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Mulheres emocionalmente descontroladas: identidades generificadas na mídia contemporânea

Emotionally disturbed women: gendered identities in the contemporary media

Resumos

Vários estudos sobre a caracterização da identidade de gênero na mídia têm sinalizado que o eixo bipolar masculino-feminino vem orientando historicamente as narrativas identirárias, ao diferenciar homens e mulheres em razão de sua anátomo-fisiologia. Apontam ainda para o fortalecimento, na contemporaneidade, de discursos cientificistas explicativos do comportamento humano, alimentados pelos avanços tecnológicos e pelo mercado. Tendo em vista esse panorama, o propósito do presente estudo é, com base em um texto jornalístico inglês, mapear parte das crenças e da lógica que figuram no cenário midiático contemporâneo, analisando sua participação na construção do conceito de mulher e de feminilidade hegemônica. O referencial da Análise Crítica do Discurso é utilizado para abordar o processo de construção de posições imaginárias propostas para os interlocutores cujas vozes interagem no referido texto.

Identidade; Gênero; Discurso midiático; Análise Crítica do Discurso


Different studies on the construction of gendered identities in the media have shown that the male-female polarity has been guiding historical narratives, as it differentiates men and women according to biological features. They also problematize the role played by technological developments and marketing practices in the strengthening of explanatory scientific discourses concerning human behavior in the contemporary scenario. In light of this state of affairs, the purpose of the present paper is to map part of the beliefs and logics underlying contemporary media practices, analyzing its participation in the construction of womanhood and hegemonic femininity. The reflection is triggered by an article published in an English newspaper and draws on Critical Discourse Analysis to approach the construction of imaginary subject positions for interlocutors whose voices interact in the focused text.

Identity; Gender; Media discourse; Critical Discourse Analysis


ARTIGOS

Mulheres emocionalmente descontroladas: identidades generificadas na mídia contemporânea* * Sou grata ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado (no. 300715/ 02-01) que possibilitou a produção deste artigo bem como aos professores Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ) e Marlene Soares dos Santos (UFRJ) pela leitura crítica de uma primeira versão do trabalho.

Emotionally disturbed women: gendered identities in the contemporary media

Branca Falabella Fabrício

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

Vários estudos sobre a caracterização da identidade de gênero na mídia têm sinalizado que o eixo bipolar masculino–feminino vem orientando historicamente as narrativas identirárias, ao diferenciar homens e mulheres em razão de sua anátomo-fisiologia. Apontam ainda para o fortalecimento, na contemporaneidade, de discursos cientificistas explicativos do comportamento humano, alimentados pelos avanços tecnológicos e pelo mercado. Tendo em vista esse panorama, o propósito do presente estudo é, com base em um texto jornalístico inglês, mapear parte das crenças e da lógica que figuram no cenário midiático contemporâneo, analisando sua participação na construção do conceito de mulher e de feminilidade hegemônica. O referencial da Análise Crítica do Discurso é utilizado para abordar o processo de construção de posições imaginárias propostas para os interlocutores cujas vozes interagem no referido texto.

Palavras-chave: Identidade; Gênero; Discurso midiático; Análise Crítica do Discurso.

ABSTRACT

Different studies on the construction of gendered identities in the media have shown that the male–female polarity has been guiding historical narratives, as it differentiates men and women according to biological features. They also problematize the role played by technological developments and marketing practices in the strengthening of explanatory scientific discourses concerning human behavior in the contemporary scenario. In light of this state of affairs, the purpose of the present paper is to map part of the beliefs and logics underlying contemporary media practices, analyzing its participation in the construction of womanhood and hegemonic femininity. The reflection is triggered by an article published in an English newspaper and draws on Critical Discourse Analysis to approach the construction of imaginary subject positions for interlocutors whose voices interact in the focused text.

Key-words: Identity; Gender; Media discourse; Critical Discourse Analysis.

1. Introdução

Uma questão de cabeça – Pesquisas explicam por que

homens e mulheres se comportam de forma distinta De

acordo com as pesquisas mais recentes, o sexo feminino teria maior

facilidade para assimilar tudo mais rapidamente. Isso ocorreria

porque o corpo caloso (estrutura que faz a ponte entre os dois hemisférios

do cérebro) é maior na parte posterior do cérebro das mulheres,

permitindo melhores conexões entre os neurônios {...} Os homens

são mais focados.

Jornal da Família – O Globo, 18 de agosto de 2002

Uma rápida leitura do excerto acima, retirado de jornal de ampla circulação no país, sinaliza o quanto a polarização masculino–feminino ainda é objeto de intensa atenção e tematização na contemporaneidade. Indica também que homens e mulheres continuam a ser diferenciados em razão da sua anátomo-fisiologia, na medida em que explicações de cunho fisicalista atribuem ao cérebro "sexuado" a responsabilidade pela conduta social, psicológica e moral.

Entretanto, abordagens dessa natureza convivem com outras perspectivas diversas, que localizam as noções de sexo, sexualidade e gênero no universo do discurso, considerando-as efeitos de nossas práticas discursivas. Essa coexistência de posturas aponta para uma característica marcante da contemporaneidade. Por um lado, há toda uma corrente de teorização caracterizando a mente como construção social; repensando o dualismo mente–corpo; questionando a estabilidade das identidades sociais; e revitalizando o pensamento do múltiplo, do movimento e da contingência. Por outro lado, verifica-se um fortalecimento galopante de discursos cientificistas explicativos sobre o comportamento humano. Muitos deles constroem como verdade objetiva conceitos naturalizados, amplamente propalados pela mídia, sobre as identidades sociais de gênero. No caso das mulheres, é comum vê-las caracterizadas em razão de sua sensibilidade exacerbada, com traços freqüentes de "histeria" emocional.

Mulheres Apaixonadas – novela exibida pela Rede Globo no período em que eu escrevia esse artigo, e cujos altos índices de audiência são conhecidos –, por exemplo, figura no contexto brasileiro atual como epítome desse movimento de localização do universo feminino no território do descontrole, da patologia e do comportamento obsessivo. Em contrapartida, a mídia escrita, em diversos países, não cessa de publicar artigos cujas citações, revestidas de valor científico, dão respaldo a essa conceitualização. É o caso do artigo informativo analisado abaixo, publicado no jornal inglês The Observer, sobre o comportamento feminino em face do consumismo descontrolado, no qual mulheres são retratadas como viciadas em compras (cf. AnexoAnexo).

Tendo em vista esse panorama, o propósito do presente estudo é analisar parte das crenças presentes no contexto midiático que colaboram na construção do conceito de mulher e de feminilidade hegemônica, contribuindo para a discussão acerca da questão identitária na contemporaneidade e sua vinculação com os discursos que nos constroem. Tomando como ponto de partida o artigo acima citado, problematizo certas práticas discursivas da mídia jornalística, referendadoras de crenças quanto às identidades sociais de gênero que nos rondam desde a Modernidade. No percurso traçado, 1) articulo parte da recente teorização em torno da ligação entre discurso, identidade e gênero com a discussão foucaultiana sobre o biopoder; 2) problematizo a associação contemporânea entre mídia, leis de mercado e gestação de novas possibilidades identitárias; 3) utilizo o referencial da Análise Crítica do Discurso para analisar a construção de posições imaginárias de sujeito propostas para os interlocutores cujas vozes interagem no referido texto midiático; e, finalmente, 4) aponto as implicações éticas das correlações propostas.

Cabe esclarecer que meu objetivo não é tecer considerações sobre a mídia inglesa em particular. Julgo que a análise do referido artigo pode ajudar-nos a 1) mapear parte das crenças e da lógica que figuram em textos midiáticos em geral; e 2) colocar em perspectiva a dinâmica da construção identitária neste espaço de constituição de sentido tão relevante na contemporaneidade. O estudo proposto funciona, assim, como possibilidade de entendimento de práticas discursivas que, ao integrarem o imaginário de nossa época, disponibilizam um parâmetro de subjetivação generificada.

2. Discurso, Identidade e Gênero

Wittgenstein (1953[1996]) chama nossa atenção para a complexa rede de sentidos públicos que orienta nossas possibilidades de ser, fenômeno que tem sido foco de grande interesse na contemporaneidade. Seja porque os nossos parâmetros usuais de atribuição de sentido para a experiência estejam em transformação, seja porque nosso quadro de referências quanto aos limites da experiência é confrontado, quase que diariamente, com uma multiplicidade desconcertante de opções de estilos de vida, o fato é que o indivíduo contemporâneo é percebido como fragmentado e assolado por uma crise identitária.

