Acessibilidade / Reportar erro

Conversa de pátio com o Professor Aryon

Garden conversation with Professor Aryon

Falem a verdade, quantos de nós já não fomos agraciados com uma boa e franca conversa com o Professor Aryon 1 1 Desde já peço desculpas pela informalidade que – vez ou outra – utilizo para me referir ao Professor Aryon Rodrigues. Acontece que sempre me senti tão à vontade com ele, que nos tratávamos, simplesmente por "você". Coisa que sempre me deixou bastante contente pois, naqueles momentos, tinha a certeza de que a recíproca era verdadeira. ? De fato, se nos pedirem para defi nirmos quem foi Aryon Dall'Igna Rodrigues, certamente teremos de fazer menção a esta característica de sua personalidade: era extremamente acessível. Não se furtava a uma boa (e gratuita) aula de linguística. Especialmente, se o tema da conversa era dentro de sua especialidade. Sem dúvida, nesse caso, lá estaria ele a fazer aquilo que fazia muito bem: discorrer animadamente para o interlocutor, às vezes esquecendo-se do tempo. Este foi um dos grandes presentes que o Aryon nos deixou, sua simplicidade e uma enorme predisposição para atender ao outro. Em uma palavra, um Professor, com P maiúsculo. Generoso, Aryon tinha, e demonstrava que tinha, força e amor sufi cientes para ser um professor. A ele, mais uma vez, meu muito obrigado pela aula particular sobre léxicoestatística e glotocronologia, que ora se torna pública.

A entrevista que se segue se deu no pátio da Universidade Federal Fluminense – UFF, em 07 de maio de 2000, durante o XV Encontro Nacional da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Linguística)2 2 Aproveito para agradecer à professora Marilia Facó, do Museu Nacional, naquela época minha orientadora, pela sugestão dessa entrevista. . Naquela época, estava finalizando minha dissertação de mestrado, trabalhando com comparação das línguas da família Pano. Por sugestão da Professora Marilia Facó, procurei o professor Aryon para me auxiliar em dois temas. O primeiro era a diferença entre Léxicoestatística e Glotocronologia. O segundo, vincula-se a algumas inquietações minhas com relação ao – chamemos assim – "binarismo" do método da Léxicoestatística. Assim, sem muita cerimônia, perguntei ao Aryon se poderia gravar a conversa. O que ele aceitou de bom grado. Nos conhecíamos de vista desde a década de 1980. Obviamente, já o conhecia como autor de estudos relacionados a línguas indígenas, especialmente sobre a questão da comparação e classificação de línguas. Acho que a primeira vez que o encontrei foi no Museu do Índio do Rio de Janeiro onde eu fui estagiário do Setor de Linguística, ali na Rua das Palmeiras, Botafogo. Provavelmente, o ano era 1986. Eu fazia graduação em História, na Universidade Federal Fluminense e, me lembro que, naquela ocasião, conversamos (entre outras coisas) sobre o Summer Institute of Linguistics – SIL e sobre a presença missionaria no Brasil, de modo geral. Desde então, passei a admirar aquele professor que, atencioso com todos, conseguia ser tão tranquilo, amável e profissional.

É com muito prazer, portanto, que compartilho esta hora que passei com o professor, no ano 2000, transcrevendo, quase que literalmente, a nossa conversa, para tentar não perder nada do sabor da sua prosa entusiasmada e bem humorada que, tenho a certeza, muitos reconhecerão e recordarão com saudade.

Elder – (...) Niterói, sete de junho de 2000... tá bom. Queria que você me falasse, então, do que for possível... é..

Aryon – Bom, a ideia da glotocronologia, você já leu a respeito dela, não é?! A ideia que foi inspirada na cronologia arqueológica com carbono 14...

E – (...) isso... com carbono 14. A ideia de que você pode perder, gradativamente algo...

