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O gênero promocional forro de bandeja de fast-food: uma colônia de gêneros

The promotional genre fast-food tray lining: A colony of genres

RESUMO

Este artigo pretende discutir sobre o gênero de discurso forro de bandeja de fast-food, buscando analisar como ele integra as práticas sociais, ao mesmo tempo em que é gerado e configurado por elas. Sua natureza é a pesquisa aplicada, cujo objetivo é a aplicação prática da ciência. Essa reflexão considerou o conceito swasiano de gêneros de discurso e o conceito bhatiano de colônia de gêneros. A colônia de gêneros é um agrupamento de gêneros que estabelecem entre si um conjunto de relações complexas dentro e através de diferentes domínios discursivos de acordo com o escopo comunicativo a que se propõem. Analisado sob o viés do discurso promocional, o gênero forro de bandeja de fast-food mescla em si outros gêneros que mantêm interface com este e com outros domínios discursivos dos quais se originam. Os resultados parecem confirmar a hipótese de que cada gênero mesclado no forro de bandeja de fast-food contribui para o alcance dos propósitos comunicativos de natureza promocional.

Palavras-chave:
Gêneros do discurso; Colônia de gêneros; Forros de Bandeja de Fast-food

ABSTRACT

This article intends to discuss the genre of discourse fast-food tray lining, seeking to analyze how it integrates social practices, while it is generated and configured by them. Its nature is applied research, whose objective is the practical application of science. This reflection considered the Swasian concept of discourse genres and the Bhatian concept of a colony of genres. The genre colony is a grouping of genres that establish a set of complex relationships within and through different discursive domains according to the communicative scope to which they propose. Analyzed under the bias of promotional discourse, the fast-food tray lining genre blends into itself other genres which maintain interface with this one and other discursive domains from which they originate. The results seem to confirm the hypothesis that each genre blended in the fast food tray lining contributes to the achievement of communicative purposes of a promotional nature.

Keywords:
Genres; Genre colony; Fast-food tray lining

1. Considerações preliminares

Este artigo propõe uma análise do gênero do discurso forro de bandeja de fast-food, considerando a criatividade e a complexidade de seu funcionamento sociocomunicativo. Sua concepção surgiu ao questionarmos se e como os forros de bandeja de fast-food podem confirmar o conceito de colônia de gêneros proposto por Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum.). Diante dessa possibilidade, passamos a coletar alguns exemplares em praças de alimentação de shoppings. Entre eles, um nos chamou a atenção pelos gêneros discursivos nele arrolados: a lâmina de papel de bandeja do Mc Donald’s, datada de fevereiro de 2019. Embora apresentem configurações sociorretóricas distintas na sua comunidade discursiva de origem, os diferentes gêneros, ao serem incorporados e mesclados no forro de bandeja, passam a constituir com este um gênero único, uma espécie híbrida, com arquitetura própria em seu funcionamento e organização.

O entendimento de que esses forros de bandeja possuem uma função interativa sociorretórica nos instigou a analisar de que forma essa prática interdiscursiva acontece. Para tanto, recorremos ao aporte teórico de Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., 2009Swales, J. M. (2009). Repensando gêneros: nova abordagem ao conceito de comunidade discursiva. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE.) sobre as concepções de gênero discursivo e de comunidades de discurso, dada a relação estabelecida entre língua, sociedade e discurso. Consideramos também as contribuições de Bhatia (2002Bhatia, V. K. (2002). Applied genre analysis: a multi-perspective model. Ibérica 4. http://www.aelfe.org/documents/text4-Bhatia.pdf.
http://www.aelfe.org/documents/text4-Bha...
, 2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum.), para quem os gêneros não devem ser analisados como entidades discretas e estáticas, devendo ser apontadas, para fins de pesquisa, as intrínsecas relações e conexões entre diferentes gêneros. Pesquisas que se debruçam sobre o estudo do gênero como um processo resultante de realidades complexas do universo da comunicação institucionalizada demonstram sua relevância, uma vez que projetam luz sobre o movimento pelo qual os gêneros se moldam a novas configurações histórico-sociais.

2. Aspectos teóricos

Esta seção pretende, à luz da teoria dos gêneros discursivos, conforme Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., 2004Swales, J. M. (2004). Research Genres: explorations and applications. New York: Cambridge University Press., 2009Swales, J. M. (2009). Repensando gêneros: nova abordagem ao conceito de comunidade discursiva. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE.) e Bhatia (2009Bhatia, V. K. (2009). A análise de gêneros hoje. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.) Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE.), refletir sobre os conceitos de gêneros, propósitos comunicativos e comunidades discursivas, de modo a compreender a sua natureza dialógica e seu funcionamento sociorretórico. Também almeja refletir sobre o conceito de colônia de gêneros apresentado por Bhatia (2002Bhatia, V. K. (2002). Applied genre analysis: a multi-perspective model. Ibérica 4. http://www.aelfe.org/documents/text4-Bhatia.pdf.
http://www.aelfe.org/documents/text4-Bha...
, 2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum.), com vistas a destacar a inter-relação dinâmica entre textos e, principalmente, sua constituição e uso em diferentes comunidades de discurso. Por fim, refletiremos sobre o discurso promocional, buscando observar como a mescla de gêneros primeiros e secundários pode constituir-se em uma colônia de gêneros. Advertimos que o termo discurso será tomado como texto no que se refere à análise do uso da linguagem. A esse respeito, Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum.) observa que “Todos os gêneros disciplinares e profissionais têm sua própria integridade, que é frequentemente identificada com referência a uma combinação de fatores textuais, discursivos e contextuais” (Bhatia, 2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 27, tradução nossa). A visão dicotômica entre texto e discurso, portanto, perde sua relevância quando o que se pretende é discutir o funcionamento sociorretórico do gênero.

