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Reparos na leitura em voz alta como pistas de consciência sociolinguística

Repairs in reading aloud as clues of sociolinguistic awareness

RESUMO

As pistas indiretas de processamento linguístico podem contribuir para a aferição da consciência sociolinguística de um fenômeno variável, tais como os reparos em uma situação de leitura em voz alta, em situação socialmente monitorada, tal como na universidade. Com base nesta premissa, controlamos a taxa de conservação do segmento em cinco processos fonológicos variáveis do português brasileiro e a taxa de reparo em caso de não realização, na leitura em voz alta de um texto por 50 universitários. Os resultados apontam para diferenças entre os processos relacionadas ao tipo de condicionamento de conservação do segmento (valor morfêmico e não morfêmico) e diferença de taxa entre a não realização e o reparo, que constituem pistas para a saliência sociolinguística.

Palavras-chave:
Processamento; variação linguística; leitura em voz alta; saliência sociolinguística

ABSTRACT

Indirect clues of linguistic processing can contribute to the measurement of sociolinguistic awareness of a variable phenomenon, such as repairs in a situation of reading aloud, in a socially monitored situation, such as at university. Based on this premise, a study was carried by the control of the conservation rate of the segment in five variable phonological processes of Brazilian Portuguese and the rate of repair in case of non-performance, in the reading aloud of a text by 50 undergraduate students. The results point to differences between the processes related to the type of constraining for the conservation of the segment (morpheme and nonmorpheme value) and the difference in rate between the non-realization and the repair, which are taken as clues to the sociolinguistic salience.

Keywords:
Processing; linguistic variation; reading aloud; sociolinguistic salience

Introdução

A produção linguística é o processo relativo ao planejamento e à execução linguística: primeiro, precisamos conceitualizar o que desejamos comunicar; depois, precisamos transformar o pensamento em um plano linguístico; em seguida, executamos o plano linguístico com instruções aos músculos da fala e, por fim, monitoramos nossa própria fala, garantindo que saia aquilo que foi planejado e garantindo que os sentidos foram atingidos. Em termos técnicos, a produção linguística envolve as etapas de conceitualização, formulação, articulação e automonitoramento (Levelt 1989LEVELT, Willem J. M. 1989. Speaking: From intention to articulation. Cambridge: Cambridge MIT Press.). Neste processo, podem acontecer erros; erros de produção são realizados por falantes não intencionalmente e inconscientemente. São muito comuns, acontecem a todo momento e podem passar por autocorreção ou correção por outros (Levelt 1983LEVELT, Willem J. M. 1983. Monitoring and self-repair in speech. Cognition, 14(1): 41-104.).

O estudo científico dos erros de produção (pausas silenciosas ou preenchidas, reparos, lapsos de língua, gaguejos, etc.) pode fornecer pistas para o desvelamento dos custos de processamento linguístico, pois podem nos dizer onde o falante pára para pensar. E esta potencialidade pode ser explorada para observar indiretamente a consciência sociolinguística do falante, quando um traço variável é reparado ou corrigido por sua variante: ao substituir uma variante por outra, podemos identificar pistas da consciência linguística do falante e da avaliação social da variável. É esta a premissa norteadora do presente trabalho.

Uma hipótese a respeito da motivação para erros de produção linguística tem sido a visão de Freud de que os erros ocorrem porque temos mais que um único plano de produção e que um desses planos compete e domina o outro. Situações de mentira, preconceito ou monitoramento social nos demandariam maior esforço de processamento em competição com o plano da produção linguística, o que daria brechas a lapsos. Com base nesta perspectiva é que estudos de psicologia social controlam o esforço de processamento em estudos de efeitos de preconceito e monitoramento social; o mesmo podemos transpor para os efeitos do monitoramento sociolinguístico.

O automonitoramento é a etapa de controle que nos permite identificar e corrigir os erros de produção linguística. Erros são cometidos não apenas por falantes não nativos, mas também por falantes nativos. Os falantes frequentemente cometem erros e se corrigem imediatamente, o que nos permite compreender o processo de produção: os falantes são sensíveis aos erros que cometem. O fato de falantes terem a capacidade de monitorar e corrigir erros imediatamente na produção dá suporte à teoria gerativista de que existem diferenças entre desempenho e competência. E também pode dar suporte à Sociolinguística para a investigação da consciência sociolinguística do falante e da avaliação social de uma variável.

Os falantes usam diferentes estratégias de reparo ao erro: no início ou no estágio de conceituação da produção linguística, quando o falante acha seu discurso inadequado, começa a enunciação novamente. Na fase de formulação ou estágio de articulação, os falantes não iniciam novamente, mas reparam a sentença em parte. A observação de reparos - especificamente na situação de leitura em voz alta - da realização de traços sociolinguísticos variáveis do português pode ser pista de consciência sociolinguística do falante e da avaliação social de uma variável, contribuindo para o desvelamento da saliência sociolinguística (Freitag 2018FREITAG, Raquel Meister Ko. 2018. Saliência estrutural, distribucional e sociocognitiva. Acta scientiarum. Language and culture, 40(2): e41173., 2020, a sair): quais fenômenos variáveis são percebidos pelos falantes de uma língua?

Consciência sociolinguística

A nossa fala carrega dois tipos de informação: a informação linguística (o que está sendo dito) e a informação indexical (quem e onde está dizendo). O processamento dessas informações linguísticas e indexicais é integrado durante a percepção linguística, relevando a consciência sociocognitiva.