A – É, uma perda gradativa de matéria, mas regular ao longo de espaços de tempo muito largos, permitindo uma datação. Isso deu ao Swadesh3 3 Morris Swadesh foi um linguista norteamericano que, na primeira metade do século XX, aplicou métodos de linguística histórica ao estudo de línguas indígenas americanas. a ideia de que, se o léxico de uma língua fosse se alterando regularmente, já que se altera sempre, e pelo que se tem conhecido, empiricamente, por toda a história de línguas, né? O léxico vai se alterando por substituições lexicais. Não é? Se se alterasse regularmente, numa constante, não é?... permitiria um datação desde o tempo em que duas línguas se separaram no passado. E, então, ele resolveu testar várias situações. Porque a gente tinha línguas historicamente documentadas, datadas historicamente, para ver se isso era constante realmente. Usou línguas indo-europeias. Usou, por exemplo, latim de Plauto, que é de 400 anos antes de Cristo, com o francês de Moliere, que é de 1500 anos depois de Cristo. Não é?... então, praticamente 2000 anos de diferença. Né? Pegou Moliere porque, justamente, é um autor de peças teatrais, como Plauto, dramaturgo. E, assim, ele pegou também o grego antigo, do tempo de Platão, 500 anos atrás.

E – (...) a Ilíada?? Ele pegou o texto da Ilíada? Do período Homérico... Ou textos depois da Ilíada??

A – Não, não pegou a Ilíada porque tem problemas de datação. Ela teve um período longo de tradição oral. Não se sabe se a língua que está ali é exatamente aquela... ou se houve substituições já. Né?...

E – tem uma continuidade daí até...

A – Uma continuidade segura... então fez disso até um dos dialetos do grego moderno. E... fez também com o chinês antigo para o chinês moderno.

E – utilizando as várias possiblidades de ...

A – Ah, sim, não adiantava ficar numa família linguística só. Senão poderia obter uma constante para aquela família, não é?? E, assim, também utilizou dados do egípcio antigo lá de quatro mil e tantos anos atrás, e a língua copta, da época de Cristo. Ou posterior à época de Cristo, copta é já da era cristã, que agora não se fala mais, mas até o século passado se falava ainda. Que é a continuação do antigo egípcio.

E – Mas aí a grafia não era hieroglífica ???

A – Não, hoje em dia tem-se interpretação fonética da grafia hieroglífica. Com exceção de algumas vogais que você não sabe bem qual é a coloração dela, o timbre delas, então se escreve schwa em tudo... (risos...). Mas, para você identificar cognatos, tendo o esqueleto consonantal, você consegue identificar cognatos.

(nesse momento, vemos se aproximar a Professora Miriam Lemle... pequena pausa para saudação)

A – E... então ...

E – A partir desse conjunto de línguas, se fez, se desenvolveu o método...

A – Então, uma quantidade de casos assim foram levantados, comparados e tal. Reduzidos a um período de tempo de mil anos. Quer dizer, primeiro se pegou uma faixa mais extensa de tempo, mas depois se projeta isso para mil anos. E se verifica qual a porcentagem de substituições que houve... do léxico. E aí é que viu (ele Swadesh) que havia uma constante. Em mil anos a coisa girava em torno de setenta e poucos por cento de manutenção do léxico antigo. Vinte e tantos por cento de renovação. Não é?? Então, visto isso, aí animou-se para fazer mais. Fizeram mais cálculos para calcular então ... se você tem... uma amostra de vocabulário... montar uma amostra de vocabulário que pudesse conectar com isso. Então um dos pontos para se construir esse vocabulário foi que fossem, essas palavras o mais possível livres de influências culturais. E então se usou partes do corpo humanos, nomes de elementos da natureza, que existem universalmente, não é?... Assim mesmo entraram algumas coisas que não são universais. Mesmo na lista pequena que depois foi reduzida, para melhorar, não é? tem ‘cachorro’, por exemplo.

E – É... é verdade...

A – E cachorro não é universal. Os índios americanos, tirando os dos Andes, não tinham cachorro. Cachorro foi introduzido. Hoje tem os nomes, mas não tem o cachorro não, esse é introduzido. Esse nome é, em grande parte, o nome da ‘onça’, nome de outro bicho, e tal... ou nome onomatopaico. Quer dizer, hoje em dia o cachorro é praticamente universal. Infelizmente, o índio antes de ser contatado pelo ‘branco’ é contatado pelo cachorro...

(risos).

E – É, mesmo ‘água’, por exemplo, você tem situações de .. ‘água’ simplesmente, e ‘água de rio’ diferente de ‘água de beber’, ou ‘água potável’...

