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Gramaticalização e metafunções da linguagem: uma análise da expressão é que

Grammaticalization and language metafunction: an analysis of the expression é que

Resumos

Este trabalho objetiva apresentar os processos/mecanismos que caracterizam a emergência dos diferentes usos da expressão É QUE, correlacionando as metafunções da linguagem com o seu percurso de mudança linguística via gramaticalização. Esta investigação analisa, diacronicamente, dados amostrais de textos escritos do Português do século XII ao XX. Os resultados empíricos parecem comprovar a hipótese da trajetória unidirecional Objeto/Espaço > Texto, resultantes da reanálise do uso original trecentista de é o que em É QUE. Em relação às metafunções da linguagem, o percurso de mudança do significado é: Ideacional (concreto) > Textual (textual-discursivo) > interpessoal (epistêmico).

gramaticalização; É QUE; Metafunções da linguagem; modalidade


This paper aims at presenting the processes/mechanisms which characterize the emergence of different uses of the expression "É QUE", correlating its path linguistic change via grammaticalization of language metafunctions. This investigation diachronically analyses sampling data of written texts in Portuguese from the Twelfth to the Twentieth Century. The empirical results seem to prove the unidirectional trajectory Object/Space > Text hypothesis, resulting from the reanalysis of the original Fourteenth-century use of "é o que" to "É QUE". In terms of the language metafunctions, the trajectory of change in meaning is: Ideational (concrete) > Textual (discursive textual) > Interperson al (epistemic).

grammaticalization; É QUE; Language metafunctions; modality


ARTIGOS ARTICLES

João Bosco Figueiredo-GomesI; Maria Medianeira de SouzaII

IUniversidade do Estado do Rio Grande do Norte, Faculdade de Letras e Artes, Campus Avançado Prefeito Wálter de Sá Leitão, E-mail: boscofigueiredo@yahoo.com.br

IIUniversidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação, E-mails: medianeirasouza@yahoo.com.br

RESUMO

Este trabalho objetiva apresentar os processos/mecanismos que caracterizam a emergência dos diferentes usos da expressão É QUE, correlacionando as metafunções da linguagem com o seu percurso de mudança linguística via gramaticalização. Esta investigação analisa, diacronicamente, dados amostrais de textos escritos do Português do século XII ao XX. Os resultados empíricos parecem comprovar a hipótese da trajetória unidirecional Objeto/Espaço > Texto, resultantes da reanálise do uso original trecentista de é o que em É QUE. Em relação às metafunções da linguagem, o percurso de mudança do significado é: Ideacional (concreto) > Textual (textual-discursivo) > interpessoal (epistêmico).

Palavras-chave: gramaticalização; É QUE; Metafunções da linguagem; modalidade.

ABSTRACT

This paper aims at presenting the processes/mechanisms which characterize the emergence of different uses of the expression "É QUE", correlating its path linguistic change via grammaticalization of language metafunctions. This investigation diachronically analyses sampling data of written texts in Portuguese from the Twelfth to the Twentieth Century. The empirical results seem to prove the unidirectional trajectory Object/Space > Text hypothesis, resulting from the reanalysis of the original Fourteenth-century use of "é o que" to "É QUE". In terms of the language metafunctions, the trajectory of change in meaning is: Ideational (concrete) > Textual (discursive textual) > Interperson al (epistemic).

Key-words: grammaticalization; É QUE; Language metafunctions; modality.

INTRODUÇÃO

É crescente o uso, tanto no Português Brasileiro (PB) quanto no Português Europeu (PE), da expressão É QUE. Mas há divergências, entre os linguistas, em relação à origem, natureza e função dessa expressão. Este artigo consiste, pois, num relato dos resultados de uma investigação empírica do caráter multifuncional do É QUE, em textos escritos.

Tradicionalmente, o É QUE é tratado como uma "partícula expletiva" ou "palavra denotativa", que não exerce função gramatical, serve apenas para dar realce ou ênfase (Bechara, [1961] 2001; Rocha Lima, [1957]1992). Em estudos mais recentes, à luz da Linguística Moderna, a expressão é vista como uma "construção enfática", descrita como um recurso formador de estruturas clivadas que servem para dar realce e funcionam como marcador de foco, portanto tem função pragmático-discursiva (Casteleiro, 1979; Braga, 1989; Lopes Rossi, 1993; Modesto, 1995; Kato et al.,1996; Longhin,1999; Costa; Duarte, 2001).

As amostras (1) e (2), que se seguem, ilustram alguns usos atuais da expressão É QUE, apresentadas como slogan em propagandas, (1) no PE e (2) no PB:

(1) COFIDIS. ATÉ 6000€ VOCÊ É QUE DECIDE.

(Jornal Correio da Manhã, 15/07/2007:32)

(2) A VIDA É O QUE É .... A gente É QUE pode ser mais!

(Mala direta em 12/12/2007)

Segundo o gramático Said Ali ([1921] 2001) e o lexicólogo Bueno de Sequeira (1954), o É QUE data do século XIX ou fins do século XVIII, portanto é uma expressão recente na língua portuguesa. Já segundo as linguistas Duarte (1992) e Lopes Rossi (1993), corroboradas por Kato et al. (1996), o É QUE emerge na segunda metade do século XIX e é tratado como uma partícula. Longhin (1999), que faz um estudo diacrônico das sentenças clivadas, afirma que, nos séculos XIII a XV, já aparecem estruturas similares às clivadas atuais, inclusive com É QUE, embora com interpretação ambígua.

Cremos que esse desencontro quanto à natureza e à emergência do É QUE se deva a essa expressão trazer arraigado o estigma de um uso de partículas "expletivas" que devia ser evitado, principalmente na língua escrita, numa tentativa de preservação de uma norma dita "culta" e "padrão". Entretanto, pelo fato de seu uso estar crescendo tanto no PB quanto no PE, desde o século XIX, justificamos esta investigação, que objetiva apresentar os processos/mecanismos que caracterizam a emergência dos diferentes usos do É QUE, correlacionando as metafunções da linguagem ao seu percurso de mudança linguística via gramaticalização. Esse objetivo se relaciona a perguntas específicas, as quais procuramos responder: (i) quando surgiu como expressão? (ii) Como foi o seu percurso de gramaticalização? (iii) Que funções essa expressão desempenha?

Considerando a língua como instrumento de interação social entre os seres humanos, adotamos duas vertentes funcionalistas, a linguística funcional norte-americana e linguística sistêmico-funcional, cujo interesse é investigar a língua como sistema não-autônomo, sensível a pressões das diferentes demandas de uso (de ordem estrutural, cognitiva ou social) no contexto das interações verbais. Partimos da hipótese de que, na relação de forma-função nesse contexto mais amplo da linguagem e da comunicação, a expressão É QUE, ao invés de "expletiva", ou apenas de "marcador de foco", tem um caráter multifuncional. Por assim ser, os usos da expressão É QUE são resultantes de um processo de gramaticalização, que, correlacionados com as metafunções da linguagem, partem diacronicamente de significados mais concretos para outros mais abstratos, atuando, na situação de interação comunicativa, para atender às necessidades expressivas e informativas dos interlocutores.

Para a realização desta pesquisa, utilizamos o Corpus Mínimo de Textos Escritos da Língua Portuguesa - COMTELPO, organizado por Figueiredo-Gomes e Pena-Ferreira (2006), com amostras de textos portugueses do século XII ao século XVIII e de textos das 1ª e 2ª metades dos séculos XIX e XX do PB e do PE. Considerando os objetivos deste trabalho, compusemos uma amostra de 182 textos, (~ 30 páginas/século) escritas do século XII ao XVIII. Visando a uma análise mais compacta, levantamos e agrupamos os dados por par de séculos: Português Antigo (PA) - séculos XIII e XIV, Português Médio (PM) - séculos XV e XVI, e Português Clássico (PC) - séculos XVII e XVIII.

