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Intérpretes e confessionários como expressões de políticas linguísticas da Igreja voltadas à confissão

Interpreters and confessionaries as expressions of linguistic policy of the Church related to confession

Resumos

O objetivo do trabalho foi analisar a política linguística da Igreja em relação à confissão em contexto multilíngue entre os séculos XVI e XVIII. As fontes documentais utilizadas na análise foram as discussões teológicas europeias a respeito da legitimidade (ou não) do intérprete nesse contexto religioso e os confessionários em línguas indígenas produzidos pela evangelização espanhola e portuguesa. Os confessionários nas línguas indígenas foram observados pelas marcas gráficas usadas para guiar o missionário no diálogo com o penitente. A forma de organização dos confessionários nas línguas indígenas foi a de um gênero textual voltado para o aprendizado de língua estrangeira. Em particular, foram comparadas as posições dos jesuítas no Brasil em relação ao intérprete em duas conjunturas, antes e depois da fixação de um confessionário tupi. Na conclusão, foram observadas as adaptações que a discussão europeia a respeito do intérprete recebeu na evangelização dos índios.

confissão; intérprete linguístico; confessionários; índios


The aim of this study was to analyse the linguistic policy of the Church with regard to confession in a multilingual context between the 16th and 18th Centuries. The documents used in the analysis included theological discussions in Europe about the legitimacy (or not) of the interpreter in this religious context, as well as confessionaries in indian languages during the evangelisation period carried out by the Spanish and the Portuguese. The confessions in indian languages were examined through their use of orientation signals used to guide the missionary in the dialogue with the penitent. The form of organization of the confessionaries in the Indian languages was a textual genre appropriate for learning a foreign language. In particular, we have compared the position of the Jesuits concerning the interpreter in two settings: before and after the establishment of a confessionary in Tupi. In conclusion, we examine the adaptations in the European discussion on the role of the interpreter brought about by the evangelisation of the Indians.

confession; interpreter; confessionaries; Indians


ARTIGOS ARTICLE

Intérpretes e confessionários como expressões de políticas linguísticas da Igreja voltadas à confissão

Interpreters and confessionaries as expressions of linguistic policy of the Church related to confession

Cândida Barros

Museu Emílio Goeldi - Belém-Pará, E-mail: mcandida.barros@gmail.com

RESUMO

O objetivo do trabalho foi analisar a política linguística da Igreja em relação à confissão em contexto multilíngue entre os séculos XVI e XVIII. As fontes documentais utilizadas na análise foram as discussões teológicas europeias a respeito da legitimidade (ou não) do intérprete nesse contexto religioso e os confessionários em línguas indígenas produzidos pela evangelização espanhola e portuguesa. Os confessionários nas línguas indígenas foram observados pelas marcas gráficas usadas para guiar o missionário no diálogo com o penitente. A forma de organização dos confessionários nas línguas indígenas foi a de um gênero textual voltado para o aprendizado de língua estrangeira. Em particular, foram comparadas as posições dos jesuítas no Brasil em relação ao intérprete em duas conjunturas, antes e depois da fixação de um confessionário tupi. Na conclusão, foram observadas as adaptações que a discussão europeia a respeito do intérprete recebeu na evangelização dos índios.

Palavras-chave: confissão; intérprete linguístico; confessionários; índios.

ABSTRACT

The aim of this study was to analyse the linguistic policy of the Church with regard to confession in a multilingual context between the 16th and 18th Centuries. The documents used in the analysis included theological discussions in Europe about the legitimacy (or not) of the interpreter in this religious context, as well as confessionaries in indian languages during the evangelisation period carried out by the Spanish and the Portuguese. The confessions in indian languages were examined through their use of orientation signals used to guide the missionary in the dialogue with the penitent. The form of organization of the confessionaries in the Indian languages was a textual genre appropriate for learning a foreign language. In particular, we have compared the position of the Jesuits concerning the interpreter in two settings: before and after the establishment of a confessionary in Tupi. In conclusion, we examine the adaptations in the European discussion on the role of the interpreter brought about by the evangelisation of the Indians.

Key-words: confession; interpreter; confessionaries; Indians.

1. Objetivos1 1 . A pesquisa foi realizada com o apoio do CNPq e da Fundação Carolina (setembro-novembro de 2008). O professor Joaquín Sueiro (Universidade de Vigo) orientou a pesquisa nos acervos espanhóis.

O que um padre deveria fazer quando tivesse que confessar um penitente a quem não entendia linguisticamente? Deveria confessar com ajuda de um intérprete? Poderia aceitar a redução da verbalização dos pecados? Ou, ainda, poderia absolver o penitente apenas pelos seus sinais gestuais de contrição, sem entender o que ele lhe falava? Para um confessor, era importante que as dúvidas em relação a como proceder na confissão em contexto multilíngue fossem resolvidas por envolverem sua consciência. Ele estaria pecando se absolvesse indevidamente o penitente ou se deixasse de confessá-lo quando deveria fazê-lo.

As dúvidas sobre como proceder na confissão em situações com barreiras linguísticas pareceriam específicas de um missionário em alguma colônia portuguesa ou espanhola. Porém, essas discussões foram próprias do confessor na Europa, um continente plurilíngue. O debate teológico europeu repercutiu entre os missionários nas colônias, que o readaptaram para a situação da confissão dos africanos trazidos como escravos (Sandoval 1627) e dos índios. Neste trabalho restringiremos a análise à literatura confessional direcionada aos índios.

