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Gente de bem protesta aos domingos: Uma análise de imagens postadas com a ‘hashtag’ #dia26euvou

Good People Protest on Sundays: An Analysis of Images Posted with the Hashtag #dia26euvou

RESUMO

Após a eleição presidencial de 2014, nota-se uma ampliação da polarização entre direita e esquerda no Brasil. Por estarem relacionados às gestões do presidente Luís Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff, os ideais de esquerda passaram a ser preteridos. O presente artigo analisa a construção de uma narrativa que deslegitima os protestos da esquerda, classificando-os como hostis. Para as finalidades aqui pretendidas, usamos o caso do protesto de 26 de maio de 2019. Seguimos a hashtag #dia26euvou por um período de 24 horas, analisando imagens que revelam o antagonismo em relação às manifestações de esquerda.

Palavras-chave:
direita; esquerda; hashtag; manifestação; narrativa

ABSTRACT

After the 2014 presidential election, there was a split between right and left in Brazil. Once they were related to the actions of President Luís Inácio Lula da Silva and President Dilma Rousseff, the leftist ideals become deprecated. Good People Protest on Sundays: An Analysis of Images Posted with the Hashtag #dia26euvou analyzes the construction of a narrative that delegitimizes the protests of the left tagging them as hostile. For the purpose intended here, we used the case of the protest of May 26, 2019 and followed the hashtag #dia26euvou for a 24-hour period, analyzing the posted images that revealed the antagonism with left-wing manifestations.

Keywords:
right; left; hashtag; demonstration; narrative

Introdução

Desde 2013, o Brasil tem sido convulsionado por manifestações de rua. Embora tenham começado a partir de protestos em torno do aumento de tarifas no transporte público da cidade de São Paulo (BASTOS, RECUERO e ZAGO, 2014BASTOS, Marco Toledo; RECUERO, Raquel da Cunha; ZAGO, Gabriela da Silva. “Taking Tweets to the Streets: A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”. First Monday, vol. 19, n. 3, pp. 1-20, 2014.), várias manifestações logo tomaram o país, levando ao nascimento de diferentes movimentos no contexto das ruas que passaram a ser reconhecidos no ambiente digital através de hashtags, sendo #vemprarua a mais comum delas. Ao longo dos anos, e mais notadamente no decorrer da eleição presidencial de 2014, evidenciou-se no país uma ampliação da polarização entre ideais genericamente considerados de direita, associados ao liberalismo econômico, ao conservadorismo e ao “lavajatismo”, lógica que surge com a operação anticorrupção conhecida como Operação Lava Jato, e ideais considerados de esquerda, associados por sua vez, a pautas mais progressistas, aos direitos humanos, a movimentos sociais e às minorias.

Por estarem relacionados às gestões do presidente Luís Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff, cujo segundo mandato foi interrompido em um processo de impeachment considerado como golpe por 48% dos brasileiros (MENDONÇA, 07/05/2018), os ideais de esquerda passam a ser fortemente hostilizados e preteridos. Além disso, não é possível desconsiderar que a Operação Lava Jato e a posterior prisão do ex-presidente Lula da Silva atrelam a esquerda brasileira - ou, pelo menos, a parte dela que se alia ao Partido dos Trabalhadores (PT) - ao estigma da corrupção.

Certamente, um determinado nível de polarização política entre direita e esquerda nunca deixou de existir no Brasil, mesmo após o final da Guerra Fria. Contudo, com políticas de bem-estar social e um longo período de gestões de centro-esquerda (governo Lula, de 2003 a 2011, e governo Dilma, de 2011 a 2016), houve uma conivência maior entre os dois ideais, com políticas que afagavam tanto direita quanto esquerda. O presente artigo visa analisar a construção de uma narrativa que deslegitima os protestos da esquerda, colocando-os como hostis. Essas são imagens que habitam o imaginário conservador e são, em tempos de redes sociais, amplificadas, ganhando mais alcance e circulação.

Para as finalidades aqui pretendidas, usamos o caso do protesto de 26 de maio de 2019, em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, e a contraposição que os manifestantes desse evento firmam em relação àqueles que haviam protestado, em 15 de maio de 2019, contra os cortes na educação que o presidente havia anunciado. Para isso, acompanhamos a hashtag #dia26euvou por um período de 24 horas e analisamos imagens que revelavam o antagonismo estabelecido em relação às manifestações de esquerda.