O cenário de diversidade torna mais difícil a caracterização de um "eu" individual uno e estável. A noção de que a identidade é um processo social intersubjetivo e relacional, que pressupõe o outro, esvazia a idéia de que a subjetividade humana possa ser definida por fatores biológicos internos e configura o sujeito como constituído por uma trama de identidades plurais e inconclusas (Shotter & Gergen, 1989). Assim, o conceito de identidade completa e coerente é desafiado, dando espaço à conceitualização de sujeitos multifacetados e provisórios, fabricados por uma complexa rede de discursos produzidos na cultura, e envolvidos em um contínuo movimento de "tornar-se".

Nesse eterno processo de "vir a ser", utilizamos categorias sócio-historicamente construídas em nossa trajetória pelo mundo público, definidoras de possibilidades de formas de vida. Essas envolvem uma série de atos de atribuição: somos diferenciados e categorizados por nomes próprios, rótulos, aspectos corporais e toda sorte de características físicas, números, classe social, gênero, sexualidade, profissão, raça, etnia, nacionalidade e, mais recentemente, senhas, entre outras designações (Fabrício, 2002). Entretanto, apesar de construirmos nossas identidades sociais a partir de uma ampla trama – "montagem" complexa de vários elementos –, em nossa cultura somos freqüentemente posicionados e classificados com mais visibilidade em termos de nossa identidade de gênero (Moita Lopes, 2002).

As categorias sexo, sexualidade e gênero1 1 A distinção entre sexo, gênero e sexualidade pode ser aprofundada no trabalho de Moita Lopes (2002). Segundo esse autor, as identidades de gênero (classificação social das marcas anatômicas) são freqüentemente abordadas na cultura como tendo uma essência apoiada em um substrato fisico-biológico (categoria de sexo), o que traz implicações para o conceito de sexualidade (comportamento social e emocional), pois estabelece comportamentos adequados à "natureza" biológica do sexo (heterossexualidade) ou desviantes dela (homossexualidade). Afastando-se dessa visão, o autor convida-nos a entender os conceitos de sexo, sexualidade e gênero como construções socioculturais. contribuem com elementos básicos para nossa trama identitária, reforçando visões estereotipadas da feminilidade e da masculinidade. Como apontam Woodward (1997) e Moita Lopes (2002), a identidade é, para muitos, primordialmente uma categoria de gênero e sexualidade, cujas características derivam de diferenças fundamentais entre a sexualidade masculina e a feminina, que nos posicionam no mundo social. Entretanto, apesar de sermos identificados por critérios públicos, podemos recusar ou aceitar essa identificação, definindo-nos de forma diversa e nos auto-enunciando outros. Mas como explicar o fato de as identidades poderem ganhar certa estabilidade e constância em nossas atividades e procedimentos rotineiros?

A resposta à possibilidade de "estabilização" ou transformação identitária não pode ser ingênua no sentido de considerar que somos livres para escolher a identidade que melhor nos convier. Moita Lopes (2003), aludindo à natureza situada das interações sociais e ecoando um ponto de vista foucaultiano, resume com clareza a posição de vários teóricos com relação a essa questão: "as instituições e as coletividades operam na legitimação institucional, cultural e histórica de certas identidades sociais enquanto outras se tornam ilegítimas, destruídas, encarceradas e patologizadas" (Moita Lopes, 2003:21). Assim, crenças e discursos operam constrangimentos em nossas possibilidades de ser, pois, ao serem incorporados de maneira naturalizada, tornam-se parte aparentemente "estável" da prática social dos sujeitos contemporâneos. É nesse momento que cabe lembrar a perspectiva foucaultiana, pois ela nos mostra a gestação de significados acerca da "feminilidade" que atingiram alto grau de estabilidade em nossa cultura.

3. Foucault e os biopoderes

Em História da Sexualidade I: a vontade de saber (1988), Foucault analisa as relações de poder como sendo produtivas da subjetividade das mulheres, permitindo-nos, ao entender que ser alguém é historicamente datado, localizar uma herança semântica no presente de nossas ações generificadas.

O pensador sugeriu que, ao longo do século XVIII, a sexualidade foi um lócus privilegiado de investigação e de produção de conhecimento. Foi nesse período de plena Modernidade que o uso das categorias de "sexo" e "corpo sexuado natural" como base de diferenciação entre homens e mulheres foram tematizadas, gerando uma verdadeira epidemia de significação (Harding, 1997) quanto a padrões de normalidade e patologia. A noção de poder que passava a estar em jogo era a noção de poder sobre o corpo e sobre a vida, característica configuradora de um biopoder – um poder regulativo que, privilegiando certos repertórios de conduta em detrimento de outros, cria o eixo bipolar normal–desviante, gerador de parâmetros para a subjetivação.

A sexualidade, como domínio do saber, foi constituída, assim, a partir de relações de poder que a instituem como objeto possível de conhecimento. O século XVIII incitou um enfoque obsessivo na sexualidade, produzindo toda uma rede de saberes em torno do corpo da mulher e de sua função na sociedade. Várias áreas da experiência corporal feminina tornaram-se progressivamente sujeitas ao constante escrutínio de técnicas médicas, processo catapultador de significados em rede. Faz parte dessa profusão de sentidos em formação a construção da mulher como grupo homogêneo cujos membros compartilham, entre muitas características, a histeria, o descontrole emocional, o comportamento obsessivo, a fragilidade corporal e mental e a infantilidade. O historiador Thomas Laqueur (2001) reconstrói a lógica que pode subjazer a essa construção. A ideologia iluminista da igualdade, liberdade e progresso, presentes sobretudo no panorama revolucionário francês, precisava justificar retoricamente a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, de modo a conciliá-la com os ideais igualitários propalados no período. Homens e mulheres eram iguais, mas a "natureza" feminina imputava a estas traços inerentes de certa irracionalidade, passionalidade e dependência emocional que as tornariam incapacitadas de atuar no domínio público da vida política, econômica, científica e intelectual, atributos identitários do mito da masculinidade hegemônica. Essas habilidades caberiam aos homens, não por serem eles seres superiores, mas por as apresentarem como características próprias à biologia masculina.

A idéia de sexo frágil, tão presente no senso comum e, freqüentemente, tratada como a-histórica, seria, por conseguinte, filha dileta da ligação entre conhecimento, ideologia, saber e poder. Focalizar o processo histórico de gestação dos princípios norteadores da subjetividade dita "feminina" e chamar a atenção para sua dimensão sociocultural permitem-nos compreender melhor quem somos e captar e reconstruir o mosaico de crenças e narrativas que nos constituem, pois, segundo Bruner (1997), ser humano significa ter uma história de vida.

As histórias que circulam na mídia fazem parte dessa nossa biografia. É por tal razão que as práticas discursivas midiáticas, se abordadas pelo ângulo foucaultiano, podem ser consideradas como tecnologia de poder, pois engendram sistemas de correlações de força e efeitos de verdade, auxiliando-nos a tecer a trama de sentidos de nossos tempos.

Estudos em Análise Crítica do Discurso reconhecem as diferentes mídias como importantes instituições sociais, a um só tempo formadoras e disponibilizadoras de crenças e valores culturais, políticos e sociais (Bell & Garrett, 1998). Por tal razão, a compreensão do discurso midiático é importante devido a seu aspecto constitutivo da sociedade e das identidades sociais e sua dimensão expressiva dos valores socioculturais que coloca em circulação. Bell (1998:64) considera que "jornalistas não escrevem artigos, eles escrevem histórias – com estrutura, ordem, ponto de vista e valores". Essas, entretanto, são apresentadas nem sempre como perspectivas, mas sim como constituídas de fatos objetivos e verdadeiros. Devido à força da mídia na constituição do repertório de sentidos das grandes massas (Fridman, 2000), observar as histórias que por ela circulam e compreender sua dinâmica de produção e de incorporação ao senso comum pode colaborar para o entendimento do processo de produção de identidades aparentemente "estáveis" no mundo social.