A – (...) justamente, você tem ‘água em contêiner’, ‘água em vasilha’, que é diferente de ‘água na natureza’. Então, há línguas que distinguem, que têm várias palavras para ‘água’. Então, como você vai escolher qual a palavra para água. Não é?...

(Nesse momento, Ana Suelly aparece, informando que a programação seguiria no auditório da Faculdade de Letras da UFF. Então, pergunta se ele, Aryon, iria para lá depois da entrevista. )

E – Palavras como ‘nuvem’, ‘nevoeiro’.. talvez...

A – Não... não... nuvem tem em todo o mundo. Não é? Não há região sem nuvem, mas, por exemplo, neve. Não é?. Então, coisas assim não são universais, não. Então foi feita a lista. Com relação a numerais, primeiramente, ele tinha posto numerais até dez, porque as línguas indo-europeias, todas elas, combinam belamente contagem com base dez.

E – Isso, contagem em base decimal...

A – Mas, está cheio de língua no mundo que conta só até dois, três ou quatro. Não é?. Não tem nomes de números para cima disso.

E – nessas línguas, muitas vezes, dá para se ter uma ideia de que tem uma base binária. (obs.: O caso de kaxinawa – Pano). Já o Karajá é de base cinco.. é é..

A – Quinária ...

E – quinaria... Isso, em Karajá, você tem "sohoji", "inatxi", "inataõ", "inaubiowa" depois "iruyre", para os cinco primeiros algarismos... Depois "debò sohoji reuro", "debò’ inatxi reuro" ... e "debò’" é a palavra para ‘mão’...

A – (...) Isso! ‘debò’ ‘é mão, em Karajá. Não é?... Como também ‘cinco’, o ‘cinco’ indo-europeu é ‘punho’. O nosso ‘cinco’ que vem do ‘quinque’ do Latim que, por sua vez, vem de ‘penque’, não é?... que é cognato de ‘pugnu’, que é ‘punho’.

E – Ah... é a mesma ideia (da mão para o número cinco)...

A – Isso, essas coisas são bastante universais, não é?... mas o .. Então, foram feitos cálculos estatísticos para ver se numa amostragem de tantos itens, não é?.. Como se projetava aquela questão da constante. Então se calculou a constante para essas listas, assim, a partir do pressuposto de que esse vocabulário fosse constante mesmo. Mas, como se fez o cálculo estatístico, com margem de erro: tantos por cento a mais ou a menos. Estimou-se uma margem de erro, determinada, como faz o pessoal de estatística ... e aí começaram as datações. E só que começaram a surgir as dúvidas. Por exemplo, o pessoal de línguas românicas fez algumas aplicações com várias línguas românicas, com o português antigo e o português moderno, o espanhol antigo e o espanhol moderno, italiano ... e tal e coisa... e acharam que não ... que variava demais. Em domínios em que se tinha datação exata, históricas, não é?... Mas.. então... ficaram descrentes...

E – ... da eficácia da glotocronologia em estabelecer datações ...

A – ... em estabelecer datações... portanto, da glotocronologia, se a léxico-estatística permitiria fazer uma glotocronologia de fato. Depois o pessoal também lá dos países nórdicos, também fizeram com norueguês, dinamarquês, islandês ... e tudo, e tal e... também levantaram dúvidas sobre várias aspectos da coisa e... teve gente que embarcou completamente. Teve, por exemplo, o Isidoro Dayan, um linguista norte-americano que trabalhava com línguas da Polinésia, e fez uma glotocronologia das línguas da Polinésia, lá, não é?... confiando inteiramente em que o método estivesse dando para ele as datações ... Eassim, por diante. Eu mesmo nunca usei. Às vezes, o pessoal diz que eu usei glotocronologia, mas não usei. Eu usei léxico-estatística, e isso eu digo claramente no meu ... naquele meu trabalho de construção, não de reconstrução, mas de projeção do tronco tupi. Não é?... que, inclusive as ramificações das famílias, aí que eu usei a,... aí que eu falo da tabela de classificação ... Mas eu usei apenas estatisticamente, sem projetar datações! Agora, no fim do trabalho, eu sugiro uma antiguidade de seis mil anos, mas, em termos comparativos com a família indo-europeia. Não é?... quer dizer, estimando que o grau de diversidade encontrado entre as várias famílias do tronco tupi, impressionisticamente, assemelha-se ao grau de diferenciação entre as famílias e sub-famílias do indo-europeu. Quer dizer, então... deve ter cerca de seis mil anos. O indo-europeu data-se de seis mil anos, mais ou menos. Mas também é estimado também não por glotocronologia, mas por...

