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A musicalidade das pessoas surdas: um olhar a partir da teoria histórico-cultural

The musicality of deaf people: a perspective from cultural-historical theory

RESUMO

Este artigo discute a relação entre a pessoa surda, sua musicalidade e caminhos para seu desenvolvimento. Contrapomos ideias deterministas que consideram a irregularidade orgânica como quantitativamente pior, propondo novos olhares capazes de percebê-la por um prisma qualitativamente diferente. O alicerce da discussão é fundamentado na Teoria Histórico-cultural, cujos conceitos e modos de tratar o fenômeno constituem o que Vigotski afirma como o próprio método. Por essa via, indicamos a importância de enxergar a pessoa surda como um ser de possibilidades capaz de vivenciar sua musicalidade, e de desenvolver-se musicalmente. Imersas no imaginário do silêncio, muitas vezes são invisibilizadas e afastadas da possibilidade de relação com os fenômenos sonoros. Desenvolvemo-nos de forma integral e a musicalidade faz parte deste processo, superando a necessidade de possuir uma audição considerada como regular. A irregularidade biológica, embora existente, caminha em seu desenvolvimento permeada pela cultura. Assim, conclui-se defendendo que experiências e vivências musicais voltadas para o desenvolvimento das musicalidades precisam ser consideradas e organizadas por meio de processos educativos voltados para esse fim, independentemente de a pessoa ser ou não surda.

Palavras-chave:
pessoa surda; musicalidade; desenvolvimento humano, educação musical; teoria histórico-cultural

ABSTRACT

This article discusses the relationship between the deaf person, their musicality, and paths for their development. We oppose deterministic ideas that consider the organic irregularity as quantitatively worse, proposing new looks capable of perceiving it through a qualitatively different prism. The foundation of the discussion is based on the Cultural-Historical Theory, which concepts and ways of dealing with the phenomenon constitute what Vigotsky asserts as the method itself. In this way, we indicate the importance of seeing the deaf person as a being of possibilities capable of experiencing their musicality and developing musically. Immersed in the imaginary of silence, they are often made invisible and kept away from the possibility of relating to sound phenomena. We develop in an integral way, and musicality is part of this process, going far beyond the need for what is considered to be regular hearing. Biological irregularity, although existing, goes along its development permeated by culture. Thus, we conclude by advocating that experiences and musical experiences, aimed at the development of musicality, need to be considered and organized through educational processes aimed at this end, regardless of whether the person is deaf or not.

Keywords:
deaf person; musicality; human development, musical education; cultural historical theory

1. Introdução

A língua, enquanto parte constituinte do ser humano, confere as características culturais de um povo. A legitimação e oficialização da língua de sinais ao redor do mundo proporcionou às pessoas surdas uma visibilidade que outrora não era concebida. “[...] Tornar visível a língua desvia a concepção da surdez como deficiência - vinculada às lacunas na cognição e no pensamento - para uma concepção da surdez como diferença linguística e cultural” (Gesser, 2009Gesser, A. (2009). Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. Parábola Editorial., pp. 9-10).

A falta do conhecimento da existência de uma língua que é usada para a comunicação das pessoas surdas culminou na ausência da compreensão sobre o desenvolvimento delas. Designadas como seres sem alma, excluídas da sociedade, sempre tiveram que lutar pelos seus direitos. Os desafios enfrentados por estas pessoas, abrangem a questão da sua língua e, consequentemente, de sua linguagem, visto que ambas permeiam todo o desenvolvimento humano, principalmente, considerando-se a esfera social. É neste espaço que suas lutas e conquistas foram eternizadas. É igualmente na esfera social que preconceitos são evidenciados, excluindo as possibilidades e potencialidades de cada ser humano, porém, é também neste espaço que é possível a organização de ações voltadas para o pleno desenvolvimento humano.

Isso nos leva a duas vertentes que tratam dessa problemática, uma de premissas negativas e outra, que será tratada aqui, de princípios relativos ao desenvolvimento enquanto potencialidade e possibilidade, a partir da Teoria Histórico-Cultural - THC. As premissas negativas integram o rol das ideias da quantificação. Tudo o que foge à padronização, convencionada como ideal, bom, aceitável, em termos de desenvolvimento, compõe o rótulo do que é considerado como ruim, de menos valia, como falho, ou seja, de um desenvolvimento que é hierarquizado, avaliado e validado por outrem. Em contraponto a esses aspectos que envolvem visões limitantes e limitadoras, apresentaremos outro modo possível de se compreender este desenvolvimento, assunto que será tratado no próximo tópico.

A manutenção da ciência enquanto saber que legitima o ser humano no âmbito de determinada especificidade de desenvolvimento leva-nos a refletir sobre o poder conferido especialmente ao saber médico. O desafio aqui é pensar que, quando falamos de desenvolvimento humano, estamos nos referindo a processos qualitativamente diferentes. Ou seja, mesmo diante da existência de um desenvolvimento padrão, isto é, de uma regularidade de desenvolvimento humano, não vamos enxergar este modelo como qualitativamente melhor, e nem quantitativamente maior.

Quando pensamos nas pessoas surdas e em sua relação com os sons, comumente voltamo-nos para a condição da existência de uma audição regular para experiências sonoras, uma ideia que se alicerça em premissas negativas relativas aos rótulos e aos limites. Por esta perspectiva, a musicalidade, ou seja, o comportamento humano relativo às vivências sonoras naturais e culturais, em termos de sua percepção, expressão e criação, estaria atrelada à audição como condição para as experiências musicais.