‘Nós’ versus ‘eles’: a esquerda depravada

Quando Dilma Rousseff, do PT, venceu por pouco Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), seu principal adversário político e ideológico, no pleito presidencial de 2014, a polarização que se avultava desde as Jornadas de Junho, de 2013, ficou evidente. É importante mencionar que a semente do dissenso estava presente nas Jornadas, dada a multiplicidade de demandas que emergiram durante seu transcurso. Passado o estágio inicial de questionar o aumento das tarifas de ônibus, surgiram reivindicações difusas, que de um modo geral tratavam da deterioração das condições econômicas do país em relação a anos anteriores, sentida especialmente pela classe média, da corrupção e dos gastos com os eventos de grande porte realizados no país (BASTOS, RECUERO e ZAGO, 2014BASTOS, Marco Toledo; RECUERO, Raquel da Cunha; ZAGO, Gabriela da Silva. “Taking Tweets to the Streets: A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”. First Monday, vol. 19, n. 3, pp. 1-20, 2014.). Mas, se observarmos os cartazes utilizados pelos manifestantes, aqui e acolá podemos notar pautas minoritárias relativas a raça, gênero e populações indígenas, indicando um ambiente confuso e mesmo dissonante. Inicialmente, os protestos de rua que foram gatilho para as Jornadas foram organizados pelo Movimento Passe Livre, um movimento social urbano que originalmente defendia a tarifa zero nos transportes coletivos, um ideal relacionado ao Estado de bem-estar social e, de modo mais amplo, à esquerda.

Muito rapidamente, os protestos identificados com as hashtags #vemprarua e #ogiganteacordou serviram para que a população genericamente expressasse suas demandas anticorrupção. Essas demandas, bastante difusas, foram cooptadas pela mídia corporativa, por partidos como o PSDB e por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e seguiram um caminho conservador, abandonando completamente a pauta dos direitos urbanos. Mais do que isso, rechaçaram-na e se agarraram à questão da anticorrupção e, por extensão, ao antipetismo, movimento iniciado em 2005 com o chamado Mensalão (RODAS, 10/04/2018) e posteriormente alavancado pela Operação Lava Jato. É nesse contexto, já perto de 2015, que começam os protestos pró-impeachment.

Especificamente sobre o período pós-eleitoral, ainda em 2014, Kingstone e Power (2017KINGSTONE, Peter; POWER, Timothy. Democratic Brazil Divided. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2017.) dizem:

O segundo turno entre Aécio e Dilma foi a eleição mais disputada da história brasileira moderna, com Dilma vencendo por apenas 3,28%. A proximidade dessa margem e o fato de Aécio ter exigido (e não ter obtido) a recontagem dos votos lançaram uma sombra de polarização sobre o eventual processo de impeachment 2015-2016 (Idem, ibid., p. 18)1 1 Tradução da autora. .

Os autores chamam atenção para o fato de que essa eleição confirmou novos padrões de voto para presidente no Brasil. Após anos de políticas de bem-estar social, a classe média tradicional encontrou razões para votar contra o PT, principalmente porque os seus rendimentos passaram a crescer numa taxa menor do que os das classes mais pobres, mas também numa taxa menor do que os das classes mais ricas (Ibid.).

Essas manifestações foram desencadeadas principalmente pelo aumento dos preços das passagens do transporte público na cidade de São Paulo, embora tenham evoluído de formas muito diversas, abrangendo um amplo leque de reclamações e queixas. Dentro de um ciclo mais amplo e internacional de protestos, milhares de brasileiros marcharam nas ruas de dezenas de cidades e inundaram as redes sociais online com expressões de indignação e demandas por mudanças. Em seu pico, em 20 de junho, pelo menos 1,4 milhão de brasileiros se manifestaram em mais de 120 cidades do país (FLECHTER, 2017, p. 2)2 2 Tradução da autora. .

