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A manipulação da palavra

NOTAS SOBRE LIVROS BOOKNOTES

Por/by: Vilma Lemos

Doutoranda em LAEL, PUC-SP

BRETON, Philippe (1999). A manipulação da palavra. São Paulo: Loyola, 167 p.

Chama de imediato a atenção no livro de Breton o desejo de não limitar o estudo da manipulação da palavra ao campo de interesse exclusivamente lingüístico, aprofundando sua análise às conseqüências que tal manipulação traz à credibilidade do regime democrático e ao comportamento humano, quiçá se não a maior responsável pelo enclausuramento egoísta do homem de nossos dias.

Breton distingue argumentação de manipulação e classifica essa última em seus aspectos antidemocráticos de imposição de uma idéia sem debate prévio criterioso e livre aliada à privação da liberdade de resistir a essa coerção. Contesta a falácia do desaparecimento de causas dignas de defesa e, ipso facto, da necessidade de combater a manipulação das idéias que àquelas se contrapõem, dado que é característico do manipular a violência psicológica, a dissimulação e o recurso à cumplicidade do silêncio.

Historiando a origem da palavra, o autor verifica que somos os únicos seres do universo que utilizam a comunicação para convencer, e os únicos também capazes de mentir, fazendo crer com palavras o que os atos não confirmam. Está na base desse convencimento a noção da democracia ateniense e do direito romano, conseqüências da natural convicção humana de persuadir seu semelhante. O desenrolar da História comprova como o despotismo sucumbiu, com freqüência, à tentação de amordaçar a voz que se levanta contra o poder, mas como mesmo os tiranos mais empedernidos procuraram sempre convencer seus subjugados da validade de seus atos. O recurso mais moderno encontrado na 'arte' da persuasão despontou na metade do século XX com a publicidade, que visa a moldar as consciências segundo a sociedade de consumo e a cultura de massa.

No capítulo III acompanha-se a evolução do instrumento em que a palavra se transforma para alcançar persuadir eficazmente, ou seja, procede-se à história da retórica e à paulatina tecnicização desse instrumento, conforme a contribuição dos primeiros retóricos, de Aristóteles e dos sofistas. Como complemento indispensável, surgem – por contraste ao início da técnica de argumentação – os instrumentos técnicos de manipulação, aí incluída a escamoteação da informação.

Ao tratar da manipulação dos afetos, Breton contesta que o apelo ao aspecto "irracional" ou "afetivo" da comunicação seja de per si nocivo. "O apelo aos valores, um dos recursos da argumentação democrática, mobiliza os afetos em profundidade. As paixões fazem parte do convencer e só se pode desejar expurgá-las em nome de um racionalismo estreito que confundiria convencer e o ato de demonstrar, razão argumentativa e raciocínio científico. É preciso, pois, abrir espaço às paixões" (p. 64). A manipulação, entretanto, pretende criar a ilusão, confundir as qualidades do emissor da mensagem com a própria mensagem, fazendo crer que a autoridade (ou o encanto pessoal) de quem diz algo é aval indiscutível da veracidade do que é dito.

Quando o recurso não é esse, valem-se os demagogos da sedução pelo estilo, sendo a forma esmerada o substituto do conteúdo; ou da sedução pela clareza (!), em que a brevidade e o desatavio da forma buscam passar-se pela sinceridade da mensagem. Do arsenal à disposição da demagogia, cita ainda o autor a estetização das mensagens, a intimidação pela ameaça da força, a utilização de crianças como veículo da mensagem e, como efeito de fusões, a repetição (o slogan político), a sincronização de atitudes entre emissor e receptor e o toque físico como forma de predispor o receptor a uma aceitação inconsciente do que se lhe vai sugerir.

Em seguida à manipulação dos afetos, Breton aborda a manipulação cognitiva, isto é, uma expansão dos falsos silogismos que a tradição retórica reuniu. Afirma haver duas técnicas dessa espécie manipulativa: a do enquadramento e a do amálgama. Por enquadramento entende a utilização de elementos conhecidos e aceitos pelo interlocutor e sua reordenação de modo que se torna impossível opor-se à sua aceitação. No amálgama junta-se um elemento suplementar aos anteriores, de contribuição convincente. Em termos menos técnicos, do que se trata agora é de como desmascarar a matéria que pretende falar ao raciocínio e não mais à emoção. Os exemplos de mentiras veiculadas como verdade, de desinformação, de abuso e de exagero na acepção que se dá a palavras-chave são abundantes, particularmente no campo da propaganda comercial e política.

Após um capítulo de exemplificação em que resume as técnicas de manipulação dos afetos e da "lógica" (cap. VI), Philippe Breton entra na última parte do livro, em que discute os efeitos da manipulação nos receptores e as causas de ter-se tornado tão generalizada tal manipulação:

[Existe] "outro efeito, menos conhecido, da manipulação da palavra. Ela diz respeito a todas as situações em que, consciente da presença de manipulação no ambiente, mas sem capacidade de decodificá-la, o público se defende desconectando-se de toda palavra. É de supor que esse isolamento protetor gere múltiplos efeitos perversos. Muitas pessoas hoje, cansadas do que supõem ser tentativas repetidas de obter, contra sua vontade, seu assentimento a todo tipo de coisas, do consumo à política, chegando às relações de trabalho ou mesmo de amizade, escolhem o caminho do isolamento pessoal (...) proveniente de uma crise de confiança na palavra em geral" (:114). Como, então, não ser impelido à desconfiança social e à dúvida sistemática no que se refere à palavra do outro? Como afirmar sua interioridade, mantendo-a soberana nas tomadas de decisões, sem resvalar num auto-isolamento individualista? A resposta está no retorno ao cultivo do estudo da retórica, das técnicas 'honestas' de argumentação, convencimento e persuasão, sem desrespeito dos direitos do receptor, que – em benefício próprio e da sociedade em que vive – precisa aprender a fazer frente ao conformismo de massa que boa parte da mídia e quase toda a publicidade (a "ultima ideologia totalitária") querem impor-lhe.

Aprender a não ser influenciável ao mesmo tempo permanecendo disponível aos outros, deixando de ser destinatário passivo de um espetáculo e assumindo a função de ator que procura entender sem permitir que o enganem frustra a manipulação, engrandece aquele que a isso se dedica e o faz voltar a sentir-se um homem livre. Nesse sentido, o livro de Breton vale como os manuais a cujo retorno somos convidados e nos oferece uma independência de saber que verdadeiramente se constitui numa forma de ética.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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