Este artigo está organizado em quatro partes: a primeira situa as duas vertentes funcionalistas que abalizam a investigação; a segunda apresenta estudos que correlacionam o processo de gramaticalização às metafunções de linguagem; a terceira relata a emergência dos diferentes usos da expressão É QUE; e, por último, a quarta seção apresenta os estágios de gramaticalização da expressão É QUE e a sua correlação com as metafunções da linguagem, que resultam na multifuncionalidade dessa construção.

1. OS FUNCIONALISMOS

Contrariando a consideração de que a língua é um sistema autônomo, um fenômeno mental, que pode ser descrito como objeto formal, imanente, concepção própria dos formalistas, os funcionalistas tendem a considerá-la como um fenômeno social, um instrumento de comunicação, cuja estrutura tem regularidades provisórias, sensível às pressões de uso provenientes de diversas situações comunicativas.

Os funcionalistas trabalham essencialmente com dados de fala ou escrita, retirados de contextos reais de interação humana, observando as relações entre os constituintes linguísticos e seus significados ou funções, ou entre a língua e seu meio.

Assim, tendo como pressupostos o fato de que a língua desempenha funções que são externas ao sistema linguístico e o de que essas funções externas influenciam a organização interna do sistema linguístico, para esse estudo, focalizamos dois modelos funcionalistas: o de orientação norte-americana que abriga o estudo da gramaticalização, desenvolvida por Hopper (1987; 1991), Heine et al. (1991), Traugott (1989; 2001), Traugott & König (1991) e o modelo sistêmico-funcional desenvolvido por Halliday (1985), Halliday & Matthiessen (2004) sobretudo naquilo que dá conta das metafunções (significados) que organizam funcionalmente a linguagem.

1.1. A Linguística funcional norte-americana e a gramaticalização

A linguística funcional norte-americana busca explicar a forma da língua através do uso que se faz dela. Assim, a língua é usada para satisfazer necessidades interativas, e suas estruturas devem ser explicadas com base no uso real a que elas se prestam. Nesse sentido, a língua é tida como um "sistema adaptativo" (Du Bois, 1985), uma "estrutura maleável" (Bolinger,1977) e "emergente" (Hopper, 1987), posto que está sujeita às pressões do uso, ou seja, a codificação linguística é resultante do uso (da língua).

Du Bois (1985) considera a gramática como um sistema adaptativo em que forças motivadoras dos fenômenos externos penetram no domínio da língua e passam a interagir com forças organizadoras internas, competindo e conciliando-se sistematicamente com elas. Deriva daí o fenômeno da gramaticalização, que pode ser visto como a evolução de construções relativamente livres no discurso, motivadas por necessidades comunicativas, para construções relativamente fixas na gramática. Pode-se perceber, então, nesse processo a ideia de contínuo em que, num polo, há construções mais frouxas e, no outro, construções mais fixas.

Segundo Bolinger (1977), cabe ao linguista investigar as circunstâncias discursivas que envolvem as estruturas linguísticas, seus contextos de uso específico. Nessa perspectiva, uma gramática funcional visa explicar as regularidades da língua conforme as circunstâncias sob as quais as pessoas a utilizam, ou seja, a descrição e a explicação dos fenômenos linguísticos precisam incluir referência ao falante/escritor, ao ouvinte/leitor, aos seus papéis e seu estatuto numa situação de interação determinada socioculturalmente.

Hopper (1987) propõe uma gramática emergente definida como um repertório de estratégias rotinizadas de construções discursivas. Essas estratégias são improvisadamente agrupadas sempre que interagimos, e pode resultar desse agrupamento diversificado o surgimento de novas estratégias linguísticas candidatas à gramaticalização, caso se tornem habituais por aparecerem frequentemente em um dado contexto de uso.

Assim, a gramática é fortemente suscetível à mudança, posto que ela é intensamente afetada pelo uso que lhe é dado no dia a dia. Os itens ou construções lexicais vão-se adaptando à negociação na interação face a face, em que o interlocutor faz novos usos dessas estruturas, a partir de suas experiências anteriores com padrões gramaticais existentes, inferindo, metaforizando, reanalisando, fazendo analogias, tentando, enfim, ajustar suas gramáticas, para se fazer entender e para entender. Essa prática faz que esses padrões, relativamente rotinizados ou fixos, sirvam de modelo para novos padrões comunicativos, novos modos de fazer discurso, que, se habitualizados, tornam-se novos itens ou construções gramaticais - ocorrendo o que chamamos de gramaticalização.

Tradicionalmente, gramaticalização é o processo histórico unidirecional e dinâmico, pelo qual itens lexicais adquirem novos status como formas gramaticais morfossintáticas e passam a codificar relações não codificadas ou codificadas diferentemente (Traugott; König, 1991). Por exemplo, o verbo ser (= existir), na dimensão lexical/etimológica, passa para o status de cópula na morfossintaxe. Já numa perspectiva semântico-pragmática, a gramaticalização é entendida como a mudança pela qual itens lexicais e construções aparecem em certos contextos linguísticos para servir a funções gramaticais, ou itens gramaticais desenvolvem novas funções gramaticais (Traugott, 2001).

Defendemos, pois, que a gramaticalização é um processo em que as mudanças acontecem de maneira gradual, numa escala unidirecional e contínua, partindo de um significado mais concreto para um mais abstrato.

Nessa perspectiva da unidirecionalidade como propriedade da gramaticalização em fenômenos da linguagem, dois mecanismos em especial têm sido considerados como responsáveis pela migração de um estágio a outro: transferência metafórica e pressão de informatividade (ou metonímia).

A transferência metafórica, segundo Heine et al. (1991:43), é um dos principais mecanismos que subjazem ao processo de gramaticalização. Por meio da transferência metafórica, conceitos menos complexos (mais concretos) passam, num processo de abstratização crescente, a conceitos mais complexos (mais abstratos). Assim, conceitos que estão mais próximos da experiência humana são utilizados para expressar outros que são mais abstratos.

Enquanto a metáfora envolve a especificação de um conceito, geralmente mais complexo, em termos de outro não presente no contexto, a metonímia envolve a especificação de um significado em termos de outro que está presente no contexto. Trata-se de um mecanismo de mudança cujas motivações estão no contexto linguístico e pragmático de uso de uma dada forma: há uma associação conceitual entre entidades de algum modo contíguas, de forma que o item linguístico que é usado em referência a uma delas passa a ser usado também para outra.

À metonímia está ligado um mecanismo chamado por Traugott & König (1991:194) de inferência por pressão de informatividade, que designa o processo em que o item linguístico passa a assumir um valor novo, inferido do original, devido à convencionalização de implicaturas conversacionais por meio de pressões do contexto de uso. Quando uma implicação comumente surge com forma linguística, pode ser tomada como parte do significado desta, podendo até mesmo chegar a substituí-lo.

A analogia e a reanálise são mecanismos ligados aos processos cognitivos da metáfora e da metonímia, respectivamente. A analogia é um mecanismo que não causa propriamente a mudança linguística, mas a expansão da mudança na língua, ou seja, estende regras de generalização a itens, atraindo-os para construções já existentes, acarretando a disseminação da inovação para domínios diversos. A analogia aproxima psicologicamente categorias situadas no eixo paradigmático. Esse processo pode ser captado pela fórmula A:B::C:D, em que D representa a forma surgida por analogia. É, por exemplo, o que acontece com as tentativas de regularização de alguns usos como menos/menas, seja/seje. Trata-se, portanto, da extensão de um uso mais geral para substituir usos menos gerais.