2.1. Gêneros do discurso: questões conceituais

Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.) formula suas concepções de gênero, propósito comunicativo e comunidade discursiva ancorado em estudos de diferentes campos de conhecimento, como o folclore, a literatura, a linguística e a retórica. Os resultados de suas investigações sobressaem principalmente no âmbito pedagógico, pois tiveram como objeto de análise os gêneros acadêmicos. Seus estudos fundamentam-se no caráter social dos gêneros, observadas as funções que eles desempenham nas comunidades de discurso em que se originam e circulam. O pesquisador nos apresenta uma definição de gêneros do discurso bastante consistente e complexa:

Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham algum conjunto de propósitos comunicativos. Tais propósitos são reconhecidos pelos experts da comunidade do discurso original e, assim, constituem a lógica para o gênero. Essa lógica molda a estrutura esquemática do discurso e influencia e restringe a escolha de conteúdo e estilo. Propósito comunicativo é tanto um critério privilegiado quanto um que opera para manter o escopo de um gênero como aqui concebido estritamente focado em ação retórica comparável. Além do propósito, exemplares de um gênero exibem vários padrões de similaridade em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público-alvo. Se todas as altas expectativas de probabilidade forem realizadas, o exemplar será visto como prototípico pela comunidade do discurso original. Os nomes do gênero herdados e produzidos por comunidades de discursos e importados por outros constituem comunicação etnográfica valiosa, mas normalmente requerem mais validação. (Swales, 1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., p. 58, tradução nossa)

Como classe de eventos comunicativos, os gêneros são categorizados a partir de padrões formais e/ou contextuais recorrentes nas ações de linguagem. Esta se constitui pelo discurso, seus agentes, sua função bem como pelo seu contexto de produção e recepção. Os propósitos comunicativos ganharam destaque nessa concepção do autor, que considera os gêneros, salvo algumas exceções, “veículos comunicativos para a concretização de objetivos” (Swales, 1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., p. 46). A definição do propósito comunicativo seria o pilar para a configuração interna de um gênero, pois ela atuaria tanto na constituição da estrutura esquemática das informações, quanto nas escolhas sintáticas e lexicais atinentes ao conteúdo e estilo.

Essa centralidade atribuída aos propósitos comunicativos como ponto de partida para a definição de um gênero, entretanto, mereceu novo tratamento por parte do pesquisador, em virtude de que eles podem apresentar-se de forma ambígua, múltipla, sobreposta e complexa (Askehave & Swales, 2009Askehave, I., & Swales, J. M. (2009). Identificação de gênero e propósito comunicativo: um problema e uma possível solução. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE.). Nesse sentido, um gênero pode compartilhar mais de um propósito comunicativo, nem sempre manifestado explicitamente ou claramente identificado. Um anúncio publicitário, por exemplo, devido a seu caráter intrinsecamente retórico e de sua linguagem persuasiva, pode estimular desejos, despertar a atenção, sensibilizar, determinar regras de atuação social e persuadir o seu público-alvo para uma prática reflexiva. Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de imagens. São Paulo: Melhoramentos. (Coleção Como eu ensino)., p. 136) observa que “Não é sempre, contudo, que traços reconhecíveis desses conteúdos típicos aparecem na superfície da mensagem. Se as intenções ficam muito claras, a publicidade não atinge suas finalidades.” Faz-se necessária, portanto, análise apurada desses traços para melhor compreensão do(s) propósito(s) comunicativo(s) subjacentes a esse gênero.

Em sua citação, Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.) associa os gêneros às comunidades de discurso, definidas por ele como “redes sociorretóricas que se formam a fim de atuarem juntas em favor de um conjunto de objetivos comuns” (Swales, 1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., p. 9). Tais objetivos comuns serão modelados por padrões de uso e interpretação apropriados. Swales (2009Swales, J. M. (2009). Repensando gêneros: nova abordagem ao conceito de comunidade discursiva. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.). Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE., p. 207-208) propõe seis critérios para identificação de uma comunidade discursiva, sendo eles:

  • - possui um conjunto perceptível de objetivos;

  • - possui mecanismos de intercomunicação entre seus membros;

  • - usa mecanismos de participação para diferentes propósitos, tais como: prover o incremento da informação e do feedback; canalizar a inovação; manter os sistemas de crenças e de valores da comunidade; e aumentar seu espaço profissional;

  • - utiliza uma seleção crescente de gêneros para alcançar seu conjunto de objetivos e para praticar seus mecanismos participativos;

  • - já adquiriu e continua buscando uma terminologia específica;

  • - apresenta uma estrutura hierárquica explícita ou implícita que orienta os processos de admissão e de progresso dentro dela.

Esses critérios nos permitem compreender, com Biasi-Rodrigues et. al. (2009, p. 31-32), que uma comunidade discursiva se constitui de um conjunto de pessoas que compartilham entre si um grupo de repertórios de gêneros com traços retóricos bem definidos e que têm como função social a validação das atividades interacionais, assim como a capacidade de produzir novos gêneros. As práticas de uso da linguagem compartilhadas são reguladas por convenções estilísticas, que determinam as interações sociais entre os membros do grupo e também fora dele. O conhecimento canônico, por sua vez, regula as interpretações dos membros do grupo acerca da experiência. Assim sendo, para que uma pessoa seja reconhecida como membro legítimo de uma comunidade do discurso, ela precisa não só ter domínio dos gêneros discursivos inerentes a ela, como também a expertise para partilhar os propósitos comunicativos e os conhecimentos que tal comunidade elabora.

Os conceitos de propósito comunicativo e de comunidade discursiva são muito caros a Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press., 2004Swales, J. M. (2004). Research Genres: explorations and applications. New York: Cambridge University Press.) para a identificação de um gênero. O pesquisador sugere dois procedimentos de análise: o textual e o situacional (Swales, 2004Swales, J. M. (2004). Research Genres: explorations and applications. New York: Cambridge University Press., p. 72-73). No procedimento textual, a análise parte dos elementos constituintes do gênero (estrutura, conteúdo temático, elementos estilísticos e propósito comunicativo), passa pelo contexto até atingir o reaproveitamento do gênero e o realinhamento da rede de gêneros. Nas duas últimas etapas, é possível avaliar, por exemplo, como o gênero reaproveitado se encaixa em uma hierarquia de gêneros.

Já no procedimento orientado para a situação, o ponto de partida para a identificação do gênero será o contexto situacional. Nesse caso, a análise deve pautar-se inicialmente pela identificação da comunidade discursiva, as metas, valores, objetivos, condições materiais dos grupos na situação, ritmos de trabalho, horizontes de expectativas, repertórios e etiquetas de gêneros, reaproveitamento dos gêneros selecionados e, por fim, padrões de textualidade e outras características dos gêneros. A identificação do gênero na comunidade discursiva possibilitará, caso necessário, a redefinição do propósito comunicativo e a identificação de cada exemplar do gênero.

