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Landmarks in linguistic thought II: the Western tradition in the twentieth century

RESENHA REVIEW

Antonio Marcos Pereira

Doutorando, Universidade Federal de Minas Gerais

John E. JOSEPH, Nigel LOVE e Talbot TAYLOR. Landmarks in Linguistic Thought II: The Western tradition in the twentieth century. London: Routledge, 2001.

Dando continuidade a um notável esforço iniciado há alguns anos com um volume que acompanhava a trajetória do pensamento ocidental sobre a linguagem de Sócrates a Saussure (Harris & Taylor, 1997) – passando por figuras quase ignoradas como Horne Tooke, insólitas como Wilkins e influentes como Humboldt, Frege e Saussure –, Talbot Taylor junta-se aqui a outros dois ex-alunos de Roy Harris para consolidar o trabalho, versando desta vez exclusivamente sobre o século XX. Salta aos olhos o descompasso do recorte temporal entre os dois volumes: ao passo que no primeiro passeamos por cerca de três mil anos de história (com todas as diferenças de vocabulário e atitude com respeito à reflexão sobre a linguagem que uma margem de tempo tão ampla pode suscitar), no segundo lidamos com nossa própria "era de extremos", e percorremos o século passado com suas conhecidas convulsões sociais e históricas, comprimidas e apressadas. Em parte, essas convulsões resultaram em um precipitado considerável de reflexões sobre a linguagem e seu entorno, e um dos maiores méritos do livro é mostrar de maneira inequívoca que, no que tange a reflexão sobre a linguagem, o século XX não foi nada monótono.

De acordo com o espírito da época que intenta retratar, a história do pensamento lingüístico no século XX escrita por Joseph, Taylor e Love é, sob todos os aspectos, uma história heterogênea e plural. Para começo de conversa, os autores abdicam de historiar a "lingüística" e dão prosseguimento à tendência já expressa no primeiro volume da série ao historiar o "pensamento lingüístico". Através desta opção, tomam partido em uma questão aduaneira tão antiga quanto a própria disciplina da lingüística, envolta desde sua cristalização com uma face contemporânea, através do trabalho de Saussure, em questões territoriais com disciplinas circunvizinhas. Ainda, oferecem ao longo dos capítulos uma visão da pesquisa em torno da linguagem ao longo do século XX que prescinde de qualquer teleologia. Nesta chave, a seqüência dos capítulos nos mostra menos "desenvolvimentos" ou "progresso", no sentido de trajetórias retilíneas de acumulação, e mais uma profusão de voltas, desvios e reviravoltas, quase sempre marcadas pelo imperativo de discutir as relações entre pensamento, linguagem e, com uma saliência notável, comportamento. Por fim, trata-se de um livro que reserva a Noam Chomsky um número de páginas não muito diferente daquele dedicado a Orwell, Derrida, Bruner, Skinner, ou Firth. A distribuição do comentário desobedece, assim, à economia ordinária da citação, e sugere uma outra visão de impacto histórico, definida pela especificidade da angulação de cada discurso sobre a linguagem. Prova disso é que o primeiro capítulo é dedicado a um lingüista-antropólogo (Sapir) e o volume se encerra não com um comentário sobre um "autor" no sentido estrito do termo, mas com um capítulo sobre um bonobo (Kanzi), em uma opção arquitetônica tão heterodoxa que há de causar arrepios naqueles ligados às cepas mais tradicionalistas dos estudos lingüísticos.