Saliência é um conceito complexo, frequentemente presumido nos estudos, mas subdefinido ou subentendido. Não sabemos dizer exatamente o que é saliência, mas sabemos dizer se uma variável é ou não saliente. Para isso, valemo-nos das frequências type e token da variável e das suas variantes e o seu peso ideológico, a informação socialmente marcada associada a uma variante de uma variável linguística. Duas abordagens para saliência são correntes na Sociolinguística. Uma que considera a saliência como o resultado da atuação de múltiplos fatores, cognitivos, internos e externos à língua, como é a proposta de Kerswill e Williams (2002KERSWILL, Paul; WILLIAMS, Ann. 2002. Salience as an explanatory factor in language change: evidence from dialect levelling in urban England. In: JONES, Mari C.; ESCH, Edith (Eds.) Language change: The interplay of internal, external and extra-linguistic factors.), e outra abordagem que considera a saliência como resultado de um processo que tem como foco as implicações cognitivas da percepção social (Labov et al. 2011LABOV, William et al. 2011. Properties of the sociolinguistic monitor. Journal of Sociolinguistics, 15(4): 431-463., Levon e Fox 2014LEVON, Erez; FOX, Sue. 2014. Social salience and the sociolinguistic monitor: A case study of ING and TH-fronting in Britain. Journal of English Linguistics, 42(3): 185-217., Buchstaller 2016BUCHSTALLER, Isabelle. 2016. Investigating the effect of socio-cognitive salience and speaker-based factors in morpho-syntactic life-span change. Journal of English Linguistics, 44(3): 199-229., Freitag 2020FREITAG, Raquel Meister Ko. 2020. Effects of the linguistic processing: palatals in Brazilian Portuguese and the sociolinguistic monitor. University of Pennsylvania. Working Papers in Linguistics, 23(2): 1-10., a sair). Independentemente da abordagem, é preciso reconhecer o que é saliente. Os falantes fazem escolhas quando falam, mas essas escolhas não são necessariamente conscientes para si mesmos, ou seja, os falantes nem sempre conseguem perceber, no nível da consciência, se uma variante é saliente ou não.

Dentro da Sociolinguística, algumas abordagens propõem reconhecer e classificar os efeitos da saliência nas escolhas dos falantes considerando a consciência social da comunidade e a informação socialmente marcada, como o nível de consciência social de Labov (1972LABOV, William. 1972. Sociolinguistic patterns. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press.), que classifica as variáveis em indicadores, marcadores e estereótipos,2 2 A escala de apreciação social de Labov (1972) classifica os traços linguísticos em estereótipos (traços linguísticos socialmente marcados de forma consciente pelos falantes), marcadores (traços linguísticos sociais e estilísticos e que permitem efeitos consistentes sobre o julgamento consciente ou inconsciente do ouvinte sobre o falante) e indicadores (traços socialmente estratificados, no entanto, não são sujeitos à variação estilística) o modelo de audience design, de Bell (1984BELL, Allan. 1984. Language style as audience design. Language in society, 13(2):145-204.), e de indexicalidade, com as ordens de Silverstein (2003SILVERSTEIN, Michael. 2003. Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & communication, 23(3/4): 193-229.) e os campos de Eckert (2008ECKERT, Penelope. 2008. Variation and the indexical field. Journal of sociolinguistics, 12(4): 453-476.).

Falantes fazem diferentes avaliações conscientes e inconscientes sobre diferentes variedades linguísticas, tanto variedades dialetais quanto variedades com interferência de outra língua. O nível de consciência social desempenha um importante papel ao determinar quais variantes são sujeitas à correção. Consciência, enquanto conhecimento explícito, emerge de experiências agregadas para reconhecer as diferenças linguísticas no momento da interação e para a compreensão do quanto são linguistica e socialmente significativas, e pode ser perfilada em uma escala em três níveis: o da percepção, o do reconhecimento e o da compreensão (Squires 2017SQUIRES, Lauren. 2017. Processing grammatical differences: Perceiving versus noticing. In: BABEL, Anna (Ed.). Awareness and control in sociolinguistic research. Cambridge: Cambridge University Press.).

Os níveis de consciência representam conhecimento mais ou menos implícito versus explícito da variação. Com variáveis do tipo estereótipo, os falantes sabem que o recurso está relacionado a uma categoria de falante; já com indicadores, os falantes não sabem que o recurso se aplica a uma categoria específica de falante. Os falantes têm conhecimento explícito de estereótipos que eles podem discutir e refletir (Silverstein 1983, Preston 2010PRESTON, Dennis R. 2010. Language, people, salience, space: perceptual dialectology and language regard. Dialectologia: revista electrònica, 5(1): 87-131.). No entanto, os falantes também devem ter algum conhecimento de indicadores e marcadores: utilizá-los de forma variável faz parte de sua competência gramatical. Já o conhecimento de indicadores é implícito, não conscientemente objeto de discussão e reflexão.