O pesquisador destaca a existência de um número de vantagens claras relacionadas a esses procedimentos de análise. Tais procedimentos, que podem ocorrer de forma combinada, apoiam a orientação de que conjuntos de textos ou transcrições podem não estar fazendo o que parecem, ou não fazendo o que tradicionalmente deveriam fazer. Os propósitos sociais evoluem e também podem se expandir ou encolher. Os quadros da ação social e os padrões podem mudar, a especiação pode ocorrer, as características não prototípicas podem ocupar um terreno mais central, as atitudes institucionais podem se tornar mais ou menos amigáveis para os de fora e até os atos de fala podem dar origem a diferentes interpretações.

Bhatia (2009Bhatia, V. K. (2009). A análise de gêneros hoje. In Bezerra, B. G., Biasi-rodrigues, B., & Cavalcante, M. M. (Org.) Gêneros e sequências textuais. Recife: EDUPE., p. 161) chama a atenção para três aspectos convencionais e interrelacionados sobre os gêneros:

  1. a recorrência de situações retóricas, para cuja identificação pode ser necessária a caracterização dos aspectos relevantes do contexto sociorretórico em que ocorre um evento comunicativo;

  2. os propósitos comunicativos compartilhados, que estão imbricados dentro do contexto retórico, o que possibilita identificar regularidades típicas de formas estruturais e organizacionais delineadoras de um construto genérico;

  3. as regularidades de organização estrutural, relativas às escolhas específicas de formas estruturais e léxico-gramaticais.

Essas três orientações possuem em comum a ênfase em alguns aspectos específicos da descrição de gêneros relacionados à sua construção e interpretação, que podem estar relacionados à recorrência, ao compartilhamento ou às regularidades. As regularidades dos gêneros, que lhes garantem certa estabilidade e convencionalidade, aparentemente contrastam com seu dinamismo, já que as estruturas retóricas podem ser manipuladas de acordo com as condições de uso e interesses dos membros da comunidade discursiva.

Daí a possibilidade de transmutação dos gêneros, conforme assevera Bakhtin (2008Bakhtin, M. (2008). Problemas da poética de Dostoiévski. 4.ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Forense-Universitária., p. 21): “O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é velho e novo ao mesmo tempo.” Assim, na medida em que as sociedades vão se transformando e, com elas, as diferentes formas de ação dos sujeitos, os gêneros podem transformar-se, intercalar-se e migrar-se para outros gêneros, tanto no interior das esferas de comunicação social em que foram gerados quanto no de outras que os incorporaram e os ressignificaram. Essa dinamicidade e constante transformação dos gêneros será importante para que possamos compreender a noção de colônia de gêneros apresentada na subseção seguinte.

2.2. Colônia de gêneros: um olhar sobre os gêneros do discurso promocional

Uma questão relevante neste artigo é o conceito de colônia de gêneros apresentado por Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum.). Os procedimentos de análises ordinários costumam descrever os gêneros de modo estanque e isolado, ignorando a sua complexa e dinâmica inter-relação com outros gêneros, conforme aponta Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 29): “gêneros no mundo real são frequentemente vistos em relação a outros gêneros com um certo grau de sobreposição ou, algumas vezes, mesmo conflito.” (Tradução nossa). A essa inter-relação recíproca entre gêneros, Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 57) denominará “colônia de gêneros”, cujos membros não respeitam necessariamente fronteiras ou domínios disciplinares.

Esse pesquisador salienta que o conceito de colônia de gêneros serve a um número expressivo de funções no interior da teoria de gêneros: primeiramente, possibilita um importante grau de versatilidade na identificação e descrição dos gêneros, de modo que estes sejam visualizados em diferentes níveis de generalização, com o estabelecimento de relações de princípios entre super ou macrogêneros, gêneros e subgêneros. Além disso, permite relacionar gêneros especificamente identificados com aspectos de um contexto sociocomunicativo mais abrangente.

Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 57-58) confere uma dupla significação para a expressão colônia de gêneros, que reforça seu potencial para a análise de gêneros. A primeira diz respeito à compreensão do vocábulo “colônia” como um agrupamento de gêneros intimamente relacionados, os quais em grande parte partilham propósitos comunicativos comuns, embora possam se diferenciar em outros aspectos como afiliações disciplinares e profissionais, contextos de uso, relacionamento entre os participantes e restrições do público-alvo, entre outros fatores. A segunda é que o processo de colonização deve ser compreendido como a invasão da integridade de um gênero por outro gênero ou convenção genérica, o que pode frequentemente acarretar a constituição de formas híbridas, especialmente aquelas guiadas por propósitos promocionais.

O conceito de colônia de gêneros é crucial para a teoria bhatiana, por compreender um agrupamento de gêneros pertencentes a um ou mais domínios discursivos que compartilham amplamente os propósitos comunicativos intrínsecos a eles, o que lhes confere um estatuto de membro primário da colônia. Ao mesmo tempo, ela representa um processo de exploração e apropriação de recursos genéricos para criar formas híbridas (tanto mistas quanto incorporadas), consideradas membros secundários da colônia.

Os propósitos comunicativos podem ser caracterizados em vários níveis de generalização e simultaneamente percebidos em termos de uma combinação de atos retóricos designados por Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 59) como valores genéricos. Valores genéricos tais como argumentação, descrição, narração, explanação e instrução podem ser combinados de diferentes modos para diferentes gêneros profissionais, como os gêneros do domínio promocional, que podem conter, por exemplo, sequências descritivas e avaliativas na promoção de um produto ou serviço.

É possível postular um alto grau de generalização do discurso promocional na forma de uma constelação de vários gêneros intimamente relacionados, com uma sobreposição de propósitos comunicativos para promover um produto ou serviço a um cliente potencial. Um gênero promocional pode incluir, por exemplo, anúncios, malas diretas e até mesmo sinopses de livros. Essas últimas podem ser exibidas em conjunto com outros gêneros promocionais, embora elas sejam diferentes em termos da especificidade do produto que promovem, ou seja, um livro. Em sua constituição, as sinopses incluem a seleção e a amplitude do mercado ou o público-alvo, bem como a natureza das estratégias e, portanto, os recursos léxico-gramaticais empregados em conformidade com o conteúdo abordado.