Esta distribuição indica, talvez mais que qualquer outro argumento historiográfico explicitado na introdução, qual a visão que os autores têm a respeito do que foi problematizar a linguagem ao longo do século XX, bem como o que pode ser esta tarefa no futuro. No arco que vai da antropologia à primatologia demarcamos um "objeto" que ultrapassa enormemente o escopo da investigação lingüística tal como tradicionalmente definida pelas variantes de estruturalismo que constituíram os programas de pesquisa mais disseminados ao longo do século passado. Sabemos que uma parcela considerável dos investigadores de questões lingüísticas esposou a noção de que há uma hierarquia temática, analítica e procedural nos estudos lingüísticos, sedimentada na concepção de que a sintaxe constitui o cerne duro do trabalho do lingüista, carreando a reboque alguma semântica derivativa e, muito eventualmente, a pragmática. Esta última – que já foi batizada de "lata de lixo" em um conhecido comentário de Bar-Hillel – parece, no livro de Joseph, Love e Taylor, estar cumprindo o retorno do reprimido. Contexto, comportamento, variação, prática social, política, desconstrução, metalinguagem: essa terminologia abunda nas exposições de autores como Firth, Bruner, Goffman, Derrida, Wittgenstein, Skinner, Labov e Harris. Adentrar o pensamento lingüístico através deste material convida à adoção de um vocabulário significativamente mais amplo do que o associado ordinariamente a uma disciplina que investiu maciça e progressivamente no emagrecimento de seu objeto, esforçando-se por circunscrevê-lo ao máximo justamente para impedir sua invasão pelos elementos do domínio pragmático ou "extra-lingüístico". A julgar pela parada de autores que Joseph, Love e Taylor fazem desfilar diante de nossos olhos, somos surpreendidos por uma inversão em curso. A chave que podemos esperar para os estudos da linguagem no século XXI é marcada pelos temas que foram se avizinhando da investigação sobre a linguagem ao longo do século XX e que, nesse processo de aproximação, mostraram sua legitimidade enquanto objetos de estudo ao mesmo tempo que inspiraram uma revisitação da própria angulação disciplinar.

Reconhecer este espaço ampliado como o palco de atuação dos estudos lingüísticos é mais que uma sugestão metodológica: é um gesto político. Não se trata "apenas" de reconhecer como objeto legítimo para uma tese de doutorado algo que há quarenta anos seria ridicularizado: esse processo não pode ser desconectado de transformações nos próprios esteios institucionais da lingüística. Apesar de não avançar por estes caminhos _ o que é uma pena, pois poderíamos assim ter aqui o primeiro esforço para a construção de uma história crítica do pensamento lingüístico – os autores contribuem para que tal discussão se torne ainda mais saliente na área, o que pode motivar reflexões e mudanças de rumo interessantes e promissoras. O que pode ser, por exemplo, um estudo de Austin através de Derrida? Como compatibilizar o trabalho de Bruner a respeito de aquisição com o modelo chomskyano? Uma associação entre os estudos de variação de Labov e a microssociologia de Goffman podem trazer conseqüências interessantes para a Semântica? É possível politizar em uma chave orwelliana as descrições das relações entre linguagem e cultura presentes em Sapir e Whorf? Como lidar com as divergentes noções de "gramática" em Wittgenstein e Chomsky? Há alguma conexão enriquecedora a ser feita entre o pensamento lingüístico de Skinner e as tentativas contemporâneas da Lingüística Cognitiva? Estas são apenas algumas das perguntas motivadas pelo livro: há outras, certamente, e várias das questões listadas acima podem mostrar-se becos sem saída, sem qualquer fertilidade teórica. Entretanto, é preciso reconhecer o mérito presente na simples possibilidade de considerar tais perguntas como legítimas. Elas apontam para um campo fervilhante e flexível, e denunciam a pujança dos estudos lingüísticos hoje, prometendo bons negócios – isto é: muito trabalho, inúmeros desa- fios, possibilidade de lucros intelectuais e emoções fortes – para os que trabalham na área.

