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Cenas da Enunciação

RESENHA REVIEW

Resenhado por/by: Luciana Salgado

PALAVRAS-CHAVE: texto; discurso; cenografia.

KEY-WORDS: text; discourse; cenography.

MAINGUENEAU, Dominique. 2006. Cenas da Enunciação. Organizado por Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, diversos tradutores. Curitiba: Criar Edições. 181p.

Desde 2005, estudantes e pesquisadores do discurso passaram a ter acesso à tradução brasileira de Genèses du Discours, obra fundadora do corpo teórico desenvolvido por Dominique Maingueneau, publicada na França em 1984. Em 2006, a mesma casa editora traz a público Cenas da Enunciação, com artigos do autor reunidos pela primeira vez, especialmente para essa edição.

Muito a propósito, o lançamento aconteceu durante encontro realizado na Universidade Federal de São Carlos, o I CIAD - Colóquio Internacional de Análise do Discurso, em outubro de 2006, quando, ineditamente, grupos de estudo de todo o território nacional puderam apresentar-se uns aos outros e mapear a produção brasileira na área, com direito a um expressivo contingente de inscritos e uma avaliação bastante positiva dos estrangeiros participantes sobre as práticas de análise desenvolvidas no país, sua riqueza de linhas teóricas, seu espraiamento por corpora variados e as interfaces com outros campos. Nesse contexto, as propostas teóricas de Dominique Maingueneau provocam debates interessantes, suscitando reflexões sobre as fronteiras da dita Análise do Discurso de linha francesa, que abriga atualmente uma grande diversidade de trabalhos.

Nos artigos ora reunidos, reafirma-se a noção fundamental de que os discursos não têm um centro específico, mas planos diversos que produzem, dinâmica e integradamente, os sentidos - a noção de semântica global. Com base nela, conceitos já tratados pelo autor são retomados como pressupostos ou pontos de partida para um passo adiante e novos conceitos são apresentados, compondo um conjunto que aprofunda delimitações anteriores e apresenta novas conceituações, sempre estribadas nos fundamentos de uma teoria que, desde Gênese dos Discursos, investe na operacionalização das análises discursivas de diferentes tipos de dado.

Considerando indissociáveis a produção textual e os quadros sóciohistóricos em que se produzem os textos, o autor pensa os discursos como práticas discursivas e, desse modo, assinala a relevância das formas de circulação das textualizações; numa sociedade de dimensões planetárias e de representações midiáticas, não há como a veiculação (os suportes e os modos de difusão) dos materiais lingüísticos ser desconsiderada na análise discursiva.

Em Cenas da enunciação, esses aspectos são manejados conforme as noções de cena (cena englobante, cena genérica e cenografia), que aparecem em todos os artigos, figurando como uma espécie de eixo em torno do qual se arranjam outros instrumentos analíticos. A cena da enunciação é, ao mesmo tempo, a fundação ou a atualização de um já dito e a legitimação, a validação daquilo que funda ou atualiza: todo discurso pretende convencer fazendo reconhecer a cena de enunciação que ele impõe e por intermédio da qual se legitima; entende-se por isso que o dito e o dizer se sustentam reciprocamente.

Tal paradoxo constitutivo abre possibilidades de análise, uma vez que permite abordar também dados não-típicos da Análise do Discurso "dos primeiros tempos". Daí decorrem discussões epistemológicas de grande interesse para os estudos da linguagem, sobretudo as referentes ao estatuto dos sujeitos (co-enunciadores) instituídos no discurso e as que tocam nas relações entre material lingüístico e material extralingüístico, contemplando a intrincada tessitura do interdiscurso.

Mas essa compilação de artigos tão recentes - foram escritos entre 1998 e 2006, e alguns deles comparecem aqui em versão inédita - não configura uma revisão do construto teórico de Maingueneau, como talvez se pudesse crer. Os organizadores de Cenas reuniram - e não sistematizaram - um pensamento analítico que se tem oferecido ao debate público em conferências, periódicos, anais de congresso e congêneres. Assim, os artigos coligidos não receberam uma introdução-guia ou um prefácio orientador de percursos, tampouco se fazem acompanhar de uma biografia ou de uma bibliografia esclarecedoras da obra de Maingueneau; em breve nota introdutória, os organizadores nos advertem de que, afora a tripartição de certo modo temática, nenhum critério chave-de-leitura é oferecido. Com simplicidade gráfica, seguem-se os artigos, sem instruções específicas da tripartição, que está sugerida apenas no sumário.

Na Parte I - Generalidades sobre Análise do Discurso, há dois artigos de caráter eminentemente teórico, um dos quais aborda o que Maingueneau chama de unidades tópicas e unidades não-tópicas da Análise do Discurso, com a evocação de elementos da Arqueologia do Saber (1969) de Foucault e disposições de Pêcheux desde o artigo "La sémantique et la coupure saussurienne" (1971). A partir dessa dupla paternidade da noção de formação discursiva de que muitos analistas se valem, o autor desenvolve pontos em que já tocou noutros textos, basicamente as noções de posicionamento, comunidade discursiva e genericidade. Deriva desse desenvolvimento uma reflexão sobre método em Análise do Discurso, sobre o lugar do analista e seus modos de coletar e recortar dados. Ainda nessa primeira parte, no segundo artigo, Foucault é retomado mais amplamente com vistas a se verificarem, feitas as ressalvas quanto a sua posição em relação à linguagem e à Lingüística, as idéias-força de sua obra que fizeram frutificar o campo de estudos do discurso.