No que respeita à publicidade, Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 62) observa que ela,

[...] por um lado é a mais tradicional forma de atividade promocional, com vistas a informar e a promover, a fim de vender ideias, mercadorias ou serviços para um grupo selecionado de pessoas; por outro lado, é também uma das formas genéricas mais dinâmicas que exibe alguns dos mais inovadores usos de formas léxico-gramaticais e discursivas e estratégias retóricas. (Tradução nossa)

A criatividade, a inovação e o dinamismo podem ser observados a partir de uma das estratégias favoritas usadas na publicidade corporativa, que consiste na diferenciação do produto. Os copywriters frequentemente analisam não apenas a informação detalhada do produto, mas também a evidência do que torna um produto particular diferenciado dos seus concorrentes. Um dos mais importantes movimentos retóricos do discurso publicitário consiste na descrição do produto, que deve ser bom, positivo e favorável. Isto é frequentemente percebido por meio de valores genéricos de descrição e avaliação, que são mais frequentemente chamados a servir a causa de milhões de produtos e serviços por meio do mundo corporativo.

Swales (1990Swales, J. M. (1990). Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press.) destaca a importância dos movimentos retóricos (rethorical moves) no sentido de que eles nos permitem observar como os propósitos comunicativos de cada gênero se materializam de modo relativamente recorrente na distribuição das informações e, portanto, identificável como parte constitutiva desse gênero. No caso do anúncio promocional, cada movimento retórico utilizado deve contribuir para o seu objetivo geral. Uma carta de promoção de vendas, por exemplo, pode apresentar os seguintes movimentos retóricos: título, público-alvo, justificativa do produto ou serviço, detalhamento do produto ou serviço (indicação, descrição e valorização do produto ou serviço), estabelecimento de credenciais, endosso típico do usuário, incentivos oferecidos, táticas de pressão e solicitação de respostas. (Bhatia, 2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 65 - Tradução nossa).

Também é importante observar que os anúncios publicitários estão se tornando altamente criativos por fazerem uso da multimodalidade, não só para atrair os leitores, mas frequentemente para destacar movimentos que têm sido tradicionalmente percebidos em termos de recursos léxico-gramaticais típicos. A multimodalidade considera o uso de mais de um modo de representação num gênero discursivo. Em sua organização composicional, os gêneros multimodais apresentam signos distintos e inter-relacionados que refletem o crivo semiótico, tais como: imagens, gráficos, cores, diagramação textual, rodapés, tipos e formatos de letras, animações, etc. É o que nos aponta van Leeuwen (2004Van Leeuwen, T. (2004). Ten reasons why linguistics should pay attention to visual communication. In Levine, P., & Sollomn, R. Discourse e Technology: Multimodal Discourse analysis. Georgetown: Georgetown University Press., p. 10), “[...] os gêneros escritos combinam a língua, a imagem, e as características gráficas em um todo integrado”. (Tradução nossa).

Ainda, no que respeita apenas a anúncios impressos, Bhatia (2004Bhatia, V. K. (2004). Worls of written discourse: a genre-based view. Londres: Continuum., p. 60) observa que é possível visualizá-los em termos de categorias, como anúncios lineares, anúncios de lembrete de legenda de imagem, anúncios de construção ou promoção de imagens, depoimentos, gêneros incorporados, etc. Qualquer que seja a subcategoria, todos esses anúncios servem ao mesmo conjunto de finalidades comunicativas, embora a maioria use estratégias diferentes para promover o produto ou serviço.

Para além dos membros primários de uma colônia de gêneros promocionais, nós podemos encontrar outros que, embora não se pareçam exatamente com anúncios, têm forte preocupação promocional. Exemplos típicos irão incluir cartas de angariação de fundos, brochuras de viagem, propostas de concessão, campanhas públicas, além de outras que tendem a promover não necessariamente um produto ou serviço, mas possivelmente uma ideia, uma proposta de pesquisa, uma preocupação ou uma questão pública, um lugar particular ou uma atração turística, ou algo similar. São muito comuns intenções promocionais em resenhas de livros ou de filmes, relatórios gerenciais, brochuras de uma companhia ou em advertoriais. Muitos desses gêneros podem frequentemente atuar como membros de outras colônias, como o caso de relatórios gerenciais, cuja principal função está relacionada com o planejamento estratégico de uma empresa.

Nas colônias de gêneros, novos membros podem ser adicionados, como também é possível que, com o tempo, o status de certos membros ou o próprio gênero possa ser mudado, desenvolver-se ou até mesmo tornar-se obsoleto. O membro da colônia pode também ser exibido em um continuum em termos de grau e natureza de apropriação de elementos promocionais. Propagandas, cartas de promoção de vendas, anúncios de trabalho e sinopses de livros, dado o propósito comunicativo inerente a cada um deles, são alguns dos membros primários da colônia de gêneros promocionais, ao passo que resenhas de filme, catálogos de viagem, campanhas públicas, propostas de concessão e vários outros desse tipo são membros secundários. Gêneros híbridos como resenhas de livro, relatórios anuais e de empresas, brochuras de companhia, advertoriais, etc., que são parcialmente promocionais, parcialmente informativos ou opinativos, devem ser considerados somente membros periféricos da colônia. Entretanto, muitos desses membros secundários da colônia podem ser membros primários de outra colônia, como no caso de relatórios anuais de uma empresa, que é um membro primário legítimo de uma colônia de gêneros de reportagem.

Em síntese, uma colônia de gêneros pode ser compreendida como uma confluência de gêneros intimamente relacionados e que se sobrepõem, algumas vezes no interior de, mas frequentemente através de, comunidades de discurso. (Bhatia, 2002Bhatia, V. K. (2002). Applied genre analysis: a multi-perspective model. Ibérica 4. http://www.aelfe.org/documents/text4-Bhatia.pdf.
http://www.aelfe.org/documents/text4-Bha...
, p. 10). Embora inter-relacionados, eles não respeitam necessariamente fronteiras e domínios disciplinares. Os gêneros do domínio da publicidade constituem-se de formas primárias, como anúncios publicitários e cartas de promoção de vendas. Entretanto um número expressivo de gêneros, como resenhas e relatórios, pode ser agregado a essa colônia como membros secundários, embora estes façam parte também de outros domínios discursivos como gêneros primários. Essa compreensão de colônia de gêneros será crucial para a análise do gênero forro de bandeja de fast-food em destaque neste artigo.