Há três pontos que precisam ser elucidados no tocante a isto. O primeiro diz respeito ao desenvolvimento humano atípico compreendido pela Teoria Histórico-Cultural de Vigotski3 3 Por apresentar grafias diferentes, optou-se, ao longo do texto, manter a escrita do nome Vigotski, embora nas referências sejam apresentadas conforme as obras estudadas. . O segundo diz respeito à existência da musicalidade em todas as pessoas e, o terceiro, a sua possibilidade na pessoa surda. Tais princípios, que constituem o alicerce que Vigotski (2018Vigotski, L. S. (2018). 7 aulas de L.S Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. In Z. Prestes, & E. Tunes (Orgs./Trads.). E-papers.) denomina como o próprio método, é definido pela teoria com seus fundamentos filosóficos. Para ele, o estudo da realidade em uma parte definida, o método de investigação, seria o caminho de conhecimento que conduziria, em algum campo, à compreensão de suas regularidades específicas.

2. Desenvolvimento humano: entre o biológico e o cultural

Para além da nomenclatura de desenvolvimento humano típico, atípico, normal, anormal, patológico ou não, da existência de um defeito biológico ou não, é sempre, e mais importante termos em mente o respeito pelo ser humano, a empatia com o outro. Devemos lembrar que para além dos rótulos determinantes de capacidades de realização pessoal, há uma pessoa que tem direito ao desenvolvimento.

O outro já foi suficientemente massacrado. Ignorado. Silenciado. Assimilado. Industrializado. Globalizado. Cibernetizado. Protegido. Envolto. Excluído. Expulso. Incluído. Integrado. E novamente assassinado. Violentado. Obscurecido. Branqueado. Anormalizado. Excessivamente normalizado. E voltou a estar fora e a estar dentro. A viver em uma portaria giratória. O outro já foi observado e nomeado o bastante como para que possamos ser tão impunes ao mencioná-lo e observá-lo novamente. O outro já foi medido demais como para que tornemos a calibrá-lo em um laboratório desapaixonado e sepulcral. (Skliar, 2003Skliar, C. (2003). Pedagogia (improvável) da diferença: E se o outro não estivesse aí?. DP&A., p. 29)

Portanto, quando pensamos o desenvolvimento humano, isso nos faz questionar a exigência contínua da presença de um padrão como sendo a única forma correta, ideal, aceitável e positiva de ser e estar no mundo. Nele, tudo o que não se encaixa é considerado em um prisma de inferioridade, de menos valia, de incapacidade e incompletude.

A história do determinismo biológico nos traz ideias grotescas a respeito do ser humano, voltado para sua inferiorização. Com as pessoas surdas, a história não foi diferente. Ao longo dos séculos foram consideradas não humanas, anormais, deficientes. Foram excluídas do convívio social e, por vezes, assassinadas.

No século XV, a pessoa surda é considerada incapaz e, portanto, sem acesso à educação. O século XVI torna-se o século em que a pessoa surda passa a ser considerada humana, ou seja, “[...] apto à linguagem, capaz de comunicar-se, de pensar, de expressar sentimentos, um ser de moral, não é mais considerado um ser rudimentar”, assim declarado, primeiramente em 1579 por Girolamo Cardano, polímata italiano. (Paula & Pederiva, 2018Paula, T. R. M., & Pederiva, P. L. M. (2018). Sou surdo e gosto de música: a musicalidade da pessoa surda na perspectiva histórico-cultural. Editora Appris., pp. 43-44)

As ideias advindas do determinismo biológico passaram por um longo percurso que deixaram marcas e ecoam ainda em nossa contemporaneidade. Perlin e Reis (2012Perlin, G., & Reis, F. (2012). Surdos: Cultura e transformação contemporânea. In G. Perlin, & M. Stumpf (Orgs.). Um olhar sobre nós surdos: Leituras contemporâneas (pp. 31-48). CRV.), pesquisadoras surdas, expõe o quanto suas vidas foram pautadas na normalização:

[...] despontamos nossas vidas num espaço onde fomos submetidas às questões de normalização, ou seja, o contexto moderno. A identidade ouvinte era a única saída, o modelo, a possibilidade, a norma. Não nos deixavam assumir nossas vidas, nossas identidades, sermos surdos, conhecer nossos espaços de transformação, de diferença. O que imperava era a obrigatoriedade de narrarmo-nos entre os deficientes, o controle rígido e o medo ao deficiente impetrados. (p. 29)

Notamos que a necessidade da normalização foi sendo construída e idealizada pelos poderes dominantes ao longo do tempo. A história é dinâmica e viva, e pode valer-se do seu passado para alterar o futuro ou perpetuar seus ideais. As representações que temos do outro são diariamente construídas enquanto acontece a vida. E é neste contexto que nossas posturas precisam mostrar e elucidar que o outro, em meio as suas especificidades de desenvolvimento, é um ser humano e, como tal, assim precisa ser visto, e não por meio de uma imposição social majoritária.

Há, ainda, o hábito de olharmos o outro, o que nos é diferente, como algo estranho, anormal, com o eco do passado de que este outro vale menos que nós, isso por vários motivos já elencados ao longo do texto. Lembrando, por exemplo, o uso da craniometria, que é o uso da medição do cérebro para justificar inteligências e superioridades de raças a partir da visão limitadora e preconceituosa do determinismo biológico, que tem como critério a inferiorização do outro.

[...] Em princípio, anormal seria tudo que foge à norma. Nesse sentido tão amplo, os autores brasileiros descrevem classificações estrangeiras que ora limitam o termo a idiotas, imbecis, surdos-mudos e cegos, ora estendem-no aos mais diversos tipos de ‘déficit’ [...] um traço comum a todas elas, sem exceção: o critério negativo da falta que a polaridade da norma firma a serviço das práticas institucionais da medicina, da educação e da justiça. (Lobo, 2015Lobo, L. F. (2015). Os infames da história: Pobres, escravos e deficientes no Brasil. Lamparina., p. 363)

A propósito das práticas institucionais da medicina citamos aqui a cultura ouvinte, e a cultura surda. A cultura ouvinte, enquanto dominante, há muito normaliza as pessoas surdas com a perpetuação da validação médica para os procedimentos efetuados.