4. A construção do gênero no discurso da mídia

Vários autores caracterizam nossos tempos fundamentalmente em termos das intensas e rápidas mudanças verificadas em todos os campos de atuação humana (Chouliaraki & Fairclough 1999; Gee, Hull & Lankshear, 1996; Giddens, 1991); ressaltam também a importância que as práticas discursivas, como constituintes da vida social, ganham nesse panorama de transformação, devido ao uso da linguagem, cada vez mais estratégico, nos campos da política, do trabalho, da propaganda e da mídia, entre outros – processo denominado tecnologização do discurso (Fairclough, 1996).

Integrada a esse cenário, a mídia atua em um movimento duplo e contraditório de favorecimento, simultâneo, da percepção de heterogeneidade e de homogeneidade. Ao mesmo tempo em que divulga possibilidades identitárias múltiplas – já que faz circular, com grande rapidez e alcance, discursos sobre diferentes formas de vida –, constrói também uma visão de homogeneidade, pois contribui para o engessamento de modos de ser. Isso ocorre porque grande parte da mídia, a exemplo do que aprendemos na cultura, constrói atributos identitários como se fossem intrínsecos às pessoas, ao apagar sua natureza social e intersubjetiva e ao naturalizar as contingências sociodiscursivas que nos constroem (cf. Moita Lopes, 2002:18).

Esse movimento fica claro quando consideramos o amplo espaço que pesquisas empíricas no campo da neurociência têm tido na mídia, recriando um espírito positivista de fé na ciência e na razão científica como instâncias transcendentes explicativas do comportamento humano. Os estudos divulgados utilizam, em sua grande maioria, um vocabulário exclusivamente fisicalista (sinapses, genes, seqüência de cromossomos, DNA, neurotransmissores, enzimas, por exemplo) que supostamente esgota as possibilidades descritivas de fatos, eventos ou aspectos da experiência subjetiva. Segundo Bezerra Jr. (2002a, 2002b), a presença do mito da ciência como validadora de sentidos está cada vez mais forte com a explosão da biotecnologia, o boom da genética e o desenvolvimento de técnicas estatísticas, oferecendo um roteiro de autodescrição com base na nomenclatura médica, que fornece as causas para o comportamento social. Alguns pressupostos sobre os quais repousa essa linha de pensamento parecem claros. Entre eles, o mais flagrante é a consideração da diferença biológica como conclusiva para o entendimento dos comportamentos sociais.

É bem verdade que a história do Ocidente é atravessada por essa perspectiva de encontrar leis de causalidade última. Entretanto, o cientificismo dos discursos médicos na contemporaneidade tem sido revestido de uma força cada vez mais persuasiva, em razão de sua cooptação pelas leis do mercado, ganhando destaque na mídia e retroalimentando a indústria farmacêutica. A esta dinâmica, Giddens (1991) acrescenta mais um elemento. Segundo o sociólogo, esse movimento também encontra amplo respaldo na noção de risco presente na sociedade contemporânea. Ao perderem um sentido mínimo de confiança nas tradicionais instâncias protetoras e normativas (como, por exemplo, Estado, Educação, Saúde, Governo e Família), os indivíduos, sentindo-se abandonados às escolhas próprias e à autogestão da vida, desenvolvem uma idéia de insegurança e angústia. Por outro lado, as incertezas são fomentadas pela própria mídia, que, ao divulgar continuamente debates científicos contraditórios, acaba por colocar em xeque as certezas do discurso científico, contribuindo para a atmosfera de risco e de perda de referenciais na contemporaneidade.

Aumenta, assim, a demanda por serviços de apoio e por terapeutas/especialistas do bem-estar – criando a dependência de sistemas peritos – e esquenta o mercado editorial com o incremento da procura por livros de auto-ajuda, auto-exame, auto-aprimoramento e autocompreensão. Tal literatura torna-se rapidamente campeã de vendas, capitalizando em cima do solo "seguro" de explicações "objetivas". Uma das conseqüências desse panorama é o surgimento de novos critérios para o estabelecimento de padrões ideais na construção de imagens identificatórias. "Instados a se tornarem mais flexíveis, adaptáveis, competitivos [...] de modo a poderem disputar no mercado não só a sobrevivência física, mas também alguma forma de reconhecimento social – os indivíduos tornam-se permeáveis não só ao discurso fisicalista sobre a subjetividade, mas a diversas outras formas de presença de princípios biológicos na ordenação de sua existência" (Bezerra Jr., 2001:4).

A clínica psicanalítica atual aponta que a injunção cultural de nossa época – na qual se destaca o imperativo do individualismo e do gozo, insuflado pela lógica mercadológica neoliberal – modifica o quadro das patologias contemporâneas, propiciando um incremento de, entre outros, transtornos narcísicos, transtornos de adição e transtornos compulsivos (Bezerra Jr., 2003).

Cabe esclarecer que não se trata de criticar a ciência, cujo fazer tradicionalmente envolve especulação e formulação de hipóteses iniciais, muitas das quais serão descartadas posteriormente. O problema é que o jornalismo científico, porta-voz dos valores da cultura, homologa noções de verdade e de hegemonia das "descobertas" de pesquisadores. Geralmente, manchetes chamativas e reportagens de conteúdo questionável são apresentadas ao grande público, simplificando noções complexas e apresentando fatos contestáveis e provisórios como certezas inauditas, "comprovadas pela ciência". O discurso científico é apresentado, assim, como epistemologicamente superior a outros, detentor de neutralidade, transparência e capacidade de revelar a verdade. Essa dinâmica dá margem aos mais diversos tipos de generalizações, que tendem a ser incorporadas acriticamente ao senso comum.

De acordo com essa perspectiva, vários autores focalizam o papel da imprensa escrita na construção de identidades sociais de gênero e sexualidade (Caldas Coulthard, 1996; Talbot, 1992). Alguns deles mostram como as revistas femininas geralmente funcionam como verdadeiros manuais de comportamento, elaborando scripts comportamentais contrastantes que orientam meninos, meninas, homens e mulheres no trânsito pelo mundo social. Esses textos, típica manifestação cultural, costumam ser construções monolíticas que lidam com as noções de sexo, sexualidade e gênero como categorias estáticas e a-históricas, fornecendo modelos para a identificação e para a ocupação de determinadas posições de sujeito que auxiliam na construção de identidades generificadas – como, por exemplo, "as mulheres são mais flexíveis e emocionais que os homens".

Fairclough (1995, 1998) sugere que, para a compreensão dessa relação entre o discurso e o mundo sociocultural, devemos ir além de uma análise das particularidades de um evento comunicativo específico – por exemplo, um artigo informativo. No seu entender, é essencial que abordemos um texto em sua dupla dimensão de prática discursiva e prática social. A primeira diz respeito ao seu processo de produção e interpretação, enquanto a segunda refere-se à sua articulação com o contexto sociocultural global. O foco é geralmente colocado no aspecto da intertextualidade, ou seja, na trama de vozes, presentes em um texto, que estabelecem uma relação dialógica entre si e entre outros textos do mundo social. Um texto pode ser visto, então, como um complexo e heterogêneo "emaranhado de vozes" e os interlocutores (escritor, leitores e atores sociais que contracenam no texto) como personagens que interagem e ocupam certas posições de sujeito na medida em que seus pensamentos e palavras ganham voz. Tal perspectiva nos convida a investigar a construção dos leitores a partir da "população" total de um texto, ou seja, todas as personas e vozes nele presentes (Talbot, 1992).

A imprensa escrita faz uso de uma série de estratégias específicas para selecionar o público leitor, criar envolvimento com ele e conferir credibilidade às informações veiculadas. A escolha dos personagens é uma delas, mas há uma vasta gama de aspectos textuais que não só funcionam como pistas da "população" de um texto, como também aproximam o leitor dela. Estratégias como a inclusão de testemunhos, narrativas, histórias de vida, relatos de pequenos dramas cotidianos, técnicas de conversação e fotos apelativas funcionam como forma de argumentação e persuasão, e, conseqüentemente, estabelecem um diálogo direto com o leitor. Em seu conjunto, elas contribuem para a formação do ponto de vista do escritor. Essas estratégias, recorrentes em revistas femininas, revistas de "fofoca", propagandas e tablóides, têm figurado também em jornais e revistas de primeira linha, isto é, mais informativos e menos sensacionalistas. Essa situação seria um exemplo de hibridismo – fenômeno distintivo, segundo Fairclough (2000), do processo contemporâneo de construção de sentidos. O termo alude aos limites tênues entre domínios tradicionalmente distintos que passam a compartilhar práticas discursivas semelhantes.

