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O advérbio então já se gramaticalizou como conjunção?

Has the adverbial então already become grammaticalized as a conjuction?

Resumos

Este estudo limita-se ao exame do conector então no português falado culto do Brasil. O objetivo é fornecer uma descrição detalhada do comportamento sintático-semântico desse juntor e verificar se já se gramaticalizou como conjunção. O universo de pesquisa é uma amostragem do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF). O texto se organiza em quatro partes. Na primeira colocam-se os objetivos em face das hipóteses de trabalho; na segunda apresentam-se os procedimentos metodológicos e técnicas de investigação; a terceira parte constitui uma descrição do uso desse conector no português falado e, nas considerações finais, resumem-se as principais conseqüências para um equacionamento mais preciso da relação de conclusão obtida por meio do conector então.

conjunção conclusiva; gramaticalização; então; logo


This study consists of an examination of the connector então in Brazilian formal spoken Portuguese. The objective is to arrive at a detailed description of the syntatical and semantic behavior of this joining word and to ascertain whether it has already become grammaticalized as a conjunction. The research base is a sample of the minimum corpus of the Spoken Portuguese Grammar Project (PGPF). The text is organised in four parts. In the first, the objectives are set out in relation to the hypotheses underpinning the work; on the second, the methodological procedures and investigative techniques are presented; the third part consists of a description of the use of this conector in spoken Portuguese, and the concluding remaks summarise the principal consequences for a more precise equating of the conclusive relationship obtained by means of the connector então.

conclusive conjunction; gramaticalization; então; logo


O ADVÉRBIO ENTÃO JÁ SE GRAMATICALIZOU COMO CONJUNÇÃO?** Este texto é uma adaptação do trabalho de pesquisa desenvolvido para o Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF), já concluído, intitulado Este texto é uma adaptação do trabalho de pesquisa desenvolvido para o Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF), já concluído, intitulado Construções conclusivas no português falado, a ser publicado no v. 8 da Gramática do Português Falado, organizado por ABAURRE. Agradeço as críticas e sugestões dos pareceristas anônimos, que me permitiram rever alguns pontos obscuros; os que ainda permanecerem são de minha inteira responsabilidade.

(Has the Adverbial Então already become Grammaticalized as a Conjuction?)

Erotilde Goreti PEZATTI

(Universidade Estadual Paulista-SJRP)

ABSTRACT: This study consists of an examination of the connector então in Brazilian formal spoken Portuguese. The objective is to arrive at a detailed description of the syntatical and semantic behavior of this joining word and to ascertain whether it has already become grammaticalized as a conjunction. The research base is a sample of the minimum corpus of the Spoken Portuguese Grammar Project (PGPF). The text is organised in four parts. In the first, the objectives are set out in relation to the hypotheses underpinning the work; on the second, the methodological procedures and investigative techniques are presented; the third part consists of a description of the use of this conector in spoken Portuguese, and the concluding remaks summarise the principal consequences for a more precise equating of the conclusive relationship obtained by means of the connector então.

KEY-WORDS: conclusive conjunction, gramaticalization, então, logo.

RESUMO: Este estudo limita-se ao exame do conector então no português falado culto do Brasil. O objetivo é fornecer uma descrição detalhada do comportamento sintático-semântico desse juntor e verificar se já se gramaticalizou como conjunção. O universo de pesquisa é uma amostragem do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF). O texto se organiza em quatro partes. Na primeira colocam-se os objetivos em face das hipóteses de trabalho; na segunda apresentam-se os procedimentos metodológicos e técnicas de investigação; a terceira parte constitui uma descrição do uso desse conector no português falado e, nas considerações finais, resumem-se as principais conseqüências para um equacionamento mais preciso da relação de conclusão obtida por meio do conector então.

PALAVRAS-CHAVE: conjunção conclusiva, gramaticalização, então, logo.