Algumas das estratégias comunicativas discutidas pela literatura confessional europeia e missionária sobre a confissão em contextos de diversidade linguística entre confessor e penitente foram:

a) a obrigatoriedade ou não de o penitente ter de confessar por intérprete quando o confessor não o compreendesse.

b) a aceitação ou não por parte do confessor da redução da verbalização dos pecados mortais na confissão. Essa estratégia era definida como "dimidiar" os pecados, ou seja, "recibir la absolucion, sin aver manifestado todos los pecados graves, que ocurren à la memoria" (Tapia 1723:149).

c) a aceitação ou não de se fazer uso unicamente de sinais gestuais para relatar os pecados ou para expressar contrição.

Essas duas últimas opções representavam um afrouxamento das condições de integridade da confissão, que determinavam que todos os pecados fossem confessados (verbalizados) ao padre sob pena de não se obter a absolvição. As três estratégias comunicativas não eram excludentes e poderiam ser combinadas. Por exemplo, alguns defendiam dimidiar a confissão quando esta fosse intermediada por um intérprete.

Uma solução estabelecida pela evangelização para a confissão com barreiras linguísticas foi a elaboração de confessionários em línguas indígenas, estruturados por meio de perguntas que pediam apenas sim ou não como resposta. Esse gênero textual ganhou a forma de um roteiro de diálogo para a confissão tornando o missionário independente da figura do intérprete.

As posições defendidas pelos teólogos a respeito de como proceder nas confissões em que padre e penitente não possuíam a mesma língua e as soluções textuais estabelecidas pelos missionários para essas situações serão definidas como expressões de políticas linguísticas da Igreja. Uma instituição tão extensa e diferenciada como a Igreja não possuía um consenso em relação à política linguística a ser usada na confissão. As divergências entre os teólogos apontam para a falta de consenso sobre esse tema. Também as bulas papais foram vacilantes em relação à figura do intérprete na confissão. O Papa Pio V (1566-1572) permitiu a presença do intérprete na confissão (Hernaez 1879), enquanto o Papa Clemente VIII (1592-1605) proibiu essa intermediação em 1602 (Pardo 2004).

O tema da confissão por intérprete entre os séculos XVI e XVIII será analisado por meio de três tópicos:

a) exemplificação desse debate teológico em autores de manuais de penitência dos séculos XVI e XVIII. Dois autores serão revistos em detalhes. Um deles é Martin de Azpilcueta Navarro, autor do Manual de confessor e penitente (1ª edição em português em 1549). Esse livro foi uma referência importante para confessores na Europa e nas colônias entre os séculos XVI e XVII. O outro teólogo é Alonso de la Peña Montenegro, autor de Itinerario para párrocos de indios, obra muito difundida entre missionários das evangelizações espanhola e portuguesa no século XVIII.

b) análise dos confessionários em línguas indígenas como um gênero textual voltado a tornar o missionário independente do intérprete na confissão. Eles foram organizados como instrumentos pedagógicos das línguas dos índios.

c) exposição das posições dos jesuítas no Brasil em relação ao intérprete na confissão em duas conjunturas. Uma delas se refere aos primeiros anos da evangelização, quando não havia ainda a formulação de um confessionário tupi escrito disponível para os missionários. Nesse período, houve um debate entre o provincial jesuítico e o bispo sobre a conveniência do intérprete na confissão. A segunda conjuntura a ser abordada será a primeira metade do século XVIII na Amazônia, quando o confessionário tupi já estava formulado no formato breve e longo. Nesse período, será dado foco à maneira pela qual os jesuítas confessavam os grupos indígenas não tupi.

2. Exemplos da discussão sobre o intérprete na literatura confessional europeia no século XVI

Nenhuma outra situação de comunicação entre padres e fiéis suscitou o debate sobre o intérprete como ocorreu na confissão. Na literatura confessional europeia, a confissão em contexto multilíngue foi tratada juntamente com os casos nos quais os penitentes eram surdos, moribundos ou estivessem sob a iminência de um naufrágio. O comum a todas essas situações era a falta de condições para uma comunicação plena e em segredo entre o confessor e o penitente. Essas questões se tornaram problemas no momento em que o Concílio de Latrão (1215-1216) transformou a confissão de pública (estabelecida entre o penitente e a comunidade) para privada e secreta (entre confessor e penitente). Essa mudança ocorreu no bojo da expansão dos sacramentos e da teoria do sacerdotalismo, que acentuavam o papel do padre como intermediário divino na absolvição dos pecados (Almeida 1992:14).

As diferentes práticas relativas à confissão deram origem a diferentes gêneros textuais. Os Penitenciais haviam surgido para auxiliar a confissão pública através da enumeração das sanções externas que o fiel deveria fazer para obter a absolvição. Esse gênero de obra proliferou no século X. Os confessionários, por sua vez, surgiram para preparar os padres para a confissão por meio do diálogo privado com o penitente.

Um exemplo de discussão teológica no século XVI em relação a como o confessor deveria proceder em situações multilíngues é o Manual de Confessores e Penitentes, de Martin de Azpilcueta Navarro (1492-1586). O livro foi traduzido para várias línguas europeias chegando a 92 edições até o século XVII. Contam-se pelo menos dez edições desse livro entre os anos de 1553 e 1565, e 15 traduções para o latim até 1605 (Delumeau 1991:74).

