Acessibilidade / Reportar erro

Estudos Saussurianos Hoje

Saussurean Studies Today

RESUMO

O presente volume reúne alguns dos trabalhos apresentados no primeiro encontro (2014) do então recém-fundado GT da Anpoll, Estudos Saussurianos, que tem por objetivo reunir pesquisadores brasileiros e estrangeiros dedicados ao estudo do sistema conceitual saussuriano. Grande parte dos textos aqui apresentados enquadram-se no que se convencionou chamar “filologia saussuriana”, que compreende um esforço de reconstituição do pensamento de Saussure a partir de textos publicados ou manuscritos do autor. Além desse campo de estudo, podemos ler igualmente trabalhos que procuram refletir sobre a relevância da teorização saussuriana para as análises nas áreas da Aquisição e Clínica de Linguagem. Um e outro grupo de artigos oferecem ao leitor uma amostra do efeito irradiador do pensamento saussuriano que, como sabemos, ultrapassa a fronteira da linguística para exercer um papel renovador na reflexão das ciências humanas em geral.

Palavras-chave:
Estudos saussurianos; Filologia saussuriana; Curso de Linguística Geral; Manuscritos saussurianos; Ferdinand de Saussure

ABSTRACT

This volume brings together some of the works presented at the first meeting (2014) of the newly founded Anpoll work group Saussurean Studies, which aims to gather Brazilian and foreign researchers dedicated to the study of the Saussurean conceptual system. Most of the texts herein presented fit into what is called “Saussurean philology”, which includes an effort to reconstitute Saussure’s thought derived from the author’s published texts or manuscripts. In addition to this field of study there are other works that seek to reflect on the relevance of Saussure’s theory for the analysis in the areas of Language Acquisition and Language Clinics. Both groups of articles offer the reader a sample of the irradiating effect of Saussure’s thought, which, as we know, goes beyond the frontier of linguistics to renovate reflexion about the human sciences in general.

Key-words:
Saussurean studies; Saussurean philology; Course in General Linguistics; Saussurean manuscripts; Ferdinand de Saussure

1. Um lugar para os estudos saussurianos

Esta edição especial da Revista Delta reúne trabalhos de pesquisadores brasileiros de diferentes instituições que têm em comum o interesse pelos estudos saussurianos em um momento particularmente importante, quando representações em torno do “pai da linguística moderna” são retomadas, impulsionadas pela descoberta de novos manuscritos do autor - sobretudo aqueles encontrados na segunda metade da última década do século XX (1996) - e pelas celebrações dos centenários de morte do mestre genebrino (2013) e de publicação do Curso de Linguística Geral (2016).

Muitos trabalhos foram produzidos e eventos realizados em torno desta temática no Brasil e no exterior, em diferentes instituições voltadas para os estudos da linguagem. O Grupo de Trabalho Estudos Saussurianos da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll) foi criado em 2013 para atender ao interesse de professores e alunos da área. A reunião do GT, ocorrida em 2014, deu origem a muitos dos trabalhos aqui publicados.

Os embates em torno da autenticidade do Cours, assim como do lugar ocupado por Saussure e suas ideias na historiografia da área, comprovam a vitalidade do tema e as diversas questões que ainda aguardam reflexão.

Podemos, portanto, falar em um tempo de “retorno” a Saussure, sob a forma de uma produção científica que se dedica a estudá-lo sob diferentes perspectivas. Essa não é propriamente uma novidade no âmbito do saussurismo. O esforço por reconstruir o pensamento do autor se inicia quase que imediatamente após a sua morte. Como afirma Cruz (2009Cruz, M. 2009. A filologia saussuriana: debates contemporâneos. Alfa, São Paulo, v.53, n. 1, p. 107-126.)

Se entendermos a filologia saussuriana como o conjunto de trabalhos visando à reconstituição do pensamento de Saussure - em particular aquele relativo à linguística geral - então sua origem deve ser situada, a bem dizer, muito antes dos trabalhos de Bouquet e mesmo de Rudolf Engler e Robert Godel. Com efeito, esses autores continuam uma tradição iniciada pelos próprios editores do Curso (p.110).