É com base nesse referencial analítico e nas estratégias discursivas apontadas que me volto, a seguir, para a análise da população do texto midiático já citado (cf. AnexoAnexo) a fim de compreender quais as posições de sujeito nele construídas para o público leitor, ou seja, que possibilidades de identificação podem ser geradas pela interação leitor–texto.

5. Mulheres emocionalmente descontroladas

Recentemente, vários textos na imprensa escrita têm focalizado o universo feminino. Muitos anunciam novas possibilidades de ser mulher, demolindo estereótipos, desafiando o modelo de feminilidade hegemônica e, de certa forma, implodindo a dicotomia masculino–feminino. Notícias e discussões sobre mulheres ativas2 2 Conferir a matéria "Garotas no ataque: atitude feminista de tomar a iniciativa chega à geração adolescente", publicada no caderno Folhateen, do jornal Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2003, p. 6-8. e poder feminino3 3 A reportagem "O poder feminino: Mulheres no comando", sobre mulheres tenentes-coronéis, é um bom exemplo dos novos papéis sociais desempenhados por mulheres que quebram a hegemonia masculina em cargos de poder na Polícia Militar. , entre outras, questionam o mito da mulher frágil, incapaz e descontrolada emocionalmente (tão flagrante no caso da novela televisiva aludida na Introdução). Entretanto, tais discursos convivem com outros que insistem na caracterização das mulheres à luz desses critérios construídos na Modernidade (cf. Seção 3). Presentes em jornais e revistas, dos mais sérios aos mais sensacionalistas, páginas "científicas" tendem a analisar, sem a menor cautela, o comportamento das mulheres, procurando explicações fisicalistas para o mesmo. A tônica é a inclusão de informações "curiosas" a respeito de fatores biológicos que possam lançar luz sobre o comportamento feminino.

Um desses artigos, o selecionado para a análise, é "One woman in five is a shopaholic" (Uma em cada cinco mulheres é viciada em compras), produzido pela jornalista Tracy McVeigh. Tendo sido publicado no jornal inglês The Observer, em 26 de novembro de 2000 (cf. AnexoAnexo), chamou-me a atenção por vários motivos: 1) por sua relação com a temática identitária; 2) pela falta de perspectiva crítica, apesar de sua publicação em um jornal sério, reconhecidamente de esquerda, o que gera no leitor a expectativa de um conteúdo menos identificado com o senso comum; 3) por seu aspecto híbrido, verificado na utilização de estratégias para a criação de envolvimento recorrentes na mídia sensacionalista; e, finalmente, 4) pelo "emaranhado de vozes" nele presentes, promovendo uma curiosa interpenetração de discursos modernos e contemporâneos.

Com base no universo teórico discutido acima, detecto a "população" do texto e busco localizar as estratégias empregadas pela articulista na construção de posições de sujeito no artigo. Para fazê-lo, observo a identidade social encenada pela própria escritora. Começando pela prática discursiva de produção do texto, ressalto que a autora nele se localiza como uma jornalista que se enuncia por seu próprio nome, Tracy McVeigh. Sublinho, também, que o próprio título e o subtítulo da matéria, beirando o sensacionalismo, contribuem para o posicionamento da autora:

Uma mulher a cada cinco é viciada em compras: crédito fácil e pressão do grupo incentivam milhões a comprar além de suas possibilidades, causando uma espiral de depressão. 4 4 A tradução do artigo é de minha própria autoria, visando facilitar a inteligibilidade dos pontos levantados.

Ao fazer uso de dados estatísticos e números para aludir à prática social de consumo, McVeigh já cria, desde o início, um modo pretensamente objetivo de distanciamento com relação ao texto produzido, caracterizando o artigo como apresentação de dados empíricos crus e sinalizando que não faz parte do grupo consumidor a ser tematizado: o compulsivo. Além disso, as duas manchetes mobilizam intertextos culturais presentes, como ponderado por Foucault, no imaginário ocidental: a associação do fenômeno de descontrole (nesse caso, no contexto de consumo) ao universo da mulher e o vínculo entre a condição feminina e patologias psíquicas como a adição e a depressão. Esta última, em tom um tanto alarmista, antecipa a metáfora da doença epidêmica, trabalhada ao longo de todo o texto em sintonia com a filosofia de risco presente na contemporaneidade (cf. Seção 4).

Apesar de o título da reportagem aludir apenas às mulheres, seu início parece ampliar o universo dos vitimados pela "doença", fazendo entrar em cena também personagens masculinos. Observemos os dois primeiros parágrafos (cf. AnexoAnexo, linhas 01-06):

Posh e Becks o fazem em conjunto. Liz Hurley vai sozinha e Madonna o fez durante os nove meses de gravidez. A terapia das compras tornou-se uma das práticas de lazer mais populares da Grã-Bretanha. Mas a percentagem da população que sofre do sério problema de adição às compras está atingindo um ponto crítico, ultrapassando o número de viciados em drogas e bebidas no Reino Unido.

Várias celebridades, homens e mulheres, são relacionadas à prática do consumo, a começar pelo casal mais comentado na mídia inglesa: Victoria, ex-integrante do conjunto Spice Girls, e David Beckham, jogador de futebol mais popular na Inglaterra (apelidados de Posh e Becks). Ele faz marketing de uma infinidade de produtos de consumo, tendo seu rosto exibido em jornais, revistas, outdoors, shoppings e propagandas. Em seguida, temos a atriz de cinema Liz Hurley e a cantora americana Madonna. Mais tarde, Elton John, famoso cantor inglês, irá integrar o elenco estelar (AnexoAnexo, linhas 66-67).

Esses personagens são imediatamente relacionados à atividade de compras, apresentada, nesse momento inicial, como prazerosa prática de terapia e lazer. Entretanto, a introdução de uma oração iniciada por "but" – a adversativa mas, em português – (linha 4) dá início à caracterização do consumo como doença aditiva e, imediatamente, lança uma luz de "estranheza" sobre esses famosos conhecidos do senso comum. Vários intertextos disponibilizados pela própria mídia podem ser mobilizados, para caracterizá-los como fora dos padrões de normalidade. Posh é casada com Becks, um metrossexual – termo que alude ao novo homem das metrópoles: heterossexual vaidoso que disputa o espelho com a namorada e confunde as mulheres (segundo reportagem em O Globo, 13 de julho de 2003). Liz Hurley, a celebridade solitária, separou-se do companheiro Hugh Grant, depois de seu envolvimento em escândalo sexual. Madonna assumiu a maternidade como produção independente. Elton John é assumidamente gay. Logo, uma relação de causa e efeito se estabelece: os que têm um comportamento desviante vão às compras.

O "problema médico" (medical condition – linhas 04-05), construído como personificação metafórica, é sério e atinge um ponto crítico, à medida que o número de casos de viciados em compras na Grã-Bretanha ultrapassa o de viciados em drogas e álcool.

Ao trazer para seu texto um conjunto de celebridades que tem no consumo exacerbado uma prática comum, a escritora Tracy McVeigh apresenta uma de suas vozes: a de conhecedora crítica da cultura e dos problemas da sociedade de consumo. Essa voz será desenvolvida ao longo de todo o texto, interpolando-se em outras vozes, como as de pesquisadora e historiadora da "doença" e entrevistadora de especialistas na área, e vitimados pela "condição aditiva". Para tal, a jornalista mobiliza uma série de atores sociais – um conjunto de peritos (experts) no assunto e de "viciados" em consumo, que darão credibilidade ao tema em construção (cf. Seção 4). Tal aspecto começa a ser desenvolvido na continuação do artigo, trazendo a voz da ciência (cf. AnexoAnexo, linhas 07-15):

Especialistas acreditam que dez por cento da população, e possivelmente vinte por cento das mulheres, são compradoras maníacas e compulsivas. A maior parte dos viciados em compras está seriamente em débito, e a doença já provocou rupturas de famílias, depressão, perda de moradia e até suicídio.