(Ohh... mas vocês sumiram???!! Onde vocês estavam ??? (nesse momento, se aproximam alguns amigos e interrompemos a gravação por uns minutos).

E – Bom, estávamos falando da confecção do método... da glotocronologia ...

A – Pois é... aí Swadesh fez isso, durante uns dez anos a coisa ficou ainda bastante viva... todo mundo falando dessa nova metodologia... aquele meu trabalho mesmo, que eu publiquei em alemão, porque foi uma conferência que eu fiz na Universidade de Hamburgo, não é?... chama-se Eine neue Datierungsmethode Der Vergleichende Sprachwissenschaft4 4 (RODRIGUES, A. D. Eine Neue Datierungsmethode Der Vergleichenden Sprachwissenschaft. KRATYLOS, KRITISCHES BERICHTS - UND REZENSIONSORGAN FÜR INDOGERMANISCHE UND ALLGEMEINE SPRACHWISSENSCHAFT, WIESBADEN, v. 2, n.1, p. 1-13, 1957.) ... Um Novo Método de Datação da Linguística Comparativa. Ninguém na Alemanha sabia nada disso, naquele tempo, não é? Então foi a primeira vez que se apresentou o método do Swadesh. E aí, me pediram para publicar naaa... numa revista que se publicava na Suíça, que é justamente uma revista de linguística Indo-europeia: Kratylos! ‘... é o nome do livro do Platão, e... então, saiu publicado lá. Agora... e, lá, justamente eu já faço algumas considerações críticas, de que não se devia mesmo confundir glotocronologia com léxicoestatística. Que é uma coisa que pouco depois tinha gente fazendo... já antes um pouco... né, a Sarah Gudschinsky, era do Summer Institute of Linguistics, mas era uma linguista muito inteligente, né, doutorado na Pensilvânia, em linguística histórica, justamente, com trabalhos sobre línguas do México. Depois foi que veio pro Brasil aqui, para ser a primeira técnica do Summer aqui. E ela tinha publicado na revista Wordum artigo longo, chamadoo...

É o Marcus Maia lá?

E – ... É, é ele... será que está vindo para cá?

A – Chamado The ABC’s of Lexicostatistics5 5 GUDSCHINSKY, SARAH C. The ABC’s of Lexicostatistics. (Glottochronology). Word, 12, 175–210. . O ABC da Léxicoestatística, mas era sobre glotocronologia, não era sobre léxicoestatística em geral. Não, não era... Então ela contribuiu para chamar a lexicoestatística de glotocronologia, confundindo os nomes, né... Mas eu já distinguia na hora. Não se deve confundir, e eu, por exemplo, usei léxicoestatística e não usei glotocronologia. Na época, a minha razão foi que os materiais linguísticos eram tão precários, aqui, aqueles que a gente dispunha para comparação, vocabulários colhidos pelo pessoal da Comissão Rondon, por missionários antigos, e tudo isso, não é? Que você não tinha um banco de dados confiável para fazer uma coisa fina de datação... Então, eu renunciei a isto.

E – para o trabalho da léxico-estatística, existe alguma lista estabelecida... por exemplo, no trabalho do Swadesh ele estabeleceu uma lista de controle em termos de ... de conteúdo semântico, não é?...