Entende-se assim um comentário de Testenoire (2014Testenoire, P-Y. 2014. L’ombre du cours. Recherches sémiotiques/Semiotic Inquiry - RSSI. Canadá, v.34, n.1-2-3, p. 209-227.: 210) quando afirma que o acesso aos manuscritos - e completamos: até mesmo àqueles dos editores - tornou possível a apreensão do “CLG como um objeto cultural e artefato editorial”. O CLG não cessa de se escrever...

Entretanto, o intervalo cronológico situado entre as comemorações dos 100 anos de sua morte (1913) e dos 100 anos da publicação do CLG (1916) nos coloca sob o efeito do que Fiorin e outros (2013Fiorin, J. L.; Flores, V. do N.; Barbisan, L. B. 2013. Por que ainda ler Saussure? In: ______. Saussure: a invenção da linguística. São Paulo: Contexto.: 7) chamaram de “fascínio das datas redondas” e nos convida a olhar para o passado com a atitude que, segundo Koyré (1991Koyré, A. 1991. Da influência das concepções filosóficas sobre a evolução das teorias científicas [1954]. In: ____. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Forense.), é própria do historiador, aquele que “[...] re-fazendo e re-correndo à evolução da ciência, apreende as teorias do passado em seu nascimento e vive, com elas, o élan criador do pensamento” (p.205).

A expressão “retorno a um autor” em Foucault (2013______. 2013. O que é um Autor? [1969]. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos & escritos III). Rio de Janeiro: Forense Universitária.) é utilizada para marcar a separação entre os fundadores de ciências e os fundadores de discursividades. Esses últimos, segundo Foucault, “[...] têm de particular o fato de que eles não são somente os autores de suas obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos” (p.284).

Em fins do século XVIII, afirma ainda Foucault (2007Foucault, M. 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.), há uma alteração irreparável na concepção de saber “como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento” (p.346) e, entre as novas “empiricidades” modernas surgidas nessa época, encontra-se a linguagem.

No domínio da linguagem, a palavra sofre, mais ou menos na mesma época [fins do século XVIII], uma transformação análoga [ao que ocorre com a concepção de vida e de trabalho]: certamente, ela não deixa de ter um sentido e de poder ‘representar’ alguma coisa no espírito de quem a utiliza ou a escuta; esse papel, porém, não é mais constitutivo da palavra no seu ser mesmo, na sua arquitetura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior de uma frase e aí ligar-se a outras palavras mais ou menos diferentes. Se a palavra pode figurar num discurso em que ela quer dizer alguma coisa, não será por virtude de uma discursividade imediata que ela deteria propriamente e por direito de nascimento, mas porque na sua forma mesma, nas sonoridades que a compõem, nas mudanças que sofre segundo a função gramatical que ocupa, nas modificações enfim a que se acha sujeita através do tempo, obedece a certo número de leis estritas que regem de maneira semelhante todos os outros elementos da mesma língua; de sorte que a palavra só está vinculada a uma representação, na medida em que primeiramente faz parte da organização gramatical pela qual a língua define e assegura sua coerência própria. Para que a palavra possa dizer o que ela diz, é preciso que pertença a uma totalidade gramatical que, em relação a ela, é primeira, fundamental e determinante (Foucault, 2007Foucault, M. 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.: 387)

Milner (2012______. 2012. O amor da língua. Campinas, SP: Editora da Unicamp.), a partir dessa mesma discussão, exclui Saussure da categoria de “iniciador”, afirmando que para o próprio autor a linguística estava fundada, com a ruptura operada pela obra de Bopp Du système de la conjugaison sanscrite comparé avec celui des langues latine, grecque, persane et germanique (1816), marco histórico da fundação da linguística do século XIX, que separa o estudo da língua da perspectiva representacionista da gramática clássica. Publicação que, a propósito, convocou em 2016 outra “data redonda”, isto é, 200 anos de sua publicação, ao lado do centenário da publicação do Curso.

Assim sendo, não parece ser o caso de se assumir ser o “retorno a Saussure” um movimento da mesma natureza proposta por Foucault. Não deixa, entretanto, de haver aí uma importante aproximação, na medida em que a ideia de “retorno a” pressupõe, segundo Foucault (2013),

[...] que tenha havido esquecimento, não esquecimento acidental, não encobrimento por alguma incompreensão, mas esquecimento essencial e constitutivo. O ato de instauração, de fato, é tal em sua própria essência, que ele não pode não ser esquecido. (p.288).