Uma família não surda é surpreendida, na maioria das vezes, por um sentimento de tristeza e negação quando nasce uma criança surda em seu meio. O desconforto por não saber como será a comunicação, o desenvolvimento, como será a vida desta criança, como vai brincar, como será na escola, nos seus estudos, no trabalho, se vai para uma faculdade, enfim, as questões levantadas são inúmeras e permeadas pela angústia de sua peculiaridade. Isso acontece porque, pelo respaldo de premissas negativas, o desenvolvimento considerado atípico não encontra espaço na sociedade. A propaganda de um outdoor de uma clínica de aparelhos auditivos, por exemplo, transmite a seguinte mensagem: “ouvir é vida!” Diante desse tipo de informação, é mais difícil ainda perceber que outra forma de ser e estar no mundo, diferente do desenvolvimento regular preponderante, seria totalmente viável.

Vejamos outra situação no tocante a esta discussão: quando uma criança surda nasce no seio de uma família surda, o sentimento costuma ser de muita alegria em seu meio. Existe uma conta pública, de uma família surda, no instagram (@odiariodafiorella) que relata, em um vídeo, a alegria e a festa ao descobrirem que o novo membro também é surdo. Nesse caso, é possível perceber que há uma consciência, por parte desta família, de que a deficiência não interfere nas possibilidades de desenvolvimento, de que ela não é fator limitador. Os entraves e percalços vividos por eles, em uma sociedade que ainda não está preparada para recebê-los, é fruto da falta de conscientização social sobre as ferramentas culturais de desenvolvimento, por exemplo, a língua de sinais e de sua necessidade nos espaços públicos para que as pessoas surdas consigam transitar sem obstáculos. No seio de uma família de não surdos, se a consciência fosse a mesma, a chegada de uma criança surda não seria tão angustiante como tem se manifestado. O aprendizado da língua da criança pela família, embora se apresente como um desafio, é algo possível.

Vigotski afirma que o “surdo-mudo aprende a ter consciência de si mesmo e de seus movimentos à medida que aprende a ter consciência dos outros4 4 “El sordomudo aprende a tener conciencia de sí mismo y de sus movimientos en la medida en que aprende a tener conciencia de los demás” (Vigotski, 2013, p. 58). ” (Vigotski, 2013Vygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 58, tradução livre). Cabe uma ressalva neste trecho: à época dos estudos de Vigotski (2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución.) o termo utilizado para designar as pessoas surdas ainda era surdo-mudo. Hoje, pela Lei Brasileira de Inclusão, “todas as pessoas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas são consideradas pessoas com deficiência” (Lei nº 13.146, 2015Brasil. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (2015). Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, art. 2). Fica explícito que a deficiência está presente quando em relação a uma ou mais barreiras, e isto acontece dentro do espaço social, na cultura.

Infelizmente, uma parcela da sociedade, muitas vezes por falta de conhecimento, ainda percebe os surdos como pessoas de falta, negligenciando o seu pleno desenvolvimento antes, rotulando-a, excluindo-a, invisibilizando-a.

A defectologia de Vigotski

Apresentadas as ideias deterministas, agora, com base na Teoria Histórico-Cultural, partimos do princípio de que o desenvolvimento da condição humana, diferentemente dos animais, extrapola os aspectos biológicos quando apresentam algum “defeito”. Em sua obra Fundamentos da Defectologia, Vigotski apresenta-nos outro olhar a respeito do que hoje chamamos de desenvolvimento humano atípico.

Podemos substituir a palavra defeito, usada por Vigostki para demostrar a existência de um aspecto/marca biológica que era diversa da forma regular, por irregular. E, ainda, dizer que, por exemplo, as pessoas surdas apresentam uma irregularidade biológica em seu desenvolvimento quando observadas as condições de regularidade da audição em seu modo mais frequente na sociedade. Porém, essa irregularidade é a marca e o modo de ser e estar no mundo das pessoas surdas.

A maneira como percebemos o ser humano engloba a dialética do desenvolvimento de seu biológico irregular na cultura e, assim, caminhamos a partir de premissas positivas, em que a pessoa é considerada como um ser de possibilidades. Assim, precisamos organizar os espaços educativos e sociais para proporcionar seu pleno desenvolvimento atrelado as suas especificidades.

Por exemplo, pensar o desenvolvimento humano da criança com deficiência nos permite percebê-la como um ser de possibilidades, pois, a existência da irregularidade orgânica não impede este desenvolvimento. O que ocorre é um condicionamento social relacionado as suas possibilidades pois, “[...] O que decide o destino da pessoa, em última instância, não é o defeito em si mesmo, mas suas consequências sociais, sua realização psicossocial5 5 “[...] Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino sus consecuencias sociales, su realización psicosocial” (Vigotski, 2012b, p. 19). ” (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución., p. 19, tradução livre).

Ao mesmo tempo em que as reflexões acerca de um desenvolvimento humano com base nas premissas negativas do determinismo biológico refletem a maneira como a sociedade percebe e age frente ao ser humano, ao concebê-lo a partir de outro raciocínio, o de que ele acontece na cultura, nos permite trazê-lo para a sociedade e apontar novos caminhos.

Vigotski afirma que “[...] ambos os planos de desenvolvimento - o natural e o cultural- coincidem e se fusionam um com outro6 6 “[...] Ambos planos del desarrollo - el natural y el cultural - coinciden y se fusionan uno con el otro” (Vigotski, 2012b, p. 26). ” (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución., p. 26, tradução livre). Quando consideramos que envolve dois aspectos como parte de um único processo percebemos que, na cultura, torna-se possível sua compensação orgânica afetada por uma irregularidade, realizando assim, caminhos de rodeio.

Quando falamos de compensação, tratamos de processos compensatórios em nosso organismo diretamente relacionados às funções psíquicas superiores, isto é, a memória, a atenção, a sensibilidade, o interesse, a intuição etc. (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución.). Tais funções são novas estruturas geradas a partir das estruturas já existentes no organismo. Elas surgem devido ao desenvolvimento humano na cultura.