O conhecimento da variação provavelmente decorre de um processo semiótico durante o qual os falantes são expostos a diferenças linguísticas, observam-nas e sistematizam padrões de seu uso em conexão com fatos sociais. Enquanto muitas pesquisas investigaram o estado do conhecimento dos falantes sobre fatos da variação, o processo pelo qual os falantes constroem esse conhecimento (consciência sociolinguística) é ainda inexplorado. Diferenças entre percepção, reconhecimento e compreensão têm sido amplamente discutidas no campo da aquisição de segunda língua, mas ainda são pouco exploradas na língua materna, e a conexão entre processamento linguístico e o significado social das formas linguísticas tem sido explorada em abordagens relativamente recentes, como a de Language regard (Preston 2011PRESTON, Dennis R. 2011. The power of language regard-discrimination, classification, comprehension, and production. Dialectologia: revista electrònica, SpeI(II):9-33.) e a do monitor sociolinguístico (Labov et al. 2011LABOV, William et al. 2011. Properties of the sociolinguistic monitor. Journal of Sociolinguistics, 15(4): 431-463.).

Resultados de estudos de produção, considerando a relação entre a frequência type/token, nos permitem identificar quem fala e em que lugares, e verificar a sensibilidade estilística, separando indicadores de marcadores. Ainda considerando a produção, dados societais, como memes, piadas e prescrições gramaticais, contribuem para o status de planejamento, ou para diferenciar estereótipos de marcadores ou indicadores (Freitag 2016FREITAG, Raquel Meister Ko. (2016). Uso, crença e atitudes na variação na primeira pessoa do plural no Português Brasileiro. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, 32(4): 889-917.). As correções, reparos e autoreparos podem dar pistas também sobre o nível de consciência de uma certa variante. Por exemplo, Ribeiro (2019RIBEIRO, Cristiane Conceição Santana. 2019. Pistas para a acomodação subjetiva na variação entre em ~ ni na fala de universitários: regularização morfológica e reparos. Domínios de lingu@agem, 13(4): 1557-1580.) sugere a partir da análise de operações de reparo que a forma ni (variante da preposição em, pouco documentada e cuja origem é atribuída ao contato entre línguas africanas e o português) não é socialmente estigmatizada: os estudantes percebem a forma, mas não a corrigem nem são corrigidos quanto ao seu uso. As situações de reparo evidenciam a regularização da forma ni na comunidade, indicando convergência pela dimensão subjetiva de estratégias de acomodação.

A situação de leitura em voz alta é um momento controlado em que é possível mensurar os reparos e verificar a consciência sociolinguística do falante e, a partir dela, inferir a avaliação social do fenômeno variável alvo de reparo.

Leitura em voz alta e variação linguística

A variação linguística se manifesta nas situações de produção linguística, inclusive em situações de maior monitoramento, como na leitura em voz alta, um estilo de atenção à fala altamente monitorado. Assim, fenômenos variáveis que passam da fala para a leitura são fenômenos que não são socialmente estigmatizados, indicando percepção e reconhecimento da variação, nos termos de Squires (2017SQUIRES, Lauren. 2017. Processing grammatical differences: Perceiving versus noticing. In: BABEL, Anna (Ed.). Awareness and control in sociolinguistic research. Cambridge: Cambridge University Press.); por outro lado, o reparo de uma realização variável nos dá pistas da compreensão em direção à avaliação social do fenômeno e à consciência sociolinguística do falante.

Fenômenos fonológicos variáveis na situação de leitura em voz alta tendem a ser afetados pela relação de opacidade/transparência do sistema ortográfico e sua realização fonológica: enquanto na fala uma realização pode vir a ser categórica, na leitura em voz alta, a representação ortográfica pode interferir na realização, e este efeito pode sinalizar maior monitoramento decorrente da situação estilística, ou pode sinalizar baixa habilidade de automaticidade na decodificação, fenômeno que, embora mais recorrente nos leitores aprendizes (estudantes das séries iniciais da educação básica), pode se apresentar nos níveis mais altos de escolarização.

Fenômenos variáveis no nível fonológico apresentam maior possibilidade de transposição para a fala, em decorrência do uso de uma rota lexical para a leitura (Coltheart 2013COLTHEART, Max. 2013. Modelando a leitura: a abordagem da dupla rota. In: SNOWLING, Margaret J.; HULME, Charles (eds.). A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso.). O modelo de rotas de leitura pressupõe que a leitura de um sistema de escrita alfabético pode ocorrer por meio de um processo de reconhecimento visual direto (rota lexical) ou por um processo envolvendo mediação fonológica (rota fonológica). Ambas as rotas de leitura iniciam com o sistema de análise visual, que tem a função de identificar as letras, sua posição na palavra e agrupá-las. Em leitores fluentes, a rota fonológica é a única possível para ler palavras novas ou raras na ortografia regular, e neologismos; nesta rota, primeiro ocorre a decodificação das letras, depois a procura de uma possível pronúncia e depois o sentido. Já a rota lexical é utilizada para as palavras frequentes e indispensável para as palavras irregulares. Não atingir a automaticidade na leitura no nível da palavra leva a problemas no próximo nível, no nível da compreensão.