Daí o otimismo diante das manifestações de rua no Brasil. Segundo Gohn (2019GOHN, Maria da Glória. Participação e democracia no Brasil: Da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis: Vozes, 2019., p. 17), embora as reivindicações das Jornadas de Junho sejam muito difusas, a indignação com a corrupção é recorrente. Efetivamente, essa indignação tem sido transversal e aparece como narrativa não só nas Jornadas, mas também nas manifestações pró-impeachment, em toda a campanha eleitoral a favor de Bolsonaro e nos seus primeiros meses de governo. Indo além, a narrativa anticorrupção tem sido recorrente na história brasileira no discurso da direita. Vide, por exemplo, a campanha eleitoral de Fernando Collor de Melo, em 1989 (O GLOBO, 18/12/1989).

Ainda vai levar tempo até que estudiosos de diversas áreas compreendam os processos político-sociais e os impactos dos acontecimentos históricos das Jornadas de Junho até pelo menos as eleições de 2018. Mas é fato que a eleição de Jair Bolsonaro para presidente da República evidencia a polarização ideológica em curso desde então.

O impeachment em si desencadeou o processo. Quando Dilma Rousseff foi eleita em 2014, a população brasileira também elegeu o Congresso mais conservador desde a ditadura militar (SOUZA e CARAM, 06/10/2014). Isso pode ser notado pela composição de diversas bancadas. A bancada sindical eleita foi a menor desde 1988, com apenas 44 sindicalistas. Em contrapartida, a bancada empresarial atingiu o expressivo número de 221 deputados. A bancada da bala saltou de 36 para 102 congressistas e a bancada ruralista passou a ter 257 deputados (DIAP, 16/11/2018)3 3 Há naturalmente sobreposições e, por vezes, diferentes nomenclaturas. Ficamos aqui com a divisão de bancadas mais usual, conforme proposto por Congresso em Foco (19/02/2016) e Diap (2018, p. 1). .

Foi justamente essa assincronia entre Executivo e Legislativo - o Executivo ocupado pela esquerda e o Legislativo, majoritariamente pela direita - que viabilizou muito mais do que a Operação Lava Jato: a articulação e votação do próprio impeachment. Em última instância, foram representantes do povo, democraticamente eleitos, que destituíram a presidenta, também democraticamente eleita. Pode-se mesmo alegar que havia um clamor nas ruas, representado por manifestações populares para que isso acontecesse (GOHN, 2019GOHN, Maria da Glória. Participação e democracia no Brasil: Da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis: Vozes, 2019., p. 18).

Antes do impeachment, também havia manifestações a favor de Dilma Rousseff. Mas elas não foram ouvidas. Ao avançar um pouco no tempo, este texto pode ajudar a compreender o motivo, ao menos em termos de narrativa, dos ouvidos moucos às vozes dissonantes. Já durante a gestão de Temer, em 22 de setembro de 2017, o economista e articulista Rodrigo Constantino escreve:

Não são as feministas radicais que ofendem os religiosos quando enfiam crucifixos no ânus em praça pública, claro, ou quando esfregam as tetas na cara de padres. Isso é “protesto legítimo”, naturalmente. A ofensa vem de quem quer simplesmente resguardar as crianças da libertinagem imposta pela galera engajada, ou de quem luta pelo simples direito de dizer que prefere ter um filho heterossexual, o que hoje já é considerado absurdo e crime pela ótica maluca desse pessoal, para quem todos tinham que ser indiferentes quanto à questão ou até mesmo achar lindo e fofo um filhinho que aos 3 anos prefere boneca e depois, aos 10, balé (CONSTANTINO, 22/09/2017).

E, mais adiante, numa profecia que ele mesmo ajudou a concretizar:

Depois Trump vence a eleição, ou quem sabe Bolsonaro no Brasil, e esse pessoal fica perplexo, horrorizado com o ‘povo’, aquele que diz representar e defender. Não seria o caso de ir efetivamente conhecer o povo antes de falar tanta besteira no jornal? (Idem).