Um dos processos compensatórios acontece quando “[...] umas funções se substituem por outras, traçam-se vias colaterais e ele (o processo de desenvolvimento cultural), em seu conjunto, oferece possibilidades completamente novas para o desenvolvimento da criança anormal7 7 “[...] unas funciones se sustituyen por otras, se trazan vías colaterales y ello, en su conjunto, ofrece posibilidades completamente nuevas para el desarrollo del niño anormal” (Vigotski, 2012a, pp. 152-153). ” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., pp. 152-153, tradução livre).

A compensação é definida de forma diferente ao senso comum quando, por exemplo, alguém menciona que a compensação da pessoa cega acontece pela existência de um “tato mais desenvolvido” e da pessoa surda por uma “excelente visão”. Embora esses aspectos existam, em nada são relacionados à compensação mencionada aqui; o fato do tato mais desenvolvido e de uma visão mais aguçada diz respeito somente ao uso mais frequente de tais sentidos, ao seu uso contínuo e habitual para determinadas ações do cotidiano. A compensação no campo da THC compreende a explicação a seguir:

[...] Se por causa de uma menos valia morfológica ou funcional algum órgão não pode cumprir plenamente suas tarefas, o sistema nervoso central e o aparato psíquico do homem assumem a tarefa de compensar o funcionamento dificultado deste órgão. Criam sobre o órgão ou a função insuficiente uma sobreestrutura psicológica que tende a proteger o organismo no ponto falho, no ponto ameaçado. [...] O defeito converte-se, por conseguinte, em ponto de partida e principal força motriz do desenvolvimento psíquico da personalidade8 8 “[...] Si a causa de una minusvalía morfológica o funcional algún órgano no puede cumplir plenamente sus tareas, el sistema nervioso central y el aparato psíquico del hombre asumen la tarea de compensar el funcionamiento dificultado de ése órgano. Crean sobre el órgano o la función insuficiente una sobreestrutura psicológica que tiende a proteger al organismo en el punto débil, en el punto amenazado. […] El defecto se convierte, por consiguiente, en punto de partida y principal fuerza motriz del desarrollo psíquico de la personalidad” (Vigotski, 2012b, p. 15). . (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución., p. 15, tradução livre)

Por sua vez, no campo dos processos compensatórios, os caminhos de rodeio são definidos também pelo surgimento de vias colaterais, porém, de caráter psicofisiológico no desenvolvimento. “[...] A linguagem escrita dos cegos e a escrita no ar dos surdos-mudos formam as vias colaterais psicofisiológicas do desenvolvimento cultural no sentido mais literal e exato da palavra9 9 “[…] El lenguaje escrito de los ciegos y la escritura en el aire de los sordomudos forman las vías colaterales psico-fisiológicas del desarrollo cultural en el sentido más literal y exacto de la palabra” ( Vigotski, 2012a , p. 311). ” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., p. 311, tradução livre), e diz respeito aos caminhos de rodeio que o desenvolvimento realiza por meio da cultura, assim, “[...] o novo ponto de vista preconiza, [...] que se analise positivamente sua personalidade e a possibilidade de criar vias de desenvolvimento colaterais, de rodeio10 10 “[…] el nuevo punto de vista preconiza, […] que se analice positivamente su personalidad y la posibilidad de crear vías de desarrollo colaterales, de rodeo” ( Vigotski, 2012a , p. 313). ” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., p. 313, tradução livre).

É de suma importância termos esse conhecimento a respeito da unidade do desenvolvimento humano, principalmente, quando afirmamos que há a presença de uma irregularidade biológica para, assim, quebrarmos o ciclo vicioso sobre uma incapacidade orgânica, e abrirmos nosso olhar para as inúmeras possibilidades que o meio cultural dispõe visto que o desenvolvimento humano está orientado para uma existência social.

Assim, à luz da defectologia vigotskiana, concebemos o desenvolvimento humano com base em premissas positivas em que as pessoas são seres de possibilidades. Em que é necessário oferecer condições adequadas para seu pleno desenvolvimento, saltando do lugar do determinismo biológico regular, que nos limita e cujas bases são totalmente negativas, para um devir que considera a dialética do desenvolvimento orgânico irregular com o cultural.

3. O papel da educação no desenvolvimento da musicalidade

Vigotski define educação como sendo a “influência premeditada, organizada e prolongada no desenvolvimento de um organismo” (Blonski apud Vigotski, 2003Vigotski, L. S. (2003). Psicologia Pedagógica. Artmed., p. 37). Alerta ainda para a necessidade de se saber como a influência deve ser organizada, quais procedimentos utilizar nesta organização e qual a orientação a se adotar.

Todos os aspectos assinalados, da necessidade de uma influência, da sua organização e orientação, nos levam ao denominador comum de que a educação está voltada para o desenvolvimento humano e, portanto, deve estar organizada intencionalmente para este fim.

Como a musicalidade é um modo de comportamento humano relativo aos sons, em termos de sua percepção, expressão e criação, é imperativo que, na educação, se comece a perceber seu verdadeiro papel e o objetivo do uso da música em seu espaço como atividade musical. Pois, afinal, o desenvolvimento da musicalidade não é algo para poucos eleitos, já que nela existem crianças plenas de experiências e vivências sonoras. Portanto, devemos saber que:

O desenvolvimento da musicalidade humana, ou seja, do comportamento musical, engloba as reações musicais hereditárias, somadas à experiência pessoal, às experiências musicais de caráter histórico e às experiências musicais de caráter social. Em outras palavras, à medida que a criança se desenvolve na sociedade humana, os reflexos musicais incondicionados (genéticos) se tornam condicionados e se forjam através do outro, do social, enfim, da cultura. Isso nos habilita a dizer, pelo olhar da teoria que nos alicerça, que toda função psicológica musical superior (escuta voluntária ou atenta, memória e imaginação, musical etc.) historicamente, origina-se de uma relação social entre pessoas antes de a internalizarmos intrapsicologicamente. Neste momento, queremos explicitar que conceber uma didática específica da educação musical calcada na Teoria Histórico-Cultural é primar pela ética no sentido mais estrito do termo, a saber: defender a conduta e o sentimento de alteridade para com as experiências musicais do outro que nos constitui musicalmente. (Pederiva & Gonçalves, 2018Pederiva, P. L. M., & Gonçalves, A. C. A. B. (2018). Educação musical na perspectiva histórico-cultural: uma didática para o desenvolvimento da musicalidade. Revista Obutchénie, 2 (2), pp. 314-338., pp. 316-317)