A transposição para a leitura em voz alta decorre da memória visual da palavra (Ehri 1995EHRI, Linnea C. 1995. Phases of development in learning to read words by sight. Journal of research in reading, 18(2): 116-125.), que sofre efeitos da variedade falada, distante da transparência do sistema ortográfico, mas que pode sofrer efeitos de monitoramento social do contexto estilístico de atenção à fala e do contexto social da leitura. E por conta da automaticidade de acesso à rota, em caso de transposição do fenômeno, o monitoramento da leitura pode apontar para o reparo, denotando efeitos do monitoramento sociolinguístico. Estudos nesta direção no português brasileiro (Machado 2018MACHADO, Alessandra Pereira Gomes. 2018. Variação linguística e leitura: fenômenos variáveis da fala na leitura em voz alta. A Cor das Letras, 19(4): 196-218., Freitag e Sá 2019FREITAG, Raquel Meister Ko.; SÁ, José Júnior de Santana. 2019. Reading aloud: linguistic variation and the success in reading early learning. Ilha do Desterro, 72(3): 41-62., Machado e Freitag 2019MACHADO, Alessandra Gomes Pereira; FREITAG, Raquel Meister Ko. 2019. Pistas de processos de decodificação que levam à compreensão da leitura. Letras de Hoje, 54(2): 132-145.) sugerem que reparos na leitura em voz alta podem dar pistas da consciência sociolinguística do leitor, e da avaliação social do traço, na medida que traços social ou estilisticamente avaliados de modo negativos tendem a ser reparados ou corrigidos.

Método

Amostra

A amostra do conjunto de dados faz parte do projeto Como fala, lê e escreve o universitário?, uma ação de documentação, descrição e formação linguística, a partir de uma pedagogia culturalmente sensível, com a documentação linguística para a descrição da fala, leitura e escrita de universitários, para subsidiar a elaboração de material didático para cursos de letramento acadêmico.3 3 Nesta etapa, vinculada à linha de fomento IntegraUFS 2019 para a Iniciação Científica, a equipe foi responsável pela documentação linguística, cujos resultados parciais são apresentados em Souza, Silva e Araujo Jr (2020).

O procedimento de coleta segue as diretrizes do banco de dados Falares Sergipanos (Freitag 2017FREITAG, Raquel Meister Ko. 2017. Documentação Sociolinguística, coleta de dados e ética em pesquisa. São Cristóvão: EdUFS.), com estudantes da Universidade Federal de Sergipe.

Para a documentação da leitura, foi escolhido um texto com um número de palavras e temática aderente ao público-alvo, no entanto, com gatilhos para processos fonológicos e morfossintáticos: a crônica “Vida de cinema”, de Luis Fernando Veríssimo, publicada no jornal O Globo em 31 de julho de 2014 <https://oglobo.globo.com/opiniao/vida-de-cinema-13437047>. O texto, com 358 palavras, foi preparado para a tarefa de leitura, com a padronização dos espaçamentos, interlinearização, alinhamento e tamanho de fonte, segundo os protocolos de documentação de leitura em voz alta.

A amostra é formada pela leitura em voz alta de 50 estudantes, estratificados quanto ao deslocamento para a universidade (variável não controlada) e o período do curso (inicial ou final). A leitura de cada estudante foi transcrita e alinhada ao áudio no software Elan (Wittenburg et al. 2006WITTENBURG, Peter et al. 2006. ELAN: a professional framework for multimodality research. In: 5th International Conference on Language Resources and Evaluation (LREC 2006).), o que permite a identificação dos segmentos-alvo, bem como os reparos, por meio de busca automática dos itens em que cada processo ocorre. Na busca, foram considerados os itens conforme as restrições a seguir.

  • R em coda externa: seis itens verbais de infinitivo (morrer, dizer, sair, precisar, esperar, ser) e um item nominal (mulher).

  • Monotongação: (foram considerados apenas os contextos de coda interna)4 4 Diferentemente de Souza, Silva e Araujo Jr. (2020), as ocorrências de monotongação em contexto externo em verbos não foram consideradas, pela ocorrência categórica da realização com ditongo. quatro itens com -ow (ouviu, poupava, pouco, trouxesse), seis itens com -ej (passageira, beijava, deitado (2x), beijo, primeira, dinheiro), e um item com -aj (apaixonadamente).

  • Desnasalização: foram considerados contextos de vogal final nasalisada átona e tônica, por terem sido identificados também itens tônicos com desnasalização na leitura na amostra; sete itens verbais átonos (prepararam, continuam, persistem, produzem, matavam, terminarem, aparecerem, faziam) e quatro itens nominais tônicos (comum, além, alguém, garçom).

  • Redução de -ndo: dois itens de gerúndio (iludindo, sabendo), e cinco ocorrências do item quando.

  • S em coda externa: Este é um contexto complexo, pois estão sendo considerados em conjunto sintagmas nominais de dois (os brigões, os punhos) ou mais constituintes (nas nossas pistolas), em estruturas predicativas (seríamos felizes) e em formas de primeira de plural (víamos, chegarmos, chegássemos (2x), tivéssemos, atiraríamos, cantaríamos, dançássemos, erraríamos, seríamos), em que o condicionamento do -S tem natureza morfossintática, e em nomes monomorfêmicos, em que o condicionamento é fonético (como em apenas, depois (3x), francês, duas, mais, simples). Mesmo no caso dos nomes em que o S é morfêmico, há efeitos de saliência fônica (Naro & Scherre, 1998SCHERRE, Maria Marta Pereira; NARO, Antony Julius. 1998. Sobre a concordãncia de número no português falado do Brasil. In: Ruffino, Giovanni (org.) Dialettologia, geolinguistica, sociolinguistica. (Atti del XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza) Centro di Studi Filologici e Linguistici Siciliani, Universitá di Palermo. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, vol.5, p.509-523. ) diferentes, como em contexto não salientes (casos, lutas, murros, punhos, deitados, palavras, ditas, pistolas, pressas, intervalos, números, acompanhados, violinos, filmes, namoradas, semanas), casos de moderada saliência (felizes, cores, musicais, alguns), e casos de alta saliência (convenções, brigões). Dois itens chamam a atenção em relação ao efeito da saliência no plural, socos (2x) e rostos (2x), que tiveram realizações variáveis na leitura em voz alta com o abaixamento da vogal tônica, seguindo o padrão do plural de ovo. Apesar desta diversidade de contexto, o foco da análise se restringe à realização ou não realização do segmento.