Conhecida como omniomania, a doença é conhecida por psiquiatras desde 1900, mas só agora está atingindo proporções epidêmicas. Um relatório da União Européia revelou recentemente que metade das meninas entre 14 e 18 anos na Escócia, Itália e Espanha exibem sintomas de adição às compras, e 8 por cento mostram sintomas de 'compulsão patológica'.

Esse parágrafo desenvolve a construção da prática social de compras como doença que vem atingindo proporções de epidemia. Para assinalar a "gravidade" do problema (the condition) que mostra sinais de "compulsão patológica" (linha 15), a jornalista historiciza a doença, cuja sintomatologia é conhecida por psiquiatras, desde 1900, pelo nome técnico omniomania. Cita também números e porcentagens presentes em estudos encaminhados por especialistas que caracterizam vinte por cento das mulheres como consumidoras maníacas e compulsivas. É a partir desses intertextos científicos, relacionados a intertextos gerados na Modernidade (cf. Seção 3), que a matéria começa a associar o comportamento, por assim dizer, "histérico" sobretudo à "mulher", independentemente de origem ou idade, nomeando mais especificamente as vítimas da doença. Elas não são somente inglesas. Um relatório da União Européia revelou que adolescentes escocesas, italianas e espanholas também apresentam os sintomas aditivos.

Ao utilizar a voz da historiadora e da pesquisadora, a articulista traz dados "científicos", cujas metodologias de pesquisa e locais de desenvolvimento não são sequer informadas. Entretanto, esses dados, além de conferirem credibilidade à reportagem, contribuem para a construção de um ponto de vista aparentemente neutro, posicionando a autora no grupo de mulheres sãs. Se a identidade é um processo relacional, como visto acima, a construção da identidade do escritor traz implicações para a construção da identidade do leitor. Portanto, o distanciamento da jornalista em face do universo tematizado tanto sinaliza que ela não está incluída entre as mulheres "adoecidas" como indica a quem a escritora se dirige: às mulheres emocionalmente descontroladas, que parecem ser a grande maioria. Podemos surpreender, nesse ponto, mais uma voz: a de conselheira, que previne o público feminino leitor do risco que corre. Poderíamos dizer que a filosofia do risco enquadra toda a argumentação do artigo, conferindo-lhe a força ilocucionária de um alerta quanto à recorrência da doença e de um conseqüente convite à prevenção.

Outra voz vai se juntar a essas: a de jornalista-entrevistadora de autoridades no assunto, cujos depoimentos ampliam os contextos de incidência da "doença", patologia agora já caracterizada como tipicamente feminina (cf. AnexoAnexo, linhas 16-26):

Jim Goudie, um psicólogo especialista em consumo na Universidade de Northumbria, disse que o estigma de ser um viciado em compras, e o fato de tão poucas pessoas levarem a doença a sério, pode estar mascarando o número de sofredores.

'Nossos números se correlacionam a pesquisas realizadas nos EUA mostrando que uma porcentagem semelhante da população americana sofre de problemas de consumo. Mas devido à descrença de algumas pessoas com relação ao problema da adição a compras, os verdadeiros números estatísticos podem ser bem mais altos.'

'Uma das razões por trás desse aumento repentino pode ser o fato de que comprar nunca foi tão atraente. Os shoppings são bonitos hoje em dia, verdadeiros mundos de fantasia. Cartões de lojas são oferecidos no caixa e as pessoas obtêm punhados de cartões de crédito com relativa facilidade.'

A nomeação de um psicólogo da Universidade de Northumbria especialista em consumo franqueia um tom de seriedade às idéias veiculadas, frutos de pesquisas acadêmicas. Apesar de o leitor não ser informado acerca da natureza desses estudos, sua presença na matéria "comprova" a existência da doença, por um lado. Por outro, amplia seu âmbito de incidência – o problema também é verificado nos Estados Unidos –, sugerindo que o número de vítimas pode ser muito maior do que o propalado oficialmente, já que o desconhecimento da doença pode mascarar o número de sofredores. A utilização do discurso direto para reproduzir as palavras do professor-cientista não só atribui veracidade ao artigo, como também colabora para a apresentação das idéias contidas no texto como fatos incontestáveis.

Outro aspecto chama nossa atenção para a característica híbrida do texto. A inclusão de um discurso explicativo de cunho mais sociológico (linhas 23-26) relaciona a prática das compras ao incentivo e apelo ao consumo, promovido pelas lojas e pelas companhias de cartão de crédito. Entretanto, tal argumento não chega a ganhar destaque no texto, cujo foco consiste na patologia e no risco endêmico do vício, que parece assolar, sobretudo, a condição feminina. Tal escolha outorga ao artigo um tom sensacionalista, reforçado por estratégias argumentativas presentes no jornalismo de massa, tais como a inclusão de histórias de vida e narrativas em discurso direto, focalizando o "drama" das mulheres "adoecidas". Essas narrativas, ao lado de explicações "médicas", emprestam seriedade e veracidade ao texto. A articulação encaminhada se harmoniza tanto com o discurso contemporâneo sobre risco quanto com as explicações fisicalistas a respeito do funcionamento da mente e do sofrimento psíquico.

Observe-se, então, como o professor Jim Goudie produz uma explicação causal entre o vício em compras e problemas psicológicos, e como tal teoria é precedida de um testemunho que lhe dará respaldo (cf. AnexoAnexo, linhas 27-35):

Cinco companhias de cartão de crédito estão processando Elizabeth, 31, uma empresária de Leeds. Enquanto falava ao Observer, ela abriu o seu armário e contou 26 bolsas e 72 pares de sapatos.

'Eu não posso começar a contar minhas roupas, isso levaria o dia inteiro' ela disse 'Mas eu acho que minha verdadeira fraqueza são as jóias. Eu tenho muitas, apesar de a maioria ser coisa barata..'

O médico de Elizabeth já lhe ofereceu Prozac, em uma tentativa de combater seu vício, que ele acredita ser gerado por baixa auto-estima. Ela acabou de vender seu apartamento e pagou uma conta devedora de £4,700. Mas ainda está comprando.

Os testemunhos incluídos figuram como ilustração dos argumentos apresentados no texto e ampliam o leque de vitimados pela doença (indivíduos de várias idades e procedências). Eles também fazem entrar em cena outros atores, mais próximos do público leitor. É o caso de Elizabeth, jovem empresária de 31 anos que está sendo processada por companhias de cartões de crédito. Apesar de Elizabeth dizer que as jóias são o seu real "ponto fraco" ("my real weakness is jewllery", linha 31), o descontrole é verificado nas áreas da indumentária: 26 bolsas, 72 pares de sapatos, roupas – que levariam o dia inteiro para serem contadas – e bugigangas (stuff). Esse depoimento, em diálogo com os outros presentes no texto, parece restringir o vício do consumo ao campo de peças do vestuário e assessórios de moda e beleza, entendidos no senso comum como escolhas típicas de mulheres.

Mais uma vez, o texto simplifica a questão em tela. Ao não abordar criticamente a dinâmica social do endividamento, atrelada ao sistema de oferta de cartões de crédito no mercado consumidor sem o pedido do usuário, sublinha o comportamento aditivo causado pela doença, desconsiderando a complexidade de outros fatores em jogo na sociedade de consumo neoliberal, conforme a teorização apresentada em nossa Seção 4. Por conseguinte, verifica-se um apagamento de aspectos relevantes, ligados ao modelo político-econômico atual, para a construção de subjetividades angustiadas na vida contemporânea, entre eles o estar na moda e a boa aparência, moedas de troca hipervalorizadas no mercado das relações sociais capitalistas; as exigências da competitividade acirrada; e a exaltação da competência e da performance nos mais variados contextos, entre outros. O foco é colocado no drama pessoal e nos detalhes (como, por exemplo, a indicação do número de itens presentes no armário), estratégias presentes na imprensa sensacionalista (cf. Seção 4).