Uma vez que os benefícios do livro são tão abundantes, seus momentos menores tornam-se ainda mais salientes. Talvez o mais notável esteja ligado à profissão de fé feita pelos autores na introdução, onde justificam sua opção historiográfica qualificando-a como "continuista" em contraste a uma posição "progressivista": ao invés de assumirem que a trajetória do pensamento lingüístico ao longo do século é um caminho de progresso em direção às teorias que hoje alcançaram o status de modelos de pesquisa aceitos na academia, apostam na idéia de que "o pensamento lingüístico do século XX continuou a debater e desenvolver os mesmos temas, questões, querelas, conceitos e argumentos que vêm preocupando o pensamento ocidental sobre a linguagem desde seu surgimento" (p. vii). Podemos atrelar essa concepção a um aspecto do pensamento de Roy Harris – que, dessa forma, ainda que ausente do conjunto de autores do texto em atribuição direta, ocuparia o papel duplo de comentado (o capítulo 14 é dedicado a ele) e metacomentador (afinal de contas, todos os autores são seus "filhos" acadêmicos, e teriam organizado o livro de acordo com uma de suas sugestões teóricas mais conhecidas). Entretanto, a rentabilidade dessa perspectiva é duvidosa: se, por um lado, solicita um investimento analítico mais minucioso de parte do historiador dos estudos lingüísticos ao recusar a adoção fácil da noção de mudanças paradigmáticas e ao repudiar totalmente uma concepção triunfalista da prática contemporânea dos estudiosos da linguagem, ao mesmo tempo parece limitar a priori o espaço possível da invenção e da novidade. Há, claro, a possibilidade de fazer qualquer discussão a respeito da linguagem remontar ao Crátilo. Mas há também a possibilidade de carrear evidências do quanto a discussão a respeito da linguagem hoje pode se distanciar das balizas platônicas, algo particularmente saliente quando exploramos as conseqüências potencias de obras como as de Sapir, Austin, Wittgenstein, Derrida e, até mesmo, do trabalho realizado ao redor de Kanzi. Há distinções de foco, método e interesse que não podem ser totalmente diluídas através do argumento continuista, sob pena de se perder de vista o engenho e arte exercitados com tanta maestria anti-essencialista em obras como Investigações Filosóficas ou Quando dizer é fazer.

Ainda, a estrutura das apresentações é algo errática. Em alguns capítulos, vemos um trabalho soberbo de exposição que apresenta o autor em pauta através da sedimentação de várias camadas contextuais, que exibem para o leitor antecedentes, balizas do projeto central do autor e nuances da recepção de seu trabalho – assim é, por exemplo, nos capítulos sobre Sapir, Skinner, Derrida e Kanzi. Tal estratégia expositiva é totalmente consistente com o delineamento proposto no capítulo introdutório, onde os autores expõem sua crença na porosidade da reflexão sobre a linguagem às suas circunstâncias de produção (p. x), e deu origem a textos notáveis por sua mescla de concisão e generosidade didática. Por outro lado, encontramos em outros capítulos um notável empobrecimento tanto da exposição de caráter social e histórico, responsável pela contextualização da obra e sua recepção, quanto da própria obra do autor discutido _ assim é nos capítulos sobre Jakobson e Chomsky. E, por fim, há aqueles capítulos em que, aparentemente, uma decisão demasiadamente estrita foi tomada a respeito do que privilegiar no pensamento do autor em questão – como vemos nos capítulos sobre Austin e, curiosamente, Harris. Podemos atribuir tal assimetria à múltipla autoria, mas não há como não lamentar esse aspecto – que um trabalho editorial mais cuidadoso poderia ter resolvido – em uma obra tão vigorosa em outros aspectos.

Em que pesem esses senões, o livro de Joseph, Taylor e Love destaca-se no contexto contemporâneo de exercícios em história dos estudos da linguagem (cf. Koerner 1995: 3-16) principalmente por sugerir o que pode ser feito daqui por diante, tanto no que diz respeito a historiar os estudos da linguagem quanto a fazer estudos da linguagem (uma distinção da qual podemos prescindir, com ganhos para o potencial crítico de nossa prática enquanto estudiosos da linguagem, como sugere Rajagopalan (1989)). Ao lado dos méritos citados, há a sugestão de que podemos reconhecer como pertinentes para o nosso trabalho nos estudos da linguagem o que Edward Said (2003: 78) apresenta como um conjunto de imperativos para um exercício teórico conseqüente hoje: "A necessidade de um maior cruzamento de fronteiras, de maior intervencionismo em atividades interdisciplinares, uma consciência concentrada da situação – política, metodológica, social, histórica – em que o trabalho intelectual se realiza". Se aceitarmos o convite implícito no livro, ele nos levará nessa direção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARRIS, Roy e TAYLOR, Talbot. 1997. Landmarks in Linguistic Thought I: The Western tradition from Sócrates to Saussure. London: Routledge (2a. edição).

KOERNER, E. F. K. (Ed.) 1995. Concise history of the language sciences: From the Sumerians to the cognitivists. Oxford: Elsevier Science.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. 1989. Sobre a indissociabilidade do historiar da Lingüística do próprio fazer da Lingüística. D.E.L.T.A., 5. 2: 225-240.

SAID, Edward. 2003. Reflexões sobre o exílio. São Paulo: Companhia das Letras.

Recebido em fevereiro de 2004

Aprovado em setembro de 2004

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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