Após o levantamento das ocorrências, foi realizado o cômputo das taxas de ocorrência de cada processo, descrito globalmente em Souza, Silva e Araujo Jr. (2020SOUZA, Victor Rene Andrade; SILVA, Vitória Laís Santos; ARAUJO Jr., Mauro Monteiro de. 2020. Da Fala à Leitura: variação linguística na leitura em voz alta de estudantes da Universidade Federal de Sergipe. Porto das Letras, 6 (1): 167-99. ). Foram excluídas as ocorrências de palavras “adivinhadas” (cf. Machado Freitag 2019MACHADO, Alessandra Gomes Pereira; FREITAG, Raquel Meister Ko. 2019. Pistas de processos de decodificação que levam à compreensão da leitura. Letras de Hoje, 54(2): 132-145.), ou seja, aquelas palavras que foram antecipadas pelo participante a partir de pistas de compreensão. Na sequência, são detalhados os processos fonológicos dos itens objeto alvo do controle na leitura.

Objeto-alvo

Foram considerados na leitura em voz alta a realização de cinco processos fonológicos variáveis no português brasileiro, descritos a seguir.

A monotongação é um processo de apagamento do glide palatal [j], como em caixa, ou velar [w] em ditongo decrescente, como em cenoura. Estudos sociolinguísticos de produção apontam para efeito do condicionamento estilístico: o apagamento do glide velar tende a ser uma regra categórica em situações informais, em todos os contextos linguísticos (morfêmico, como na terceira pessoa do pretérito perfeito cantou e não morfêmico, como em couro), inclusive na escrita (com realizações escritas como cantô, recorrente em contextos menos formais) (cf. Brandão 2015BRANDÃO, Silvia Figueiredo. 2015. Variação e mudança no âmbito do vocalismo. In: MARTINS, Marco A.; ABRAÇADO, Jussara (Eds.) Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. São Paulo: Contexto., Araujo e Borges 2019ARAUJO, Andréia Silva; BORGES, Damiana Karina Vieira. 2019. Atitudes linguísticas de estudantes universitários: o fenômeno da monotongação em foco. Tabuleiro de Letras, 12: 97-113.). Já o glide palatal apresenta restrições de natureza interna, decorrente do contexto fonológico seguinte: independentemente da formalidade, ocorre em contextos em que a sílaba seguinte apresenta o traço palatal, como em caixa, beijo, e é restringido em contextos em que a sílaba seguinte inicia por oclusiva, como em leito, caibo. O comportamento é estável em todas as regiões do Brasil, sem sensibilidade social ou dialetal. Considerando as rotas de leitura, é esperado que este tipo de fenômeno seja transposto na leitura em voz alta de leitores fluentes, sinalizando o acesso de uma rota lexical; a realização do segmento, por outro lado, sinaliza para um leitor que faz uso da rota fonológica, por hipótese menos automatizado (e menos fluente).

A desnasalização de ditongo final é o processo do apagamento do segmento nasal, em nomes, como em vagem, e em verbos na terceira pessoa, como em passaram. Nos verbos, o apagamento interfere em relações morfossintáticas, e ocorre de modo estável em todo o português brasileiro, com comportamento relativamente sensível ao contexto de monitoramento estilístico. Já nos nomes, a variante desnasalizada está associada a aspectos sociais relativos à escolarização e ruralidade, além de ser relativamente sensível ao contexto de monitoramento estilístico (Gomes, Mesquita e Fagundes 2013GOMES, Christina Abreu; MESQUITA, Cássia; FAGUNDES, Taís da Silva. 2013. Revisitando a variação entre ditongos nasais finais átonos e vogais orais na comunidade de fala do rio de janeiro. Diacrítica, 27(1): 153-173., Gomes, Melo e Barcellos, 2016GOMES, Christina Abreu; MELO, Marcelo Alexandre Lopes Silva; BARCELLOS, Maria Eugenia Martins. 2016. Dinâmica da variação sociolinguística em contexto de exclusão social. ReVEL, spe(13): 128-143.). Na tipologia de apreciação social, este processo é considerado um marcador, com sensibilidade estilística e social. O contexto da regra foi ampliado para contemplar todos os contextos de desnasalização, átonos e tônicos (dado que foram identificados no corpus casos de desnasalização também em contexto tônico, como no item comum).

A redução de -ndo é um processo de assimilação da consoante vozeada, em obediência a um princípio universal (toda consoante desvozeada tende a ser vozeada; toda consoante vozeada tende a ser assimilada), com ocorrência linguística, social e estilisticamente segmentada no português brasileiro. Há regiões dialetais com maior realização de apagamento, em contextos morfêmicos (gerúndio) e não morfêmicos (em itens como quando, mundo, Orlando), há regiões com maior realização de apagamento, somente em contextos morfêmicos, e há regiões com menor recorrência do apagamento (Freitag, Cardoso e Pinheiro 2018FREITAG, Raquel Meister Ko. 2018. Saliência estrutural, distribucional e sociocognitiva. Acta scientiarum. Language and culture, 40(2): e41173., Cardoso, Pinheiro e Silva 2019).