A reanálise é um mecanismo que consiste na reestruturação de itens ou construções, resultando em uma reinterpretação das relações entre eles. Envolve a reorganização e mudanças, frequentemente locais, situadas no eixo sintagmático, mas não implicando nenhuma modificação intrínseca ou imediata na manifestação superficial da construção reanalisada. Assim, os falantes mudam de percepção de como os constituintes de sua língua estão inter-relacionados e, por meio do tipo de raciocínio conhecido como abdução, apagam os limites entre esses constituintes, estabelecendo novos "cortes".

A reanálise e a analogia são mecanismos que estão presentes na mudança linguística. Embora eles não definam a gramaticalização, esta não ocorre sem eles. É nessa perspectiva de gramaticalização que observamos aqui os diferentes usos do É QUE.

1.2. A linguística sistêmico-funcional e as metafunções da linguagem

A outra vertente funcionalista que utilizamos é o modelo de Halliday (1985), denominado Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). O termo sistêmico refere-se às redes de sistemas da linguagem (envolvendo os sistemas de transitividade, o sistema de modo e modalidade, e os sistemas de tema e de informação). Já o termo funcional refere-se às funções da linguagem, que usamos para produzir significados (as chamadas metafunções1 1 . Usamos metafunção quando nos referimos à terminologia de Halliday. ideacional, interpessoal e textual).

Na LSF, a gramática é vista como o mecanismo linguístico que liga umas às outras escolhas significativas que derivam das funções da linguagem, e realiza-as numa forma estrutural unificada. Nela, as diferentes redes sistêmicas codificam diferentes espécies de significado que se ligam às diferentes funções da linguagem. A gramática, portanto, organiza as opções em alguns conjuntos dentro dos quais o falante/escritor opera escolhas simultâneas, para qualquer uso que faça da língua.

Tendo, pois, como objetivo estudar a língua em uso, a LSF analisa sempre produtos autênticos da interação social, aos quais ela denomina texto. Nesse modelo, todo texto é multidimensional, realizando mais de um significado simultaneamente, portanto um sistema de significados, conforme as metafunções que organizam a linguagem.

Assim, o sistema de transitividade, que especifica os papéis dos elementos da predicação (Ex.: ator, meta), codifica os significados de nossa experiência, tanto do mundo exterior (social) quanto no mundo interior (reações, cognição, percepção, assim como atos linguísticos de falar e de entender), descrevendo, portanto, processos mentais, materiais e abstratos; nesse ponto de vista, a oração é entendida como um processo (reflexivo, perceptivo) de ações, eventos, processos de conscientização e relações. O sistema de transitividade liga-se à metafunção ideacional de referir ou denotar.

Já o sistema de modo (Ex.: indicativo, imperativo, estruturas interrogativas) e modalidade (Ex.: auxiliares modais, elementos modalizadores) codifica as funções de sujeito, predicador, complemento, por exemplo, e diz respeito à troca, i.e., aos papéis da fala, no sentido de interagir com as outras pessoas. É por meio dela que o falante/escritor expressa seu julgamento e suas atitudes (componente de orientação para o falante/escritor), bem como as relações que estabelece entre si próprio e o ouvinte/leitor, ou seja, estabelece e mantém relações comunicativas, sociais (componente de orientação para o ouvinte/leitor). Nessa perspectiva, a oração é entendida como um ato de fala (troca de papéis em interações retóricas - perguntas, ofertas, comandos). O sistema de modo e modalidade liga-se à metafunção interpessoal de expressar papéis e atitudes dos participantes numa situação comunicativa.

O sistema de tema (tema e rema) e o de informação (dado e novo, foco), que especificam as relações (dentro do enunciado; ou entre o enunciado e a situação), dizem respeito a organizar a mensagem (organizando o fluxo discursivo e criando continuidade), ajustando-a a outras mensagens e ao contexto mais amplo, i.e., à função linguisticamente intrínseca, a metafunção textual de atuar na organização do texto. Ainda no componente textual da gramática funcional, diferentemente das noções de tema e informação, encontra-se o conceito de coesão textual, que consiste nas relações semânticas por meio das quais a interpretação de um item depende de outro que integra o mesmo texto e estabelece-se mediante o emprego dos recursos de referenciação, repetição, sequenciação, junção, clivagem, por exemplo.

Na LSF, os elementos linguísticos não significam isoladamente uns dos outros. Os significados, relacionados às metafunções ideacional, interpessoal e textual, funcionam com um todo integrado e são alcançados por meio das escolhas que os falantes/escritores fazem, dentro do potencial de significados que existe na língua. Embora a LSF focalize as escolhas e os significados que elas constroem, a forma se torna importante para se analisar, por exemplo, a diferença do efeito comunicativo da mensagem, obtido por meio da escolha de uma determinada forma e não de outra, ou as características do contexto que levam o falante/escritor a escolher um item léxico-gramatical e não outro. Por exemplo, nas amostras (1) "Até 6000€ você É QUE decide" e (2) A gente É QUE pode ser mais!, é notório o papel de persuasão com o uso do É QUE, quando o propagandista faz essa escolha, objetivando obter uma atitude dos interlocutores, destinatários das propagandas, destacando-os como elementos importantes ao escolherem o empréstimo ou estilo de vida, respectivamente.

2. AS METAFUNÇÕES DA LINGUAGEM NA GRAMATICALIZAÇÃO

Baseados na proposta de Halliday (1985), e Halliday e Matthiessen (2004), existem vários estudos que relacionam as funções da linguagem com os percursos de mudança linguística via gramaticalização, como, por exemplo, os de Traugott (1982; 1989), Heine et al.(1991) e Gorski et al.(2004).

Traugott ([1982] 1993) relaciona as funções da linguagem à mudança linguística por gramaticalização, mas utiliza uma versão modificada da terminologia de Halliday (1985). Em vez do termo ideacional, usa proposicional, e expressivo para a função interpessoal. Com base nos achados de um extenso corpus de dados, ela defende que uma mudança semântico-pragmática, nos estágios iniciais da gramaticalização, dá-se no sentido unidirecional, do componente proposicional via textual para o funcional expressivo. A autora argumenta que mudanças contrárias, ou seja, do expressivo por meio do textual para funções "proposicionais" são "altamente improváveis na história de um marcador gramatical" (Traugott, [1982] 1993:256).

Heine et al.(1991), discutindo o processo de transição de conceitos concretos do mundo real (domínio de re) para o mundo do texto (domínio de dicto), afirmam que a distinção desses dois mundos corresponde a das noções das metafunções ideacional e textual de Halliday (1985). Admitem que o padrão de transferência na gramaticalização segue a direção: da metafunção ideacional para a textual; coincidindo, portanto, com os achados de Traugott. Mas também assumem que a situação é mais complexa no caso da metafunção interpessoal.

Diante dessa complexidade, Heine et al. (1991:191) postulam uma divisão da metafunção interpessoal em dois componentes: um orientado para o falante e outro orientado para o ouvinte. O primeiro se refere ao que o falante/escritor tem em sua mente: suas atitudes, julgamentos, crenças, etc.; e o segundo serve para estabelecer e manter relações sociais. Advertem, porém, que a fronteira entre os dois nem sempre é muito clara. Para os autores, a hipótese de Traugott (1989) trata principalmente do componente orientado para o falante da metafunção Interpessoal. E argumentam que as situações mais nítidas de interação com o ouvinte/leitor envolvem enunciados que servem para direcionar algumas obrigações que se quer impor aos destinatários, tais como os enunciados de perguntas e de comandos. Segundo os autores, esses enunciados também mostram claramente um "comportamento vis-à-vis de gramaticalização", pois eles podem desenvolver-se, e frequentemente o fazem, em estruturas cuja principal função é construir texto, estabelecer relações coesivas, relações entre sentenças, conforme Halliday (1985), além de, na maioria dos casos, introduzir cláusulas subordinadas.