3. Percurso metodológico

O presente artigo fundamenta-se nos pressupostos da Linguística Aplicada e resulta de reflexões sobre o funcionamento sociodiscursivo do gênero promocional forro de bandeja de fast-food. Sua natureza é a pesquisa aplicada, cujo objetivo é gerar conhecimentos para aplicação prática. O procedimento de análise utilizado considerou uma combinação dos dois procedimentos propostos por Swales (2004Swales, J. M. (2004). Research Genres: explorations and applications. New York: Cambridge University Press.): o textual e o situacional. Ressaltamos a importância da Linguística Aplicada enquanto uma ciência da linguagem responsável pela realização de pesquisas vinculadas às práticas sociais mediadas pelo uso da linguagem. A pergunta-chave que conduziu à formulação do problema foi: como se processa o funcionamento sociorretórico do gênero forro de bandeja de fast-food na dinâmica das práticas de linguagem? A hipótese subjacente é que, embora distinto em termos de propósito comunicativo na sua comunidade discursiva de origem, cada gênero mesclado no forro de bandeja de fast-food contribui para a formação de uma colônia de gêneros e para o alcance de um objetivo maior de natureza promocional.

O objetivo geral desta pesquisa foi refletir sobre o funcionamento sociorretórico do forro de bandeja de fast-food, observando os propósitos comunicativos e os movimentos retóricos de cada gênero e como se opera a mesclagem entre eles de modo a constituir uma colônia de gêneros de natureza promocional. Para tanto, foram elencados os seguintes objetivos específicos: a) refletir sobre aspectos cruciais dos gêneros discursivos, no que tange à sua categorização, propósitos comunicativos e comunidade discursiva; b) compreender o conceito de colônia de gêneros e sua circulação social; c) analisar o gênero forro de bandeja de fast-food, considerando seu valor promocional e os movimentos retóricos dos gêneros constelares. Os resultados sinalizam a veracidade da hipótese aventada, no que respeita aos propósitos comunicativos particulares de cada gênero, bem como a contribuição de cada um deles para o alcance de um objetivo maior, de natureza promocional. A pesquisa se justifica, principalmente por nos possibilitar a utilização de uma categoria de análise voltada para a compreensão de relações complexas estabelecidas entre diferentes e diversos gêneros do discurso profissional, mais especificamente do domínio discursivo publicitário.

4. Apresentação e análise dos dados

4.1. O forro de bandeja de fast-food do McDonalds

A primeira impressão que se tem ao lidar com o nome ‘forros de bandeja de fast-food’ é a de que eles essencialmente exercem um papel de proteção, cuidado e higiene em relação ao alimento servido, podendo também funcionar como peça de decoração. Para além dessas funções, os forros de bandeja têm sido utilizados preponderantemente com finalidades propagandísticas, que permitem às cadeias de lanche promover o produto, bem como apresentar informações relevantes e educativas junto ao público consumidor.

Santiago Blanco, Chief Marketing and Digital Officer da Arcos Dorados, máster franqueada do McDonald’s em toda América Latina, observa que o advento dos smartphones vem provocando uma mudança de comportamento dos clientes na hora dos lanches, que acabam usando o aparelho para o trabalho ou entretenimento enquanto se alimentam. Atenta a essa realidade, a McDonald’s tem investido em novas formas de diversificar e melhorar a experiência dos clientes que frequentam os restaurantes da rede. Uma delas, divulgado pelo site Adnews, é a criação de um projeto de parceria entre a McDonald’s e a Spotify para a criação do FrieList. A partir de um código presente na lâmina de papel - modo de designação dos forros de bandeja pela McDonalds - o cliente poderá acessar o perfil FrieList no Spotify e ouvir músicas a partir de playlists temáticas, durante a sua refeição.

Esse modo de configuração discursiva observado nos forros de bandeja de fast-food permite-nos identificá-los como uma espécie de gênero de discurso que absorve em si diversos e diferentes gêneros. Estes isoladamente cumprem propósitos sociorretóricos distintos, mas, na mescla, apresentam um caráter côngenere principalmente em função do público consumidor ao qual se destinam e do objetivo maior, que é a promoção de produtos e serviços. Assim, os forros de bandeja de fast-food, mais que um simples recurso usado como peça decorativa ou para a proteção e a higienização dos recipientes, atualmente funcionam como um recurso midiático que cumpre uma importante e poderosa estratégia de persuasão. Esse olhar investigativo nos leva a refletir sobre as funcionalidades sociorretóricas desse gênero, bem como sobre os seus aspectos multimodais constituintes.

Feitas tais considerações, apresentamos a seguir um forro de bandeja da McDonald’s, objeto de nossa análise. A imagem seguinte constitui o anverso do forro:

Figura 1
Lâmina de papel McDonalds - anverso

O anverso desse forro de bandeja traz impresso um jogo da Turma da Mônica, em que o consumidor participante é estimulado a encontrar o Sansão, o coelhinho da Mônica. O jogo é apresentado em quadrinhos, com cores fortes e chamativas, os quais alternam os personagens da Turma da Mônica - Mônica, Cascão, Cebolinha e Magali - com onomatopeias muito recorrentes nas revistinhas da Mônica, entre as quais ganham destaque o “pof”, que sinaliza a surra que a Mônica costuma dar nos personagens Cebolinha e Cascão; bem como o “nhac!”, que expressa a voracidade com que a Magali costuma devorar o seu lanchinho. Intercalada entre as personagens e as onomatopeias, os participantes também vão encontrar a casinha do McLanche Feliz, uma peça publicitária da McDonalds que faz muito sucesso entre a criançada principalmente por conter surpresinhas, que na verdade constituem mais uma estratégia promocional dessa cadeia de sanduíches. O pretenso jogo, na verdade, alia diversão e publicidade como forma de cativar o público consumidor.