O sucesso do Manual de Navarro não se limitou aos confessores na Europa. Também nas colônias portuguesas e espanholas, o livro foi referência para a confissão dos cristãos recém-convertidos. Na Índia, a casa jesuítica de Goa recomendava que o Manual de Navarro fosse um dos poucos livros que os missionários poderiam ter. Os superiores eram orientados para que permitissem que os confessores possuíssem uma "summa de Navarro":

"Não tenham os nossos multidão de livros, ainda que sejão dados por seculares, nem levem mal o tirarem-lhe os superiores, nem lhos deixarem levar de huma parte pera a outra. Deixem-lhe porem os superiores os necessários, como são huma summa de Navarro aos confesssores e huma Bíblia e huma Escritura aos pregadores" (1594 apud Wicki 1980:441).

No Japão, também havia disponibilidade da obra de Navarro na biblioteca jesuítica. Em 1556, existiam oito exemplares em um período em que só havia quatro padres (Gay 1960:364). No México, a partir do segundo Concílio Mexicano (1565), e na Guatemala, durante o Sínodo de 1566, o Manual de Navarro foi indicado como obra necessária a todo confessor de índios (" a los menos tengan la Biblia y algunos sermonarios y el Manual de Navarro o la Summa caietana o Sylvestrina" apud Baciero 1995:65).

Alguns dos jesuítas que chegaram ao Brasil em 1549 eram próximos de Navarro. Um deles era Juan Azpilcueta Navarro (1522-1557), seu sobrinho. O outro era Manuel da Nóbrega (1517-1570), seu antigo aluno na Universidade de Coimbra e primeiro provincial dos jesuítas no Brasil. Nóbrega manteve correspondência com Navarro, a quem fazia consultas sobre os casos de consciência suscitados na conversão dos índios no Brasil. Há correspondência de Nóbrega para o teólogo, no ano da vinda do jesuíta para o Brasil (Leite 1956: vol.1:132).

Navarro faz referências à evangelização jesuítica no Brasil em seu manual, ao incluir a discussão sobre a legalidade ou não da compra dos índios cativos pelos colonos (" por esta rezam se podia salvar os Christãos, que no Brasil & outras partes comprã & vendem os negros, que seus immigos querem matar pera os comer, ainda que de si sejam livres, & sejam mal presos" Navarro 1560:481)

Navarro foi um defensor da legitimidade do uso do intérprete sempre que o penitente estivesse impedido de confessar "por si". Para Navarro, essa era uma tradição da Igreja:"Porque a polo interprete feyta, sempre se usou, & se usa na ygreja: & a que por escrito se faz de presente a presente" (Navarro 1560:352). A aceitação do intérprete em Navarro não se restringia à situação de risco de vida, como alguns teólogos defendiam, mas em qualquer contexto em que houvesse barreiras linguísticas entre confessor e penitente.

Exemplos de confessionários contemporâneos ao de Azpilcueta Navarro, porém pouco favoráveis à presença do intérprete, foram Summa Caietana (1566) e Breve instrucción de como se ha de administrar el sacramento dela penitencia, de Bartolomé de Medina (1582). Essas duas obras propunham outras estratégias comunicativas na situação de confissão com barreiras linguísticas; por exemplo, os penitentes poderiam reduzir a verbalização dos pecados ou ainda poderiam ser absolvidos apenas pelo ato de contrição. Para a Summa Caietana (1566), o penitente poderia fazer uso do intérprete quando ele estivesse em perigo de vida, mas ainda nessa situação não era obrigado a fazê-lo:

[..] quãdo o confessor nã intende a lingoa do penitente (por serem de nações diversas) entã se o penitente se quer cõfessar por intérprete, sua confissam he valida: mas ninguem o obriga a que per interprete se confesse: porque ninguem he obrigado por outrem se confessar, senam soo per si mesmo (Summa 1566:87v)

Para o teólogo Bartolomé de Medina (1582), se não houvesse disponibilidade de intermediário linguístico em uma situação de risco de vida do penitente, este poderia reduzir a verbalização dos seus pecados na sua confissão, deixando de fora parte dos pecados, ainda que o confessor não entendesse o que ele dizia:

Vienese a confessar a esta casa un frances, o aleman, y llama un castellano para que le confiesse, el qual no sabe bien su lengua, de suerte, que en la confession no le entendera, sino qual, o qual peccado: preguntase si le podra oyr de confession, y absolverle? De lo dicho se collige que en el articulo de la muerte lo puede, y deue hazer no auiendo otro a mano, mostrando el penitente dolor delo que ha dicho y hecho (Medina 1582:228)

Fora de situações de risco de vida, Medina considerava que o confessor pecaria se viesse a absolver o penitente com apenas a redução da verbalização dos pecados:

Pero no estando en esta necessidad [ameaça de morte], no la ha de absolver, sino embiarle a otro que le entienda, y si nolo ay en casa, que lo procure en otra parte, porque de otra manera peccara el confessor en absolverlo, por causa de ponerse a peligro de absolver al que no sabe, si trae buena disposicion, ni que peccados ha hecho (Medina 1582:228).

Medina transpôs sua discussão sobre a confissão com barreiras linguísticas para a situação da evangelização dos índios. Ele desaprovava a prática dos missionários de absolverem os índios sem compreenderem as línguas destes ("De aqui se sigue, que el que confessare a los Índios, no sabiendo bien su lengua: si los Indios no saben la Española, peccara por las razones sobredichas" Medina 1582:263). O comentário de Medina deixa entrever que a absolvição estava sendo dada aos índios sem ser necessária a compreensão do que era dito pelo penitente. Essa teria sido uma das tendências da política linguística dos missionários no século XVI a respeito da confissão.