Contrapondo-se a Traugott (1989) no que se refere à direção textual > interpessoal, Heine et al. (1991) apontam como evidência principal para abalizar o desenvolvimento do componente orientado para o ouvinte da metafunção interpessoal para a metafunção textual vem de exemplos que envolvem a reanálise de estruturas com marcador de interrogação se gramaticalizando como marcador de subordinação, como acontece em muitas línguas. Isso ocorre, inclusive, no português, com o desenvolvimento do pronome interrogativo quem (= Quem chegou?) para o subordinativo (Não sei quem chegou.). Há, nesse caso, nitidamente um componente interacional forte no primeiro emprego e um componente textual no segundo, ou seja, a trajetória interpessoal >textual.

Segundo os autores, há subjacente a essa transferência da metafunção interpessoal para a metafunção textual, uma estratégia de o falante/escritor estabelecer uma relação entre o ouvinte/leitor e o texto, por exemplo, chamando à atenção para uma determinada parte do texto ou despertando o interesse do ouvinte/leitor por aquela parte. Com o tempo, a reanálise e a gramaticalização vão fazendo que essa relação passe gradualmente a ser reinterpretada (reanalisada) como uma relação entre diferentes partes desse texto, evidenciando, pois, a metafunção textual.

Com base nessas considerações, Heine et al. (1991:191) propõem, "pelo menos com referência ao componente orientado para o ouvinte da função interpessoal", a seguinte trajetória de desenvolvimento das metafunções: Ideacional > Interpessoal > Textual.

Na literatura linguística brasileira, há o trabalho de Görski et al. (2004) sobre os itens olha/veja e quer dizer, observando os aspectos pragmáticos da mudança via gramaticalização, especialmente no que concerne aos componentes: orientado para o ouvinte (interacional/intersubjetivo) e orientado para o falante (expressivo/subjetivo) presentes na metafunção interpessoal da linguagem.

As autoras defendem que pode haver fortalecimento pragmático, principalmente, por inferências e implicaturas conversacionais decorrentes de pressões de informatividade, em diferentes instâncias de um processo de gramaticalização, dependendo dos contextos comunicativos de negociação entre falante/escritor e ouvinte/leitor. Por essa razão, sugerem que a metafunção interpessoal não deve ser inserida no contínuo de mudança correlacionado às metafunções da linguagem.

Baseadas nisso, Görski et al. (2004) consideram que a mudança semântico-pragmática se dá na direção ideacional/proposicional > textual, podendo ser perpassada pela metafunção interpessoal a qualquer ponto do percurso. As autoras também defendem que, dependendo dos itens analisados, pode haver proeminência do componente orientado para o ouvinte ou orientado para o falante. No âmbito da metafunção interpessoal, elas têm como hipótese que o desenvolvimento se dá na direção interacional > expressivo (e não o inverso).

Com base no exposto, podemos destacar alguns pontos de convergência e de divergência entre as trajetórias apresentadas para as metafunções da linguagem. Como ponto de convergência, verificamos que: (a) os percursos aceitam a coexistência das funções de linguagem na gramaticalização; (b) a trajetória de mudança ocorre na direção: Ideacional (Proposicional) > Textual; (c) o fenômeno da gramaticalização é unidirecional. São pontos divergentes: (a) o desenvolvimento da função expressiva da linguagem ocorre posteriormente ao da função textual (Traugott, 1989); (b) a divisão da função interpessoal em dois componentes: um orientado para o falante e outro orientado para o ouvinte (Heine et al. 1991); (c) a função expressiva de Traugott contempla apenas o componente orientado para o falante da função interpessoal de Heine et. al. (1991); (d) a função interpessoal não deve ser inserida no contínuo de mudança correlacionado às funções da linguagem, pois ela pode ocorrer em qualquer ponto do percurso (Görski et al., 2004); (e) os percursos de gramaticalização são unidirecionais, mas não necessariamente lineares (Görski et al., 2004).

Esses pontos nos incentivaram a verificar qual seria a distribuição para as metafunções da linguagem (Halliday; Matthiessen, 2004), conforme o percurso de gramaticalização de É QUE, objetivo desta investigação.

3. A BUSCA DA EMERGÊNCIA DA EXPRESSÃO É QUE

Descartada a possibilidade de a construção com É QUE ser herdada do latim (Cf. Cart et al. 1986), concentramos a nossa atenção naquilo que chamamos de construções afins, isto é, aquelas tidas como embrionárias tanto para os estudiosos tradicionais como para os linguistas que, de alguma forma, mostram interesse pela dita "partícula expletiva" É QUE, que vai da simples menção a estudos mais aprofundados, como o de Casteleiro (1979).

As construções afins foram agrupadas em dois tipos de estrutura: as construções de clivagem e as estruturas especificacionais. As construções de clivagem são empregadas para focalizar um elemento frasal e permitir uma leitura de contraste. São construções que envolvem as frases ditas "clivadas": ser ... que, como (3); as "pseudoclivadas básicas": O que... ser, como (4); as "pseudoclivadas invertidas": ser o que, como (5); e as "pseudoclivadas invertidas de é que": Ser que(m), como (6) e (7).

(3) Contexto: A fé católica

Segundo natura que fillou, quis morrer, quanto carne, por nos saluar, ... recebeu morte na uera cruz ... e depoys resucitou-se en carne e amostrou-se aos seus dicipulos e comeu com elles e leyxous confirmados em sa fe sancta catholica e subyo aos céus en corpo, en dignidade e ende uerrá na cruz en este mundo dar juyzo aos boos e aos mãos .... E esta é a nossa fé catholica, que firmemente teemos e cremos. E cuida á fe guardar (e) a eygreya de Roma, que a manda guardar come sacrafiço de nostro Senhor Ihesu Christo,... (COMTELPO. XIII.0007)

(E esta é a nossa fé católica que firmemente temos ...)

(4) Contexto: A descendência dos fidalgos

(*título resumo) Os que forom em estas lides som estes, e todos os fidallgos que ora há em Portugall e a mayor parte dos de Castella e de Galliza deçemderom delles : primeiramente dom Affomsso Ermigit de Bayam que he no titullo XL de dom Arnalldo, (...) (COMTELPO.XIII.0280)

(Os que estavam nestas lides são estes, ...)

(5) Contexto: Livro das Linhagens do Conde D. Pedro

(*) Em nome de Deus que he fonte e padre damor, e por que este amor nom sofre nenhuuma cousa de mal ..., e nenhuum melhor serviço nom pode o homem fazer que amalo de todo seu sem, e seu proximo como ssi mesmo, este preçeptohe ho que Deus deu a Moysés na vedra ley. Porêm eu conde dom Pedro filho do muy nobre rrey dom Denis ouve de catar por gram trabalho por muitas terras escripturas que fallauam dos linhageens.

(COMTELPO.XIV.0230)

(Este preceito é o que Deus deu a Moisés...)

(6) Contexto: Carta sobre a Fortuna

(*) Meu amigo e Senhor: agradeço a V. M. o desejo que me mostra de que eu tenha maior fortuna; não se preocupe tanto a meu favor, porque a fortuna que tenho, é a mesma que devo ter: o merecimentoé que faz a fortuna, e quem o não tem, que fortuna há-de esperar? (COMTELPO.XVIII.0193)

(7) Contexto: Governo dos antigos Lusitanos

(...) eſte Terreno, que deſignaõ pelo nome de Luſitania, he habitado de Póvos differentes independentes huns dos outros, e governados cada hum por ſuas Leis, e coſtumes particulares; leis raras, e coſtumes ſingelos, ainda com a marca da natureza naõ contrafeita.