No canto direito da página e sobreposto ao jogo, encontra-se um informe publicitário da Turma da Mônica, dividido em duas partes: a primeira delas constitui o convite ao consumidor para participar do jogo e ajudar a encontrar o Sansão. A solução do jogo aparecerá no lado esquerdo do forro, em fonte pequena quase imperceptível e de modo invertido. A segunda parte expressa um convite à família para acessar o App McDonalds e clicar em livros da Turma da Mônica, que apresentam sons divertidos destinados a dar vida às histórias. Separado por um traço, o pai, cliente usuário das tecnologias digitais, é convidado a baixar o aplicativo para o filho. Essa ferramenta encontra-se disponível na App Store e na Google Play, cujas logomarcas acompanham o convite. Por fim, na parte inferior do forro, ainda no lado direito, novamente aparece a casinha do McDonalds acompanhada da hashtag #McLancheFeliz.

Apresentamos abaixo o verso do forro de bandeja:

Figura 2
Lâmina de papel McDonalds - verso

No verso do forro, é apresentada a tabela nutricional dos produtos constantes do menu do McDonalds: bebidas, sanduíches, acompanhamentos, sobremesas, molhos e café da manhã. Agregada à tabela nutricional, mas separada dela na parte de baixo, no canto direito, o consumidor poderá consultar a referência de ingestão diária (adulto), seguida de observações que remontam tanto à tabela quanto ao valor diário de referência. Também será encontrada uma chamada para o site da McDonalds, onde o cliente terá acesso a dicas para uma vida saudável. Mais adiante, aparece a logomarca e o site da empresa FSC, fabricante da lâmina de papel, e a logomarca do McDonalds. Os textos intercalam cores cinza e branco e ainda fontes destacadas ora em negrito, ora em branco, com títulos e subtítulos legíveis e as demais informações em fontes pequenas, às vezes quase ilegíveis.

4.2. O forro de bandeja de fast-food do McDonalds: a constituição de uma colônia de gêneros

O gênero discursivo forro de bandeja de fast-food da McDonalds, em sua macro-organização, visa a atingir um segmento de mercado constituído de famílias de classe média a alta, com apelo especial para as crianças. O forro em análise apresenta como principais objetivos comunicacionais: promover a marca e os produtos da cadeia de fast-food McDonalds; promover revistas e livros da Turma da Mônica, nos formatos físico e digital; informar sobre os valores nutricionais dos alimentos constantes do menu da McDonalds. Também ajuda a fixar as marcas AppStore, Google Play e FSC Brasil. Sua estrutura composicional mescla / integra / contém / é constituída de três gêneros principais, quais sejam: o jogo de esconde-esconde, o informe publicitário da Turma da Mônica e a tabela nutricional da McDonalds. Essa confluência de gêneros, que aparecem mesclados, contíguos, sobrepostos ou no verso do forro, possibilita-nos conceber e visualizar a seguinte colônia de gêneros:

Figura 3
Colônia de gêneros - lâmina de bandeja do McDonalds

Essa configuração permite-nos compreender melhor o conceito de colonização proposto por Bhatia (2002Bhatia, V. K. (2002). Applied genre analysis: a multi-perspective model. Ibérica 4. http://www.aelfe.org/documents/text4-Bhatia.pdf.
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). Observadas as considerações teóricas feitas por esse pesquisador, o forro de bandeja é um membro primário dos gêneros promocionais, enquanto os demais, que são provenientes de comunidades discursivas distintas, seriam membros secundários integrados a ele. Esses membros secundários, ao serem incorporados pelo membro primário, transformam-se no interior deste e passam a atuar em função dele, como parte constituinte e, portanto, inseparável. Altera-se, dessa forma, a sua natureza intrínseca relacionada à sua esfera de atuação, aos propósitos comunicativos originais, ao contexto de uso, ao relacionamento entre os sujeitos e aos controles expressos pelo público destinatário, entre outros aspectos.

É certo que, ao assimilar e transmutar os demais gêneros, o forro de bandeja simultaneamente acaba sendo afetado por eles, reconfigurando-se. Isso não significa que ele tenha se transformado em um novo gênero, visto que ele conserva, em sua estrutura composicional, temática e/ou estilística, traços de sua constituição original. Essa constatação nos faz compreender as duas características intrínsecas aos gêneros: sua estabilidade e sua tendência à inovação. O fato é que a dinâmica sociointeracional que impulsiona as atividades linguageiras - ao mesmo tempo em que é impulsionado por elas - requer que o gênero primário transcenda suas abordagens verbais iniciais e absorva particularidades constituintes de outros gêneros.

O mesmo vale para os gêneros secundários incorporados ao forro de bandeja, que também se afetam uns aos outros. Embora mantenham algumas de suas características particulares, provenientes da sua comunidade discursiva de origem, ao serem mesclados no forro de bandeja, eles adquirem uma padronização uniforme e harmônica com este e passam todos, agora em uníssono, a apresentar uma identidade sociorretórica ímpar. Novas possibilidades de leitura são apresentadas, dada a inter-relação entre os textos e a presença de diferentes recursos multimodais, que favorece a construção de novos sentidos. Do usuário, são exigidas novas competências de leitura em virtude da alteração do contexto, da confluência de propósitos comunicativos e do pacto de leitura projetado. O forro de bandeja em análise, portanto, caracteriza-se por uma forma híbrida, que mescla diferentes linguagens e perspectivas semânticas e axiológicas, bem como compartilham no cerne dessa peça publicitária propósitos comunicativos comuns articulados por diferentes comunidades discursivas.

A lâmina de papel nos possibilita visualizar a invasão da integridade de um gênero por outro, que vai culminar em uma forma híbrida. A parceria entre as empresas McDonald’s e a Maurício de Sousa Produções para divulgação de seus produtos resultou em uma peça promocional que mescla um ícone de campanhas promocionais da McDonalds, a casinha McLanche Feliz e a hashtag #McLanche Feliz, personagens e linguagem característicos das revistinhas da Turma da Mônica, bem como a organização temática e composicional de um jogo de esconde-esconde, comumente encontrado em revistinhas infantis.