O "drama" do descontrole continua a ser caracterizado como doença que requer a intervenção de um GP – iniciais de General Practitioner, uma espécie de clínico geral – (AnexoAnexo, linha 33). A prescrição de Prozac – droga sintética de propriedades terapêuticas, utilizada em casos de depressão – e o "diagnóstico" de baixa auto-estima dialogam/interagem com a idéia de distúrbio psicológico apresentada anteriormente por Jim Goudie, respaldando a associação de pílulas medicamentosas e "cura" para comportamentos desviantes ou problemáticos. Vemos aqui uma interessante injunção de discursos característica de nossa época. Jim Goudie comparece no texto com explicações que ecoam uma típica argumentação "freudiana" quanto ao pathos individual do homo psychologicus. Essa argumentação, que ajudou a formar a sensibilidade dita moderna, constituindo fonte de roteiros de subjetivação (Bezerra Jr., 2002; Freire Costa, 1994), nos ensina que a idéia de conflito e mal-estar interior faz parte da vida e requer indagação, reflexão e reorganização identitária como solução. Atualmente, tal construção convive com outra, presente no procedimento do clínico que prescreve Prozac. A crença subjacente ao processo de intervenção corretiva "científica" é a de que qualquer mal-estar psíquico é indicação de um desvio ou perturbação do mecanismo mental, que pode ser corrigido com fármacos para voltar ao bom funcionamento. A difusão deste tipo de discurso que privilegia a dimensão biológica da vida subjetiva encontra respaldo em uma lógica, caucionada pela indústria farmacêutica e pela ideologia de mercado, que retira o indivíduo do campo das relações sociais e da interrogação responsável acerca da possibilidade de auto-organização do comportamento, lançando-o ao comércio das pílulas do bem-estar.

Essa última vertente explicativa vem ganhando vulto na contemporaneidade, ao situar o conceito de mal-estar "no campo da performance física ou mental que falha, muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza" (Bezerra Jr., 2002:235). Nesse panorama, a clínica psicanalítica aponta para os quadros sintomáticos prevalentes que atestam essa idéia de falha ou incompetência. Como abordado na Seção 4, o aumento dos fenômenos aditivos, por exemplo, indicaria a incapacidade de restringir ou adiar a obtenção da satisfação, que se torna compulsiva via drogas ilícitas, medicamentos, consumo, ginástica, trabalho, sexo, etc. A continuação da narrativa de Elizabeth ilustra justamente tal tipo de "patologia" (cf. AnexoAnexo, linhas 36-41):

'Começou quando a rede de lojas Harvey Nichols abriu uma filial em Leeds', ela disse.'Todo mundo no escritório estava sempre dando um pulinho lá e retornando com bolsas cheias de coisas lindas, mas eu estava economizando para tirar umas férias e me sentia excluída do grupo. Eu pensei, "Que se dane", e me descontrolei comprando roupas para minhas férias no meu cartão de crédito. Então, de repente, eu estava comprando coisas o tempo todo. Eu nem me lembro de pedir todos esses cartões de crédito, eles simplesmente apareceram.'

O episódio narrado acima reforça a idéia do vício, cuja descrição refina a tessitura da metáfora da adição: é disparada pelo apelo de uma "droga" (uma nova loja na cidade) e pela influência dos amigos. Resiste-se a ela, a princípio, mas a não-adesão à prática do grupo provoca uma idéia de não-pertencimento (I felt really left out, linha 38); então, cede-se e, rapidamente, se descontrola, processo sugerido pelo emprego da expressão "I went mad buying clothes" (linha 39); a ótima sensação provocada pela "droga" (a great feeling, linha 40) estimula a compulsão às compras, instaurando o vício do consumo: Then all of a sudden I was buying stuff all the time (linha 40). A história materializa, assim, na voz de um personagem, uma possibilidade de autodescrição que tem se tornado freqüente na contemporaneidade, como apontado anteriormente por Bezerra Jr. (cf. Seção 4). Entretanto, ela também dá margem ao desenvolvimento de outro viés explicativo, o produzido pelo psicólogo especialista em consumo (cf. AnexoAnexo, linhas 42-49):

Goudie acredita que o vício em compras mascara problemas psicológicos mais profundos. 'Geralmente depressão e ansiedade envolvem esses casos. Freqüentemente tem a ver com uma relação conturbada com os pais. Pais frios e pouco amorosos compensam os filhos enchendo-os de presentes, o que faz, então, com que as crianças associem presentes a prazer.'

'Uma outra tendência entre as mulheres profissionais jovens é o empoderamento. Eu tive uma paciente que comprou 150 pares de sapatos, as compras davam a ela um barato. Elas levam as compras pra casa, sentem-se culpadas, saem novamente e compram para combater a depressão.'

A argumentação psicológica desenvolvida pelo especialista afirma ser o vício das compras uma forma de mascarar problemas mais profundos: depressão; ansiedade; relacionamento conturbado com os pais; associação, na infância, entre presentes e amor paternal/maternal; ou ainda uma forma de empoderamento (empowerment, linha 46). Um curioso sentido é agregado ao termo empoderamento, geralmente ligado ao culto da autonomia e à capacidade de "gerenciar a própria vida" (Sennet, 1999) que faz parte de outra tradição explicativa, mais sociocultural. No texto, ele parece aludir a uma tendência entre jovens mulheres profissionais, como Elizabeth, à auto-afirmação. O psicólogo sugere que, para se afirmarem, essas mulheres gastam dinheiro em roupas e, depois, sentem-se culpadas e deprimidas. Para combater o mal-estar, retornam às compras, em um círculo vicioso. Dessa forma, uma gama de possibilidades explicativas é combinada de forma reducionista, estabelecendo uma relação direta de causa e efeito (modus operandi que, como visto na Seção 4, é historicamente datado) entre distúrbios na interioridade psicológica e a conduta social aditiva chamada omniomania.

A voz do especialista é introduzida via discurso ora indireto (AnexoAnexo, linha 42) ora direto (linhas 43-49). Essa alternância na forma de apresentar o discurso, além de sinalizar a interação entre a escritora-entrevistadora e o psicólogo, pode ser vista como estratégia de envolvimento, tornando o leitor uma testemunha de depoimentos "reais".

É minha interpretação que essa estratégia também está presente quando a escritora, ao interpolar a identidade de pesquisadora à de entrevistadora, inclui em seu texto relatos de números epidêmicos da doença (cf. AnexoAnexo, linhas 50-56):

A inadimplência é um dos problemas nacionais que mais rapidamente cresce no Reino Unido. O escritório da Associação Nacional de Aconselhamento ao Consumidor relatou um aumento de 37 por cento nas ligações sobre o assunto em apenas dois anos. Ano passado, a associação recebeu meio milhão de ligações de consumidores endividados e a previsão em 2000 é de que este número aumente ano após ano. 'Os clientes que nos procuravam costumavam ser aqueles que estavam em dívida com o pagamento do gás, agora é uma multidão de consumidores devedores', disse uma porta-voz da associação.

Como fica claro no excerto acima, outros atores são solicitados, trazendo interdiscursos que vêm confirmar, ainda mais, a argumentação em desenvolvimento. Os relatos de uma associação nacional de aconselhamento do cidadão (National Association for Citizens' Advice Bureaux) e de um de seus porta-vozes alertam para o "risco", trazendo novos números e porcentagens que demonstram aumento, a cada ano, do contingente de consumidores endividados. A afirmação parece dizer respeito ao público consumidor em geral. Entretanto, o prosseguimento do artigo indica que a "multidão de consumidores endividados" (AnexoAnexo, linha 56) é principalmente feminina (cf. linhas 57-64):

Agora, o problema está sendo abordado seriamente. Na Universidade de Stanford, na Califórnia, 24 mulheres estão envolvidas em um julgamento que visa verificar se o problema pode ser tratado com uma droga anticompras compulsivas, semelhante a um antidepressivo.

Mês que vem, o Governo vai reunir uma força tarefa para examinar a questão do fácil acesso ao crédito para aqueles que não têm condições de arcar com seus gastos. Kim Howells, Ministra do Consumo, disse: 'O objetivo do governo é proteger os vulneráveis sem inibir um mercado bom e inovador para a vasta maioria.'

Ao problema sociológico é acrescido o problema médico, que está sendo estudado seriamente no mundo acadêmico. A Universidade de Stanford, na Califórnia, por exemplo, estuda a possibilidade de tratar com "drogas anticompras compulsivas" (anti-shopaholic drugs) 24 mulheres cujos casos de descontrole estão na justiça. A prevalência de exemplos comprobatórios da doença no universo feminino sugere que as afirmações aparentemente neutras presentes no discurso do Governo –"aqueles que não podem arcar com seus gastos" (those who cannot afford to repay what they are spending, linhas 61-62) – e da Ministra do Consumo –"os vulneráveis" (the vulnerable, linha 63) – têm um cunho generificado: a omniomania parece ser um mal típico de mulheres.