Como a ſegurança própriahe quem ſó fórma eſtes córpos, naõ largaõ da liberdade que receberão da natureza, mais que o puramente preciſo para conſervar eſſa meſma ſegurança. (COMTELPO.XVIII.0023)

As estruturas especificacionais são aquelas que um valor é atribuído a um elemento frasal. Envolvem as frases nominais que tenham, como constituintes, a cópula e a conjunção subordinativa integrante ...ser que..., como (8).

(8) Contexto: O Evangelho

(...) Se a falla torpe ençuja π chama os demoões. magnifeſto he que a liçom ſpu)al ſanctifica π arãca agraça do ſpu) onde jaz ſoterrada. (COMTELPO.XV.0023)

(Se a fala torpe suja e chama os demônios, manifesto é que a lição espiritual santifica ...)

Além das construções citadas, Figueiredo-Gomes (2008) encontrou, no século XII, época do "nascimento da língua portuguesa", a estrutura DEM + SER + SN + QUE, tal como em (9), que tem a presença de três elementos que lhes são comuns: a cópula ser, o demonstrativo "o", e o "que" (pronome ou conjunção) e aproxima-se do uso atual das frases ditas "clivadas".

(9) Contexto: Notícia de herdades

Hec est notitia de heritates quaes ego pelagius sueríj cognomento romue dedi uxori mee sanchia anriquiz, pernominatas/ por suas arras. xij, casales e una quintana. (COMTELPO.XII.0519)

(Esta é a notícia de herdades que eu, Pelagio Suerij, nome da família de Roma, dei a minha esposa Sanchia Anriquiz, a título de arras, doze casais e uma quinta.)

A Tabela 1, a seguir, apresenta o desenvolvimento do uso das construções afins desde o Português Antigo ao Clássico:

Segundo a Tabela 1, as construções afins DEM+SER+SN+QUE, SER+DEM+QUE, PC e É QUE, depois de surgirem, persistiram por todos os três períodos verificados. Contudo, como dizem Traugott & Heine (1991), quanto mais frequente é a forma linguística, mais probabilidade ela tem de se gramaticalizar. Então, o Português Antigo apresenta a construção DEM+SER+SN+QUE como a mais frequente, mas seu uso, como compete com as outras três construções, vai tornando-se mais restrito e mais especializado a cada período.

A construção SER+DEM+QUE é a de segunda maior ocorrência no Português Antigo e diferentemente da anterior, revela um aumento em frequência com o passar dos tempos. Há um ápice dessa construção no Português Médio. É no século XVI que aparecem as primeiras ocorrências da expressão É QUE inicial, no COMTELPO, como em (10), e um pequeno declínio, no Português Clássico, momento em que o uso da expressão É QUE medial já apresenta ascendência, como (11).

(10) Contexto: Título do Conto V apresentando como as zombarias são más

(*) CONTO. V. AO PROPOSITO DO PAſſado, π he que jaq

as zombarias ſam más: na praça ou na barca ſam piores. Trata do que aconteceo em hũa barca zombando, π hũa reposta ſotil.

A PROPOSITO do dito graue que fica a tras me lembrou hum caſo que aconteceo na barca Dalcacere, indo á feira de Beja: & he, que leuãdo vento a popa, hia muita gente aſſentada no bordo da barca, & da banda da vella eſtaua hũ homẽ de Viana quebrado, que tinha hũa grande corcoua nas coſtas,... (COMTELPO.XVI.0009)

(... Ao propósito do passado, é que, já que as zombarias são más, na praça ou na barca são piores. ... um caso que aconteceu na barca Dalcacere, indo à feira de Beja: e é, que, levando vento à popa, ia muita gente sentada no bordo da barca ...)

(11) Contexto: A verdade sobre o pai

(...) E porque sobretudo a informação e uerdade de Vossa Paternidade he que ha de realçar esta nossa abonação e credito, pois Vossa Paternidade sabe tudo milhor que ninguem como quem tam particularmente em uida, (...) (COMTELPO. XVII.0104)

A construção de clivagem "PC", apesar de também já figurar com baixa frequência, no Português Antigo, tem menor uso no Português Médio e retorna a ascender no Período Clássico, porém com ocorrência menor do que as outras duas construções no Português Antigo e no Português Médio.

Com base no desenvolvimento dessas construções, pudemos verificar uma tendência de progressão: DEM+SER+SN+QUE > SER+DEM+QUE, ou seja, há o apagamento do demonstrativo inicial ou a retomada de seu referente anafórico/catafórico para ocupar a sua posição e ocorre também o desenvolvimento do SN > DEM. Já o uso da construção SER+DEM+QUE, em plena ascensão do Português Antigo ao Português Clássico, apresenta uma especialização do uso da construção SER+O+QUE, no Português Médio, em detrimento dos outros demonstrativos que têm pouco uso no Português Clássico.

Com base nesses dados, há uma forte tendência de a expressão É QUE derivar da evolução do seguinte percurso: DEM+SER+SN+QUE > SER+DEM+QUE > SER+O+QUE > SER QUE.

Contudo, já que a expressão É QUE não vem do latim e, segundo Costa e Duarte (2001), é resultante de um processo de reanálise específico do PE e do PB, seria precipitação nossa traçar uma trajetória, enfatizando mais os usos e dados estruturais da língua portuguesa, sem verificar os processos/mecanismos de gramaticalização por que passaram os elementos dessas construções, quais sejam: demonstrativo, cópula SER e QUE (pronome ou conjunção), já que há uma tendência translinguística de gramaticalização desses elementos em outras línguas, pidgins e crioulos (cf. Heine; Kuteva, 2002). A seguir, apresentamos os estágios de gramaticalização do É QUE, correlacionando-os às metafunções da linguagem.

4. ESTÁGIOS DE GRAMATICALIZAÇÃO DO É QUE E AS METAFUNÇÕES DA LINGUAGEM

Baseados na tendência do percurso de gramaticalização traçado, resultante da observação da frequência das construções afins e da evolução dos três elementos gramaticais envolvidos nesse processo, sintetizamos, a seguir, esses achados em quatro estágios por que julgamos terem passado tais elementos até a gramaticalização da expressão É QUE na língua portuguesa.

Consideramos como Estágio 0 a presença da construção Hec est (SN) que flagrada no galego-português, do século XII, ilustrada na amostra (9), em que há uma plenitude de significado. Há uso de um demonstrativo de proximidade "Hec" inicial, que, por catáfora antecipa a referência, ou seja, o documento apresentado localmente como Objeto concreto: "notitia de heritates", para apresentar o texto e introduzir o conteúdo dele. A cópula ser tem a função de identificar ou especificar o sujeito por meio do sintagma nominal predicativo, que, por sua vez, é seguido de uma cláusula relativa encabeçada pelo pronome que (conector subordinativo). Enfim, temos, nesse estágio, um documento como Objeto concreto, referenciado contextualmente no espaço real, visto como parte da descrição de uma situação verificável, de algo que existe no mundo, portanto um significado mais concreto que se situa proeminentemente na metafunção ideacional.

No Estágio 1, ainda no Português Antigo, continua o uso da protoconstrução DEM+ SER+SN+PR em frases complexas, como na amostra (3). Mas podemos observar o movimento dos elementos embrionários dessa construção, como em (12). Devido à alta frequência, ou seja, à rotinização da construção, ocorre um fortalecimento pragmático e inicia-se seu percurso de mudança. Então, continuando o processo de mudança, o sintagma nominal intercalado tem um significado mais genérico, como em (13). A referência anafórica, ou mesmo catafórica, não se limita só ao Objeto, mas ao Espaço co-textual ou contextual, apresentado em (13), como o demonstrativo inicial invariável (Esto = isto), portanto mais abstrato, referindo-se à porção textual anterior (uma anáfora proposicional, não mais uma referência a um sintagma). Há, nesse estágio, a mudança metafórica: Objeto > Espaço. Já há uma transferência da metafunção ideacional (significado concreto > significado mais abstrato) para a metafunção textual (referência nominal > referência textual).