No caso de Saussure, podemos pensar que, num certo sentido, considerar o seu lugar de continuador de Bopp é reconhecer que o esquecimento de que se trata aqui diz respeito àquele em que se descobriu que as línguas têm “[...] propriedades indiferentes quanto àquilo que comunicam e designam” (Milner, 2012Milner, J-C. 1995. Introduction à une Science du langage (version abrégée). Paris: Éditions du Seuil.: 31). Em suma, o esquecimento que, cada vez mais vem conduzindo a referência à Linguística ser substituída pela expressão plural ciências da linguagem. Os efeitos dessa substituição, ou melhor, da referência à linguagem em detrimento da língua, necessariamente implicada no termo linguística, não são triviais. Como destaca Milner (1995), falar em linguagem é supor que “há seres falantes”:

[...] pour en parler de façon intéressante, il faut pouvoir mettre en question cette existence, or c’est justement ce que la linguistique ne peut pas faire : cette existence pour elle ne saurait être déduite, ni expliquer en général. On comprend en quel sens la linguistique n’a pas pour objet le langage : c’est qu’elle le prend pour axiome. (p.42).

O apagamento do termo linguística corresponde, portanto, ao apagamento da abordagem da língua como fenômeno em detrimento da discussão ontológica do ser falante, acontecimento operado por Bopp e continuado por Saussure.

Aproveitar o “fascínio das datas redondas” possibilitaria que se retornasse à organização e desdobramentos do discurso científico saussuriano considerando as questões que se propõe a enfrentar, o que ajudaria a esclarecer, no pensamento de Saussure, o que se converteria em “élan criador”, não obstante os reducionismos que o encerram (enclausuram), assim como ao seu discurso (tido como concluído, cessado), nos manuais de linguística, nos quais é referido como um “mestre” cujo discurso pouco ou nada transmite para as teorias contemporâneas. Nesse sentido, o presente volume tem uma importante contribuição para a reflexão linguística de nosso tempo.

2. Sobre os artigos contidos neste volume

A maioria dos textos aqui reunidos enquadra-se no que se convencionou chamar de “filologia saussuriana”, isto é, análises que se dedicam à reconstituição do pensamento saussuriano a partir de textos publicados e/ou manuscritos do autor. Além desses, assistimos à relevância da reflexão saussuriana em campos como os da Aquisição e da Clínica de Linguagem.

Maria Fausta Pereira de Castro discute o tema da analogia ao longo da reflexão saussuriana, dando ênfase à tensão entre o princípio de criação e o funcionamento do eixo associativo, aí implicado o problema da memória. Se a fala da criança é imediatamente lembrada para tratar da analogia, há, no entanto, uma diferença central: a criação analógica do adulto pode vir a ser adotada pela língua, e a da criança, para Saussure, não tem futuro na língua. Entre o movimento regularizador e os caprichos da analogia encontra-se o sujeito falante, que introduz um grão de imprevisibilidade no fenômeno.

Karen Alves da Silva percorre os manuscritos de Saussure e de seus alunos, bem como o Curso de Linguística Geral, a fim de analisar, no corte sincrônico, o envolvimento do sujeito falante saussuriano com a analogia. Conclui a autora que as formulações de Saussure, além de inquietudes teóricas, trazem à tona a atividade do sujeito falante, figura que a doxa saussuriana procurou apagar, mas que se revela como central, inclusive para as criações da língua.

Eliane Silveira busca sondar o papel da rasura nas elaborações de Saussure e, para tanto, percorre distintos manuscritos do autor, dando destaque à presença/ausência bem como à natureza das rasuras. Sua hipótese é que a flutuação da quantidade, assim como a natureza das rasuras, tenha relação com elementos como a diversidade de gênero, tema, ou endereçamento do texto, o que pode dar alguns elementos para pensar a respeito do estatuto das rasuras nos textos de Saussure.

Marcen de Souza, a partir da análise da relação entre diacronia e sincronia nos anagramas, constata a presença de certa semelhança entre o conceito de analogia (desenvolvido por Saussure desde 1891 até os cursos ministrados em Genebra) e o conceito de hipograma, elaborado durante a produção sobre os anagramas. Tais semelhanças, ainda pouco exploradas, são investigadas pelo autor.