Introdução

Uma categoria lingüística que exemplifica bem o princípio da não-biunivocidade entre forma e função é o das conjunções. Em razão disso, é pouco clara a delimitação do conceito nas gramáticas do português, que freqüentemente esbarram na falta de critérios claros e explícitos de delimitação e na indicação de subcategorias bem definidas. A falta de correspondência entre as relações de dependência semântica e dependência sintática tem motivado um tratamento escalar e não discreto para a classe (Halliday, 1985; Lakoff, 1984), e sua interação com determinações discursivas (Matthiessen & Thompson,1988) aponta para o caráter multifuncional da conjunção em função de seu uso nos domínios referencial, epistêmico e ilocucional (Sweetser, 1991). Além desse carácter escalar e multifuncional, é possível questionar a própria noção de conjunção, quando se trata, especificamente, do nexo conclusivo: a relação se estabelece mediante o uso de advérbios ou de verdadeiras conjunções?

Um problema a mais nesse âmbito específico da relação conclusiva é a escassez de trabalhos especializados. Geralmente os estudos sobre conjunções ou operadores argumentativos se restringem a e, ou e mas e aos operadores de causa/explicação. Informações mais específicas sobre as conclusivas, obtêm-se, ainda que rarefeitas, nas gramáticas tradicionais, cujos critérios, sabe-se bem, nem sempre são definitivos, tornando-se, por isso mesmo, pouco operacionais.

Pareceu-nos, assim, que, na busca de clareza e precisão de critérios que possibilitem esclarecer se o nexo conclusivo estabelecido por então é de fato efetuado por uma verdadeira conjunção, o melhor percurso é verificar o comportamento sintático-semântico desse operador, mediante alguns critérios que definem o que chamamos de conjunção. O objetivo final é fornecer indicações funcionais das expressões com então no português falado que manifestam o nexo conclusivo.

Este texto se organiza em quatro partes. Na primeira, colocam-se os objetivos em face das hipóteses de trabalho; na segunda apresentam-se os procedimentos metodológicos e técnicas de investigação; a terceira parte constitui uma descrição dos resultados do levantamento e, nas considerações finais, resumem-se as principais conseqüências que permitem um equacionamento mais preciso da relação de conclusão obtida por meio do conector então.

1. Hipóteses e proposta de trabalho

De acordo com Ilari (1996b), é sabida a dificuldade de distinguir de maneira estanque as noções que seriam recobertas pelas várias classes de conjunções subordinativas, noções que freqüentemente se imbricam reciprocamente. O conceito de causa, por exemplo, envolve anterioridade no tempo e condição; assim não estranha que o locutor possa, ao explicitar uma relação cronológica entre dois fatos, implicitar que eles se relacionam causalmente. Também não estranha que a causa possa formular-se como uma condição.

As conjunções exibem ainda um outro tipo de sincretismo, mais sutil, que resulta da confusão entre o dictum e o modus; em outras palavras, resulta de confundir uma relação objetiva entre fatos que "existem no mundo", com uma relação entre momentos de uma argumentação. Muitas vezes os fatos e a argumentação têm orientações opostas. Assim um conectivo pode desenvolver um valor tipicamente argumentativo em paralelo a um valor denotativo definido sobre uma realidade externa à linguagem. Um exemplo disso é o operador então, que geralmente anuncia não só uma conseqüência factual, mas também uma conclusão do falante.

Assim uma mesma conjunção pode ser usada para formular um conteúdo (nível do dictum) ou para pontuar um processamento textual (nível do modus). Não se pode concluir, no entanto, que haveria correspondência biunívoca entre coordenação e subordinação de um lado e dictum e modus de outro, mas devemos analisar nesses dois níveis qualquer ocorrência de conjunção. Pode-se dizer que esses dois níveis se correlacionam ao que Halliday & Hasan (1976) entendem por função ideacional e função interpessoal da linguagem. No primeiro, as predicações coordenadas constituem eventos e a coesão que flui naturalmente da relação conjuntiva deve ser interpretada como significados, entendidos como a representação da realidade externa, que o falante experiencia; no segundo, constituem eventos lingüísticos, já que se referem à organização que o falante imprime a seu discurso, caso em que a coesão deve ser interpretada como uma relação entre significados, entendidos como a representação que o falante elabora da situação de interação. Neves (1997) acrescenta ainda que a noção de causalidade só pode ser investigada com relação à organização do discurso, aí incluídas todas as questões ligadas à distribuição de informação e à orientação argumentativa.