A – É, o controle é sobretudo semântico, porque o espírito da lista do Swadesh é que a perda, o deslocamento de vocabulário, se dá quando para o mesmo conceito, entra outra palavra, outra forma fonológica, não é? Aí há uma substituição lexical. Mas a referência não são os cognatos propriamente. Por que o cognato, quando a palavra muda de sentido, ele vai lá para adiante no léxico, e está lá como cognato. E.., como o português, por exemplo, do latim ‘caput’ , cabeça, que em português deu ‘cabo’. Mas ‘cabo’ agora só tem como ‘cabo de vassoura’, ou o ‘cabo no exército’, ou ‘cabo de guerra. Mas como parte do corpo, você não tem mais. Então o que entrou no lugar de ‘caput’ foi ‘cabeça’. Aí, houve uma mudança. No caso, ainda é cognato em português, pois ‘cabeça’ é um derivado de ‘caput’. Não é? ‘Caput’ genitivo ‘capitis’, aí tem uma forma ‘capitia’, que se formou, derivada. Agora, há casos em que, foi-se embora... e entrou outro que não tinha nada que ver. Não é? Como ... o que, por exemplo? Como ‘testa’, que em latim era ‘frons’ , ‘frontem’. Que devia dar em português ‘fronte’. Mas, para parte do corpo, como termo erudito, a gente usa, mas no português popular, foi substituído por ‘testa’. Agora, ‘testa’ o que que era em latim? Era ‘tampa de pote’ e ‘caco de pote’ também. Essa parte abaulada... então, justamente, como já até ouvi gente falar hoje, não é? ‘Caco’ para ‘cabeça’... "ele encheu o caco!!" (risos...).

E, então, aí mudança lexical, mas nesse sentido, a referência é o conceito. O conceito é o mesmo, saiu uma palavra e entrou outra no lugar. Quer dizer, saiu uma forma fonológica e entrou outra. Aí, houve substituição lexical. Então não é cognata. A nova forma fonológica não é cognata da latina. ‘Testa’ não é cognata de ‘fronte’. Nesse sentido, o básico do vocabulário é você ter os conceitos bem precisos, do vocabulário a preencher, aquele do teste de Swadesh e, de vez em quando, temos problemas, justamente quando você tem mais de uma ‘água’, como é que você vai preencher, não é? Então, qual você vai usar?

E – se teria de prever todas essas possibilidades... mas talvez outras línguas não teriam todas essas formas...

A – Mas aí, se você está trabalhando com línguas aparentadas – ou supostamente aparentadas, como as línguas Pano, por exemplo – então, a questão é usar o mesmo critério para todas as línguas. Então se você pega, pegaaa... ‘hone’ (['hõna]). Como é que é?

E – ‘hona’..(['hõna]) ‘água’

A – ‘Hona’ (['hõna]), para ‘água’, não é? E ... não ‘upash’ (ũ'paS), ou coisa assim, não é?...

E – Desculpa... mas ‘Hona’ (['hõna]), é em manchineri6 6 Nesse momento, recuperávamos parte do que eu havia apresentado naquela manhã. Justamente questões como essa, de encontrar famílias linguísticas que possuem substituições lexicais, como na família Pano, onde encontramos [ũ'paS] para ‘água’, em jaminawa, e [wa'ka?] em Yawanawa. Ao mesmo tempo, ainda do Acre, tínhamos exemplos de línguas que, fazendo recortes diferentes da mesma realidade, possuem termos diferentes para ‘água’. No caso, Manchineri tem termo para ‘água do rio’, na natureza e ‘água potável’. . É,hini ou [ini]...

A – É, depende da língua em que você está pensando...

E – É, em Kaxinawa pode ser [hˆ>nˆ] e[u)>paS], em Jaminawa... [wa>ka/] em Yawanawa, onde também se conhece ‘hona’ [>ho)na] como ‘caldo’...

A – Pois é. Então, se você toma como referência o [>ho)na], aí o [u)>paS] e aquele outro lá. Então, vão ser substituições. Vão ser ‘não cognatos’. E assim, então ...

E – Mas a questão que eu perguntei é se existe alguma lista para a, para a léxico-estatística??