Todas as experiências que nos constituem, enquanto humanos na cultura, traçam o caminho do nosso comportamento musical, do desenvolvimento da nossa musicalidade. Pederiva e Gonçalves (2018Pederiva, P. L. M., & Gonçalves, A. C. A. B. (2018). Educação musical na perspectiva histórico-cultural: uma didática para o desenvolvimento da musicalidade. Revista Obutchénie, 2 (2), pp. 314-338.) apontam, além das experiências, a importância da educação como defesa da conduta e do sentimento de alteridade frente às experiências musicais do outro que nos constituem. Isso significa considerar a possibilidade de organizarmos processos educativos para o desenvolvimento da musicalidade da pessoa surda e assim termos, enquanto educadores, a responsabilidade por este espaço.

À medida que temos uma musicalidade que é transformada pelo ser humano na sua cultura (Pederiva & Tunes, 2013Pederiva, P. L. M., & Tunes, E. (2013). Da Atividade Musical e sua Expressão Psicológica. Editora Prismas.), podemos considerar que a expressão e manifestação desta musicalidade na sociedade também sofre esta influência. A maneira como cada pessoa a expressa e vivencia ao longo da sua história de vida é única. Relacionar a música a cada expressão singular de vida direciona o nosso olhar para sua importância. Quais suas diferenças em uma cultura ouvinte e em uma cultura surda? Segundo Schroeder (2005Schroeder, S. C. N. (2005). Reflexões sobre o Conceito de Musicalidade: Em busca de novas perspectivas teóricas para a educação musical [Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas]. Repositório Institucional da Universidade Estadual de Campinas. http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/252647
http://repositorio.unicamp.br/jspui/hand...
), a música pode ser apreendida significativamente a partir de três esferas que não são excludentes, mas que, em determinados momentos, uma predomina mais que a outra: “num nível predominantemente sensorial (próximo do puramente biológico, embora não se reduza a ele), num nível referencial (como referência de algo extra-musical) e num nível estético (com ênfase nos modos de organização sonora)” (Schroeder, 2005Schroeder, S. C. N. (2005). Reflexões sobre o Conceito de Musicalidade: Em busca de novas perspectivas teóricas para a educação musical [Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas]. Repositório Institucional da Universidade Estadual de Campinas. http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/252647
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, pp. 149-150, itálicos da autora). Todos esses âmbitos perpassam, mesmo que de maneiras distintas, a relação do indivíduo na sua cultura. E é nesta compreensão do papel da cultura na nossa constituição que também percebemos como a própria musicalidade se descaracterizou e se desassociou da música, enquanto atividade cultural, e do ser humano ao longo de seu desenvolvimento.

Enquanto expressão de vida e da vida, a música era acessível a todos, era o cotidiano das pessoas, todas elas expressavam sua musicalidade que não era ditada por normas e padrões. Inserida e engessada em instituições, historicamente, passa a excluir as pessoas não surdas. Assim, “a definição de música é pensada por ouvintes. Os conceitos que hoje temos são todos pensados para ouvintes” (A. C. A. B. Gonçalves, 2016, comunicação pessoal).

Assim, nos perguntamos como pensar em uma educação musical para a pessoa surda, visto que vivemos numa sociedade com a maioria dos seus mecanismos criados e pensados para uma gama de pessoas ouvintes, que, por tal, foram denominadas de “normais”, em detrimento da existência de uma irregularidade biológica do outro, no caso, da pessoa surda. Se percebemos que só se é convidado para participar de um coral aquele que é afinado, bom músico, o que sabe ler partitura ou sabe tocar de “ouvido”, poderemos notar a centralidade nas condições auditivas dos que estão envolvidos no processo musical. Assim, como ficam as pessoas surdas neste processo?

O primeiro contato com o universo sonoro, repleto de ritmo, acontece por meio do nosso corpo. Já, na barriga da nossa mãe, ouvimos e percebemos nosso batimento cardíaco. Vivenciamos de forma multifacetada estes sons. Ora são sons que produzimos, como nosso soluço, ora são sons produzidos por meios externos, como o respirar de nossa mãe ou da água caindo no chão quando ela toma banho. Os movimentos que executamos, por possuir pulso/ritmo, naquele pequeno espaço, tornam-se som. “[...] A representação de movimentos corporais expressa o fenômeno musical de caráter rítmico, melódico, harmônico, frases, estruturas e formas musicais” (Pederiva, 2006Pederiva, P. L. M. (2006). O corpo no processo ensino aprendizagem de instrumentos musicais: percepção de professores. [Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Brasília]. Repositório Institucional da Universidade Católica de Brasília. https://bdtd.ucb.br:8443/jspui/handle/123456789/816
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, p. 25).

A respeito do ritmo e fazendo uso das palavras de Winisk (1989Winisk, J. M. (1989). O som e o sentido: Uma outra história das músicas. Companhia das Letras.), destacamos que:

[...] o ritmo está na base de todas as percepções, pontuadas por um ataque, um modo de entrada e saída, um fluxo de tensão/distensão, de carga e descarga. O feto cresce no útero ao som do coração da mãe, e as sensações rítmicas de tensão e repouso, de contração e distensão vêm a ser, antes de qualquer objeto, o traço de inscrição das percepções. (p. 29)

Como já mencionado, a experiência musical acontece antes mesmo do nascimento, a partir das percepções ainda no útero materno. Essas percepções sentidas em nossa pele, o som do movimento do corpo vivenciado de diversas formas, fazem parte da nossa musicalidade, isto é, da criação, da expressão e da interpretação musical. Portanto, temos um “corpo que é, ao mesmo tempo, fonte sonora e fonte criativa para a expressão da musicalidade” (Amorim, 2015Amorim, R. R. S. (2016). Batucadeiros: Educação musical por meio da percussão corporal. [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]. Repositório Institucional da Universidade de Brasília. http://repositorio.unb.br/handle/10482/20165
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, p. 28).

