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Sociolingüística interacional: antropologia, lingüística e sociologia em análise do discurso

RESENHA/REVIEW

RIBEIRO, B. T. & P. M. GARCEZ (orgs.) (1998) Sociolingüística Interacional: antropologia, lingüística e sociologia em análise do discurso. Porto Alegre: AGE, 159pp.

Resenhado por/by Ana Cristina OSTERMANN (University of Michigan)

O lançamento da coletânea de textos intitulada Sociolingüística Interacional: Antropologia, Lingüística e Sociologia em Análise do Discurso, organizada por Branca Telles Ribeiro e Pedro M. Garcez, assinala um primeiro esforço em se estender os fundamentos oferecidos pela sociolingüística interacional às diferentes disciplinas que se propõem ao estudo da língua em interação social. O livro destina-se principalmente a estudantes, pesquisadores e demais profissionais das áreas de Antropologia, Comunicação Social, Direito, Educação, Lingüística, Psicologia, Sociologia, Psiquiatria e Saúde Mental.

A coletânea compõe-se de traduções de textos publicados originalmente entre 1960 e 1980 por pesquisadores nas áreas de Antropologia, Lingüística e Sociologia. São todos autores interessados em análise do discurso e que, diante das inúmeras indagações interpretativas que emergem nos estudos de interações face-a-face, se propõem a responder à pergunta "O que está acontecendo aqui?". Um dos principais temas que permeia os estudos incluídos na obra é a preocupação destes estudiosos com o significado situado na interação social. Portanto, os autores cujos artigos são traduzidos na obra abraçam uma noção mais maleável e mais abrangente de contexto. Isto é, a noção de que o contexto do discurso e da interação social abrange outros elementos além daqueles mais estáveis (como espaço, tempo e participantes). O significado de contexto que os pesquisadores tratam aqui revela que tanto os participantes quanto o discurso se desdobram a cada momento, e tanto reconfiguram o próprio contexto como são reconfigurados pelo mesmo a cada novo avanço na interação (tais como uma nova contribuição oral ou gestual dos participantes, e/ou re-direcionamento do olhar).

A obra é composta de uma introdução geral dos organizadores, à qual seguem oito textos traduzidos, cada um individualmente prefaciado pelos organizadores com informações a respeito das contribuições. A introdução é brilhantemente ilustrada com a transcrição de uma interação entre marido e mulher, a qual se mostra coerente com o propósito inerente a cada um dos artigos que compõem a obra. Isto é, desde as primeiras páginas, o leitor é instigado a se interrogar sobre "o que está acontecendo ali", naquela determinada interação. Finalmente, as últimas páginas do livro são dedicadas a uma seção única e geral de referências bibliográficas.

O primeiro artigo, "A situação negligenciada" (Erving Goffman), constitui um importante marco nas pesquisas de sociolingüística interacional. Nele Goffman insiste para que os pesquisadores dêem a devida importâcia para a situação social que emerge nas interações face-a-face.

O segundo artigo, "Algumas fontes de variabilidade cultural na ordenação da fala" (Susan U. Philips), trata de dois temas de grande relevância nos estudos de interação face-a-face. Um deles é a importância que não só o falante mas também o ouvinte passa a ter numa interação, bem como a importância do direcionamento do olhar dos mesmos. O outro aspecto relevante que Susan Philips questiona neste estudo é a validade das afirmações feitas por analistas da conversação em termos de universais. Segundo a autora, é a organização da fala e as diferentes percepções da mesma, através de variadas culturas, o que difere, e não os meios comunicativos.

O terceiro artigo, "O significado social na estrutura lingüística: Alternância de códigos na Noruega" (Jan-Petter Blom e John J. Gumperz), constitui um trabalho seminal em etnografia da comunicação e sociolingüística interacional. Neste artigo, os autores introduzem conceitos que passaram a ser utilizados por uma geração inteira de pesquisadores. Entre tais conceitos, os principais são os de alternância de códigos: alternância situacional e alternância metafórica.

No quarto artigo traduzido, "Uma teoria sobre a brincadeira e fantasia", Gregory Bateson introduz nas Ciências Sociais o que passa a ser um dos mais importantes conceitos na análise do discurso, i.é, o conceito de enquadre. O enquadre contém uma série de informações que possibilitam aos interlocutores compreender como eles devem tomar uma dada mensagem que em princípio possa parecer ambivalente (e.g., brincadeira vs. comentário crítico). De acordo com Bateson, o enquadre oferece aos participantes elementos que, combinados de certas formas, delimitam que tipo de comunicação ocorre ali e, conseqüentemente, como cada participante deve responder àquela situação específica (i.é, rir em resposta a uma brincadeira, contestar uma crítica, entre outras).

Segue imediatamente ao texto de Bateson, o artigo "Footing", no qual, cujo título bem indica, Erving Goffman introduz a noção de footing. De acordo com o autor, footing desenvolve o conceito de enquadre de forma a mostrar a dinamicidade do mesmo no discurso. De extrema importância neste artigo são os desdobramentos das definições clássicas de falante e ouvinte em papéis mais sutis de participação e recepção no discurso (tais como animador, autor e endereçado, e ouvinte por acaso).