Neste estudo, consideraremos, como hipótese a ser investigada, a possibilidade que a construção conclusiva com então sustenta de, além de exprimir o nexo semântico de causa-conseqüência (dictum), estabelecer uma relação de implicação entre a proposição antecedente e a conseqüente, ou seja, exprimir uma relação de inferência entre proposições, em que a primeira é uma das premissas e a segunda, a conclusão (modus).

Outro aspecto que se deseja investigar é se o português conta realmente com uma conjunção então legítima. A esse propósito, Carone (1988:58-9) afirma que as conjunções são geralmente expressões que deslizaram de um estatuto de advérbio para o de conjunção. Seu valor de origem perdura na mobilidade de que são dotadas, mais caracterizadora do advérbio. Os operadores que atuam como elementos de coesão entre partes de um texto, como além disso, apesar disso, em vez disso, pelo contrário, ao contrário, ao mesmo tempo, desse modo, assim, então, aliás, situam-se na faixa de transição de advérbio para conjunção. Como termos híbridos, participam da natureza do advérbio e da natureza da conjunção: exprimem circunstâncias várias, mas comportam-se como elementos de coesão, a caminho de cristalizarem-se, ou, preferencialmente, gramaticalizarem-se como conjunções coordenativas. É fundamental percebermos que esse valor coesivo advém de seu caráter anafórico, explícito ou implícito.

Carone defende a idéia de que a conjunção coordenativa integra a segunda oração coordenada, pois o processo de coordenação de orações ocorre de acordo com as seguintes etapas:

a) um termo de valor adverbial, pertencente à estrutura da segunda oração coordenada, reitera a primeira oração como um todo;

b) esse termo é, portanto, um representante da primeira oração dentro da segunda;

c) esse circunstante entra em processo de cristalização, no decorrer do qual se desvanece paulatinamente a noção de que ele é uma anáfora da oração inicial;

d) ao mesmo tempo ganha força sua função "relacionadora": é um laço que a segunda oração estende para agarrar-se à oração inicial;

e) completando-se o processo, está criada mais uma conjunção coordenativa, morfema que faz parte da segunda oração coordenada.

Esse programa está de acordo com um dos princípios do processo de gramaticalização: o de unidirecionalidade11 Mencionar o princípio de unidirecionalidade não implica, aqui, assumir que, diacronicamente, sua aplicação possa ser verificada sem restrições. Mencionar o princípio de unidirecionalidade não implica, aqui, assumir que, diacronicamente, sua aplicação possa ser verificada sem restrições. . Segundo Hopper & Traugott (1993), no nível morfológico, as fases por que passa um item lexical antes de se transformar numa unidade funcional podem, em certos casos, ser rigidamente ordenadas de modo a bloquearem automaticamente o percurso inverso conforme a escala: ITEM LEXICAL > PALAVRA GRAMATICAL > CLÍTICO > AFIXO FLEXIONAL. No caso de conjunções, especificamente das conclusivas, o que poderia ocorrer é um subtipo de gramaticalização que Hopper & Traugott (op. cit.) denominam recategorização sintática, processo mediante o qual um item lexical muda as propriedades gramaticais que o incluem numa determinada classe para integrar-se em outra, conforme a seqüência: CATEGORIA MAIOR (Nome, Verbo, Pronome) > CATEGORIA MEDIANA (Adjetivo, Advérbio) > CATEGORIA MENOR (Preposição, Conjunção). O processo diacrônico de recategorização sintática é o que melhor explica a transformação, a que alude Carone (1988) mediante a qual locuções adverbiais passam a exercer função de conjunção.

Assim entre os operadores discursivos que, na opinião da autora, já se cristalizaram como conjunção, mencionam-se no entanto, por conseguinte, entretanto, contudo, todavia, porém e portanto. Como suspeitamos de que poucos operadores de conclusão podem de fato ser classificados como verdadeiras conjunções, traçamos como um outro objetivo deste trabalho verificar se o conector então manifestado no corpus finalizou o processo de gramaticalização, mencionado por Carone (1988).

Em suma, o propósito deste trabalho é verificar, por um lado, os níveis de atuação da relação semântica de conclusão indicada por então, como subproduto da relação de causa-conseqüência, e, por outro, o grau de gramaticalização desse operador na modalidade culta falada do português.