Além de todo o exposto, a língua de sinais, sendo uma língua visual-gestual, apresenta também sua musicalidade. Não é uma língua do “silêncio”. Ela reflete um aspecto não verbal, sensível, visual e sonoro. A língua portuguesa tem som, melodia, ritmo, timbre, e nós, ouvintes, o ouvimos. De igual modo, as pessoas surdas conversam e se ouvem, pois a língua de sinais - LS - não é silenciosa.

Caldas evidencia estes aspectos sonoros da língua de sinais que, ao seu ver, possui sete características:

Ritmo: de acordo com o ritmo imposto pelo usuário da LS durante o seu uso, podemos “ouvir” a cadência da LS. Os sinais expressados em sequência, que evidencia seu ritmo.

Movimento: o deslocamento dos sinais durante o uso da LS nos permite evidenciar o seu movimento. De cima para baixo; de um lado para o outro; de baixo para cima; em diagonal; em contato com o corpo; ou sem contato como corpo.

Rima: evidenciada principalmente pelo uso das configurações de mãos (CMs), a rima é marca principal das poesias, em que a partir de uma CM ou um conjunto delas é criado um texto estético.

Expressões corporais e faciais: esta característica é uma das que considero mais difícil de pensar separadamente em termos de aspectos verbais ou não verbais. É ela que apresenta a emoção, o sentimento, a poesia da LS. Estando relacionada com o sinal executado. Exemplo: O sinal de triste deve estar acompanhado da expressão de triste.

Iconicidade: sinais em que são perceptíveis as formas dos objetos reais. Sua marca estética é evidenciada quando e sintonia com o movimento.

Intensidade: está relacionada com o movimento. Podemos pensar em um movimento rápido ou devagar com uma intensidade forte ou fraca. Pensando no som da intensidade da LS como metáfora do mar, comparo-a com as ondas que podem ser fortes, fracas, vibrantes, grandes, pequenas.

Posição: Sua marca sonora pode ser evidenciada em momentos de contação de história. Quando um narrador assume o lugar de um outro personagem, sua posição durante a execução dos sinais marcará o jeito de cada personagem, inclusive sua voz. Assim, sua relação com a expressão é muito importante, pois quando assumir o papel do lobo e dos porquinhos, sua expressão estará acompanhando a posição para marcar os personagens. (Caldas, 2012Caldas, A. L. P. (2012). A língua de sinais e os sons: Uma apreciação estética. In E. Beyer, & P. Kebach (Orgs.). Pedagogia da música: experiências de apreciação musical (pp. 135-143). Mediação., p. 141)

Assim percebemos, do mesmo modo que, enquanto ouvintes, escutamos as palavras pronunciadas por nós mesmos e pelos outros, a pessoa surda também “escuta” o som das palavras sinalizadas, pois “a sensação de um som musical se deve ao rápido movimento periódico do corpo sonoro” (Schafer, 2011Schafer, R. M. (2011). O ouvido pensante. Editora Unesp., p. 124). Dessa forma, evidenciam-se modos diferentes de se perceber e vivenciar o som, da sua língua materna, para além do ouvido, assim “os sons extrapolam sua característica físico-acústicas e adquirem significados culturalmente relacionados” (Gesser, 2009Gesser, A. (2009). Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. Parábola Editorial., p. 48).

Refletir sobre sons e atividade musical, para além do ouvido, abre uma possibilidade de compreendermos como esse processo acontece às pessoas surdas. Ao desvincularmos a música do ouvido, surge um novo caminho, um novo olhar para este sentido do ouvir, pois tudo tem som e todas estas coisas o surdo pode ver e perceber.

[...] Por todo o seu corpo é possível captar as vibrações das ondas sonoras. Estas podem ser percebidas pela pele e pelos ossos. A pele é o órgão dos sentidos mais vital. Pode-se viver sem audição, visão, olfato, paladar, mas é impossível viver sem a pele. A pele estabelece os limites do corpo, propiciando sua relação com o mundo exterior. É, portanto, um meio de comunicação fundamental com o outro. Ela funciona como um canal de transmissão geral. Daqui se depreende que os sons possam afetar o sujeito também por essa via. E, beneficiando-se dela, o sujeito surdo pode, então, usufruir desse mundo sonoro e reagir a ele. [...] O conjunto perceptivo multissensorial permite-lhe a vivência musical e, assim, cria canais para a manifestação de sua própria musicalidade. (Haguiara-Cervellini, 2003Haguiara-Cervellini, N. (2003). A musicalidade do surdo: Representação e estigma. Plexus Editora., p. 79, grifo próprio)

A finalidade do ensino da música para a pessoa surda tem se restringido a um contexto de inclusão tal qual apresentado nos estudos de Bogaerts (2014Bogaerts, J. (2014). Educação musical na diversidade: Um estudo de caso com crianças surdas e ouvintes em uma escola regular de ensino. Anais do IX Encontro Regional Sudeste da ABEM.), Finck (2009Finck, R. (2009). Ensinando música ao aluno surdo: Perspectivas para ação pedagógica inclusiva. [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Repositório digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/18266
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/18...
) e Griebeler e Schambeck (2014Griebeler, W. R., & Schambeck, R. F. (2014). Educação musical para surdos: Um estudo exploratório dos trabalhos produzidos no Brasil e o trabalho desenvolvido por uma instituição inglesa. Anais do XVI Encontro Regional Sul da ABEM.), que, mesmo considerando a musicalidade do surdo, não tratam de sua vivência musical diretamente. Outros estudos relatam o uso da música como mecanismo de melhora da oralização, isto é, com a finalidade terapêutica.