O sexto artigo, "Convenções de contextualização" (John J. Gumperz), aborda o que Gumperz denominou pistas de contextualização, que constituem as pistas sociolingüísticas que os participantes usam para marcar suas intenções comunicativas, para inferi-las de outros interlocutores, e para construir expectativas sobre o que poderá acontecer a seguir na interação. Conforme o autor chama a atenção, as pistas de contextualização são internalizadas pelos falantes e são ativadas durante a interação social de forma a criar inferências, ressaltando o que é relevante para uma determinada interpretação, num específico momento. O autor também enfatiza o fato das convenções de contextualização permanecerem muitas vezes não-verbalizadas durante o aprendizado de um língua estrangeira. Segundo o autor, o fato desta aprendizagem se dar na maioria das vezes no nível oracional causa problemas de comunicação conseguintes. Isto é, numa interação, participantes podem muitas vezes usar o mesmo código lingüístico em nível oracional, sem necessariamente ter em comum as mesmas convenções de contextualização, causando desta forma mal-entendidos.

No artigo "Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em interação: Exemplos de um exame/consulta médica", Deborah Tannen e Cynthia Wallat propõem uma diferenciação dos tipos de estruturas de expectativa: enquadre e esquema. As autoras sugerem que se use o conceito de enquadre para denominar as informações que são co-construídas numa interação – uma noção portanto mais antropológica/sociológica – e esquemas para se referir às informações pressupostas, padrões ou esquemas de conhecimento – noção esta inserida na psicologia cognitiva e inteligência artificial. Usando exemplos de interação numa consulta médica, as autoras demonstram a complexidade interativa das duas estruturas de conhecimento; mostram como as noções de esquema e enquadre explicam grande parte do que acontece numa interação, tanto em termos de sucesso comunicativo quanto em termos de falhas interpretativas e quebras na comunicação.

Finalmente, no último artigo da coletânea, "O `quando' de um contexto: Questões e métodos na análise da competência social", Frederick Erickson e Jeffrey Shultz chamam a atenção dos pesquisadores para uma definição menos simplista da noção de competência comunicativa ou interacional. Desta forma, os autores abordam de forma integrativa as diversas teorias de análise de contexto propostas até então. Erickson e Shultz também apresentam uma proposta metodológica, passo a passo, de como se investigar a organização social da interação a partir de dados audiovisuais.

Fica bastante claro que o argumento de Ribeiro e Garcez sobre o difícil processo de escolha dos textos que compõem o volume é de fato genuíno. Tanto a seleção como a ordenação dos artigos traduzidos receberam devida atenção, i.é, os autores e os conceitos por eles introduzidos são ícones na área de Sociolingüística Interacional, e os artigos representam a disciplina em suas mútiplas dimensões e complexidades. Além disso, a intertextualidade dos artigos evidencia o inter-relacionamento histórico e conceitual dos mesmos. Tal intertextualidade é comprovada na prática, i.é, enquanto a leitura da obra avança, o leitor é constantemente remetido pelos autores originais aos outros textos contidos no volume.

Fica evidente também que a tradução dos artigos não se deu sem dificuldades. Detalhes de grande relevância nos artigos, como transcrições de interações em diferentes registros (e.g., Gumperz, p. 101), foram cuidadosamente preservados nas traduções. Além disso, merecem destaque especial as traduções dos textos de Ervin Goffman. Os tradutores souberam manter a complexidade no estilo de escrita que caracteriza as obras do autor.

Alguns pontos merecem ser destacados pela sua valiosa contribuição didática. Os prefácios que introduzem cada novo artigo na obra, por exemplo, constituem mais do que simples sumários dos textos a que precedem. Eles não apenas anunciam e explicam alguns dos conceitos introduzidos a seguir, como também situam historicamente cada artigo, fazem relação do mesmo com outras obras, e apresentam uma breve descrição da disciplina e tradição de pesquisa do autor. De semelhante cunho didático são as notas dos tradutores e organizadores ao pé da página. Tais notas justificam decisões de tradução e clarificam de antemão detalhes que podem levar a ambiguidades ou erros de interpretação (e.g., pp. 99, 104 e 118), apontam para uma contextualização cultural dos assuntos apresentadas nos artigos (e.g., pp. 111, 114 e 148), remetem o leitor aos outros textos do volume (e.g., p. 102) e atestam a seriedade da pesquisa da qual a obra resultou (e.g., pp. 124 e 127).

Alguns aspectos poderiam merecer acréscimos ou modificações numa possível reedição. O volume poderia conter um glossário listando a terminologia introduzida nos artigos. Além disso, considerando-se que uma das audiências da obra são estudantes de análise do discurso, e dentre estes provavelmente iniciantes na disciplina, uma lista de sugestão de leituras paralelas – i.é, uma breve lista de referências bibliográficas comentadas – contribuiria ainda mais para o valor didático da obra. Bibliografias comentadas são sempre grandes motivadores para os mais iniciantes. Finalmente, um índice de tópicos e autores, além de obviamente facilitar o manuseio do livro, apontaria ainda mais especificamente para o inter-relacionamento dos artigos e tópicos abordados na coletânea.

Merecem os parabéns os organizadores, Branca Telles Ribeiro e Pedro M. Garcez, ambos professores e pesquisadores brasileiros com projeção internacional, pela brilhante idéia de olhar para uma área carente no Brasil e se empenhar na tarefa de suplementá-la. A coletânea é sem dúvida uma leitura obrigatória para todos aqueles que se interessam pela fala e interação social nas mais diferentes esferas de comunicação. Seu uso facilmente cruza áreas, disciplinas e níveis de conhecimento, podendo servir desde livro-texto básico em cursos em programas de Lingüística, até como uma excelente fonte de consulta para pesquisadores em outras áreas de Ciências Sociais e Humanas, bem como de Saúde Mental. Além do mais, a tradução de toda uma terminologia na disciplina de sociolingüística interacional mostra-se um importante passo na estandardização destes conceitos na Língua Portuguesa.

(Recebido em setembro de 1998. Aceito em março de 1999)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2000
  • Data do Fascículo
    1999
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