2. Procedimentos metodológicos e universo de investigação

O universo de pesquisa é uma amostragem representativa do corpus mínimo do Projeto de Gramática do Português Falado, composto por três tipos de inquérito: Elocuções Formais (EF), Diálogo entre Informante e Documentador (DID) e Diálogo entre dois Informantes (D2), que constitui o chamado corpus compartilhado do PGPF que vem sendo exaustivamente descrito. Este consiste, por sua vez, numa amostragem operada sobre o material colhido pelo Projeto NURC/Brasil a partir de entrevistas com informantes adultos cultos de cinco capitais brasileiras. São eles: de Porto Alegre: EF-278, DID-045, D2-291; de Rio de Janeiro: EF-379, DID-328, D2-355; de São Paulo: EF-405, DID-234, D2-3603; de Recife: EF-337, DID-131, D2-005; de Salvador: EF-049, DID-231, D2-098.

A vocação empírico-descritiva deste trabalho, torna imperiosa a necessidade de tratamento estatístico. Para facilitar o trabalho, o recurso mais indicado é o uso de um tratamento eletrônico de processamento. Empregam-se, portanto, alguns programas do Pacote VARBRUL (Sankoff, 1975), mais especificamente, o Makecell, para o levantamento de freqüências simples e o Q-edit para o registro em arquivo de dados. Esse programa estatístico remete diretamente à análise variacionista, que analisa grupos de fatores em função de uma variável dependente. Desnecessário dizer que o tratamento estatístico funciona, aqui, apenas como uma ferramenta muito limitada em função dos recursos do programa, e tem a função específica de dar sustentação empírica às afirmações que se fizerem sobre o comportamento sintático-semântico do juntor então.

A análise dos dados se servirá de alguns fatores, vistos mais como correlativos que como condicionadores.

O fato de logo ser considerada a conjunção conclusiva por excelência, levou-nos a estabelecer, como um dos fatores, a possibilidade de o conector então se alternar, na mesma posição, com esse juntor prototípico, mantendo-se a identidade semântico-discursiva da relação entre as orações. A prototipicidade de logo se explica em função de cinco parâmetros fundamentais que, juntos, demonstram estar completo o processo de gramaticalização de logo, havendo, portanto, no português, um caso de polissemia na expressão adverbial e na conjuncional:

i) Não apresenta mobilidade no interior da sentença que inicia:

(1) a. O narciso é uma flor, logo pertence ao reino vegetal.

b. *O narciso é uma flor, pertence, logo, ao reino vegetal.

ii) Não pode ser precedido de outra conjunção, como a aditiva:

(1) c. *

O narciso é uma flor, e logo pertence ao reino vegetal

.

iii) Pode coordenar termos, como as demais conjunções coordenativas (e, ou e mas):

(1) d.

Você está sentindo a sua emoção, daí ser mais fidedigno, logo mais verdadeiro.

iv) Não aceita focalizadores, como advérbios de inclusão/exclusão, hedges e clivagem:

(1) e. *

O narciso é uma flor é logo que pertence ao reino vegetal.

Tendo em vista os traços que compõem a prototipicidade de logo, acima mencionada, estabeleceu-se, como hipótese de trabalho, que a gramaticalização do juntor, objeto deste estudo, deveria acompanhar o comportamento sintático do modelo, em função dos seguintes fatores: 1) a possibilidade de o conector ser antecedido por e, considerando a hipótese de que a presença de um juntor elimina automaticamente a necessidade de um segundo, a menos que exerçam diferentes funções; 2) o nível estrutural da coordenação, se oração ou termo, considerando que a junção com e, ou e mas, coordenativos prototípicos, realiza-se em vários níveis estruturais; 3) com base no fato de que elementos já gramaticalizados como conjunções ocupam uma posição fixa, a inicial na apódose, analisa-se a mobilidade dos juntores com o objetivo de verificar se ainda preservam o caráter adverbial, uma vez que a maioria das conjunções, como termos híbridos, participam tanto da natureza do advérbio quanto da de conjunção; 4) tendo em vista essa natureza híbrida das conjunções e o fato de os advérbios permitirem focalização por meio de clivagem ou de partículas especiais, propusemo-nos verificar como se comportam os juntores conclusivos em relação a esse aspecto. Foram assim considerados mais dois grupos de fatores: a possibilidade do uso de clivagem e a de restrição e precisão por meio de advérbios de inclusão/exclusão (Ilari et al,1996a).