Em 2017, começava a se desenhar o cenário para a eleição de Bolsonaro. Parte dele está na acepção de povo que Constantino propõe. Que povo? Aqui está implícita e tensionada a oposição “nós” versus “eles”, que aparece desde o impeachment de Rousseff. É o mesmo par direita versus esquerda, porém com contornos morais, expressos pela ideia de “cidadão de bem”, aquele que capta as tendências “antissistema”, “contra todos os partidos” e “contra todos os políticos” (KALIL, 2018KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018.) difundidas nos protestos. Em relatório sobre os eleitores de Bolsonaro, Kalil (Ibid., p. 14) destaca, entre outros grupos, “homens e mulheres de classe média, acima dos 35 anos, que ‘possuem família’ e se preocupam com a segurança de seus filhos e, consequentemente, o ‘futuro da nação’”.

De forma mais explícita, estabelece-se o antagonismo “nós” versus “eles” da seguinte forma: “nós” nos consideramos o grupo superior, bem informado e não alienado e “eles” são os inferiores, mal informados, ignorantes e alienados. “Nós” estamos sempre certos e “eles”, sempre errados. Trata-se aqui de uma questão de alteridade. Para a finalidade deste artigo, “nós” são os apoiadores da direita e “eles”, os da esquerda. Mas o contrário também se aplica, conforme a análise. No Brasil, a questão de “coxinhas” versus “mortadelas” (CORDEIRO, 09/03/2019), representando respectivamente a direita e a esquerda, ganhou status de briga de torcida, com forte acento em clivagens morais.

Não que os contornos morais não estivessem presentes antes. O “lavajatismo” e sua busca por heróis, identificados no então juiz Sergio Moro e no procurador Deltan Dallagnol, são impregnados de moralidade desde o princípio. Na verdade, percebe-se a Operação Lava Jato como mais do que uma operação da Polícia Federal, mas uma cruzada para reestabelecer a ordem no país. Ordem, aliás, firmada na bandeira nacional - bandeira, como bem lembram os direitistas (KALIL, 2018KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018.), que é verde e amarela e não vermelha. Apenas a título de informação, usando a ferramenta de buscas do Instagram - este mecanismo será explicado mais adiante -, identificamos, até 28 de maio de 2019, 26.381 publicações com a hashtag #nossabandeirajamaisseravermelha. Isso sem contar possíveis variações.

A partir do lavajatismo como cruzada moral, da repulsa ao pensamento de esquerda e do aparecimento de comentários como o de Constantino (22/09/2017), cria-se um arcabouço para deslegitimar também as manifestações políticas da esquerda. Voltemos à fala do articulista, que define seu espaço virtual como um “blog de um liberal sem medo de polêmica ou da patrulha da esquerda ‘politicamente correta’”, usando “politicamente correto” como algo pejorativo. Constantino fala de uma situação em que feministas teriam enfiado “crucifixos nos ânus” e “tetas na cara de padre”, além de usar o termo “protesto legítimo” com aspas. Seu uso recorrente das aspas indica ironia e enfraquece o que está sendo dito. Ademais, o articulista não situa o tal protesto em termos contextuais, de modo que parece mais estabelecer uma narrativa para dar suporte ao seu ponto de vista do que fazer um relato jornalístico ou histórico.

Há nessas narrativas, como se verá na etapa de análise, não só uma ideia de moral, mas também uma noção de controle do corpo a partir de um poder central e normatizante que deve ser exercido sobre todos os corpos e os enquadrar num determinado padrão. Isso aparece com maior ênfase sobre as minorias. O controle também aparece em certo discurso sobre o trabalho, já que a direita liberal coloca a economia e não o indivíduo no centro das sociedades e dos processos políticos.

De todo modo, no que diz respeito à moral e à demonização da esquerda, não é a primeira vez que essa narrativa aparece com força na sociedade brasileira. Nos anos 1930, já circulava no Brasil a ideia de que comunista comia criancinha (PRIORI, 2009PRIORI, Ângelo. “História e memória de comunistas no Paraná”. Revista Espaço Acadêmico, vol. 9, n. 97, pp. 131-134, 2009.). Nas marchas da Família com Deus pela Liberdade, que foram uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964, ostentavam-se cartazes como: “Verde e amarelo, sem foice e sem martelo”, “o Brasil não será uma nova Cuba”, “queremos governo cristão” (MAGALHÃES, 01/04/2014). A respeito da principal dessas manifestações, o jornal O Dia de 19 de março de 1964 trazia na capa: “Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo” (O DIA, 19/03/1964).