Vemos aqui a convivência de narrativas contemporâneas (a cientificista que trata com drogas distúrbios "cerebrais") e de narrativas comportamentais modernas (a histericização do universo feminino abordado por Foucault). Observamos também o exercício do biopoder na contemporaneidade, período no qual todas as áreas da vida social tornam-se tópicos de pesquisa e objeto de investigação e escrutínio acadêmicos, produzindo uma infinidade de discursos que se tornam "verdades". Os estudos indicam que as mulheres vivem à beira de um ataque consumista. Quando a "doença" acomete os homens, ocorre com aqueles que apresentam traços de identificação com o comportamento dito feminino, como a vaidade, o narcisismo, a frivolidade e o exibicionismo. Este parece ser o sentido da inclusão do cantor Elton John (bem como a de David Beckham) no texto (cf. AnexoAnexo, linhas 65-73):

O vício em compras pode atingir níveis surpreendentes entre os ricos – este mês, Elton John admitiu ter se engajado em um descontrole consumista de 40 milhões de libras em menos de dois anos.

A socialite Tara Palmer-Tomkinson está agora freqüentando o Devedores Anônimos depois de ter admitido a compra impulsiva de sete pares de calças jeans ao preço de "£300 cada". 'Depois de ter gasto milhões em roupas, eu me sentia inatingível', ela disse. Comparando o hábito do consumo à cocaína, seu antigo vício, ela disse: 'Gastar £6.000 na Dolce & Gabbana me dava muito mais prazer, andar pela loja e ouvir como eu era maravilhosa.'

O parágrafo acima estabelece uma cara analogia entre Elton John, assumidamente homossexual no discurso da mídia, e a socialite Tara Palmer- Tomkinson, ambos descritos como consumidores ricos, vaidosos e descontrolados. É digno de nota que os dois únicos homens representados como viciados (Elton John e David Beckham) têm características da feminilidade hegemônica do senso comum: consomem cosméticos, produtos de beleza e toda sorte de artigos de moda, aspectos relacionados ao universo "feminino" da vaidade.

A comparação metafórica entre o hábito das compras e o de consumir cocaína é formalizada explicitamente ao final do texto, através de discurso direto, concretizando a metáfora que vem sendo construída. A inclusão dessa voz estabelece um diálogo com o último personagem introduzido, Adrienne Baker (cf. AnexoAnexo, linhas 74-78):

Adrienne Baker, uma psicoterapeuta e autora do livro Compras a Sério, disse: 'Consumir substâncias ilegais em excesso é uma coisa, comprar até não poder mais só provoca diversão.'

Baker interessou-se pela omniomania depois do suicídio de uma jovem amiga. A moça morreu deixando em seu apartamento'uma montanha de roupas lindas, ainda não usadas.'

Terapeuta e autora de um livro sobre "compras a sério" (Serious Shopping), Adrienne Baker introduz uma voz dissonante quanto à caracterização da satisfação causada pelas compras e a causada pela ingestão de drogas. Para ela, a sensação causada pelo consumo de itens de vestuário e acessórios nas lojas é de diversão e prazer, diferente da causada pela ingestão de "substâncias ilegais". A terapeuta parece discordar dos malefícios atribuídos à compulsão pelas compras. Não fica claro, porém, qual é exatamente a tese defendida por mais essa especialista. Seria sua presença uma tentativa de introduzir um ponto de vista divergente na discussão? O prosseguimento da narrativa não conduz a essa interpretação, ao sabermos que Baker se interessou pela doença após o suicídio de uma moça, também vítima da omniomania. Mais uma mulher figura, assim, entre a população acometida pelo mal do descontrole. Se levarmos em conta todo o elenco de personagens convocados para exemplificar "o mal", veremos que ele assola principalmente mulheres (e dois únicos homens, mas detentores de características femininas) de todas as faixas etárias (crianças, adolescentes, jovens e adultos) e de procedências diferentes (atrizes, adolescentes, profissionais liberais, universitárias e socialites). Ou seja, todas correm risco.

Ao observar a interação dos diversos atores (escritor, leitor e personagens) e dos intertextos mobilizados, mapeando a rede de vozes que dialogam entre si, a análise teve o intuito de verificar quais imagens para identificação são disponibilizadas por esse tipo de narrativa midiática. Constato, assim, uma profusão de discursos que comparecem em um mesmo artigo na defesa e reificação de uma tese que, como nos mostrou Foucault, nos ronda desde a Modernidade: mulheres são seres essencialmente "histéricos". Tal polifonia e tal coexistência de discursos (médico, psicológico, científico e sociológico) têm efeitos práticos no mundo social, atuando como normatizadores do comportamento, preservando a dicotomia de gênero e reificando definições homogêneas do comportamento feminino.

Tenho plena clareza, no entanto, de que todas as considerações feitas são fruto de uma leitura possível, que não esgota outras possibilidades de análise. A interpretação apresentada é inescapavelmente valorativa e construída sob um ponto de vista particular, elaborado a partir de meu diálogo com as vozes presentes nos intertextos dos vários teóricos mobilizados ao longo deste trabalho. A perspectiva, por conseguinte, é explicitamente interessada, visando desestabilizar discursos engessados na ordem contemporânea e contribuir para a construção de narrativas sociais menos preconceituosas e menos aprisionadoras.

6. Considerações finais

O propósito do presente estudo foi problematizar o papel das histórias narradas pela imprensa escrita na constituição da idéia de identidades generificadas. O enfoque adotado foi pautado pelo entendimento de que nossas formas de descrição do mundo influenciam a forma de nele atuarmos, pois funcionam como agentes de "normalização" da vida social.

Aceitando o convite de Foucault para historicizar os discursos e as categorias descritivas que orientam nossa vida social quanto à questão do gênero, procedi – com base em um texto do jornalismo inglês – ao rastreamento de algumas crenças e valores culturais que organizam certas condutas sociais generificadas, relacionando-os às diferentes ideologias que lhes subjazem.

A análise encaminhada apontou uma miríade de discursos produzidos na cultura, presentes nas narrativas que nos constroem, e sublinhou a convivência do discurso da interioridade psicológica com o discurso fisicalista, atuantes na reificação do conceito cristalizado de generificação do comportamento humano. Apontei que a matéria jornalística focalizada, ao compor um mosaico de discursos, convoca uma série de intertextos na construção de uma argumentação. Sentidos díspares são costurados em, por assim dizer, uma colcha de retalhos e apresentados ao público leitor como verdades cientificamente comprovadas que não contemplam processos sociais complexos. É nesse sentido que caracterizei a mídia como tecnologia de poder, ao contribuir para o processo de construção de significados sobre o comportamento feminino, sancionando crenças vigentes sobre a fragilidade da mulher.

Tais valores, naturalizados no referido texto midiático, aparecem ao lado de novos discursos sobre a investigação da conduta mental dos indivíduos, abordagem incentivada pelo profícuo mercado farmacêutico. Em conjunto, eles apagam o longo e complexo processo de fabricação coletiva das subjetividades, realizado a partir dos sentidos construídos por nossas atividades discursivas. Julgo que esse processo encontra-se inextricavelmente associado à capacidade de socialização que a linguagem possibilita. Nossas narrativas não podem, por conseguinte, ser desvinculadas do conjunto de significações socioculturalmente chancelados em que os indivíduos se encontram mergulhados (Bezerra Jr., 1999).

Ignorar tal fato e privilegiar a ótica fisicalista, como a mídia e os discursos científicos vêm fazendo, traz conseqüências éticas indesejáveis (Freire Costa, 2001). Por um lado, ao desvincular o processo identitário dos contextos nos quais atuamos, localizando-o em um substrato biológico, reduz a importância do espaço público-social e esvazia de significação ações políticas centradas na organização dos indivíduos perante a coletividade. Por outro lado, sintonizada com a filosofia individualista neoliberal, a abordagem que ancora a subjetividade na materialidade corporal impede a concepção de um horizonte ético calcado em perspectivas valorativas coletivas. Impossibilita também o exercício de auto-reorganização, na medida em que delegamos inteiramente a um processo físico a responsabilidade por nossas ações sociais. Inviabiliza, portanto, a possibilidade de reestruturação de condutas sociais.