Considerando-se agora a questão coordenação versus subordinação, sabe-se que a subordinação constitui um único ato de fala e, por isso, a ordem dos elementos é semanticamente irrelevante, o mesmo, no entanto, não acontece com a coordenação, circunscrita aos juntores mais prototípicos, como e, ou e mas. A impossibilidade de inversão colocaria os conclusivos na classe prototípica, razão por que se analisa também a possibilidade de inversão da ordem dos elementos ligados pelo juntor em pauta.

Incluiu-se ainda como fator de análise a possibilidade de a conjunção iniciar respostas a perguntas específicas, conforme sugerido por Ilari (1996b:26), ao afirmar que as conjunções 'perguntáveis' podem compartilhar alguma propriedade semântica comum. Seguindo ainda o roteiro sugerido por esse autor, foram considerados mais três grupos de fatores relacionados a propriedades semânticas dos conectores. Um deles refere-se à argumentatividade, ou seja, à capacidade da conjunção de contrastar duas orientações argumentativas e ao mesmo tempo relacionar um argumento e sua conclusão. Um outro fator diz respeito ao modus, ou seja, à possibilidade de o juntor transpor para o texto o seu sentido literal. Como último fator, verificou-se a possibilidade de essas formas conjuntivas estabelecerem pressuposição, ou seja, se a presença da conjunção é determinante para desencadear o aparecimento de pressupostos numa das sentenças que une sintaticamente.

3. O uso do juntor então no português falado

A forma então tem sido objeto de atenção de vários estudiosos entre eles Martelotta (1996) e Risso (1996). Risso, por exemplo, enquadra-a no conjunto dos marcadores conversacionais que funcionam como unidades seqüenciadoras para criar uma relação coesiva entre partes do texto, estabelecendo aberturas, encaminhamentos, retomadas e fechos de tópico. O articulador então se alinha com as conjunções e advérbios dêiticos locativos ou temporais. Move-se da frase para o texto com considerável flexibilidade e pode escopar ou articular porções discursivas de diferentes proporções. Resumindo muito o trabalho de Risso, observamos que então pode atuar nos níveis frasal e textual, exercendo, naquele, a função de um advérbio dêitico de tempo e assumindo, neste, a de um operador argumentativo, na expressão de uma dependência lógico-semântica de decorrência, conclusão ou resultado, assentada na relação de implicatividade entre fatos ou argumentos, dentro da proposição.

O interesse específico deste trabalho está voltado apenas para a função de articulador da relação lógico-semântica de conclusão entre orações. Nesse âmbito mais restrito, como já observado anteriormente, são poucos os gramáticos que consideram então conjunção conclusiva (cf. Kury, 1985; Savioli, 1985 e Macambira, 1970); no entanto, é para essa direção que os dados indicam o percurso dessa forma, em curso de gramaticalizar-se de fato como conjunção coordenativa.

Há várias evidências que apontam para a caracterização conjuncional de então. Uma delas é o fato de poder ser substituída por logo em 93,3% das ocorrências, o que não é possível nos casos em que ainda veicula o valor temporal, como se observa em (2) abaixo.

(2) L2

houve uma série de irre/ éh::de irregularidades...nas lis/ na apresentaçao da lista de classificaçao irregularidade foi engano...no no no fazer...na confecçao da lista...de de aprovados hou/ houv/ começaram a haver alguns enganos...

então

o pessoal que mand/ entrava com mandado de segurança...dizendo que foi contado pontos errados...enGAnos simples comuns eh aritmética (às vezes) de somar o número de pontos...então eles entraram com mandado de segurança...anulando aquela lista de classificação...e então havia publicação de outras...e assim foi indo e::e a::...de acordo com o edital a validade é dois anos DA publicação...dos resultados...da lista de aprovados...então com a::com esta...com este recurso de mandado de segurança...não foi propriamente o recurso foram coisas que realmente aconteceram.

..(D2-SP-360:593).