Em um momento em que, não só no Brasil, as tensões entre direita e esquerda voltam a se intensificar (ESTEFANÍA, 24/03/2019), a mística da repulsa é retomada com contornos contemporâneos. Se as noções de esquerda relacionadas ao comunismo são ressignificadas ao longo do tempo, a nova esquerda relacionada às minorias e aos corpos abjetos (BUTLER, 1993BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993.), interessada em mudança social e inclusão, emerge como ameaça ao pensamento conservador e ao establishment que busca normatizar pensamentos e corpos (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2007.). É como se aqueles que estivessem fora da norma relacionada às minorias e associada à esquerda tentassem romper o biopoder que tenta dominar os corpos e os manter produtivos para o trabalho e viáveis para o consumo de bens e serviços. Os corpos de direita, por assim dizer, que protestam aos domingos, estão inseridos na lógica do capital e não parecem interessados em rompê-la. Por isso, no Brasil, atualizou-se a narrativa de “o Brasil não será uma nova Cuba” para “o Brasil não será uma nova Venezuela” (SANTOS, 2019SANTOS, Marcelo Alves dos. #Vaipracuba!: A gênese das redes de direita no Facebook. Curitiba: Curitiba, 2019.), como parte do projeto liberal que contribuiu com o impeachment de Rousseff.

Em 2018, contudo, Jair Bolsonaro, que acabou sendo o candidato mais viável para o mercado, já que representava interesses conservadores relacionados ao liberalismo econômico e às ideias de ordem e propriedade (KALIL, 2018KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018.), foi eleito. Sua eleição não trouxe, nos primeiros seis meses de mandato, nem a ordem nem o progresso prometidos em campanha, e isso fez com que os brasileiros que foram às ruas entre 2013 e o pleito de 2018 praticamente parassem de protestar, tanto por uma questão de adequação e alinhamento político à eleição de Bolsonaro, quanto por não perceberem resultados nos protestos anteriormente realizados.

Analisaremos aqui imagens postadas por usuários da rede social Instagram identificadas com a hashtag #dia26euvou, que indica adesão às manifestações de rua que aconteceram no domingo, 26 de maio de 2019, em 122 cidades de 21 estados e no Distrito Federal (REDE BRASIL ATUAL, 27/05/2019). Elas se orientaram a favor do presidente Jair Bolsonaro e em oposição às manifestações de 15 de maio contra os cortes na educação. Como panos de fundo de ambas as manifestações estavam a reforma da Previdência - o primeiro grupo a favor e o segundo contra - e o antagonismo entre direita e esquerda que abordamos aqui.

Metodologia

A hashtag é uma ferramenta de indexação que permite a recuperação de dados em alguns ambientes digitais com programação específica para isso. Trata-se de uma convenção iniciar termos e frases com o uso da cerquilha (hashtag), que se torna uma espécie de localizador do termo ou palavra por ele identificado. Isso resolve, para o usuário comum, o problema do banco de dados, conforme apresentado por Manovich (2001MANOVICH, Lev. “The Database”. In: MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Massachusetts: MIT Press, 2001, pp. 218-281.). Como o autor postula, os bancos de dados permitem que se estabeleçam relações (agrupamentos) de itens individuais, cuja associação é favorecida pelas mídias digitais. No caso específico, as hashtags aglutinam itens em torno de si. Ao contrário de muitas associações feitas no digital, automaticamente realizadas pelos algoritmos, no caso das hashtags, as associações são feitas pelos usuários, que realizam os inputs - no Instagram, associando a imagem à hashtag desejada - manualmente, de acordo com seus interesses, crenças, ideologias e leituras de mundo particulares.