O apagamento do R em verbos, com valor morfêmico de infinitivo (em itens como cantar, comer, dormir) é categórico em situação de fala no português brasileiro, independentemente do nível de monitoramento estilístico, região dialetal ou perfil social; o apagamento do R final em nomes com valor não morfêmico (em itens como mulher, calor), no entanto, tem restrição dialetal, estilística e social (Callou, Moraes e Leite 1998CALLOU, Dinah; MORAES, João; LEITE, Yonne. 1998. Apagamento do R final no dialeto carioca: um estudo em tempo aparente e em tempo real. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, 14/SPE: 00-00., Monaretto 2000MONARETTO, Valeria Neto de Oliveira. 2000. O apagamento da vibrante posvocálica nas capitais do sul do Brasil. Letras de hoje, 35(1): 275-284., Oushiro e Mendes 2014OUSHIRO, Livia; BELINE MENDES, Ronald. 2014. O apagamento de (-r) em coda nos limites da variação. Revista Veredas, 18(2): 251-266., Callou, Serra e Cunha 2015CALLOU, Dinah; SERRA, Carolina; CUNHA, Cláudia. 2015. Mudança em curso no português brasileiro: o apagamento do R no dialeto nordestino. Revista da ABRALIN, 14(1): 195-219., Callou 2015CALLOU, Dinah. 2015. Variação e mudança no âmbito do consonantismo. In: MARTINS, Marco A.; ABRAÇADO, Jussara (Eds.) Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. São Paulo: Contexto .). O apagamento do S final, com valor morfêmico de plural (em nomes, como filmes, pessoas, e em verbos, como víamos, cansamos) tem restrições de ocorrência social e estilística na fala, que se esperam que sejam transpostas para a leitura em voz alta. Já o apagamento do S final com valor não morfêmico (em itens como apenas, menos) tende a ser restringido. (Brandão e Vieira 2012BRANDÃO, Silvia Figueiredo; VIEIRA, Silvia Rodrigues. 2012. Concordância nominal e verbal: contribuições para o debate sobre o estatuto da variação em três variedades urbanas do português. Alfa: Revista de Linguística, 56(3), 1035-1064., Callou 2015CALLOU, Dinah. 2015. Variação e mudança no âmbito do consonantismo. In: MARTINS, Marco A.; ABRAÇADO, Jussara (Eds.) Mapeamento sociolinguístico do português brasileiro. São Paulo: Contexto .)

A observação destes fenômenos na situação de leitura em voz alta pode contribuir para desvelar os efeitos da sua avaliação social, ao mesmo tempo que permite inferir pistas de consciência sociolinguística do falante (e, de modo adjacente, sua proficiência em leitura).

Tratamento dos dados

Os procedimentos de análise dos dados consistem em estatística descritiva da taxa de ocorrência das variantes dos cinco processos fonológicos variáveis no português brasileiro controlados em situação de leitura e da taxa de reparo da variação na leitura. A estatística inferencial consiste na realização de teste-t para amostras independentes entre a taxa de variação na leitura e a taxa de reparo da variação na leitura, e de modelo de regressão logística generalizada com efeitos aleatórios (participante e item) para a realização (variável dependente), controlando os efeitos da correção (sim/não) e o valor gramatical (morfêmico/não morfêmico). A visualização gráfica dos resultados foi desenvolvida com o pacote ggstatsplot (Patil e Powell 2018PATIL, Indrajeet; POWELL, Chuck. 2018. ggstatsplot: “ggplot2” Based Plots with Statistical Details. ) para a plataforma R. O script da análise e o conjunto de dados está disponível em https://osf.io/qt47u/.

Resultados

A variabilidade na leitura em voz alta e os reparos da variabilidade apresentam padrões de recorrência bem estabelecidos, relacionados com os juízos de avaliação social das variáveis.

Na leitura em voz alta, a realização de traços variáveis segue a mesma tendência da fala (Figura 1), com forte associação (V = 0,68). Dos processos fonológicos controlados, a monotongação e o apagamento de R final são aqueles que mais ocorrem, com 65,7% e 74%, respectivamente, de ocorrências na amostra de leitura em voz alta entre universitários. Enquanto na fala estes processos têm comportamento categórico ou quase-categórico para o apagamento, a situação de leitura em voz alta é um contexto de restrição, seja por conta do efeito da transparência do sistema ortográfico na leitura, da adoção de uma rota fonológica para a leitura (denotando menor habilidade de compreensão em leitura) ou por monitoramento estilístico, que atuam como condicionadores.