Nesse exemplo pode-se notar que então indica uma sucessividade entre o momento de detecção de erros e a entrada do pessoal com mandato de segurança. Claro que há uma relação de implicatividade entre os conteúdos das duas sentenças, mas então ainda preserva a noção temporal original. No entanto, esse sentido está desaparecendo e paulatinamente também desaparece a noção de que então é uma anáfora da oração inicial.

Sabe-se que a unidirecionalidade que governa o processo de gramaticalização opera não somente sobre a alteração de estatuto de categoria gramatical, mas também sobre o de categorias semânticas, como se observa na escala PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE (cf.Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991). É o que se verifica com logo. À conjunção prototípica, diacronicamente originada do substantivo latino locus, aplicou-se parte significativa da escala: um item lexical de referência espacial, ao mudar de categoria, levou consigo a alteração de valor semântico que ainda hoje o advérbio logo mantém; este se recategorizou, passando a conjunção com o valor de conclusão, que traz implícita, necessariamente a memória temporal do advérbio. Tudo indica que o mesmo processo pode estar se aplicando ao então.

Não obstante, a preservação da noção original de tempo ainda se verifica em um pequeno número de ocorrências, equivalendo a 20% dos usos. Pode-se observar a conservação das propriedades adverbiais de então nos seguintes aspectos: 1) pode ser potencialmente antecedido por e em 80% das ocorrências, como a de (3), ainda que o levantamento não tivesse acusado nenhum caso; 2) os casos que não admitem essa anteposição manifestam valor de inferência, como (4), tendo perdido já o seu caráter adverbial.

(3) L2 é...((risos)) exatamente se a gente for parar para fazer as coisas calmamente não dá...pura e simplesmente não dá...[e] então a gente corre depressa vai para o carro troca de roupa correndo faz isso faz (não sei que tá tá) (D2-SP-360: )

(4) hoje em dia se você depois passou uma época que você ia ao cinema tinha que ficar de pé numa fila eNORme...não é? então não era divertimento aquilo...era::eu acho que era nem divertimento ((ruídos)) passava porque a pessoa ficava cansada de ficar em fila adquirir ingresso ficava na fila de ingresso (DID-SP-234:582)

Esse operador coordena apenas orações, nunca termos, o que reforça seu caráter de circunstancial. Por outro lado, apresenta algumas intersecções com as conjunções, como a resistência à clivagem, já que 80% das ocorrências não admitem tornar-se foco da sentença.

Acrescente-se ainda que então não aceita restritores; no valor de conjunção, então não pode ser escopada por advérbios focalizadores, como , inclusive, até, mesmo, precisamente e exatamente. Esse comportamento aproxima mais essa forma do estatuto de conjunção.

O exame dos dados permite observar ainda que esse operador pode relacionar dois estados de coisas (conteúdos), como (5) e um estado de coisas e uma inferência, como (6).

(5) tudo que tinha...peguei todos os requisitos...fiz ((risos))...estudei bem fiz um estudo certinho para ver qual era a melhor e foi determinado...foi visto que aquela era melhor...entãofoi posto quer dizer não foi uma escolha...[sem base] (D2-SP-360:398)

(6) se eu começo a a a a pensar em estatística se verá que o lugar mais perigoso do mundo é a cama...porque noventa por cento das pessoas morrem na cama...entãoé o lugar mais perigoso...não vá pra cama que você não morre...bem (D2-RE-05:105)

Vale observar, no entanto, que em (5) então admite ser escopada pelo focalizador . Esse dado revela a imbricação de uma relação cronológica na relação de implicatividade estabelecida entre os fatos. Essa imbricação, que traz à memória o valor adverbial temporal mesclado ao de conjunção, sugere que o grau de gramaticalização da forma é menor aqui e mais forte quando então relaciona momentos de uma argumentação, como em (6). Com efeito, quando essa relação argumentativa é acionada pelo conector, fica excluída qualquer possibilidade de este ser precedido por um focalizador, bem como pela aditiva e. Já essa exclusão nem sempre ocorre quanto o juntor anuncia uma conseqüência factual, como em (5), em que podem entrar tanto o focalizador quanto o e, ou como em (7), em que apenas o e parece ser possível, por não estar co-presente a idéia temporal. No continuum de gramaticalização, a ocorrência (7) parece estar a meio caminho entre (5) e (6).