Embora o principal propósito comunicativo do forro de bandeja seja a promoção de produtos e serviços, outras diferentes intenções concorrem com ele, formando desse modo um conjunto de propósitos comunicativos. Se, por um lado, a configuração discursiva em forma de um jogo de esconde-esconde parece ter um objetivo maior de diversão e distração, por outro fica evidente a fixação das marcas e produtos das empresas anunciadas, o que reforça o caráter de um texto promocional. Riou (2002Riou, N. (2002). Pub Fiction. 2. ed. Paris: Organization.), ao comentar as novas tendências publicitárias na sociedade pós-moderna, observa que o produto perdeu o seu protagonismo e não é mais o herói das campanhas publicitárias. Estas devem divertir, em vez de repetir exaustivamente a mesma mensagem. É como se o receptor fosse um cúmplice das ideias da peça publicitária, uma vez que ele já está habituado às mídias e possui referências comuns ao realizador no que respeita ao produto, serviço ou valores veiculados.

Em seu aspecto gráfico, o gênero informe publicitário Turma da Mônica, na primeira parte, divide-se em quatro segmentos discursivos expressos na seguinte ordem: o título “Informe Publicitário”; a logo Turma da Mônica; o convite por meio de uma pergunta ao usuário, público majoritariamente infantil, para participar do joguinho de esconde-esconde; e uma imagem da personagem Mônica lendo um livro. Na segunda parte, os enunciados dirigem-se exclusivamente aos pais, motivando-os e instruindo-os a baixar o APP McDonald’s por meio do qual os filhos terão acesso a histórias divertidas. Indicam também os aplicativos das lojas virtuais em que o APP McDonald’s poderá ser encontrado. Sequências apelativas e injuntivas se mesclam na constituição do discurso promocional. Como se observa, o público-alvo deverá ter certo grau de letramento digital para poder acessar os comandos expressos na sequência injuntiva.

Segundo Figueiredo (2011Figueiredo, C. (2011). Redação Publicitária: sedução pela palavra. São Paulo: Cengage Learning., p. 87) o “informe publicitário é um tipo de anúncio bastante frequente. Trata-se de uma propaganda que se utiliza da diagramação típica de determinado veículo, de forma que o anúncio aparente ser uma matéria de conteúdo editorial”. Seu uso cumpre os seguintes propósitos, entre outros: apresentar e explicar ideias complexas relacionadas a um produto ou serviço, anunciar a solução para um problema, reforçar valores da marca e da empresa e gerar confiança do consumidor. A própria constituição do nome a partir dos vocábulos informe e publicitário sinaliza a hibridização de dois gêneros provenientes de domínios discursivos distintos, que, mesclados, apontam para ações e propósitos comunicativos em comum. Nesse sentido, o informe publicitário seria uma evolução do anúncio publicitário e do editorial, gêneros que, cada qual isoladamente, continuam mantendo suas características peculiares, mas que, mesclado, constituem uma nova espécie com organização temática, composicional e estilística particular.

Na lâmina de bandeja em questão, o informe é assinado pela Maurício de Souza Produções e o aplicativo para o acesso às histórias é da McDonald’s. Além disso, a indicação dos aplicativos App Store e Google play salienta a importância e o estreitamento de parcerias comerciais para o alcance das finalidades propostas. Entretanto, os movimentos retóricos utilizados nesse informe publicitário sinalizam outras finalidades comunicativas, entre elas a criação e desenvolvimento de hábitos de leitura pelo público infantil; e a promoção do lazer em família, como forma de estreitamento dos laços afetivos. Com isso, além dos produtos anunciados, a MCDonald’s e Maurício de Souza Produções buscam promover suas ações de responsabilidade social e vender uma imagem de empresas cidadãs. Observa-se, então, a confluência de propósitos comunicativos de duas organizações empresariais que se diferenciam pelo ramo de negócio e que, portanto, filiam-se a comunidades discursivas distintas: uma com abrangência no segmento da alimentação e outra no segmento do lazer.

A tabela nutricional é um documento que apresenta aos consumidores informações sobre as propriedades e as composições nutricionais contidas nos alimentos, tais como: quantidade de vitaminas, proteínas, fibras, açúcares, sódio e carboidratos. Coelho (2019Coelho, K. S. (2020). Tabelas de composição de alimentos (TCA), ferramentas computacionais e suas características. https://www.teknisa.com/consultoria-e-servicos/tabelas-de-composicao-de-alimentos/.
https://www.teknisa.com/consultoria-e-se...
) observa que os “dados de composição de alimentos (CA) são elementos essenciais para ações nas áreas de nutrição, saúde e educação, agricultura, indústria, marketing de alimentos, podendo ser utilizados por diferentes profissionais.” Ela é utilizada para diferentes propósitos entre os quais podemos citar nutrição clínica, geração de novos alimentos, rotulagem nutricional de alimentos e campanhas de publicidade.

Ao apresentar a tabela nutricional e a referência de ingestão diária (adulto) no verso do forro da bandeja, a McDonald’s cumpre uma determinação da Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no sentido de divulgar informações confiáveis aos consumidores e incentivá-los a uma dieta saudável e menos calórica. As observações e a chamada para o acesso ao site, onde os clientes encontrarão dicas para uma vida saudável não só reforçam o caráter informativo e científico da tabela, como também chamam a atenção para a qualidade dos produtos e para as ações de responsabilidade social da empresa. Observa-se, dessa forma, interesses distintos, mas intercomplementares, partilhados por instituições filiadas a comunidades discursivas distintas.

A linguagem da tabela é reelaborada para adequar-se aos interesses do público-alvo. Termos científicos são mesclados a outros de maior familiaridade do consumidor, como forma de mostrar a idoneidade da empresa e a preocupação com a saúde dos clientes. Essa confluência de propósitos comunicativos presentes no gênero tabela nutricional obsta que ele seja objeto de interesse e de circulação exclusivo de uma comunidade discursiva única, já que ela pode filiar-se às esferas da saúde, comercial, marketing, entre outras. Além disso nos leva a reconhecer que a questão do gênero não se resume estritamente à sua forma, devendo também ser consideradas a sua funcionalidade e organicidade.

O quadro a seguir nos oferece um panorama dos gêneros discursivos que constituem a colônia de gêneros Forro de Bandeja de Fast-food e os principais movimentos retóricos que configuram o caráter persuasivo desse texto promocional.

Quadro 1
Movimentos retóricos do forro de bandeja Mc Donalds

Informe publicitário, jogo de esconde-esconde e tabela nutricional. Os gêneros de discurso incorporados e mesclados no forro de bandeja da McDonald’s formam neste e com este uma colônia de gêneros. Ressaltamos que a separação dos gêneros e dos propósitos comunicativos inerentes a cada um deles cumpre valor meramente explicativo, visto que, na mescla, eles respondem pela globalidade do forro de bandeja em seu novo formato. Assim, espera-se que todos as finalidades comunicativas sejam alcançadas, para o sucesso de cada uma das instituições em particular e do empreendimento como um todo.