3. A repercussão do debate sobre os intérpretes no mundo colonial: "Itinerario de párroco de indios", de Peña Montenegro

O galego Alonso de la Peña Montenegro (1596-1687) foi reitor da Universidade de Santiago de Compostela, antes de ser bispo do Equador entre 1654 e 1687. Sua experiência acadêmica anterior à de bispo de jurisdição indígena o levou a escrever um tratado de teologia dirigido especificamente para os padres com atuação entre os índios, como menciona o título da obra (Itinerario de párroco de indios). Ele faz inúmeras referências a teólogos e moralistas europeus. Segundo Bacieiro (1995:107), Montenegro cita 268 autores só nos dois primeiros volumes, grande parte deles por citação indireta. Montenegro teria consultado extensivamente 34 desses autores, um dos quais Azpilcueta Navarro, mencionado 35 vezes nas seções analisadas por Bacieiro (1995).

O livro de Montenegro teve muita difusão entre os missionários. Em cem anos, foi reimpresso seis vezes (1668,1678,1698,1730,1754,1771). A repercussão da obra de Montenegro pode ser acompanhada pelas várias citações do livro desse autor em diversas publicações sobre línguas indígenas elaboradas pela evangelização espanhola e portuguesa. Há citações da obra de Montenegro em trabalhos sobre o nahuatl (Villacencio 1692, Pérez 1713), o quéchua (Torres Rubio 1745), o cumanagota (Tapia 1732), o opata (Aguirre 1765) e as línguas coahuitecas (Garcia 1760).

Também entre os jesuítas no Brasil houve leitores de Peña Montenegro. O padre Luis Vicencio Mamiani, autor de um catecismo kiriri (1698), se baseia no bispo do Equador ao discutir sobre impedimentos de casamentos de índios. Um catecismo tupi manuscrito do século XVIII, de uso na Amazônia, segue Montenegro ao apresentar o calendário de dias de guarda para os índios (Anônimo 1750:412).

Outro leitor de Montenegro foi o jesuíta anônimo autor do confessionário tupi de 1751, empregado em missões no Pará. Esse missionário não faz referência explícita ao bispo do Equador, mas ele reproduz um trecho do bispo ao discutir de que maneira o confessor deveria perguntar sobre quantificação dos pecados ao penitente indígena.

Em relação ao tema da intermediação linguística na confissão, Montenegro adaptou a discussão europeia para o contexto no qual o penitente era um índio. Um capítulo do livro de Montenegro tem como título a pergunta "Si es licito confessar por intérprete a los índios, cuando el cura no sabe la lengua" (Peña Montenegro 1996:vol.II:135). Montenegro responde à questão por meio de uma argumentação teológica com várias referências bibliográficas.

Ele apresenta inicialmente a posição de um grupo de teólogos - entre eles Caetano e Medina (Peña Montenegro 1996:vol.II:136) - que defendiam que o penitente não estava obrigado a se confessar por intérprete, ainda que estivesse à beira da morte. Nesse contexto, a absolvição seria dada apenas pelos sinais externos de contrição (não verbalização dos pecados).

Y aun en este caso [na hora da morte], donde se aventura tanto, hay graves doctores que dicen que no obliga la confesion por intérprete, sino que haga un acto de contrición, y se deje morir, si no quiere. Así lo dicen Vazquez, Conink, Cayetano, Soto, Ledesma, Victoria, Medina, Mayor, Paludano, Suárez, Valencia y otros (Peña Montenegro 1996:II:136).

Montenegro exemplifica casos que se ajustariam à posição de absolvição sem intermediação do intérprete. Um padre que tivesse pecado mortalmente poderia rezar a missa sem ter se confessado, no caso de dispor apenas de um confessor que não soubesse sua língua. Nessa situação, bastaria que ele fizesse o "acto de contricion, aunque tenga intérprete por cuyo medio puediese ser entendido y confesarse" (Peña Montenegro 1996:vol.II:135). Também um fiel poderia comungar na páscoa sem confissão no caso de ele só dispor de um padre que não o compreendesse linguisticamente:

Lo mismo se entiende, cuando los fieles han de comulgar por pascua: que, si el sacerdote que tiene no los entiende para poderlos confesar, estarán excusados de confesarse, porque la confesión por intérprete no los obliga (Peña Montenegro 1996:vol.II:135)

Montenegro considera que a posição de evitar o intérprete e ao mesmo tempo aceitar a absolvição apenas pelos gestos contritos do penitente era "provável especulativamente", porém inviável no caso dos índios por eles serem rústicos. Rústico ou miserável era uma categoria jurídica usada também nos confessionários europeus (Pascual 1995:27) e transposta pelo Concílio Limense como definição dos índios. A definição de rústicos retirava o valor de veracidade dos enunciados das pessoas definidas como tal, como nas considerações do jurista Juan Solórzano Pereyra:

como en los rusticos se escuse en los Indios, quanto fuere possible, que no se les pida , ni tome juramento en sus causas ò pleytos por el peligro, ò riesgo, en que los ponemos, de que se perjuren con facilidad, como personas, que no hacen bastante concepto de la fuerza del juramento, ni de la obligacion de decir verdad. (Solórzano Pereyra 1736:207).

Montenegro negava que os índios, enquanto rústicos, fossem capazes de ter arrependimento dos pecados, e portanto era necessária a presença do intermediário na confissão:

Y así digo que todas las veces que por la incapacidad del penitente se duda que hará acto de contrición, está obligado por precepto divino y natural de propria caridad a confesar por intérprete, para asegurar su salvación (Peña Montenegro 1996:vol.II:136).