Acompanhamos a hashtag #dia26euvou, utilizando para isso a própria ferramenta de busca do Instagram, localizada na parte superior do aplicativo ou no navegador4 4 Disponível em: www.instagram.com . Trata-se, evidentemente, de uma ferramenta não acadêmica e que emula a experiência do próprio usuário. Além disso, ela permite a localização de todas as postagens públicas que utilizam certa hashtag. No total foram localizadas 10.251 publicações catalogadas pelos usuários com a hashtag #dia26euvou. Diante desse volume, os seguintes critérios foram seguidos para a coleta: (1) foram coletadas imagens exclusivamente em 27 de maio de 2019 e nas 24 horas subsequentes; (2) foram coletadas apenas as imagens que apresentavam menções textuais ou imagéticas referenciando a oposição entre direita e esquerda; e (3) foram eliminadas imagens repetidas e os vídeos5 5 Os vídeos foram eliminados da presente análise por exigirem uma metodologia específica, já que em sua maioria, à época da coleta (antes da popularização do aplicativo TikTok no Brasil), não tinham legendas ou textos escritos. Já as imagens repetidas foram eliminadas para não gerarem redundância pois muitos usuários de Instagram apenas replicaram conteúdos já publicados por outros sem realizarem quaisquer alterações nos mesmos. . A escolha do corpo imagético, então, considerou a viabilidade da coleta manual dos dados dentro de um conjunto (banco de dados) estabelecido pela hashtag, por meio de uma temporalidade (27 de maio de 2019 e 24 horas subsequentes) e um tema (oposição entre direita e esquerda).

Quanto ao tema, optou-se por identificar a questão unificadora do protesto, a saber: entre as múltiplas demandas apresentadas, os manifestantes esforçaram-se em demarcar certa oposição em relação àquilo que consideravam na ocasião pautas da esquerda (ESTEFANÍA, 2018), a partir da indexação (MANOVICH, 2016MANOVICH, Lev. Instagram and the Contemporary Image - Subjects and Styles in Instagram Photography (Part 1). 2016. Disponível em: http://manovich.net/index.php/projects/instagram-and-contemporary-image
http://manovich.net/index.php/projects/i...
) fornecida pela hashtag. Deve-se levar em consideração que outros recortes do mesmo corpus são possíveis. A perspectiva manual de extração de dados, como a feita aqui, limita o volume de material coletado e impõe necessariamente tais recortes, mas o mesmo se aplica a extrações automatizadas, que podem ser feitas com softwares e plataformas específicas, como o programa Gephi e a plataforma Netlytic.

Pudemos então estabelecer um recorte em um universo amplo de imagens, produzindo uma categorização. A partir do conteúdo expresso nas imagens, as categorias identificadas foram: memes (imagens, geralmente com uso de humor, que se propagam rapidamente na internet), textos (estilo captura de tela), comparações diretas entre direita e esquerda por meio de fotografias, comentários, postagens no Twitter, fotografias sem estabelecimento de comparações e charges. Naturalmente outras categorizações são possíveis. Contudo, julgou-se que essa categorização está de acordo com a bibliografia utilizada e encontra nela suporte teórico, especialmente em Bastos, Recuero e Zago (2014BASTOS, Marco Toledo; RECUERO, Raquel da Cunha; ZAGO, Gabriela da Silva. “Taking Tweets to the Streets: A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”. First Monday, vol. 19, n. 3, pp. 1-20, 2014.) e Malini (2016).

A opção por tomar as imagens como ponto de partida - considerando-se que o Instagram é uma plataforma que as privilegia - se dá porque a imagem, de acordo com Müller (2011MÜLLER, Marion. “Iconography and Iconology as a Visual Method and Approach”. In: MARGOLIS, Eric; PAUWELS, Luc (orgs). The Sage Handbook of Visual Research Methods. Londres: Sage, 2011, pp. 298-313.), revela a história, ao contemplar o quotidiano das sociedades, a expressão de sua cultura, política e modos de vida. Daí que, embora aqui seja traçado um panorama ainda preliminar e exploratório, tanto pela proximidade entre a coleta de dados e a produção deste artigo, quanto pela impossibilidade de extração e análise de uma quantidade maior de dados, partiu-se de dois pressupostos, que vêm sendo validados por outros pesquisadores de redes digitais. O primeiro trata do fato de que a análise das redes sociais digitais permite conhecer fenômenos sociais mais amplos e de grande relevância na contemporaneidade, como têm demonstrado os estudos do Laboratório de Estudos Sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santos (Ufes), do Center for Advanced Internet Studies (Cais), na Alemanha, do Oxford Internet Institute, no Reino Unido, e de institutos privados com finalidades comerciais - e mesmo controversas -, como o Cambridge Analytica, também no Reino Unido. Em segundo lugar, deve-se considerar a própria imagem como suporte analítico válido e como entrada para bancos de dados digitais imagéticos, como propõe Manovich (2016MANOVICH, Lev. Instagram and the Contemporary Image - Subjects and Styles in Instagram Photography (Part 1). 2016. Disponível em: http://manovich.net/index.php/projects/instagram-and-contemporary-image
http://manovich.net/index.php/projects/i...
) e como se verá a seguir.