Figura 1
Distribuição das taxas de conservação do segmento nos processos fonológicos controlados na leitura em voz alta

Já a redução do segmento -ndo, a desnasalização e o apagamento do S final apresentam taxas de recorrência relativamente mais restritivas na leitura em voz alta do que na fala: a redução do segmento -ndo e a desnasalização com alta taxa de conservação, 84,9% e 86,9%, enquanto estudos de variação na fala, na mesma comunidade, apontam que a taxa é de 60% (Freitag, Cardoso e Pinheiro 2018FREITAG, Raquel Meister Ko. 2018. Saliência estrutural, distribucional e sociocognitiva. Acta scientiarum. Language and culture, 40(2): e41173.), e na leitura é de 68% (Cardoso, Pinheiro e Silva 2019CARDOSO, Paloma Batista; PINHEIRO, Bruno Felipe Marques; SILVA, Lucas Santos. 2019. Variação do segmento/d/no contexto/ndo: efeitos prosódicos e de leitura. Leitura, 63(2): 174-191.); e ocorrência quase-categórica para a conservação do S final de palavras. Em tarefa de discriminação (decisão lexical), na mesma comunidade, palavras com desnasalização tendem a ser associadas a não palavra (Freitag e Souza 2019FREITAG, Raquel Meister Ko; SOUZA, Victor Rene Andrade. 2019. Discriminação de palavras e efeitos da variação linguística. In: XII Symposium in Information and Human Language Technology and Collocates Events. Proceedings.), denotando o efeito de processamento que pode ter agido no monitoramento da leitura em voz alta.

Por si só, este padrão de recorrência já reforçaria o juízo de avaliação social de marcador associado a estes processos fonológicos no português brasileiro. Do mesmo modo em que nos fenômenos cuja taxa de conservação foi baixa, também não é possível distinguir qual é o condicionador da restrição. O contexto linguístico imediato de onde ocorre o fenômeno pode nos dar pistas do grau de consciência do processamento da variação, e, assim, contribuir para desvelar qual é o condicionador da restrição: se a conservação ocorre em segmento morfêmico ou não morfêmico.

A escala de distribuição da conservação do segmento nos processos fonológicos é a mesma em ambos os contextos, seguindo a tendência da distribuição geral, com forte associação (V = 0,64 e 0,76). No entanto, o percentual de apagamento em contextos não morfêmicos é maior do que em contextos morfêmicos para o R final e para a monotongação (75,9 ~ 56,8% e 96 ~ 70,3%, respectivamente). Por outro lado, a desnasalização segue o caminho inverso, com percentual de conservação maior em contextos não morfêmicos do que em contextos morfêmicos (15,6 ~ 2%). O comportamento do S final é o mesmo, independentemente do contexto morfêmico.

Figura 2
Distribuição das taxas de conservação do segmento nos processos fonológicos controlados na leitura em voz alta em função do contexto linguístico imediato morfêmico ~ não morfêmico.

Considerando apenas o conjunto de dados em que não houve a conservação do segmento (Figura 3), a taxa de reparo é significativamente mais baixa, com fraca associação (V = 0,10), mesmo nos fenômenos altamente restritos na leitura em voz alta, como no caso do S final de palavra, cuja taxa de correção foi de 14% (ante uma taxa de conservação do segmento de 98,1%). Este resultado sugere que a variação não é reconhecida como erro.

Figura 3
Distribuição das taxas de correção do segmento nos processos fonológicos controlados na leitura em voz alta (percentuais, n = 926)

O segmento -ndo teve comportamento categórico: as 52 ocorrências de não realização da consoante não foram corrigidas na leitura em voz alta, sinalizando que este processo variável não está no nível da consciência do falante nesta comunidade de fala, já que não é reparado. Muito mais frequentes, a não realização do R final de palavra e a monotongação apresentaram taxas de correção muito baixas (1,5% e 2,3% respectivamente), o que sinaliza para o efeito do monitoramento estilístico.

Figura 4
Distribuição das taxas de correção do segmento nos processos fonológicos controlados na leitura em voz alta

A diferença entre as médias da taxa de conservação do segmento na leitura em voz alta e das médias da taxa de correção da não realização é estatisticamente significativa para a desnasalização (Mvariação = 10.90, Mcorreção = 1.60, t(41.02) = 27.75, p < .001), para a monotongação (Mvariação = 6.75, Mcorreção = 1.46, (t(15.11) = 7.64, p < .001), para realização -ndo (Mvariação = 7.85, Mcorreção = 1.92, t(7.35) = 13.86, p < .001) e para o S final de palavra (Mvariação = 51.81, Mcorreção = 3.86, t(71.27) = 119.02, p < .001). A diferença para o R final de palavra não é estatisticamente significativa.

Quanto ao efeito do valor gramatical, um modelo de regressão generalizada de efeitos mistos foi construído para cada um dos fenômenos (Tabela 1), considerando a realização, o valor morfêmico e a correção (fórmula = realização ~ valor * correção). O modelo incluiu participante e item como efeito aleatório (fórmula = ~1 | informante + ~1 | item).

Tabela 1
Modelo de regressão generalizada do efeito da conservação do segmento na leitura em voz alta. Fórmula realização ~ valor

Quanto aos efeitos fixos, o efeito do valor morfêmico para a conservação do segmento na desnasalização é negativo (-3,13, p <0,001), ou seja, maior razão de chances de apagamento do segmento em contexto linguístico morfêmico, como em aparecerem e terminarem, do que em não morfêmico, como comum e alguém); considere-se que há uma sobreposição na amostra: todas as ocorrências de itens com valor morfêmico são em posição átona, e todas as ocorrências de itens não morfêmicos são tônicas, não sendo possível dissociar o efeito dos fatores, ou a sua interação.