A – Não, para a léxico-estatística, em geral, não existe a lista... existem várias listas. Por exemplo, a "listinha" de quarenta palavras do Loukotka7 7 Se refere aqui a Čestmír Loukotka,1968. Classifi cation of South American Indian Languages. . Ela é listinha de comparação léxicoestatística, porque o que ele fazia era contar o número de palavras que ele estimava como sendo cognatas, não é? E o número de palavras estranhas. Então, pelas "estranhas" é que ele... a abordagem do Loukotka era diferente: pelas "estranhas" é que ele distinguia, se tinha até tantos por cento de palavras estranhas, então, tinha "vestígios" de outra língua. Se tinha um pouco mais, então tinha "intrusão" de outra língua, não é? Isso é uma coisa que só ele fez, e ninguém fez, e ninguém quer fazer mais. Mas ficou, não é? Só que tem gente aqui que fica pegando a lista do Loukotka e... e querendo usar de novo. Fica um pouco estranho isso hoje em dia, não é? Agora, um ... bom, com relação às listas, assim, não existem (umas pré-estabelecidas)... mas tem, por exemplo, um trabalho do Gleason... sabem qual é, Gleason, Henry Gleason JR8 8 Henry Allan Gleason JR, é autor de diversos trabalhos em linguística, como: Gleason, H. Allan. 1955a. Introduction to descriptive linguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston. (Revised edition: 1965); e Gleason, H. Allan. 1955b. Workbook in descriptive linguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston. (Revised edition: 1967). , autor de um excelente livro de introdução a linguística, publicado em inglês, ele é americano, não é?... e é de linguística estruturalista, não é? A primeira edição saiu antes do advento do gerativismo, depois, já numa segunda edição, ele acrescentou um capítulo sobre transformações, porque já estava se desenvolvendo a ideia do Chomsky, né? Mas, nesse livro, o que é muito claro e eu usei muito como livro didático para os alunos e tal, fazendo cópias de capítulos para eles, tanto sobre fonêmica, como sobre morfologia, e tudo isso, e tal... Este, mas ele, não no livro, mas ele tem um artigo na revista Anthropological Linguistics, sobre estatística lexical. Sobre várias possibilidades de se utilizar estatística lexical para classificação linguística. Então, ele dá umas dez possibilidades de uso, então, esse é um artigo que vale a pena ver. A revista, Anthropological Linguistics, é possível que você tenha na biblioteca do Museu Nacional, não sei se tem... ou na biblioteca da Faculdade de Letras, lá no Rio. E... a da UnB tem, aqui em Brasília, a coleção... porque é uma revista que se publica até hoje ainda. Antes se publicava na Universidade de Indiana, e agora está sendo publicada... na... ainda na Universidade de Indiana. Continua, não é?... Então, esse é um artigo muito interessante porque ele trabalhava com línguas africanas, mas ele fez um.. um estudo de possibilidade de utilização e de como obter os resultados, avaliar os resultados das várias situações em que se pode ver se essas duas línguas são mais próximas, essas mais afastadas. E tudo isso, e tal, não é?... E, agora, para a glotocronologia, ou lexicoestatística e glotocronologia, esse artigo da Sarah Gudschinsky é muito bom. Que é "o ABC da Léxico-Estatística", The ABC’s of Lexicostatistics, que está publicado na revista WORD, que é uma que também, provavelmente, você encontra numa das bibliotecas lá do Rio. WORD é revista do círculo linguístico de Nova Iorque, não é?...

E – Essa revista eu não vi. Conheço de nome, mas nunca tive em mãos. É... uma pergunta que eu gostaria de fazer a você. É o seguinte: o Sr. já fez algum trabalho em que você combinasse lexicoestatística com, por exemplo,... o que eu quero fazer aqui... e esse é apenas uma parte – com... a análise de processos fonológicos?? Ou tentando hierarquizar processos, no sentido de que... entendo-os como diacrônicos ...

A – Não, eu acho que... não, assim, não. Eu tenho feito o estudo fonológico. De diferenciação fonológica. Ainda agora, recentemente, saiu um trabalho... o artigo é conjunto, é meu e do Wolf Dietrich, lá da Alemanha, mas ele fez a parte morfológica e eu fiz a parte fonológica das relações entre Maué e Família Tupi-Guarani. E, aí então, eu tenho a parte toda de ... de comparação e reconstrução fonológica, não é?... e depois uma seção de discussão de problemas fonológicos específicos, outra de discussão de problemas lexicais específicos, não é?... Que está na revista Diachronica. Não sei se vocês têm lá no Rio? Se chama ‘Diachronica’, com CH, que é publicada em Amsterdam, pela editora John Benjamins. Então, no volume de 1997, saiu este artigo. Agora, eu tenho um estudo que apresentei numa reunião da SSILA9 9 Aqui se refere a Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas (SSILA). . Lá no Novo México, em 1995, sobre reconstrução das consoantes glotalizadas em Proto-tupi.