Análise

Seguindo com os critérios acima elencados, foram localizadas 12 imagens, de acordo com a visibilidade oferecida pela ferramenta de busca do Instagram para a hashtag #dia26euvou. Vale salientar que tal visibilidade é atribuída de acordo com os critérios que o próprio Instagram estabelece para relevância de um conteúdo postado na plataforma, a saber: número de curtidas, comentários, repostagens e arquivamento de posts para leituras posteriores. De acordo com o conteúdo das imagens, foi possível organizá-las em categorias. Esse não era o intuito inicial da análise, mas a existência de um padrão nessas e em outras postagens é algo que parece evidente e poderá ser investigado no futuro. A partir da categorização, analisaremos o conteúdo das postagens.

Outra questão que não estava na nossa proposta inicial, mas emergiu assim que nos confrontamos com as imagens, foi a da autoria - ou, pelo menos, da suposição de autoria - por agentes exclusivamente humanos. Como mencionamos, na internet é difícil apurar a origem das imagens, mas pelo envolvimento do sujeito, o uso de primeira pessoa e personalização, ousamos inferir apenas se os conteúdos são próprios ou de terceiros. Isso se deu também pelo fato de termos encontrado muitos conteúdos repetidos, descartados para esta análise6 6 Cabe explicar aqui que, embora os memes sejam, por definição conteúdos apropriados e replicados de outrem eliminamos, em função do critério de repetição, os memes que apareceram mais de uma vez durante o período estabelecido para a coleta. . De todo modo, essa questão não está no cerne desta pesquisa, mas é algo que queremos deixar como provocação/inquietação para os leitores e para pesquisas futuras.

As categorias encontradas foram: memes, textos (estilo captura de tela), comparações diretas entre direita e esquerda por meio de fotografias - nesse caso, as fotografias não necessariamente foram produzidas nos eventos de 15 e 26 de maio -, repostagens do Twitter, comentário de texto jornalístico, fotografias - do mesmo modo, não há como se comprovar quando foram feitas - e charge (ilustração satírica/caricatural).

Memes

Imagem 1:
Manifestações dia 26 de maio

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: possivelmente @dollynhoopressor (conforme marca d’água no canto inferior direito).

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: contagem de incidentes na manifestação de rua de 26 de maio, todos indicando o número zero.

Houve apenas uma imagem dessa categoria, em função do critério de eliminação das repetições. A imagem recorre a um personagem comum nos memes brasileiros, o Dollynho, agora apresentado como Dollynho Opressor na marca d’água no canto inferior direito do meme, com o perfil @dollynhoopressor. A imagem explicita de forma didática aquilo que seus criadores e, sobretudo, quem faz o meme circular, o perfil @obrasilqueagentequer, acredita ser característico da esquerda brasileira, a saber: pessoas que queimam ônibus, depredam patrimônio público, entram em confronto com a polícia, são presas por porte de maconha, agridem, andam sem roupa, são vagabundos bêbados. Supondo que o perfil @obrasilqueagentequer apenas replicou o meme, quem é responsável pela postagem ainda encontra tempo para um momento autoral, reforçando sua ideologia nos comentários da postagem, ao dizer: “também não teve mulheres com ‘sovacos’ cabeludos”, mensagem complementada por um emoji de mãos em prece, numa possível alusão crítica ao movimento feminista. É a mesma lógica misógina presente no texto de Constantino (22/09/2017) reproduzido anteriormente, um fenômeno recorrente nas mensagens relacionadas à hashtag #dia26euvou.

Textos (estilo captura de tela)

Imagem 2:
Sem nudez, sem drogas

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: @prendetodomundo (conforme indicado por quem realiza a postagem com o emoji de câmera fotográfica).

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: texto que comenta/parabeniza o comportamento dos bolsonaristas na manifestação do dia 26.