(12) Contexto: Significado da visão

(...) Os três touros eram liados polos corpos: sam estes três cavaleiros que já sam assi liados de humildade que já soberva nom pode a eles entrar. Os outros touros que diziam: <<Vaamos buscar milhor pasto que este é >>, estes sam os companheiros da Távola Redonda que disserom, em dia de Pintecoste: <<Vaamos aa demanda do Santo Graal e seremos avondados das honras no mundo ... (COMTELPO.XIII.0126)

(...são estes três cavaleiros que já são assim ligados pela humildade... estes são os companheiros da Távola Redonda que disseram no dia de Pentecoste: )

(13) Contexto: Estórias do ermitão

(...) E contou-lhes de Josep e de rei Mordaim e de Naciam e de quaes homẽẽs foram e de quaes cavaleiros e de qual amor Nosso Senhor os amara. Esto era a cousa que el de grado mais do mundo que escuitava e que o mais confortava, ... (COMTELPO.XIII.0054)

(Isto era a coisa que ele com maior agrado do mundo que escutava ...)

Do Estágio 1 ao 2, há a evolução do sintagma nominal intercalado, como em (9) e (12a/b), para um pronome demonstrativo, que ainda concorda em número e gênero com o sujeito do verbo ser na frase anterior (matriz), como na amostra (14). Então a categoria Espaço é conceptualizada por uma referência demonstrativa, intercalando a cópula ser e o que marcador da cláusula relativa (SER+ DEM+PR), como em (14) e (15). Podemos observar também que o pronome demonstrativo inicial ora é substituído por um sintagma nominal, ora vem como um determinante demonstrativo, como em (16). Como resultado de inferências de implicaturas conversacionais e da pressão de informatividade, aparece a construção é o que, mostrando um uso mais especializado e mais fixo do demonstrativo "o", que se refere ao sujeito da cláusula matriz, numa construção típica do que, atualmente, denominam "pseudoclivada invertida", como em (17).

(14) Contexto: A procura dos cavaleiros das seedas (= cadeiras).

- Jhesu Cristo, Padre, Senhor de todalas cousas, beento sejas tu que me leixaste tanto viver a Távola Redonda comprida, que nom falecessem ende fora dous.

Entam disse a aqueles que as seedas haviam de catar:

- Quaes são esses que falecem?

- Senhor, disserom eles, Tristam e a seeda perigosa, que nom é comprida. (COMTELPO.XIII.0029)

(- Quais são esses que faltam?)

(15) Contexto: Tomada de Tavira

(...) dantre os moros que jaziaõ os corpos delles lançados no ſangue com as eſpadas nuas e troucheraõnos á Villa e fizeraõ na meſquita mor Igreija de Santa Maria e mandou fazer um moymento em que poz ſete eſcudos com as vieiras do Senhor Santiago e ali foraõ ſobterrados todos ſeis e o mercador com eles os nomes dos quaes ſaõ os que ſe ſeguem dom Pero Paes commendador mor Mem do Valle, Damião Vaz Alvaro GraciaEſtevaõ Vaz Vallerio de Oſſa e o mercador Gracia Rodriguez cujos corpos foraõ deſpois tidos em grande relíquia ... (COMTELPO.XIII.0092)

(...e ali foram enterrados todos os seis e o mercador com eles os nomes dos quais são os que se seguem ...)

(16) Contexto: Descendência de Dom Tello

Este dom Tello foy casado com dona Maria filha do iffamte dom Affomsso de Portugall e de dona Viullamte filha do iffamte dom Manuell e de dona Costamça d'Aragom, e fez em ella dona Isabell. Esta dona Isabell se uê casada com dom Joham Affomsso o boo d'Alboquerque, e fez em ella dom Martinho. Este dom Joham Affomsso foy o que trouuerom no ataúde os iffamtes suso ditos e outros muitos boons como se mostra em este titullo parrafo XII hu está tal sinall. (+) (COMTELPO.XIII.0279)

(Este dom João Afonso foi o que trouxeram no atáude os infantes antes ditos...)

(17) Contexto: O cavaleiro da cadeira perigosa.

(...) - Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquel que vem do alto linhagem del-rei David e de Josep Baramatia, (...)

- Se esto é verdade, vós sejades bem viindo. E bem seja veúdo o cavaleiro, ca este é o que há-de dar cima aas aventuras do Santo Graal. Nunca foe feito em esta casa tanta honra, como lhe nós faremos. (COMTELPO.XIII.0030)

(... porque este é o que há de dar fim às aventuras do Santo Graal.)

Ao usar a construção é o que em uma situação comunicativa, o falante/escritor sente a necessidade de fazer remissão ao Espaço textual já mencionado, com o uso da referência demonstrativa "o" (e não mais o Objeto), de modo a intensificar a informação para a qual ele quer chamar a atenção do ouvinte/leitor. Estruturalmente, é uma construção morfossintática de clivagem, portanto mais gramatical, empregada para focalizar um elemento da cláusula matriz, a qual está bem mais integrada à cláusula relativa. Entretanto, do ponto de vista semântico-pragmático, a clivagem vem a serviço da ênfase que o falante/escritor imprime ao sinalizar o desejo de chamar a atenção do ouvinte/leitor para algo; e, para tanto, o falante insere um argumento (informação) em um argumento maior, objetivando economia e informatividade. Com base apenas nesse aspecto, a tendência de gramaticalização se daria Demonstrativo > Foco, por meio da metáfora Objeto > Espaço > Conexão Textual.

Continuando o percurso, ainda como uma construção de clivagem, não mais do tipo "pseudoclivada invertida", a construção é o que passa por uma reanálise, ou seja, há uma reformulação sintático-semântica que, por meio do processo metonímico, transforma-a em É QUE. Há, portanto, a reanálise do demonstrativo com o relativo, ou seja, os dois passam a ser reinterpretados por um "que" complementador (conjunção integrante), logo mais gramatical, como em (18).

(18) Contexto: O anjo e a alma em um lugar muito formoso

(...) E quando a alma uio tanta aligria, ... preguntou entõ ao angeo de quaes era aquella folgança? E o ango disse:

- He daqueles que receberõ marteiro por amor de Deus e por esso rrecebe) tanta honra, como tu vees: outros som que uiuerom em castidade.

Entom olhou a alma a todas as partes e uio mujtos castellos e mujtas torres e mujtas tendas d'ouro ... (COMTELPO.XIV.0046)

( .... outros são que viveram em castidade. ...)

Em (18), o falante, que é o "angeo", em sua resposta, chama à atenção do ouvinte, a alma maravilhada com "aquella folgança", dando ênfase à informação "outros", de forma a realçar aquilo que é mais importante em sua mensagem. Há, portanto, na frase dois níveis de informação marcados explicitamente pelo acréscimo do SER QUE: um nível focal e um não-focal. Caracteriza-se, assim, uma construção de clivagem, embora não seja ainda com a fórmula É QUE, posto que a cópula ainda atende às restrições de concordância verbal.

Nesse caso, não se aplicaria a tendência translinguística de gramaticalização: Demonstrativo > Foco; seria mais viável a tendência Demonstrativo > Complementador > Marcador de foco. Mas a função de marcação de foco incorpora o ser reanalisado, o complementador vem sempre depois da cópula, a qual concorda em número-pessoa com o sujeito da cláusula matriz e atende às mesmas restrições de tempo da cláusula complementadora. É o caso da construção de clivagem chamada de "pseudoclivada invertida de é que" (Costa; Duarte, 2001) ou "construção É QUE" (Braga, 1989; Longhin, 1999).