Na parte II - Conceitos da Análise do Discurso, quatro artigos tratam de conceitos que o autor vem desenvolvendo nesta década: discursos constituintes, ethos discursivo e, bastante ligadas à atual circulação midiática - ou mediatizada - dos discursos e fortemente voltadas à análise de material textual de ampla circulação, as noções de destacabilidade, sobreasseveração, hiperenunciação e particitação. Esses artigos são marcadamente conceituações ou, noutros termos, construções em curso, novas delimitações baseadas no quadro já construído. Discutem-se os discursos constituintes, suas peculiaridades relativas à ligação entre operações linguageiras e espaços institucionais; o ethos discursivo, mobilizador de uma corporeidade afiançada por um tom que se desvela em certas manobras, com base nas quais se pode verificar que a interpretação não é mera decodificação, mas uma experiência da ordem do sensível, conjugação de controles e derivas; a ligação entre citação e destacabilidade, em que um enunciado se apresenta como digno de ser consagrado - antigo de direito, novo de fato - e se reproduz pela voz de um sobreasseverador, que não coincide com o enunciador do texto de origem e que, no entanto, se apropria de um traço desse texto, celebrizando-o; a hiperenunciação, forja dos destaques de enunciados-primeiros, que supõe uma comunidade discursiva da qual participam os interlocutores e, assim, certos modos de particitação que lhes permitem citar, tanto como autor individuado como em textualizações de caráter coletivo.

Na parte III - Trabalhos sobre corpora, problemas relativos à cenografia, aos discursos constituintes e à genericidade são tratados, em três diferentes trabalhos, com vistas à análise de materiais específicos. Não se discute a validade teórica das formulações conceituais em jogo; antes, pressupõese sua validade e parte-se para a observação dos dados, o que é um belo fecho para o livro, pois trabalhos de análise são especialmente bem-vindos no caso de conceitos e raciocínios teóricos que não são "velhos conhecidos de toda a gente".

No artigo "Cenografia epistolar e debate público", relações entre genericidade e cenografia são postas em relevo na confrontação do caráter privado da relação epistolar que cenografa uma campanha política, portanto uma publicização de pretensões. Em "O discurso das organizações internacionais: um discurso constituinte?", retoma-se a idéia de que a unidade pertinente de análise não é o discurso mas o sistema de relações entre práticas discursivas distintas, reciprocamente delimitadas; e a reflexão sobre o outro, o duplo, o interlocutor se desdobra na análise de documentos cujos autores são coletivos administrativos, e cuja voz se faz ouvir como unidade amigavelmente estabelecida, portanto irrecorrível, e, ao mesmo tempo, representativa de uma diversidade irredutível. Seriam discursos que se pretendem como Fonte? Em "Análise de um gênero acadêmico", a vinculação entre textos e lugares sociais é base para propor a consideração de gêneros conversacionais e gêneros instituídos como uma aproximação inicial dos tipos de genericidade; relatórios acadêmicos redigidos por bancas de defesa (na França) são examinados, permitindo levantar algumas questões sobre autoria e sobre o tênue movimento entre práticas de manutenção e práticas de ruptura nas atividades discursivas mais institucionalizadas.

Como se vê, o que faz desses nove textos um conjunto não é um ditame editorial nem são balizas didáticas. Possivelmente por isso, as traduções, assinadas, não foram submetidas a procedimentos de padronização, como a grafia de certos termos, por exemplo, ou formas de remissão interna - o que se poderia pensar desejável, uma vez que há relações teóricas importantes entre os vários artigos das três partes. Mas é fácil constatar que não se pretendia "ensinar a ler Maingueneau" ou apresentar uma nova ramificação da Análise do Discurso que procura amealhar adeptos. Ao contrário.

Os organizadores, que também participaram das traduções, fazem questão de registrar que não trabalharam nessa edição como quem sabe mais e generosamente indica a um público menos capaz quais são as boas trilhas de leitura, mas também não acreditam numa total liberdade dos leitores, o que, afinal, nos levaria a olhar para os livros, esse e todos os outros, como volumes acumulados indistintamente em qualquer estante. Faz diferença que esses textos circulem entre nós, e não há outra razão para o empreendimento dessa publicação, e essa diferença não se faria eventualmente melhor ou maior se se tentasse controlar um caminho de leitura e estudo dessas idéias de Maingueneau. A própria teoria põe em xeque qualquer dessas ambições: sendo as práticas discursivas constitutivamente heterogêneas e as interlocuções atravessadas por polêmicas e interincompreensões, entende-se que os fios dos discursos se entrelaçam pelas mãos dos interlocutores, e que seus gestos, algo idiossincráticos que são, trabalham em função de quadros semânticos estabelecidos historicamente, portanto moventes e passíveis de escapar - ou mesmo de se fazer escapar - do rigor almejado nas pesquisas. Nas palavras dos organizadores, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Então, eis os textos. A sorte está lançada, para sorte de quem estuda os discursos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2008
  • Data do Fascículo
    2008
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