É preciso, assim, pensar em uma educação musical que tenha por base, além da singularidade da cultura surda e seus modos de se relacionar com o fenômeno sonoro, pois, conforme a história da pessoa surda demonstra e na literatura pertinente, o que se produz, mesmo considerando sua musicalidade, não é a partir dela, mas sobre ela e para ela, com um olhar externo. Por isso defendemos uma educação musical que seja construída a partir dela e com ela.

Para finalizarmos, devemos, além de considerar a cultura surda ao organizarmos esta educação musical, pensar em uma educação com a qual “possamos sentir o eco do Universo vibrando através de nós” (Schafer, 2011Schafer, R. M. (2011). O ouvido pensante. Editora Unesp., p. 283), postas nossas musicalidades e as possibilidades de expressá-la.

4. Caminhos para o desenvolvimento da musicalidade da pessoa surda

Nossa musicalidade é uma das dimensões que nos constituem humanamente, está presente na nossa organização biológica e se desenvolve na cultura. Os processos compensatórios, as vias colaterais psicofisiológicas existentes neste processo enfatizam a importância e urgência de oportunizarmos o maior número de experiências para que haja o pleno desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto de sua musicalidade, ou em qualquer outro.

A unidade com que nosso organismo funciona é capaz de englobar toda experiência para seu desenvolvimento, em se tratando da musicalidade, se beneficiar das experiências musicais para que suas vivências sejam marcos neste desenvolvimento é fundamental. Para a pessoa surda:

[...] Aprender a ouvir música e reproduzir sons e pulsações é adquirir um “estilo” de ouvir, um uso novo do corpo, é enriquecer a imagem corporal. Seja este corpo um sistema motor ou um poder perceptivo, ele certamente não é apenas um objeto para um “eu penso”, ele é um agrupamento de significados vividos que se dirige ao equilíbrio. Algumas vezes forma-se uma nova organização de significados, os movimentos anteriores integram-se em entidades motoras novas, os dados visuais transformam-se em entidades sensoriais, os dados auditivos transformam-se em outras entidades mais complexas. (Haguiara-Cervellini, 1986Haguiara-Cervellini, N. G. (1986). A criança deficiente auditiva e suas reações à música. Editora Moraes., p. 9)

Dessa forma, evidencia-se também o papel que as experiências sociais e educativas trazem nas novas organizações do nosso organismo, em seus processos compensatórios estruturados e possibilitados pelo desenvolvimento cultural.

Vigotski (2013Vygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución.), alerta que as experiências determinam a consciência. Por isso, é de suma importância ofertar às pessoas surdas as mais e diversas possibilidades de experienciar o universo sonoro para o desenvolvimento da consciência de sua musicalidade. Se, hoje, a sociedade diz que a pessoa surda não pode participar de suas atividades, das que envolvem os sons, esta afirmativa será perpetuada culturalmente, de maneira a impossibilitar e engessar as experiências das pessoas surdas, o que nega possibilidades educativas. Em contrapartida, temos o oposto, que também é válido, pois, se a sociedade lhes permite outros tipos de experiências, no campo das possibilidades vivenciais, a maneira como elas passam a se perceber também é transformada, uma vez que “[...] relaciono-me comigo mesmo como as pessoas se relacionam comigo11 11 “[...] Me relaciono conmigo mismo como la gente se relaciona conmigo” (Vigotski, 2012a, p. 147). ” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., p. 147, tradução livre).

As experiências que a pessoa surda tem em relação a sua musicalidade precisam ser enraizadas em suas vidas, afirmadas como plenas de sentido e significados autênticos, pois assim, a conscientização de que ela é um ser musical ocorrerá, visto que “O significado não se refere ao pensamento, mas a toda a consciência12 12 “El significado no se refiere al pensamiento, sino a toda la conciencia” (Vigotski, 2013, p. 131). ” (Vigotski, 2013Vygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 131, tradução livre).

As práticas pedagógicas em educação musical, de maneira geral, não têm proporcionado experiências desta natureza, mantendo muitas pessoas surdas distantes do universo sonoro/musical. Estas experiências estão diretamente entrelaçadas ao desenvolvimento humano na cultura. É neste espaço que as vivências selam a percepção que tenho de mim e do outro.

Se a experiência determina a consciência e, se estrutura o comportamento humano, quanto mais conseguirmos observar as experiências vivenciadas pela pessoa surda e as identificarmos, ou seja, o que possibilitou a mudança em seu desenvolvimento, mais chances de apresentarmos indícios que caracterizem sua musicalidade e de organizar processos educativos para o seu desenvolvimento. Seja a pessoa surda ou não, quanto mais experiências tivermos com o universo sonoro, mais nos perceberemos musicais, mais nos apropriaremos desta condição humana, de que somos seres musicais (Pederiva & Tunes, 2013Pederiva, P. L. M., & Tunes, E. (2013). Da Atividade Musical e sua Expressão Psicológica. Editora Prismas.), trazendo a importância da vivência musical na vida de cada pessoa para o desenvolvimento de sua musicalidade.

Em nossa constituição humana dois aspectos estão presentes constantemente moldando nosso comportamento: as experiências e as vivências. As experiências podem ser individuais/pessoal, histórica, social coletiva e duplicada. A experiência individual/pessoal é adquirida por meio dos reflexos condicionados. A experiência histórica é aquela que utiliza a bagagem herdada e acumulada historicamente pelas gerações anteriores como fruto da sua relação social ao longo do tempo. A experiência social coletiva constitui nosso comportamento utilizando a prática social do outro, a partir da experiência individual/pessoal e, por fim, temos a consciência do nosso comportamento desenvolvido pela possibilidade da duplicação da experiência, isto é, conseguimos pensar, e posteriormente executar uma mesma tarefa (duplicando a experiência), graças a esta organização e orientação do comportamento (Vigotski, 2003Vigotski, L. S. (2003). Psicologia Pedagógica. Artmed.). Ter o conhecimento dessas experiências como fundantes em nosso comportamento servem para pensarmos diretamente a respeito dos processos educativos que organizamos. Por sua vez, as vivências são “os momentos essenciais para a definição da influência do meio no desenvolvimento psicológico, no desenvolvimento da personalidade consciente” (Vigotski, 2018Vigotski, L. S. (2018). 7 aulas de L.S Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. In Z. Prestes, & E. Tunes (Orgs./Trads.). E-papers., p. 75).