Essa construção ainda se encontra no Estágio 2, momento que corresponde a uma mudança das unidades linguísticas relativa à metafunção textual da linguagem. A mudança atua, então, na "construção do texto", na organização do discurso, de modo a operar no co-texto (organizando a mensagem) e na situação (ajustando a mensagem a outras, ao ouvinte/leitor ou ao contexto mais amplo). Os dados do Português Antigo do COMTELPO parecem evidenciar a trajetória: metafunção ideacional (significado concreto) > metafunção textual (significado textual-discursivo) no início da gramaticalização de É QUE; ou seja, segue o percurso: Hec est...q (Estágio 0 e 1) > é o que (Estágio 2)

Esse Estágio 2 parece corresponder à explicação do lexicólogo Bueno de Sequeira (1954:92-5 ), por meio dos exemplos (19) a (22), para a expressão É QUE, um idiotismo, para ele, que resultou de uma generalização analógica, porque começou a ser usada com um sujeito masculino do singular, como em (19) e, uma vez com o uso generalizado, passou para o feminino do singular, como em (20), e para o plural dos dois gêneros, como em (21). Depois, houve a supressão do demonstrativo, conservando-se a frase no singular, e a expressão se tornou fixa na forma masculina, como em (22), portanto, invariável.

(19) "O homem é o que ofende a Deus."

(20) "A mulher é a que deve obedecer."

(21) a. "Os homens são os que ofendem a Deus."

b. "As mulheres são as que não querem obedecer."

(22) a. "Os rebanhos é que fazem a felicidade do campo."

b. "As mulheres é que não querem obedecer."

Para essa supressão e consequente fixação, o autor supõe que "deve ter influído a existência de três outros encontros de 'é que', nos quais a partícula que, não era pronome, mas conjunção" (Bueno de Sequeira, 1954:93). Os encontros citados para a mudança pronome > conjunção são "o é que das afirmações enfáticas", em (23), com uma possível inversão SER...QUE > É QUE; "o é que de uma "oração integrante predicativa", em (24), com a inversão ao lado para comprovar que se trata de uma predicativa; e a"locução explicativa é que, correspondente a 'razão por que' em latim, ratio quia", como em (25).

(23) a. "É daí que lhe vem toda a graça." Vieira 2:15 "(Daí é que)"

b. "Agora é que tinham melhor lugar os desmaios da Esposa." Vieira 7:46

(24) "A maior circunstância que temos dele é que foi no lugar da Parada". "Que foi no lugar da Parada é a maior circunstância." Arcebispo, 2:114

(25) "Os carvalhos ... e as boninas não ousam erguê-la (a fronte) para o céu. É que rugindo, a ventania cai da montanha..." Herc., Lendas, 2:106.

As amostras garimpadas no COMTELPO parecem confirmar, pois, o desenvolvimento É O QUE > É QUE sugerido por Bueno de Sequeira (1954), tanto na posição medial, antecedido de um sintagma adverbial, como "o é que das afirmações enfáticas" em (23b), quanto na posição inicial, como uma locução explicativa, embora tenhamos uma hipótese mais ampla para esse desenvolvimento.

Flagramos as primeiras ocorrências da expressão É QUE inicial, nos textos do século XVI do COMTELPO, como nas amostras retrocitadas em (10): a. AO PROPOSITO DO PAſſado, π he que as zombarias ſam más: e b. & he, que leuãdo vento a popa, hia muita gente aſſentada no bordo da barca, que parecem funcionar parcialmente diferente.

No primeiro uso, a construção "he que", constante do título do conto, é antecedido pelo sintagma adverbial "AO PROPOSITO DO PAſſado" que situa a informação no tempo e não se trata de uma explicação genuína: seria redundante o uso de um é que explicativo, antecedendo uma outra locução conjuntiva explicativa "" (= já que). Porém, introduz a frase, de modo a esclarecer a informação presente no segmento anterior. No segundo uso, apesar de não haver uma normatização padrão para a ortografia e para a pontuação empregadas, o contexto sugere início de frase; além de já não existir paralelismo verbal no tocante ao tempo entre o ser no presente e os verbos das frases contíguas - anterior e posterior - no pretérito, assumindo, na época, seu caráter invariável na fórmula É QUE.

Desse modo, as duas amostras de (26) ampliam a trajetória de gramaticalização para o É QUE inicial, sugerindo um Estágio 3, em que a expressão funciona como um organizador textual-pragmático, indicando o início, introduzindo e esclarecendo a informação, ou seja, um marcador típico de aberturas de turno. Supor isso não invalida, por completo, a intuição do lexicólogo, posto que a função de esclarecedor, num plano escalar, fica no contínuo da explicação; além disso, os dois É QUE enfatizam a informação anteriormente conhecida e a que está por vir, orientando, portanto, o ouvinte/leitor, configurando a proeminência da metafunção interpessoal nesse estágio.

Já no desenvolvimento do É QUE medial, observamos que, com a frequência do uso no decorrer do tempo, a rotinização da "construção É QUE" (de clivagem) faz que ocorra uma generalização analógica por meio do padrão de uso (Fries, 1940). Continuando seu fortalecimento pragmático, a pressão de informatividade e a convencionalização de inferências conversacionais fazem com que a construção se torne mais contígua e assuma seu caráter de fórmula "É QUE", invariável, como um morfema não segmentável, funcionando não mais como um conector, mas sim como um "marcador de ênfase" - presente em uma única cláusula, como ilustramos na amostra (6): o merecimento é que faz a fortuna... .

Com base nessa tendência, os dados do Português Antigo ao Português Clássico do COMTELPO podem evidenciar, tanto em início de frase como em posição medial, o percurso de gramaticalização: é o que (Estágio 2) > É QUE (Estágio 3), predominando a trajetória das metafunções: textual (significado textual-discursivo) > interpessoal (significado pragmático-discursivo).

Como até o Português Clássico, não houve a ocorrência de É QUE em frases interrogativas, bastante usadas atualmente no PE e no PB, decidimos ampliar o corpus. Os novos dados do Português Moderno do COMTELPO revelam as primeiras ocorrências ainda na 1ª metade no século XIX, havendo uma única ocorrência no PEM e duas no PBM, ilustradas nas amostras (26) e (27), respectivamente.

(26) Contexto: O domínio do latim pela nova geração

SOB. (...) O pharisaismo moderno, como não encontra Christo que sentencear, arvora cruz ao genio, e crucifica o porque não sabe latim.

TIO. Faze-me o somno (abre a bocca, e benze-a) Como é que vossês tão lidos pelos modos, em bons exemplares, são tão immoraes?

SOB. É porque o latim não moralisa... Vamos ao serio: em que está a nossa desmoralisação? (COMTELPO.XIX.PE1M.003)

(27) Contexto: Diálogo entre um livreiro velho (LV) e seu filhos

(...) LV - Jezus me valha! Meos filhos! E quando isso quizesse, era algum absurdo? Com esse genero de vida pude adquirir para viver com decencia, criarvos, educarvos,e alimentarvos...

Rip - Basta, basta, basta! Por semelhante meio nada quizera: Vossa mercê algum dia foi Deputado? Membro, Secretario, ou Prezidente de Sociedades liberaes? Algumas vez (sic) foi a esplendidos Bailes? Já foi corôado em sua vida? Quando he que, como eu, levou um tiro?! Diz vossa mercê que fez, e aconteceo; mas de que modo? (COMTELPO.XIX.PB1M.004)

Conforme as amostras (26) e (27), o É QUE medial também ocorre depois de elementos interrogativos. Apesar de achar sua forma embrionária QU+SER+DEM +QUE ...?, apresentada na amostra (14): Quaes são esses que falecem?, do século XIII, essa construção teve também ocorrências nos séculos XIV e XV e reapareceu uma única vez na 1ª metade do século XIX, conforme amostra (28).