E – Eu acho que vi isso... como notícia, no boletim da SSILA.

A – ... esse não está publicado, não... só noticia, talvez... Mas aí eu posso te mandar o texto, né?

E – eu acho que sou... ou ainda sou.. membro da SSILA. Eu ainda recebo a correspondência...

A – é.. eles são muito liberais. O pessoal fica devendo, e eles continuam mandando a correspondência.

E – Mas eu mando regularmente, o envelopezinho...

A – Ah, então você é membro. Mas então, aí, esse dá ideia também do que a gente pode fazer com as línguas daqui... mas em termos fonológicos. Mas não de regras não, porque quem trabalha com linguística gerativa, linguística diacrônica, geralmente ... são regras, mas não são formuladas como regras gerativas não, ou regras de fonologia auto-segmental, nada disso. Simplesmente correspondências, regras de correspondências fonológicas.

E – ... isso passou a aquilo na outra situação...

A – Pois é, ... é o que eu tenho para mostrar.

E – Pois é, a minha ideia, quando eu fui procurar a Marília para fazer isso, era entender se essas teorias, dentro da área de fonologia, ser viriam para entender esses processos fonológicos. Por exemplo, essa ideia da geometria de traços... de Clements e Hume 95, em que você pega um segmento e "esmiúça" ele, em uma árvore, dizendo, "eles são hierarquizados... eles não são aleatórios"...

A – Pois é, mas isso você pode, evidentemente, pode contribuir para você entender certas mudanças fonológicas que houve. Mas só uma vez que você tenha identificado as mudanças. Não serve para você identificar... Então, você tem de ter uma fase de identificação – que é uma fase, na verdade de certa natureza, descritiva – para então você ter os problemas que você vai querer pensar teoricamente. Por exemplo, nas línguas da família Tupi-Guarani. Então você constata que você consegue reconstruir um sistema fonêmico, ou fonológico, não importa o nome aí... para o proto Tupi-Guarani. Então a gente sabe: o proto Tupi-Guarani tinha seis vogais: / i /, / ˆ /, / u /, / E /, / a /, / ç /, não é? Esse "sistemazinho" de seis, assim bem regular, que a maioria das línguas da família ainda tem até hoje. Não todas, por que há várias que compactaram as posteriores. Então você tem só uma posterior arredondada. Que tanto faz você representar por / ç / ou por / u /, porque é um espaço grande, geralmente, há uma oscilação alofônica, porque tem mais espaço ali. Mas, mantendo as duas oposições anterior e central: / i / x / E / e / ˆ / x / a /. Mas agora, então – e eu até já escrevi sobre isso – eu estou com alguma reserva. Se o proto Tupi-Guarani não seria justamente de cinco vogais... E que, ao invés de ter havido compactação em algumas línguas, tenha havido é uma... um desenvolvimento de contraste em outras línguas, que acabaram dividindo o espaço posterior em dois. Mas... por que agora começam a aparecer evidências no sentido contrário, que é das outras famílias do tronco Tupi, em que predomina o sistema de cinco, e não de seis ...

E – Essa sempre é uma questão: o que se diz que é a forma mais antiga???

A – Justamente, essa é uma questão que você tem de verificar, em função de cada vez, juntar mais elementos para ver, e procurar evidências... Então, o que está me dando a pensar que Tupi-Guarani talvez fosse de cinco, e não de seis, é quando a gente nota que o... as palavras que têm / ç / no Tupi-Guarani, geralmente...

E paramos a gravação, por conta da continuidade do evento. Não tínhamos mais tempo. Contudo, continuamos, ainda, por alguns minutos, enquanto caminhávamos, a conversa sobre as possibilidades de estabelecer as formas primitivas, ou proto-formas das vogais em uma língua. Por exemplo, na família Pano, temos quatro vogais para as línguas Jaminawa, Kaxinawa, Kaxarari, Poyanawa, Marubo, Shanenawa, Katukina e Arara: / i /, / ˆ /, / u / e / a /. Já para Matses, temos seis vogais: / i /, / ˆ /, / u /, / E /, / a /, / ç /. E, finalmente, Matis, apresenta um quadro de sete vogais: /i /, / ˆ /, / u /, / E /, / a /, / ç / e / ´ /.