Stefania Montes Henriques discute as lendas germânicas e defende que a pesquisa saussuriana sobre as ditas lendas, não somente faz parte do projeto semiológico de Saussure, como também contribui para que esse projeto fique mais evidente e para que questões não desenvolvidas pela linguística saussuriana sejam clarificadas.

Maria Francisca Lier-De Vitto desenvolve sua reflexão a partir da constatação incômoda de que há no Curso de Linguística Geral duas definições de língua que são conflitantes, ponto que parece decisivo na direção de leitura que se tem feito de Saussure, justificando os poucos frutos rendidos na Linguística frente ao que ocorreu em outras áreas, como a Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss e o “retorno a Freud” operado por Lacan.

Núbia Rabelo Bakker Faria discute o conceito de fonema em Saussure e busca, no interior da teorização linguística do autor, elucidar o lugar ocupado por esse conceito nas formulações saussurianas a propósito da ciência da linguagem e de seu objeto, com ênfase na separação do estudo dos sons na fala humana, enquanto execução da língua (mera fonação) num determinado estado, do estudo dos efeitos da fala sobre a língua, que os estudos diacrônicos flagram ao confrontar diferentes épocas.

Luiza Milano dá ênfase ao aspecto fônico da língua e discute o estatuto da materialidade sonora com objetivo de revisitar as noções de fonema, fonética e fonologia e propor uma releitura do lugar do fônico no legado saussuriano. Defende a autora ser possível e pertinente pensar na unidade fonema e no campo da fonologia ancorados nos princípios saussurianos de sistema e valor.

Rosa Attié Figueira aborda o fenômeno da analogia a partir de feitos linguísticos de crianças entre 2 a 5-6 anos. Na descrição do funcionamento linguístico próprio a este domínio, a noção de relação presta-se a revelar o movimento da língua na fala - ponto de partida que mobiliza do aparato teórico saussuriano alguns de seus conceitos fundantes -, atestando a relevância de uma abordagem da linguagem na infância filiada ao projeto científico de Saussure.

Lúcia Arantes aborda criticamente a avaliação da fala dita patológica, retomando o percurso da clínica de linguagem a que se filia e suas aproximações com o Interacionismo em Aquisição da Linguagem, conforme proposto por Cláudia Lemos (1992 e outros). Desse lugar, a autora reconhece nas ideias de Saussure a possibilidade de considerar o funcionamento da linguagem e tomar relações como primitivos nas avaliações de linguagem, pois a fala é abordada como algo mais do que mera atualização da gramática, o que é essencial frente à natureza idiossincrática de falas sintomáticas.

3. Considerações finais

Esperamos com a publicação deste volume testemunhar a importância da reflexão teórica voltada para o sistema conceitual saussuriano e seus desdobramentos nos dias de hoje, somando os trabalhos aqui reunidos a outros tantos já publicados e a serem publicados em torno da temática que tem atraído a atenção de muitos pesquisadores e alunos no Brasil e em muitas instituições internacionais.

Gostaríamos de agradecer a todos os colaboradores deste número que se dispuseram a submeter seus trabalhos e adequá-los às exigências do número que organizamos. Não poderíamos deixar de mencionar ainda neste agradecimento os editores da revista DELTA.

Referências

  • Cruz, M. 2009. A filologia saussuriana: debates contemporâneos. Alfa, São Paulo, v.53, n. 1, p. 107-126.
  • Fiorin, J. L.; Flores, V. do N.; Barbisan, L. B. 2013. Por que ainda ler Saussure? In: ______. Saussure: a invenção da linguística. São Paulo: Contexto.
  • Foucault, M. 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.
  • ______. 2013. O que é um Autor? [1969]. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos & escritos III). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • Koyré, A. 1991. Da influência das concepções filosóficas sobre a evolução das teorias científicas [1954]. In: ____. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Forense.
  • Milner, J-C. 1995. Introduction à une Science du langage (version abrégée). Paris: Éditions du Seuil.
  • ______. 2012. O amor da língua. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
  • Testenoire, P-Y. 2014. L’ombre du cours. Recherches sémiotiques/Semiotic Inquiry - RSSI. Canadá, v.34, n.1-2-3, p. 209-227.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2018
  • Aceito
    08 Ago 2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br