(7)

sabemos que a inflação... reduz o poder... aquisitivo do nosso povo...

então

anualmente o governo... estabelece... os chamados... reajustes... salariais

(DID-RE-131:103)

A orientação argumentativa que se projeta no emprego de então é relevante para relacionar um argumento e seu fim. Há argumentatividade sempre que esse operador indica uma conclusão por inferência. Isso ocorre em 46,6% dos casos, conforme se pode verificar em (6), em que o argumento de 'noventa por cento das pessoas morrerem na cama' implica a conclusão 'a cama é um lugar perigoso', ou seja, a conclusão é uma inferência que o falante faz com base no que foi afirmado na proposição precedente.

Interessante notar que algumas ocorrências com então, que indicam conclusão por inferência, implicam uma circularidade de raciocínio argumentativo nos seguintes termos: o locutor inicia a argumentação com a sentença que indica conclusão do raciocínio, que, em (6) acima, é [o lugar mais perigoso do mundo é a cama]; em seguida apresenta a causa dessa conclusão [porque noventa por cento das pessoas morrem na cama] e retoma a conclusão introduzida por então, levemente modificada na forma [então é o lugar mais perigoso]. Todo esse raciocínio é verbalizado para "provar" que não se deve tirar conclusões de base estatística. Esse mesmo movimento argumentativo pode ser observado também em (8).

(8) L2

foi bem pensada bem escolhida e realmente a menina gosta muito...e eu pensei que ela fosse ter problema porque ela não fala muito...ela fala muito pouco ela fala um...vocabulário dela é composto por umas quarenta palavras mais ou menos...e ela não faz frase...

então

eu pensei que ela fosse ter dificuldades na escola...por causa disso não não não tem gosta muito

...(D2-SP-360:407)

Como já observado, não se pode alterar a ordem das oração, quando a segunda indica conclusão, caso em que se mantém a ordenação real causa/conseqüência para preservar a direção argumentativa; por essa razão também se repete a oração conclusiva, mesmo que já tenha sido enunciada antes. Assim em (8a), que é uma simplificação de (8), a circularidade argumentativa parece ser necessária para que a representação lingüística mantenha uma relação de iconicidade com os fatos descritos.

(8)a ela não fala muito...ela fala muito pouco ela fala um...vocabulário dela é composto por umas quarenta palavras mais ou menos...e ela não faz frase...então eu pensei que ela fosse ter dificuldades na escola

(8)b *então eu pensei que ela fosse ter dificuldades na escola, ela fala muito pouco ela fala um...vocabulário dela é composto por umas quarenta palavras mais ou menos...e ela não faz frase

Mesmo se invertermos a ordem das orações com relação ao conectivo, a estranheza permanece; confira (8)c.

(8)c *

eu pensei que ela fosse ter dificuldades na escola,

então

ela fala muito pouco ela fala um...vocabulário dela é composto por umas quarenta palavras mais ou menos...e ela não faz frase

Com o juntivo então a proposição resultante pode estabelecer algum conteúdo pressuposto, além de um valor de implicação entre as orações, conforme se verifica em (9).

(9)

... aquela sinalização feita na Salvador-Feira é exatamente um/uma sinalização feita para estradas de GRANde movimento...

então

ela foi pintada com uma tinta especial... com película grossa...

(D2-SSA-98:221).

O que fica pressuposto é que "estradas de muito movimento têm uma sinalização especial". Ora, a Salvador-Feira é uma estrada de grande movimento, portanto foi pintada (sinalizada) com tinta especial.

Considerações finais

Como expusemos na introdução, a principal proposta deste trabalho foi detectar com mais precisão os critérios que possibilitem esclarecer se o nexo conclusivo expresso por então é de fato efetuado por uma emergente conjunção então. A base dessa proposta foi uma descrição do comportamento sintático-semântico desse operador, mediante alguns critérios que definem o que chamamos de conjunção conclusiva prototípica.