Assim como o DNA no campo biológico carrega a identidade de cada ser humano, as vivências, que são do campo cultural, se apresentam como esta identidade ímpar, como um aspecto do desenvolvimento humano concebido no meio cultural, e que altera o desenvolvimento da pessoa.

Cada ser humano é único, e diante das experiências e situações vividas, desenvolve relações pessoais e particulares com o ambiente que interferem diretamente no seu desenvolvimento posterior. Isto é, a relação da pessoa com o ambiente realiza, em cada uma delas, um modo diferente de perceber os acontecimentos (conscientização), de atribuir-lhes sentido, e de se relacionar afetivamente (Vigotski, 2018Vigotski, L. S. (2018). 7 aulas de L.S Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. In Z. Prestes, & E. Tunes (Orgs./Trads.). E-papers.). O modo como nos relacionamos com o meio e como este se relaciona conosco, esta maneira única de se perceber modificando o meio e sendo modificado, diz respeito à vivência.

É por meio das experiências que nos constituímos singularmente. Ao acessarmos, conseguimos resolver situações presentes, desenvolvemos conceitos, somos capazes de perceber o social em nós, conscientizamo-nos de nossos atos, somos capazes de organizarmos ambientes para o desenvolvimento humano. Portanto, não há possibilidade de concebermos processos educativos, incluindo os musicais, à margem das experiências das pessoas, e quando pensamos em processos educativos, torna-se mais latente ainda considerá-las como o seu eixo organizador.

Por meio das nossas experiências e vivências, nos constituímos e aprofundamos nosso comportamento e personalidade. Isso não ocorre de forma aleatória, vincula-se às funções psíquicas superiores (atenção voluntária, memória lógica etc.) que se organizam elaborando-os posteriormente aos vínculos realizados. Tudo isto só é possível em meio ao desenvolvimento na cultura.

Assim, compreendendo a função das experiências e das vivências musicais, bem como do papel que as funções psíquicas superiores desenvolvem também na elaboração do nosso comportamento, é notório que a organização de um espaço educativo para o desenvolvimento da musicalidade do ser humano é assunto que requer comprometimento das pessoas envolvidas. Que haja consciência do fazer, do processo educativo, da prática realizada. Que haja intencionalidade, consideradas as especificidades do desenvolvimento humano.

Muito se discute sobre a acessibilidade, sobre como deve ser a nossa prática para que as pessoas com deficiência sejam participantes das atividades propostas e quando pensamos nelas, muito além de uma discussão que poderíamos trazer, queremos apontar que há uma maneira deste fazer, alicerçado no olhar que temos para o outro. Isso passa por aprender como as pessoas surdas se relacionam com os sons, em suas mais diversas possibilidades. Passa também por considerar suas especificidades como qualitativamente diferentes, respeitando as trajetórias de vida, as experiências e vivências musicais contidas neste processo, agregando a tudo isso, o verdadeiro papel da educação e do professor, ou professora, como agente organizador deste espaço para possibilitar o desenvolvimento da musicalidade da pessoa surda.

Referências

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  • Winisk, J. M. (1989). O som e o sentido: Uma outra história das músicas. Companhia das Letras.
  • 3
    Por apresentar grafias diferentes, optou-se, ao longo do texto, manter a escrita do nome Vigotski, embora nas referências sejam apresentadas conforme as obras estudadas.
  • 4
    El sordomudo aprende a tener conciencia de sí mismo y de sus movimientos en la medida en que aprende a tener conciencia de los demás” (Vigotski, 2013Vygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 58).
  • 5
    “[...] Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino sus consecuencias sociales, su realización psicosocial” (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 19).
  • 6
    “[...] Ambos planos del desarrollo - el natural y el cultural - coinciden y se fusionan uno con el otro” (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 26).
  • 7
    “[...] unas funciones se sustituyen por otras, se trazan vías colaterales y ello, en su conjunto, ofrece posibilidades completamente nuevas para el desarrollo del niño anormal” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., pp. 152-153).
  • 8
    “[...] Si a causa de una minusvalía morfológica o funcional algún órgano no puede cumplir plenamente sus tareas, el sistema nervioso central y el aparato psíquico del hombre asumen la tarea de compensar el funcionamiento dificultado de ése órgano. Crean sobre el órgano o la función insuficiente una sobreestrutura psicológica que tiende a proteger al organismo en el punto débil, en el punto amenazado. […] El defecto se convierte, por consiguiente, en punto de partida y principal fuerza motriz del desarrollo psíquico de la personalidad” (Vigotski, 2012bVygotski, L. S. (2012b). Obras Escogidas V: Fundamentos de Defectología. Machado Grupo de Distribución., p. 15).
  • 9
    “[…] El lenguaje escrito de los ciegos y la escritura en el aire de los sordomudos forman las vías colaterales psico-fisiológicas del desarrollo cultural en el sentido más literal y exacto de la palabra” ( Vigotski, 2012a Vygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución. , p. 311).
  • 10
    “[…] el nuevo punto de vista preconiza, […] que se analice positivamente su personalidad y la posibilidad de crear vías de desarrollo colaterales, de rodeo” ( Vigotski, 2012a Vygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución. , p. 313).
  • 11
    “[...] Me relaciono conmigo mismo como la gente se relaciona conmigo” (Vigotski, 2012aVygotski, L. S. (2012a). Obras Escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de Distribución., p. 147).
  • 12
    “El significado no se refiere al pensamiento, sino a toda la conciencia” (Vigotski, 2013Vygotski, L. S. (2013). Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología. Machado Grupo de Distribución., p. 131).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2021
  • Aceito
    02 Nov 2021
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