Por que, então, a mídia e parte do mundo científico insistem nas mesmas descrições ou na adoção impensada e apressada de antigas formas de subjetivação entrelaçadas a novas, quando somos constantemente solicitados por referências cada vez mais abundantes? Não acredito que nos falte criatividade para ousar o novo. Na verdade, não somos educados para nos perceber como frutos de significados produtores de normas que obscurecem nossa percepção da diversidade e pluralidade de opções. Além disso, estamos imersos na crença da neutralidade e objetividade teórica das pesquisas científicas. Assim, ficamos, muitas vezes, imobilizados, por não verificarmos que há todo um trabalho discursivo aprisionando-nos em teias de significação (Fabrício, 2002). Talvez a saída seja o exercício nietzschiano da "memória ativa", que pode nos liberar das amarras semânticas do passado. Só assim a memória poderia deixar de ser grilhão para aliar-se à alegria da criação (cf. Franco Ferraz, 2002:67).

Que outros discursos seremos capazes de produzir para que questões de gênero e de sexualidade não se constituam como saberes engessados? Cabe a nós e à mídia desenvolver um discurso crítico da cultura, revitalizando nossa capacidade de ressignificação e dando maior crédito à nossa fértil imaginação.

Recebido em outubro de 2003

Aprovado em março de 2004

E-mail: branca@alternex.com.br

One woman in five is a shopaholic

Easy credit and peer pressure push millions to buy beyond their means, causing spiral of depression

by Tracy McVeigh

Sunday November 26, 2000

The Observer

01 Posh and Becks do it together. Liz Hurley does it alone and Madonna did it

02 while nine months pregnant.

03 Retail therapy has become one of Britain's most pleasurable leisure

04 pursuits. But the percentage of the population suffering from the serious medical

05 condition of shopping addiction is reaching crisis point, overtaking the number of

06 drug and drink addicts in the UK combined.

07 Experts believe 10 per cent of the population, and possibly 20 per cent of

08 women, are manic, compulsive shoppers. Most shopaholics are seriously in debt,

09 and the condition has led to family break-ups, depression, homelessness and even

10 suicide.

11 Known as omniomania, the condition has been known to psychiatrists since

12 the early 1900s but only now is it reaching epidemic proportions. A European

13 Union report recently revealed that up to half of 14- to 18-year-old girls in

14 Scotland, Italy and Spain exhibited symptoms of shopping addiction, with 8 per

15 cent showing signs of a 'pathological compulsion'.

16 Jim Goudie, a consumer psychologist at Northumbria University, said the

17 stigma of being a shopaholic, and the fact that so few people take the condition

18 seriously, may be masking an even higher number of sufferers.

19 'Our figures would correlate to research done in the US showing a similar

20 percentage of the population there suffering from shopping problems. But with

21 some people feeling that being a shopping addict is so downright silly, the true

22 statistics could be much higher.

23 'One of the reasons behind this sudden rise could be that shopping has

24 never been so attractive. Shopping centres are beautiful these days, absolute

25 wonderlands. Store cards are offered at the till and people can obtain handfuls of

26 credit cards with relative ease.'

27 Five credit-card companies are in the process of taking Elizabeth, 31, a

28 businesswoman from Leeds to court. While speaking to The Observer she opened

29 her wardrobe to count 26 handbags and 72 pairs of shoes.

30 'I can't begin to count my clothes, that would take all day,' she said. 'I guess

31 my real weakness is jewellery, though. I do have quite a lot although most of it is

32 the cheaper stuff.'

33 Elizabeth has been offered Prozac by her GP in an attempt to counter her

34 addiction, which he believes is sparked by low self-esteem. She has just sold her flat 35 and paid off an overdraft of £4,700. But she is still shopping.

36 'It started when Harvey Nichols opened a shop in Leeds,' she said.

37 'Everyone in my office was forever rushing off and coming back with bags of lovely 38 stuff but I was saving for a holiday and I felt really left out. I thought, "Stuff it", and

39 went mad buying clothes for my holiday on my credit card. It was a fantastic rush, 40 a great feeling. Then all of a sudden I was just buying stuff all the time. I don't even 41 remember applying for all the cards, they just seemed to appear.'

42 Goudie believes shopping addiction masks deeper problems. 'Mostly there is

43 underlying depression and anxiety. Often it can be a disturbed relationship with

44 one's parents. Cold and unemotional parents often lavish presents on children and

45 so they associated that with pleasure.

46 'Empowerment is also an increasing trend among young, professional

47 women. I had one woman who bought 150 pairs of shoes, shopping gave her a

48 buzz. They take the purchase home, feel guilty, then go back out and shop to

49 combat the depression.'

50 Consumer debt is one of the most rapidly growing national problems in the

51 UK. The National Association for Citizens' Advice Bureaux reported a 37 per cent

52 increase in calls on the subject in just two years. Last year CAB advisers received

53 half a million calls concerning shopping debts and a year-on-year rise is predicted

54 for 2000.

55 'Our debt calls used to be from people who couldn't pay the gas bill, now its

56 a multitude of consumer debts,' said an association spokeswoman.

57 The problem is now being taken seriously. At Stanford University in

58 California 24 women are involved in a trial to see whether the condition can be

59 treated by a specific anti-shopaholic drug, similar to an anti-depressant.

60 Next month the Government will assemble a task force to look at the

61 problem of easy access to credit for those who cannot afford to repay what they are

62 spending. Kim Howells, Minister for Consumer Affairs, said: 'The Government's

63 aim is to protect the vulnerable without inhibiting a good, innovative market for the 64 vast majority.'

65 Shopping addiction can reach astonishing levels among the rich - this

66 month Sir Elton John admitted going on a £40 million shopping spree in less than

67 two years.

68 Socialite Tara Palmer-Tomkinson is now attending Debtors Anonymous

69 after admitting snapping up seven pairs of designer jeans at '£300 a pop'. 'Having

70 spent thousands on clothes, I felt invulnerable,' she said. Comparing shopping to

71 her former cocaine habit, she said: 'Spending £6,000 in Dolce & Gabbana was

72 much more satisfying, strutting around the store, being told how drop-dead

73 gorgeous I was.'

74 Adrienne Baker, a psychotherapist and author of Serious Shopping , said:

75 'Taking illegal substances in excess is one thing, to shop till you drop arouses only

76 amusement.'

77 Baker became interested in omniomania after the suicide of a young friend.

78 The girl died leaving 'a plethora of beautiful, unworn clothes' in her flat.

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Anexo

  • *
    Sou grata ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado (no. 300715/ 02-01) que possibilitou a produção deste artigo bem como aos professores Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ) e Marlene Soares dos Santos (UFRJ) pela leitura crítica de uma primeira versão do trabalho.
  • 1
    A distinção entre sexo, gênero e sexualidade pode ser aprofundada no trabalho de Moita Lopes (2002). Segundo esse autor, as identidades de gênero (classificação social das marcas anatômicas) são freqüentemente abordadas na cultura como tendo uma essência apoiada em um substrato fisico-biológico (categoria de sexo), o que traz implicações para o conceito de sexualidade (comportamento social e emocional), pois estabelece comportamentos adequados à "natureza" biológica do sexo (heterossexualidade) ou desviantes dela (homossexualidade). Afastando-se dessa visão, o autor convida-nos a entender os conceitos de sexo, sexualidade e gênero como construções socioculturais.
  • 2
    Conferir a matéria "Garotas no ataque: atitude feminista de tomar a iniciativa chega à geração adolescente", publicada no caderno
    Folhateen, do jornal
    Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2003, p. 6-8.
  • 3
    A reportagem "O poder feminino: Mulheres no comando", sobre mulheres tenentes-coronéis, é um bom exemplo dos novos papéis sociais desempenhados por mulheres que quebram a hegemonia masculina em cargos de poder na Polícia Militar.
  • 4
    A tradução do artigo é de minha própria autoria, visando facilitar a inteligibilidade dos pontos levantados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      Out 2003
    • Aceito
      Mar 2004
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