Para o R final, o efeito é positivo (2,87, p = 0,05), ou seja, maior razão de chances de apagamento em contexto linguístico morfêmico, como em precisar, sair, do que em não morfêmico, como mulher. Na monotongação, o efeito do valor morfêmico é positivo e baixo (0.50, p <0.001), ou seja, maior razão de chance de apagamento em contexto linguístico não morfêmico, como em pouco, do que em morfêmico, como em contou.

Na correção, o efeito do valor morfêmico não é significativo para nenhum dos processos fonológicos considerados. No entanto, a interação entre valor não morfêmico e correção é positiva (5,13, p < 0,05) para a desnasalização e para o S final (3,11, p = 0,05), o que sinaliza para o efeito da consciência sociolinguística no monitoramento da leitura: estes são os processos variáveis associados ao estigma.

O poder explanatório de todos modelos é substancial (R2 condicional): os efeitos fixos (R2 marginal) têm contribuição forte nos processos de desnasalização (0,21), realização do -ndo (0,82) e realização do R final (0,41), e fraca nos processos de realização do S final (0,01) e montongação (0,08).Os efeitos aleatórios controlados permitem identificar padrões dos processos e vieses do modelo: a monotongação é o processo que apresenta maior consistência dos participantes nos itens controlados, com coeficiente de correlação intraclasse (ICC) forte (0,72), com efeito alto do item e baixo do participante. A consistência é moderada para o R final (0,54) e desnasalização (0,43), e fraca para o S final (0,31). Na realização de -ndo não foi possível calcular o coeficiente de correlação intraclasse, devido à limitação do número de itens.

O efeito do valor gramatical na correção do apagamento do R final de palavra e da monotongação é mais recorrente em contextos não morfêmicos do que em contextos morfêmicos; embora a amostra seja desequilibrada quanto ao número de itens em função do valor gramatical, o resultado segue a tendência apresentada por estudos de natureza descritiva da fala. A correção da desnasalização e da não realização do S final de palavra em contexto não morfêmicos não é estatisticamente significativa na amostra.

No caso do S final, a complexidade de contextos envolvidos, com diferentes graus de saliência, potencialmente poderia ter interferido no resultado, na direção de apontamento para a conservação da marca, o que não se efetivou. A ampliação da amostra considerando o balanceamento dos itens, de modo a ter uma distribuição equilibrada entre contextos morfêmicos e não morfêmicos, pode aprimorar ainda mais a análise.

Conclusão

O estudo da variação e dos reparos da variação na leitura em voz alta de universitários permite identificar contextos que são sensíveis ao processamento linguístico. Há padrões de comportamento diferenciado entre os cinco processos fonológicos variáveis controlados:

  • - Processos altamente permeáveis à leitura: apagamento do R final e monotongação;

  • - Processos barrados pela leitura: apagamento do S final e desnasalização;

  • - Processos conscientes (sensíveis à correção): apagamento do S final;

  • - Processos inconscientes (não sensíveis à correção): redução do segmento -ndo.

Os efeitos do contexto linguístico imediato quanto ao valor gramatical (morfêmico e não morfêmico), atuantes na fala, também transpassam para a leitura em voz alta e podem dar pistas do efeito do processamento linguístico, considerando a atuação da consciência morfológica na leitura (Deacon e Kirby 2004DEACON, S. Hélène; KIRBY, John R. 2004. Morphological awareness: Just “more phonological”? The roles of morphological and phonological awareness in reading development. Applied psycholinguistics, 25(2): 223-238.), ainda pouco explorados. A ampliação do estudo, com o cotejamento das taxas de produção na fala (e os reparos) aos resultados obtidos para a leitura em voz alta, na agenda do projeto Como fala, lê e escreve o universitário?, pode contribuir ainda mais para o desvelamento da saliência sociolinguística.

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  • 2
    A escala de apreciação social de Labov (1972LABOV, William. 1972. Sociolinguistic patterns. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press.) classifica os traços linguísticos em estereótipos (traços linguísticos socialmente marcados de forma consciente pelos falantes), marcadores (traços linguísticos sociais e estilísticos e que permitem efeitos consistentes sobre o julgamento consciente ou inconsciente do ouvinte sobre o falante) e indicadores (traços socialmente estratificados, no entanto, não são sujeitos à variação estilística)
  • 3
    Nesta etapa, vinculada à linha de fomento IntegraUFS 2019 para a Iniciação Científica, a equipe foi responsável pela documentação linguística, cujos resultados parciais são apresentados em Souza, Silva e Araujo Jr (2020SOUZA, Victor Rene Andrade; SILVA, Vitória Laís Santos; ARAUJO Jr., Mauro Monteiro de. 2020. Da Fala à Leitura: variação linguística na leitura em voz alta de estudantes da Universidade Federal de Sergipe. Porto das Letras, 6 (1): 167-99. ).
  • 4
    Diferentemente de Souza, Silva e Araujo Jr. (2020SOUZA, Victor Rene Andrade; SILVA, Vitória Laís Santos; ARAUJO Jr., Mauro Monteiro de. 2020. Da Fala à Leitura: variação linguística na leitura em voz alta de estudantes da Universidade Federal de Sergipe. Porto das Letras, 6 (1): 167-99. ), as ocorrências de monotongação em contexto externo em verbos não foram consideradas, pela ocorrência categórica da realização com ditongo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2019
  • Aceito
    21 Abr 2020
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