Para Montenegro, o intérprete era necessário na confissão, ainda que o preceito do sigilo não fosse possível de ser mantido nessa situação. Era preferível que o penitente perdesse a sua honra, devido às revelações que o intérprete faria do conteúdo da confissão, a que ficasse sem a absolvição dos pecados por não tê-los verbalizado. Como atenuante, Montenegro aceitava que o penitente deixasse de contar todos os seus pecados (dimidiar) nas situações de confissão por intérprete:

Y si hallare que el penitente tiene en esto [confessar por intérprete] dificultad, podrá persuadirle a que se confiese de algunos pecados, los que menos infamia y empacho le pueden causar, y así absolverlo sin que diga los demás, que perdonados los que confesó directe, quedarán absueltos indirecte los otros. (Peña Montenegro 1996:vol.II:36)

Montenegro orientava os párocos em relação às categorias que poderiam participar como intérpretes das confissões. Por ordem de preferência ele propunha o espanhol, o mestiço e o homem indígena. Mulheres e bêbados não deveriam ser escolhidos por não serem capazes de guardar segredo. A forma de manter o sigilo da confissão por parte do intérprete seria ameaçar com açoites e corte do cabelo aqueles que tornassem públicos os pecados que tinham ouvido ao servirem como intermediários:

Finalmente, se escoja el que fuere de más entendimiento y capacidad, advirtiéndole primero de la obligación estrecha que tiene de guardar secreto, pena de pecado mortal muy grave. Y porque éstos más hacen por miedo que por amor, hará prudentemente el cura que al intérprete le diga que, fuera de ser ofensa de Dios, se enojará mucho con él, y que, en sabiendo que ha descubierto algo de lo que oyó, le ha de castigar azotándolo y trasquilándolo en público (Peña Montenegro 1996:vol.II:137)

Por fim, é importante observar que a argumentação de Montenegro a favor do intérprete não estava direcionada a qualquer língua indígena. Para as línguas gerais da evangelização, havia, à disposição, os confessionários, que permitiriam aos missionários confessarem sem intermediação do intérprete. Apenas para os índios que não falavam a língua geral seria aceitável um intermediário. Dessa maneira, Peña Montenegro readaptou a discussão teológica europeia sobre a legitimidade do intérprete no interior de uma política linguística diferenciadora das condutas a serem tomadas em relação à "língua geral" e às línguas particulares:

Y tenga muy en la memoria el cura esta doctrina [confessar por intérprete], que es el caso muy practicable por tantas lenguas e idiomas diferentes como hay, que no todos entienden la lengua general y común, como la experiencia enseña. (Peña Montenegro 1996:vol.II:136)

4. Os confessionários coloniais bilíngues como expressão do debate teológico sobre o intérprete

"[...] concluyo, y soy de sentir (para descargo de mi conciencia) que deben los Missioneros en cumplimiento de la suya, aplicarse con zelo eficaz al uso del presente Manual; y juntamente â las Reglas del Arte, que se hizo por solo el fin de formalo, y entenderlo; [.....] siendo este modo [o manual de penitencia] el medio mas seguro de administrar â sus Indios la medicina de los Sacramentos, y peligroso el de los Interpretes, aunque sean muy limados, y ladinos " (Garcia 1760)

A passagem acima explicita a visão dos confessionários em línguas indígenas como uma forma de evitar o intérprete na confissão. O trecho faz parte de um confessionário de autoria de Bartolomé Garcia para ser usado entre os índios "Pajalates, Orejones, Pacaos [...] y otras muchas diferentes, que se hallan en las Missiones del Rio de San Antonio, y Rio Grande". Esses grupos pertenciam à família linguística coahuiteco e se encontravam no sudoeste do Texas.

O examinador da obra de Garcia, Frei Joseph Guadalupe Prado, também foi um leitor de Montenegro. O frei considerava que não se poderia confiar no intérprete indígena ("Porque aunque se les administran mediantes sus Interpretes, esse medio es tan peligroso como expuesto á muchas falcedades, y enganos" Guadalupe Prado apud Garcia 1760: vi). O índio era classificado como "rústico", o que levava a se desacreditar no que dizia ("que seis Indios, no valgan mas que por un testigo, en las Causas muy graves, ô valgame Dios!") (Frei Guadalupe Prado apud Garcia 1760: vi).

O Segundo Concílio Limense (1567-1568) também definia os confessionários como um instrumento pedagógico sobre as línguas indígenas, ao determinar que os padres com pouco conhecimento em quéchua e aimara seguissem o manual de penitência preparado por esse Concílio (Durán 1990: 345).

A função dos confessionários coloniais como auxiliar linguístico para um missionário com pouco domínio dessas línguas levou a que grande parte desses textos fosse organizada integralmente por meio de perguntas que solicitavam apenas sim ou não. Pelo sim, o penitente confirmava ter cometido algum pecado, enquanto o não representaria sua negação. Bastava ao missionário, sem conhecimento da língua, decifrar a ortografia como pauta para a oralidade, seguir a ordem de perguntas e reconhecer um sim ou um não na língua em questão.