(28) Contexto: A excomungação da cidade pelo cardeal

(...) - Misericórdia! Misericórdia' - gritavam devotadamente homens e mulheres à porta do alcácer, com o alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.

- Que vozessão estas quesoam? - perguntou ele a um pajem.

O pajem respondeu-lhe chorando:

- Senhor, o cardeal excomungou esta noite toda a cidade e partiu... (COMTELPO.XIX.PE1M)

A construção Q+SER+DEM+QUE ...?, presente em (28), vem corroborar, também em frases interrogativas, a hipótese de trajetória é o que > É QUE; hipótese esta também defendida pelas linguistas Duarte (1992) e Lopes Rossi (1993). Segundo as pesquisadoras, a interrogativa Que é o que (...)? também aparece no intervalo entre os séculos XVI e XVIII, mas o aparecimento do "expletivo" é que deu-se somente na segunda metade do século XIX. Os dados do COMTELPO confirmam isso parcialmente, valendo apenas para o uso da construção embrionária em frases interrogativas, pois, como vimos, os usos do É QUE em início e em posição medial de frases declarativas e exclamativas se estabeleceram nos séculos XVI e XVII, respectivamente.

Com esse achado, fechamos o Estágio 3, que corresponde à tendência semântico-pragmática III, de Traugott & König (1991:209), segundo a qual "os significados tendem a tornar-se cada vez mais situados nas crenças/atitudes subjetivas do falante com respeito à situação". Esse estágio marca, com proeminência da metafunção interpessoal, o estabelecimento da expressão É QUE com significação epistêmica relacionada à realidade, à verdade. Esse significado epistêmico pode ser evidenciado, segundo o princípio de persistência (Hopper, 1991:22), por meio do étimo do verbo ser. Segundo Vendryès (1921), a raiz proto-indo-europeia es (=ser), que forneceu a cópula, em data muito antiga, denota propriamente "a existência, a vida" e o demonstra através do particípio sat, que designa "um ser real" e o derivado satyas, "verdadeiro", e mediante o grego tà ónta, "a realidade". A expressão É QUE enfatiza, portanto, a atitude de certeza do falante/escritor para o ouvinte/leitor, buscando-a ou asseverando-a por meio de contraste.

Sintetizando, apresentamos, no Quadro 1, o percurso de mudança semântico-pragmática do marcador de ênfase É QUE que se dá, no sentido unidirecional, do componente ideacional via textual para o interpessoal, partindo, pois, da referência concreta para a expressão da avaliação do falante para marcar a relevância da informação, colocando-a em saliência para a avaliação do ouvinte.


Conforme o Quadro 1, o último movimento caracteriza a proeminência do componente interpessoal, centrado no falante/escritor, chamando a atenção do ouvinte/leitor para algo (orientado para o ouvinte), uma vez que, no processo interativo, entra em jogo a adequação do uso aos propósitos tanto do falante/escritor quanto do ouvinte/leitor. Essa relevância é, nesse estágio, marcada sem a referência demonstrativa, embora ela esteja implícita, para significar a crença/atitude do falante/escritor. Essa mudança sugere a tendência de uma cadeia do tipo: construção lexical plena > construção morfossintática (de clivagem) > marcador discursivo, demonstrando uma mudança para uma construção mais abstrata e subjetiva do mundo em termos de linguagem.

Como marcador discursivo, os usos do É QUE encontrados atuam no monitoramento da interação, na organização textual-discursiva e na organização da hierarquia informacional e realizam-se por meio dos tipos:

I - marcador enfático-interrogativo é que: operador que enfatiza a busca da certeza epistêmica do argumento como resposta à informação desconhecida, como em (29).

(29) Contexto: Acontecimentos da década dignos da mídia

(...) Querem crer? O que é que terá sido mais espetacular? As imagens da jovem princesa desfeita no túnel d'Alma, em Paris, ou as torres de petróleo a arder no Koweit? (COMTELPO.XX.PEM)

II - marcador enfático-explicativo é que: operador que introduz e enfatiza um argumento relativo a enunciados anteriores, explicando-os ou esclarecendo-os, como em (30).

(30) Contexto: Depoimentos da namorada de Pessoa

(...) Foi o próprio Fernando que me recebeu nesse dia. (...) A certa altura disse-me timidamente:

«- Sabe, queria prevenil-a duma coisa. É que a passadeira da escada tem um buraco, e não vá a menina cair ... » Depois calou-se e, passado um bocado, disse: «Há outra coisa de que queria prevenil-a; é que o outro sócio, o Valadas, é um pouco rude. Ele não é má pessoa, sabe, mas é da GNR e não vá a menina chocarse com qualquer coisa...» (COMTELPO.XX.PEM.0267)

III - marcador enfático-contrastivo é que: operador que assinala (enfatiza) um argumento, dando uma certeza epistêmica a uma determinada conclusão, e contrastando-o com conteúdo(s) pressuposto(s), como em (31).

(31) Contexto: Conversa sobre uma passagem da Bíblia

(...) João Grilo - (...) Está escrito lá assim mesmo?

Manuel - Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo trinta e dois.

João Grilo - Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?

Manuel - Sou não, João, sou católico. (...) (COMTELPO.XX.PBM.0187)

Como vimos, o marcador de ênfase É QUE também funciona como um marcador epistêmico, expressando uma atitude do falante/escritor que manifesta o grau de certeza, positiva ou negativa, em relação à proposição. Então, por ser um ativador de pressuposição por excelência, como na amostra (31), e por manifestar-se em asserções do tipo realis, irrealis e negativa (cf. Givón, 2001; Figueiredo-Gomes, 2011) e junto a outros modalizadores de frase, intensificando-os epistemicamente, a expressão É QUE funciona como um modalizador epistêmico de asseveração.

CONCLUSÃO

Conforme os dados do COMTELPO, o É QUE na posição inicial surge no Português Médio. No Português Clássico, surge o É QUE com posição medial de frases declarativas e exclamativas; e somente, no Português Moderno, em frases interrogativas.

Os resultados empíricos tendem a evidenciar o percurso de mudança semântico-pragmática do marcador de ênfase É QUE, cuja gramaticalização se dá inicialmente por processos metafóricos (Objeto/Espaço > Conexão Textual) e efetiva-se por processos metonímicos (construção morfossintática [de clivagem] > marcador discursivo).

Observando o percurso dos quatro estágios por que passou a expressão É QUE desde o Português Antigo até o Português Moderno, verificamos que as mudanças partem de conceitos concretos para conceitos mais abstratos, por meio das formas Hec est (SN) q (Estágios 0 e 1) > é o que (Estágio 2) > É QUE (Estágio 3), predominando a trajetória das metafunções da linguagem: ideacional (significado concreto) > textual (significado textual-discursivo) > interpessoal (significado pragmático-discursivo).

Esse percurso vem abalizar, duplamente, o princípio da unidirecionalidade na gramaticalização por meio tanto da descategorização estrutural, que pode levar ao aumento do vínculo dentro construção (caráter de fórmula É QUE) quanto do aumento simultâneo da força pragmática e da abstração semântica, que pode levar a construção a um novo significado como marcador discursivo, que acumula as funções de marcador de ênfase e de modalizador epistêmico de asseveração.

Acreditamos que os resultados desta investigação possam trazer contribuições para futuras pesquisas funcionalistas e para as aplicações pedagógicas que visem a uma melhor compreensão do funcionamento e uso da expressão É QUE, proporcionando o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos.

Recebido em fevereiro de 2012

Aprovado em julho de 2013

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    Grammaticalization and language metafunction: an analysis of the expression é que
  • 1
    . Usamos metafunção quando nos referimos à terminologia de Halliday.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2012
    • Aceito
      Jul 2013
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