânea Calling for help: language and social interaction in telephone helplines (BAKER; EMMISON; FIRTH, 2005BAKER, Carolyn; EMMISON, Michael; FIRTH, Alan. 2005. Calling for help: language and social interaction in telephone helplines. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.), que define helplines como serviços telefônicos que oferecem ajuda, conselhos e dicas para diversas áreas.

O primeiro capítulo do livro, A caixa-preta dos desastres interacionais em teleatendimentos, de Ostermann, Oliveira e Souza, dedica-se a justificar a escolha do contexto interacional pesquisado e apresenta uma crítica à metáfora do conduto idealizada por (Saussure, [1916] 1970), em que a comunicação se dá por meio da transmissão de mensagens que independem do contexto para serem “captadas” pelo/a interlocutor/a. Através da teoria da metáfora do conduto, as mensagens teriam um sentido fixo, sendo que os/as falantes, ao produzi-las, transmitiriam suas ideias sem problemas de entendimento aos/às interlocutores/as.

Dessa forma, a linguagem (escrita ou falada) seria apenas uma condutora de mensagens contidas na mente de um/a falante (A), que seriam recebidas de forma intacta pelo/a interlocutor/a (B), como se a intersubjetividade fosse uma característica intrinsicamente onipresente das trocas interacionais. No entanto, (Garcez, 2008GARCEZ, Pedro de Moraes. 2008. A perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica sobre o uso da linguagem em interação social. In: LODER, Letícia Ludwig; JUNG, Neiva Maria (Org.). Fala-em-interação social: uma introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 17-38., p. 32) argumenta que a intersubjetividade “tem a ver com os participantes estarem ambos em um mesmo plano de entendimento quanto ao que estão fazendo em conjunto naquela juntura interacional local”. Assim, o quão sintonizados/as os/as interagentes estão é apenas observável situadamente, na troca interacional, e não de forma apriorística, como prevê a metáfora do conduto. Todos os capítulos que compõem a obra argumentam que a análise interacional desbanca a metáfora do conduto ao mostrar como as pessoas negociam o entendimento no turno a turno das conversas.

Depois da crítica apresentada à metáfora do conduto, Ostermann, Oliveira e Souza elaboram a importância de estudos interacionais em organizações para a verificação de práticas que funcionam e que podem ser disseminadas nesses contextos. No primeiro capítulo, as autoras defendem o uso da AC para a realização de estudos que analisam características microinteracionais, pois, além de revelar a organização interacional dos/as interagentes, essa abordagem permite apreender questões macro referentes ao funcionamento de determinadas instituições.

O segundo capítulo, O controle do incontrolável: scripts para interações irreais, de Ostermann e Souza, apresenta uma importante análise dos teleatendimentos realizados por uma central governamental de provimento de informações sobre saúde. A análise de alguns desses teleatendimentos evidencia que os/as atendentes possuem diferentes interpretações do script. Como seria o ideal, em algumas interações, as autoras observaram que o script auxilia os/as atendentes a compreenderem a demanda dos/as usuários/as. Contudo, noutras interações, o seguimento do script é desnecessário, e a insistência dos/as atendentes em segui-lo alonga as interações sem trazer qualquer benefício comunicacional ao atendimento. O resultado da pesquisa denuncia o despreparo de alguns/algumas atendentes que, aprisionados/as ao script, carecem da habilidade de adaptar a interação às necessidades de cada usuário/a.

O terceiro capítulo, O atendente super-herói: lê, traduz e informa (tudo ao mesmo tempo), de Pereira e Ostermann, apresenta um problema comum à maioria dos bancos de dados de call centers: o nível técnico dos textos é um entrave à intersubjetividade entre atendente e usuários/as. Para solucionar esse problema, os/as atendentes - do mesmo serviço governamental analisado no segundo capítulo da obra - realizam um processo de recontextualização, que se trata de uma “tradução” do texto contido no banco de dados para o provimento oral da informação que atende à solicitação dos/as usuários/as. A análise conclui que o banco de dados dessa central exige alto empenho dos/as atendentes para tornarem o texto inteligível aos/às usuários/as. Além disso, foi percebido que algumas solicitações não são contempladas pelo banco de dados. Os autores sugerem que o trabalho dos/as atendentes dessa linha telefônica seria consideravelmente facilitado se os textos contidos no banco de dados fossem reformulados de modo a atenderem ao que o serviço se propõe: a divulgação científica. Ainda, o estudo encontra algumas técnicas que podem servir à capacitação dos/as atendentes para que melhor desempenhem a atividade de recontextualização dos textos a fim de ajustá-los às demandas de cada usuário/a.