Na tradição da evangelização espanhola, o formato breve do confessionário foi direcionado especificamente ao confessor com pouco conhecimento da língua, como o descreve o Padre José de Acosta:

"Se necesita tambien un confesionario breve y completo para que los sacerdotes más ignorantes [de las lenguas indigenas] sepan examinar y purgar las conciencias de los indios, en el cual se han de explicar sobre todo las especies de pecados que son más familiares a los indios (Durán 1990:501)

Na evangelização espanhola, muitos confessionários foram impressos em duas formas, a "breve" e a "larga", como o fez Alonso Molina. Em 1565, ele publica uma versão abreviada, direcionada para os sacerdotes que começavam a confessar os nahuatl na língua destes (Sell 1993).

Os confessionários tupi jesuíticos também se diferenciaram em relação a sua extensão. A comparação do capítulo referente ao Sexto Mandamento (pecados contra a castidade) em três confessionários tupi de diferentes séculos aponta para a existência de formatos breves e longos (Barros, Monserrat e Mota 2008). Os textos comparados foram o de José de Anchieta (Cardoso 1992), representativo da confissão no século XVI; o de Antônio de Araújo, reeditado por Bartolomeu Leão em 1686, e o de um códice anônimo de 1751.

A comparação do número de itens lexicais usados no Sexto Mandamento nos três confessionários mostra que a versão setecentista empregou menos termos: Anchieta empregou 233 itens, Araújo 227 e o texto de 1751 cerca de 119 (Barros, Monserrat e Mota 2008).

Outra forma de simplificação textual apresentada pelo confessionário breve de 1751 em relação às duas outras versões (Anchieta 1992 e Araújo 1668) diz respeito às categorias diferenciadas de penitentes no Sexto Mandamento. A versão de 1751 possui apenas duas ordens de perguntas, para homens e mulheres casadas, diferentemente do texto de Araújo, que propõe matizações de perguntas para mulheres "devassas" e homens "traveços", além da série de perguntas para os casados dos dois gêneros sexuais.

O formato breve do confessionário como específico para o missionário com pouco domínio da língua levaria a postular a hipótese de que a versão reduzida do manual de penitência em tupi de 1751 estivesse voltada para um grupo de jesuítas com pouco conhecimento daquela língua. O confessionário de 1751 estaria direcionado para o quadro de jesuítas alemães e italianos que compunham o quadro da Companhia de Jesus recém-chegado à Amazônia no século XVIII.

Alguns autores, como Azoulai (1993), definiram os manuais de confessionários na Europa e nas colônias como gêneros estereotipados pela sua forma similar de organização em torno dos dez mandamentos da Lei de Deus. A homogeneização desse gênero textual na Europa e nas colônias chama atenção apenas para a função comum de orientação teológica que teve para o confessor. Essa posição deixa de observar a distância entre eles devido à função das versões coloniais como instrumento pedagógico linguístico para os confessores sem domínio naquelas línguas.

A função do confessionário colonial como instrumento pedagógico linguístico pode ser acompanhada pela riqueza dos traços gráficos usados nesses textos para ensinar e orientar o confessor no universo multilíngue. Essas marcas gráficas eram inexistentes nas obras de difusão europeia. Alguns dos recursos gráficos usados pelos confessionários bilíngues para guiar os confessores de índios foram:

a) jogo de diferentes tipos de letras com distintas funções textuais

Uma característica de muitos confessionários bilíngues foi o uso de tipos de letras diferentes (itálico ou não) para indicar o que deveria ser oralizado e o que era instrução de procedimento para o confessor. Essa última era dada em espanhol ou em português sem tradução e era para ser lida silenciosamente pelo confessor e não para ser oralizada.

b) uso da numeração entre perguntas em espanhol e nas línguas indígenas para estabelecer relações de equivalência semântica entre enunciados interlinguísticos. A numeração ou a forma de diagramação gráfica facilitaria ao confessor encontrar a tradução em espanhol das perguntas formuladas nas línguas indígenas.

c) registro das diferentes formas de perguntas segundo o sexo do penitente.

Uma das exigências teológicas da confissão era que o confessor soubesse diferenciar a qualidade da pessoa a confessar. Entre essas diferenças, estava a das perguntas para homens e para mulheres. Essa questão era particularmente importante no Sexto Mandamento. Os confessionários em línguas indígenas ensinavam aos padres as diferentes formas de perguntar a ambos os sexos:

Em alguns casos, o confessionário reproduzia a pergunta em espanhol com diferenças de gênero sexual, apesar de não haver nenhuma diferença na tradução para a língua indígena. Porém sua explicitação facilitaria ao confessor em dúvida de como proceder:

Alguns confessionários auxiliam o confessor também nas diferenças dialetais, como o exemplo acima. O confessionário em língua coahuiteca, de Bartolome Garcia (1760), propunha o uso do parêntesis com a marca "vel" para indicar as formas alternativas de enunciar a pergunta segundo a aldeia na qual o confessor estivesse:

quando solo en el Idioma de los Indios huviere parenthesis, y dentro de èl la particula vel, entonces se denota, que las palabras de aquel parenthesis pertenecen â las Missiones de el Rio Grande, ô â otra Mission en particular; y assi en ellas se dexarà la palabra, ô palabras, que anteceden â el tal parenthesis, desde la ultima coma; y en lugar de ellas se oclocaràn [sic] las otras (Garcia 1760: xv)

O confessionário de Garcia, entretanto, não propunha apenas uma confissão com diferenças dialetais nas línguas coahuitecas. Seu confessionário é apresentado também como roteiro a ser usado com índios de diferentes línguas, que estavam nas missões. Não se contemplava a figura do intérprete quando o penitente fosse de línguas particulares, mas sim o uso daquele mesmo formulário impresso de perguntas, que ganhava o status de língua geral, como indica o examinador da obra:

[...] este Manual no solo es general, sino generalissimo, quanto á dichas Missiones fundadas, mas que les adjunten Indios de diversissimas lenguas, pues de esta que tratamos tenemos muy larga experiencia, que la gente nueva â breve tiempo la entiende, ô habla, y los muchachos, que son la porcion de nuestra mayor esperanza, al año ya, como dicen, cortan el pelo en el dicho Idioma" (Frei Joseph Guadalupe Prado apud Garcia 1760: v)

5. A posição dos jesuítas no Brasil em relação ao uso do intérprete na confissão

A figura do intérprete na confissão será abordada em duas conjunturas da evangelização jesuítica no Brasil: a) no século XVI, durante os primeiros anos em que Nóbrega atuou como superior dos jesuítas (1549-1553) , período no qual não havia ainda disponibilidade de confessionários tupi, e b) no século XVIII, na Amazônia, quando os confessores já dispunham de confessionários breves (manuscrito de 1750 e 1751) e longos (a versão de Antônio de Araújo 1618/1686).

No século XVI, o provincial dos jesuítas no Brasil, Manuel da Nóbrega, e o primeiro bispo no Brasil, Pedro Fernandes, discutiram por quase dois anos (1552-1553) sobre como deveria ser a confissão dos índios. A discórdia entre eles começou um mês depois da chegada do bispo. Fernandes não concordava com algumas das práticas jesuíticas, como o uso de música e de oratória indígena na evangelização e o emprego de intérpretes na confissão.

O desentendimento entre eles é possível de ser acompanhado pelas cartas que escreveram para terceiros. O bispo escreveu ao provincial dos jesuítas em Portugal, Simão Rodrigues, e ao reitor do colégio jesuítico de Santo Antão (Leite 1956:t.I:357) em Lisboa denunciando as práticas de evangelização dos jesuítas. Nóbrega, por sua vez, enviou duas correspondências para Simão Rodrigues, informando-o dos problemas com o bispo e solicitando que "letrados" em Portugal fizessem um parecer sobre como proceder na confissão dos índios.

Fernandes e Nóbrega faziam referências aos mesmos autores, entre eles Azpilcueta Navarro e Summa Caietana, mas com posições diferentes. Fernandes não aceitava a posição dos teólogos ("Yo le dixe que no lo devía hazer más [confissão por meio de intérpretes], aunque trezientos Navarros e seiscientos Caietanos digan que se puede hazer" 1552 apud Leite 1956:t.I:361). Ele criticava Nóbrega por este ser mais teórico do que prático e por seguir à risca tudo o que dizia o teólogo Navarro (El Padre [Nobrega] [...] como ve qualquiera cosa en su maestro Navarro, luego la queria poner em plática) (1552 apud Leite 1956:t.I: 361).

Quando da chegada do bispo em 1552, a confissão dos índios era intermediada com a ajuda de mestiços. O único jesuíta que confessava sem ajuda de intérprete era Juan Azpilcueta, sobrinho do teólogo com o mesmo sobrenome. Os intérpretes dos jesuítas eram crianças de 10 anos ou então mulheres, todos mestiços. Maria Rosa era considerada melhor intérprete do que muitos homens, na avaliação do padre Antônio Pires, que não dominava tupi ("Com esta molher [confesso algumas índias christãs] e creo que hé melhor confessora que eu, porque hé muito virtuosa" )(1552 apud Leite 1956:t.I.326). A aceitação de mulheres como intérpretes não estava distante da posição de Azpilcueta Navarro. Mas o bispo Fernandes se opunha à escolha de mulheres mestiças ou crianças como intérpretes:

"También hallé que el Padre Nóbrega confessava ciertas mugeres mistiças por intérprete, lo que a mi me fué muy estraño, y dió que hablar y que mormurar por ser cosa tan nueva y nunqua usada en la Yglesia (1552 apud Leite 1956:I:361)

Fernandes deu ordem para que os colonos ensinassem português a suas mulheres mestiças ou indígenas a fim de que não houvesse necessidade de intermediários na confissão.

Outra divergência entre o jesuíta e o bispo era em relação à forma de escolher o intermediário linguístico. Para o bispo, este deveria ser escolhido pelo próprio penitente. Já Nóbrega considerava que o importante era manter o controle sobre os intérpretes. No caso das crianças, Nóbrega as defendia porque eram "feytos a nossa mão" (1552 apud Leite 1956:t.I: 339).

Apesar das críticas do bispo, os jesuítas continuaram usando intérprete no século XVI, porém este passou a ser um indivíduo bilíngue absorvido na Ordem como irmão para auxiliar na confissão. Alguns foram ordenados posteriormente como padre por serem falantes de tupi, ainda que não tivessem domínio de latim (Barros 1995).

A presença de intérprete na língua tupi durante a confissão deixa de ser necessária na medida em que surgiu um formulário de perguntas, com sim ou não, como na versão de Anchieta (século XVI apud Cardoso 1992) e na de Araújo (1618/1686). Esta é a segunda conjuntura a ser examinada. Em particular, analisaremos a situação do século XVIII na Amazônia, quando as missões possuem um grande número de índios de diferentes línguas.

O jesuíta João Daniel (1976) deixa indícios de que nesse período a Companhia de Jesus utilizaria confessionários tupi (como o de 1751) como formulários de evangelização também para os índios não tupi. Tal situação pode ser acompanhada pela história da evangelização dos índios nheengaíbas. Esse era um etnônimo de origem tupi que significava "os de fala ruim" (nheeng [fala] +aiba [ruim]). A designação incluía diferentes grupos étnicos com línguas diversas, como afirma Antônio Vieira ("por serem de línguas differentes, e difficultosas, são chamados geralmente Nheengaíbas") (Vieira [1660] 1735:t.II: 22).