Consideramos logo como o conector prototípico no estabelecimento de relações conclusivas, não apenas em função de estar menos sujeito a outros usos que não a expressão exclusiva de valor conclusivo, mas também em virtude de apresentar alguns traços comportamentais que funcionam como operadores por excelência de uma conclusão. Esses traços distintivos são os seguintes: 1) posição fixa na sentença, no início da apódose, como as verdadeiras conjunções coordenativas e, mas e ou; 2) possibilidade de coordenar termos; 3) possibilidade de não representar uma relação anafórica com a oração inicial, em função de não mais conservar valor de circunstancial; 4) possibilidade de não permitir focalização, seja por meio de clivagem seja por meio de advérbios focalizadores como , mesmo, principalmente etc.

Como um resultado da análise do comportamento do conector então, em comparação ao modelo prototípico, representado por logo, é possível atribuir os seguintes traços gerais para o conector em estudo, conforme tabela 01:

O quadro demonstra com clareza que a forma investigada ainda não logrou completar seu processo de gramaticalização.

Se tentarmos traçar uma escala entre as duas etapas do processo, de advérbio a conjunção, é possível alocarmos logo num pólo, como a mais típica das conjunções conclusivas, ficando então na faixa média do processo de transição, de acordo com o seguinte continuum:

Advérbio----------------------------------------------------Conjunção

por isso > então > portanto > logo

Sobre logo, pode-se afirmar que, na função de operador discursivo, já deixou o estatuto de advérbio e se gramaticalizou como conjunção, o que significa exercer apenas a função de relacionar mediante um valor conclusivo duas proposições constituintes de um argumento. Sua convivência pacífica com a forma original de advérbio indica tratar-se de um caso claro de polissemia22 É necessário lembrar que para Sweetser (1991) é implausível aplicar a algumas conjunções uma análise léxico-polissêmica, sendo metodologicamente preferível tratá-las como exemplos do que Horn (1985, É necessário lembrar que para Sweetser (1991) é implausível aplicar a algumas conjunções uma análise léxico-polissêmica, sendo metodologicamente preferível tratá-las como exemplos do que Horn (1985, apud Sweetser) denomina ambigüidade pragmática. O uso polissêmico de então parece ser um caso claro de ambigüidade pragmática.. Já então, embora não disponha ainda da capacidade de coordenar termos, caminha para gramaticalizar-se como conjunção; ressalte-se, no entanto, que, mesmo como operador discursivo, mantém ainda o valor temporal e anafórico de circunstancial.

A forma então pode perfeitamente estabelecer relação conclusiva, com a mesma distribuição sintática de logo nas estruturas sentenciais. Entretanto, os resultados analisados apontam para o fato de que somente esse valor conclusivo não autoriza afirmar que esteja concluído o processo de gramaticalização desse operador como conjunção.

Como elemento coesivo, o conector analisado atua tanto na junção de estados de coisa quanto na de estados de coisa e atos de fala, comportamento próprio de juntores fartamente documentado na literatura por Sweetser (1991), depois comprovado no português falado por Camacho (1998) e Pezatti (1998) no estudo da conjunção e disjunção respectivamente.

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  • * Este texto é uma adaptação do trabalho de pesquisa desenvolvido para o Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF), já concluído, intitulado
    Este texto é uma adaptação do trabalho de pesquisa desenvolvido para o Projeto de Gramática do Português Falado (PGPF), já concluído, intitulado Construções conclusivas no português falado, a ser publicado no v. 8 da Gramática do Português Falado, organizado por ABAURRE. Agradeço as críticas e sugestões dos pareceristas anônimos, que me permitiram rever alguns pontos obscuros; os que ainda permanecerem são de minha inteira responsabilidade.
  • 1 Mencionar o princípio de unidirecionalidade não implica, aqui, assumir que, diacronicamente, sua aplicação possa ser verificada sem restrições.
    Mencionar o princípio de unidirecionalidade não implica, aqui, assumir que, diacronicamente, sua aplicação possa ser verificada sem restrições.
  • 2 É necessário lembrar que para Sweetser (1991) é implausível aplicar a algumas conjunções uma análise léxico-polissêmica, sendo metodologicamente preferível tratá-las como exemplos do que Horn (1985,
    É necessário lembrar que para Sweetser (1991) é implausível aplicar a algumas conjunções uma análise léxico-polissêmica, sendo metodologicamente preferível tratá-las como exemplos do que Horn (1985, apud Sweetser) denomina ambigüidade pragmática. O uso polissêmico de então parece ser um caso claro de ambigüidade pragmática.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      2001
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