Lembro que, finalmente, falamos sobre a inquietação de se estar trabalhando com um método de "contabilidade linguística" que considera apenas "zero" e "um", uma vez que o método da lexicoestatística trabalha somente com a informação "ser ou não ser cognato". Questionamos se não seria possível e interessante um "refinamento" desse método. Isso passaria pelo exercício de carregar informação segmental, aproveitando-se de teorias mais recentes de descrição fonológica, como por exemplo, a geometria de traços. Assim, teríamos – grosso modo – entre os valores "zero" e "um" da léxico-estatística, "não cognato" e "cognato", respectivamente", alguma coisa como um gradiente de "ser cognato". Para isso, deveríamos assumir que determinadas formas fonológicas eram mais distantes umas das outras, mesmo sendo ainda consideradas cognatas. Mas, essas foram considerações que ainda mantivemos ali, sem gravar, e também em outras ocasiões.

Naquele momento, naquela conversa com o Professor Aryon, eu não pretendia ter ou fazer uma entrevista no sentido jornalístico do termo. Pretendia apenas registrar algumas de suas ideias, aprender, conversar com ele sobre a história, sobre o desenvolvimento da léxicoestatística e da glotocronologia. Éramos, naquele pátio, apenas duas pessoas, professor e aluno, conversando sobre um tema de interesse comum.

Sem medo de ser repetitivo, agradeço ao Aryon por aquele momento. Para além de aprender sobre a construção do método léxicoestatístico e sobre a glotocronologia, tive uma excelente lição de como ser um professor: com generosidade e paciência. É, Professor Aryon, você vai fazer falta.

  • 1
    Desde já peço desculpas pela informalidade que – vez ou outra – utilizo para me referir ao Professor Aryon Rodrigues. Acontece que sempre me senti tão à vontade com ele, que nos tratávamos, simplesmente por "você". Coisa que sempre me deixou bastante contente pois, naqueles momentos, tinha a certeza de que a recíproca era verdadeira.
  • 2
    Aproveito para agradecer à professora Marilia Facó, do Museu Nacional, naquela época minha orientadora, pela sugestão dessa entrevista.
  • 3
    Morris Swadesh foi um linguista norteamericano que, na primeira metade do século XX, aplicou métodos de linguística histórica ao estudo de línguas indígenas americanas.
  • 4
    (RODRIGUES, A. D. Eine Neue Datierungsmethode Der Vergleichenden Sprachwissenschaft. KRATYLOS, KRITISCHES BERICHTS - UND REZENSIONSORGAN FÜR INDOGERMANISCHE UND ALLGEMEINE SPRACHWISSENSCHAFT, WIESBADEN, v. 2, n.1, p. 1-13, 1957.)
  • 5
    GUDSCHINSKY, SARAH C. The ABC’s of Lexicostatistics. (Glottochronology). Word, 12, 175–210.
  • 6
    Nesse momento, recuperávamos parte do que eu havia apresentado naquela manhã. Justamente questões como essa, de encontrar famílias linguísticas que possuem substituições lexicais, como na família Pano, onde encontramos [ũ'paS] para ‘água’, em jaminawa, e [wa'ka?] em Yawanawa. Ao mesmo tempo, ainda do Acre, tínhamos exemplos de línguas que, fazendo recortes diferentes da mesma realidade, possuem termos diferentes para ‘água’. No caso, Manchineri tem termo para ‘água do rio’, na natureza e ‘água potável’.
  • 7
    Se refere aqui a Čestmír Loukotka,1968. Classifi cation of South American Indian Languages.
  • 8
    Henry Allan Gleason JR, é autor de diversos trabalhos em linguística, como: Gleason, H. Allan. 1955a. Introduction to descriptive linguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston. (Revised edition: 1965); e Gleason, H. Allan. 1955b. Workbook in descriptive linguistics. New York: Holt, Rinehart and Winston. (Revised edition: 1967).
  • 9
    Aqui se refere a Society for the Study of the Indigenous Languages of the Americas (SSILA).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2014

Histórico

  • Recebido
    Jul 2014
  • Aceito
    Ago 2014
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br