Esses índios foram evangelizados pelos jesuítas desde o século XVII. Houve tradução do diálogo de doutrina para uma das línguas referidas como nheengaíba, desde a chegada dos primeiros jesuítas na Amazônia ("Padre Manuel Nunes [...] foi o primeiro missionário dos Ingaybas, cujo catecismo compoz em lingua delles, que até hoje se ensina") (Bettendorff 1990:311), porém sem a preocupação de elaborar confessionários nessa língua. Depois de serem evangelizados em suas línguas, os índios batizados deveriam usar o tupi durante a confissão obrigatória. Daniel menciona o uso de castigo físico quando as mulheres nheengaíba não aceitavam serem confessadas na língua geral. O uso de força nessa situação era para evitar a presença de intermediários entre o padre e a penitente:

"Como porém as confissões das tapuia por intérprete trazem consigo muitos inconvenientes, tem-se empenhado muitos missionários a desterrar este abuso, já com práticas, e já com castigos: e posto que já vai em muita diminuição, contudo ainda há algumas, que nem a pao querem largar este abuso: tanto que já houve algumas, às quaes o seu missionário mandou dar palmatoadas até elas dizerem basta ao menos, pela língua geral, antes se deixavam dar até lhes inchar as mãos, e arrebentar o sangue, até que se resolviam a fazer, o que deviam logo, que era o falar a língua comum" (Daniel 1976:vol.I:272) .

As posições assumidas pelos jesuítas na confissão dos nheengaíba na primeira metade do século XVIII indicam que a política lingüística da Ordem estava baseada na diversidade lingüística até o batismo, mas depois dessa fase o índio cristão deveria ser socializado por meio do tupi, para participar dos demais rituais cristãos obrigatórios.

Com a expulsão dos jesuítas em 1759 pelo governo pombalino, oficializou-se um discurso contrário ao uso da língua geral na evangelização, porém essa oposição foi uma discussão mais da metrópole e menos de párocos na Amazônia. Estes últimos mantiveram o uso desta língua na confissão, com apoio dos governadores pombalinos, como testemunha o Padre Manuel da Penha do Rosário, em 1773:

E, por mandado do Ilmo. e Exmo Sr. Fernando da Costa de Ataíde e Teive e do ministro a quem pertencia a cadeia, me não mandariam com outros, em o ano de 1770 aos cárceres desta e aos do arsenal, e também ao Hospital Real, de propósito pedidos, por lhes por lhes entendermos a língua, e para nela ouvirmos as suas confissões do preceito anual" (Penha do Rosário 1773 apud Pereira 1993:43).

6. Conclusão

Os confessionários em línguas indígenas e as discussões teológicas sobre a confissão em contextos multilíngues foram definidos como expressões de políticas linguísticas da Igreja. Ambos explicitavam opções sobre como agir no diálogo da confissão. Essas escolhas ocorreram em nível micro, pelas preferências adotadas pelos confessores no momento da confissão, guiados pelas suas leituras, e em nível macro, pelos discursos elaborados em tratados teológicos sobre o tema e pelos confessionários.

O trabalho tinha como proposta abordar o nível macro da discussão sobre o intérprete entre os séculos XVI e XVIII. Foram apresentadas as discussões teológicas sobre o tema desenvolvidas por alguns teólogos, como Azpilcueta Navarro e Peña Montenegro, autores que tiveram repercussão entre os missionários da evangelização ibérica. Os missionários absorveram o debate europeu, mas incorporaram-lhe especificidades. Uma delas foi a diferenciação linguística entre línguas gerais e línguas particulares: na visão de Peña Montenegro, era viável o uso do intérprete apenas nos casos das línguas particulares. Para os índios de língua geral, dever-se-ia usar os confessionários, estruturados como sequência de perguntas.

Outra especificidade da política linguística dos missionários no que se refere à confissão foi que nas colônias tomaram-se medidas para a criação de grupos auxiliares formados por pessoas que estavam submetidas às relações de poder dos padres. As ordens religiosas estabeleceram instrumentos para a formação de um grupo de intérpretes, como ocorreu com os jesuítas no Brasil, que absorveram colonos bilíngues, ainda que esses não apresentassem as condições necessárias para serem ordenados (Barros 1995). Na Europa, o penitente trazia o seu intérprete, como no caso do mudo, que poderia escolher alguém que estivesse habituado a compreendê-lo (Petite 1817:35).

Por fim, foi analisado o caso particular da política linguística dos jesuítas no Brasil em relação à confissão dos índios em duas conjunturas. No século XVI, quando o confessionário tupi ainda não estava fixado, os jesuítas fizeram uso do intérprete. No século XVIII, quando os confessionários já estavam elaborados, os jesuítas afastaram os intérpretes também da confissão dos índios não tupi, que passaram a ser confessados pelos roteiros de perguntas da língua geral.

Recebido em setembro de 2010

Aprovado em fevereiro de 2011 (versão revisada)

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    . A pesquisa foi realizada com o apoio do CNPq e da Fundação Carolina (setembro-novembro de 2008). O professor Joaquín Sueiro (Universidade de Vigo) orientou a pesquisa nos acervos espanhóis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2011
    • Recebido
      Set 2010
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