O quarto capítulo, Aonde ir? Eis a questão, de Del Corona, aborda a questão da formulação de lugar em ligações para o 190. Saber o lugar em que a ocorrência está acontecendo é uma informação crucial para que o envio de uma viatura policial seja feito. Porém, a análise dessas interações revela que o preenchimento do formulário pelo/a atendente, que é o que enseja o envio de uma viatura, está condicionado a formulações de lugares que estejam cadastrados no software utilizado pela polícia. Nas interações em que falta um entendimento comum entre a formulação de lugar feita pelo/a comunicante e as informações contidas no software visualizadas pelo/a atendente, não há como prestar o serviço do 190. Dessa forma, o formulário funciona como um script que desconsidera as demandas específicas de cada interação. Primeiramente, o estudo de Del Corona revela uma importante defasagem no sistema operacional do 190 que carece de atualização. Outras duas relevantes contribuições do estudo para o contexto pesquisado se referem a uma proposta de capacitação dos/as atendentes para auxiliarem os/as comunicantes a formular o lugar da ocorrência e uma flexibilização do campo “endereço” no formulário.

O quinto e último capítulo do livro, Apagões interacionais em episódios de tomada de decisão, de Borges, Ostermann e Oliveira, aponta como as diferentes orientações dos/as interagentes podem atrapalhar o processo de tomada de decisão em situações de emergência durante ligações telefônicas entre funcionários/as de uma subestação elétrica. Em algumas situações, um/a funcionário/a orienta-se para os procedimentos burocráticos envolvidos na tomada de decisão (como autorizações de um superior, por exemplo), enquanto o/a outro/a funcionário/a orienta-se para os procedimentos práticos para o conserto necessário. Essas diferentes orientações atrasam a tomada de decisão e podem causar problemas sérios para a empresa e seus/suas clientes. O que as autoras chamam de “apagões interacionais” refere-se à falta de intersubjetividade durante esses eventos, que acaba por afetar a vida de várias pessoas, já que uma decisão errada (ou atrasada) nesse contexto resulta no mau funcionamento da subestação e, consequentemente, em apagões de energia elétrica. Diante dos resultados desse estudo, as autoras sugerem que as empresas invistam na capacitação interacional dos/as funcionários/as para tornar mais ágil o processo de tomada de decisões e diminuam os procedimentos burocráticos que atrasam o processo.

O fechamento do livro, Lições da caixa-preta, das organizadoras Oliveira e Ostermann, apresenta os benefícios das análises interacionais dos teleatendimentos para as instituições e, consequentemente, para seus/suas usuários/as. Primeiramente, a análise interacional desses teleatendimentos prova o equívoco da teoria do conduto. A intersubjetividade é (ou não) alcançada por meio de negociações de sentidos no turno a turno das interações. Em segundo lugar, foi observado que o uso de scripts pode levar os/as atendentes a engajarem-se em interações irreais com os/as usuários/as devido ao bloqueio que os scripts causam à percepção dos/as atendentes sobre como ajustar sua fala ao/à interlocutor/a. Finalmente, partindo da microanálise interacional para uma possível intervenção social, outra importante contribuição dos estudos apresentados nesse volume refere-se à percepção da necessidade de criar programas de formação interacional dos/as atendentes. Para a criação de tais programas, a contribuição de profissionais especializados/as em estudos de linguagem em interação é fundamental e possibilita a consolidação de um vínculo entre academia e sociedade.

Além da contribuição inovadora da obra para a academia brasileira ao oferecer um estudo interacional sobre teleatendimentos nacionais, o volume também devolve aos contextos analisados uma série de resultados que podem ser incorporados à prática institucional de cada organização, aprimorando, assim, o seu funcionamento. Com o resultado do aperfeiçoamento das práticas institucionais, a população em geral também é beneficiada ao lidar com atendentes melhor preparados/as para atender às suas demandas. Com efeito, a leitura desse livro não deve ser resumida à academia, uma vez que abrange o escopo das instituições que se valem de teleatendimentos e que podem, então, aproveitar os estudos reunidos na coletânea para refletirem sobre suas próprias práticas interacionais.

Referências bibliográficas

  • BAKER, Carolyn; EMMISON, Michael; FIRTH, Alan. 2005. Calling for help: language and social interaction in telephone helplines. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.
  • GARCEZ, Pedro de Moraes. 2008. A perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica sobre o uso da linguagem em interação social. In: LODER, Letícia Ludwig; JUNG, Neiva Maria (Org.). Fala-em-interação social: uma introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 17-38.
  • GARFINKEL, Harold. 1967. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall.
  • JEFFERSON, G. 1984. Transcript notation. In: ATKINSON, J.; HERITAGE, J. Structures of social action: studies in conversation analysis. New York: Cambridge University Press, p. ix-xvi.
  • SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel; JEFFERSON, Gail. 1974. A simplest systematics for the organization of turn taking for conversation. Language, Studies in the Organization of Conversational Interaction, v. 50, n. 4, p. 696-735.
  • SAUSSURE, Ferdinand de. 1970. Curso de linguística geral. 2. ed. Trad. Antônio Chelini et al. São Paulo: Cultrix (Título original de 1916).
  • SILVA, Airton Marinho da. 2004. A regulamentação das condições de trabalho no setor de teleatendimento no Brasil: necessidades e desafios. 2004. 90f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública.) -- Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Belo Horizonte. UFMG.
  • WATSON, Rod. & GASTALDO, Édison. 2015. Etnometodologia & Análise da Conversa. Rio de Janeiro: Editora Vozes e Editora PUC-Rio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    Set 2015
  • Aceito
    Nov 2016
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