É certo que nem todo forro de bandeja apresentará rigorosamente essa configuração discursiva. Embora o gênero mantenha certas regularidades, a cristalização dos seus aspectos temáticos, composicionais e estilísticos o reduziria a uma proposição formalista e pouco interessante do ponto de vista pragmático. Ressaltamos que os gêneros se caracterizam por sua criatividade, maleabilidade e dinamicidade. Eles se adaptam e se transformam em conformidade com as necessidades dos membros da comunidade discursiva, o contexto de uso e os propósitos comunicativos, ou seja, em decorrência de uma perspectiva sócio-histórica.

Dadas as considerações de como as colônias de gêneros são organizadas em decorrência dos propósitos comunicativos de uma ou mais comunidades discursivas, podemos compreender esse fenômeno em cinco aspectos principais:

  1. Os gêneros situam-se em contextos sociorretóricos específicos e manifestam permanente conflito pela estabilidade ou pela inovação;

  2. Os gêneros secundários são incorporados e mesclados na estrutura composicional do gênero primário;

  3. O gênero primário transmuta os gêneros secundários e simultaneamente é transmutado por eles;

  4. A colônia de gêneros serve a um conjunto de propósitos comunicativos e, havendo um principal, os demais atuarão como complementares;

  5. As inovações não necessariamente implicam a criação de um novo gênero, que embora modificado, mantém a originalidade de suas principais características.

Importante destacar o caráter inter e transdisciplinar, multifacetado e complexo dos gêneros que integram uma colônia. As transformações tecnológicas assim como o processo de globalização requerem um nova mentalidade e atitude em relação aos negócios e modelos de administração e gestão. É fundamental que as organizações invistam no diálogo entre diferentes métodos que constituem campos específicos de conhecimento (interdisciplinaridade) e, para além disso, busquem integrar esse conhecimento a outros processos construídos socio-historicamente, estabelecendo uma ampla inter-relação entre diferentes segmentos culturais e científicos, de tal forma que desapareçam os limites entre eles, originando-se daí um macrossegmento (transdisciplinaridade).

As comunidades de discurso produzem modelos de ação comunicativa que se estabilizam e que circulam na sociedade com propósitos e efeitos específicos. Ações comunicativas distintas advindas de diferentes domínios, como o publicitário, o literário, o jornalístico e o científico, podem integrar-se, transformar e originar novos gêneros, em conformidade com a esfera de ação e os interesses que os diferentes segmentos se propõem a atingir. O forro de bandeja de fast-food em análise elucida bem essa liquefação de distintos gêneros discursivos e a transformação do gênero com amplitude comunicativa diferenciada e abrangente, com vistas a atender os propósitos comunicativos de comunidades discursivas distintas.

A inter-relação entre alimentação, lazer, leitura, cultura, bem como a interconexão de ambientes físicos e virtuais contribuem para uma percepção mais holística dos sujeitos e novas formas de interação. É certo que também há necessidade de refletir criticamente sobre os efeitos da publicidade sobre os consumidores, considerando-se o principal objetivo das campanhas e ainda as reais necessidades dos sujeitos. A reconfiguração dos modos de ser e pensar dos sujeitos exige a substituição do processo de atomização dos saberes compartimentados pela adoção de um cenário epistemológico que privilegie a transversalidade dos conhecimentos, os procedimentos criativos, a heterogeneidade e a multirreferencialidade.

Em suma, a adoção do conceito de colônia de gêneros e a reflexão sobre seu funcionamento empírico nos fazem compreender a dinamicidade dos eventos comunicativos, que estão relacionados ao discurso e às ações linguageiras dos sujeitos, ao seu contexto de produção e recepção, aos propósitos comunicativos compartilhados, à maleabilidade e transformação do gênero em sua prototipicidade, ao sistema de regras acordado pelos usuários da língua. Além disso, requer maior reflexão sobre como os gêneros perpassam e integram diferentes comunidades de discurso, no interior dos quais eles se moldam, expandem-se e se modificam em função dos interesses e ideologias dos seus usuários. Essas considerações nos apontam para a estreita interrelação entre a evolução das ações sociais e natureza dos gêneros do discurso. Na medida em que a sociedade se transforma, os gêneros do discurso, independente de sua natureza, também evoluem como resposta às necessidades imediatas dos sujeitos.

5. Considerações finais

A compreensão e análise do conceito de colônia de gêneros, nesta pesquisa, é de fundamental importância, se levarmos em conta que os gêneros não devem ser estudados de forma isolada e estanque, dado que, nas esferas sociais em que circulam, eles estão sempre em contato com outros gêneros, com os quais dialogam, intercruzam e se transformam em consonância com as necessidades comunicativas e a criatividade dos usuários.

Destacamos aqui o aspecto maleável e adaptativo dos gêneros, que põe em relevo a complexidade das ações linguísticas e discursivas por eles mediadas. A análise da lâmina de bandeja da McDonald’s evidencia tal complexidade, visto que ela constitui uma colônia de gêneros, originária da mesclagem de diferentes gêneros, que culmina em uma forma híbrida. Estes podem ser estudados a partir de uma comunidade discursiva específica e ainda sob uma perspectiva transdisciplinar, observados os propósitos e as atividades comunicativas dos diferentes segmentos profissionais e empresariais que a comunidade de gêneros integra.

O enfoque apresentado abre possibilidades para novas investigações sobre colônias de gêneros, tanto na esfera promocional quanto em outros domínios discursivos. Em especial, chama-nos à atenção a necessidade de aprofundar as pesquisas sobre os movimentos retóricos constituintes dos gêneros promocionais, observando principalmente seu funcionamento no interior de diferentes colônias de gêneros. Destacamos ainda a importância de analisar os aspectos multimodais constituintes da colônia de gêneros, observando como eles convergem para propósitos comunicativos específicos de um determinado gênero bem como para um propósito comunicativo comum aos demais gêneros integrantes da colônia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2020
  • Aceito
    17 Set 2020
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