Imagem 3:
Cadê o quebra-quebra?

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: não há marcas externas de autoria.

  • Autor: aparentemente a imagem/texto é de autoria própria.

  • Tipo de perfil: pessoal.

  • Conteúdo: questionamentos/perguntas retóricas sobre os possíveis acontecimentos negativos do dia 26.

Cabe explicar que o estilo de publicações em captura de tela se refere ao fato de o Instagram não permitir a publicação de textos, salvo como descrição das imagens postadas ou comentários. Sendo assim, é necessário usar um editor de texto associado ao recurso de captura de tela para transformar o texto em imagem, possibilitando que se torne mais visível na plataforma.

A autoria da Imagem 2 é creditada ao perfil @prendetodomundo. Ainda que não o seja, o importante aqui é que @todospelobrasil se apropria da imagem ao utilizar a primeira pessoa ao dizer: “esses somos nós” (Imagem 2). Os emojis são o dos óculos escuros, associado ao presidente Jair Bolsonaro, e o de arma, em referência ao gesto feito com as mãos pelo presidente

Ainda na Imagem 2, lê-se: “Sem nudez, sem drogas, sem pornografia”. Na Imagem 3, pergunta-se: “Cadê o quebra-quebra e a queimação [sic] de ônibus?”. Em ambas, reforça-se a ideia anteriormente expressa de que nudez, pornografia e quebra-quebra são coisa da esquerda. Aqui, contudo, ela vai além, acrescentando erros de português, iletrismo e ignorância.

Comparações diretas entre direita e esquerda por meio de fotografias

Imagem 4:
De qual lado você está?

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: não há marcas externas de autoria.

  • Autor: não identificado. Esta imagem circulou e foi bastante reproduzida em outros contextos, conforme se notou por meio do critério de eliminação de repetições.

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: fotos comparando supostos comportamentos da direita e da esquerda.

Imagem 5:
Manifestações populares a favor do Brasil

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: @negopensa, segundo a assinatura no canto superior esquerdo.

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: fotos comparando supostos comportamentos da direita e da esquerda.

Imagem 6:
Mulheres de esquerda versus mulheres de direita

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: ilegível. Há um selo que parece indicar autoria na região central da imagem. A imagem em azul contra um fundo branco parece ser a de Margaret Thatcher cercada de estrelas. Há algo escrito abaixo da imagem, mas não é possível identificar o quê.

  • Tipo de perfil: pessoal.

  • Conteúdo: fotos comparando supostas mulheres de direita e de esquerda.

Esta é a categoria mais numerosa, com seis imagens entre as mais relevantes elencadas pelo Instagram, talvez justamente por explicitar a oposição entre direita e esquerda, tornando-a visual. A Imagem 5 remete ao embate entre ordem e baderna, sendo a ordem referente às manifestações de direita e a baderna e a violência, à esquerda. As fotografias que evocam caos ilustram muito mais um pandemônio do que um movimento social em busca de melhoria de qualidade de vida. Seguindo a mesma analogia, os corpos, dentro da norma e limpos das mulheres de direita opõem-se diametralmente aos corpos “sujos, peludos e abjetos” (BUTLER, 1993BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993.) das mulheres de esquerda. Um ambiente assim jamais seria apropriado para uma senhora, como a da Imagem 4, mas sim para um comportamento de bestialidade e exibição sexual, como o representado à esquerda da mesma imagem. Não por acaso, a fotografia de uma outra idosa foi reproduzida, inclusive, por Bolsonaro (VIEIRA, 28/05/2019) para indicar a seriedade das manifestações a seu favor, o que aponta para o discurso a favor do conservadorismo e da família.

Comentário

Imagem 7:
Depois acham ruim

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: própria.

  • Autor: aparentemente a imagem/texto é de autoria própria.

  • Tipo de perfil: pessoal.

  • Conteúdo: captura de tela de matéria do portal de notícias G1 com comentários do usuário.

Há apenas uma postagem representante desta categoria. A publicação consiste no print de uma notícia do portal G1 com comentários do autor. A oposição em relação à esquerda é evidenciada pelo termo “istudantis”, deliberadamente grafado com erro indicado pelas aspas. Ele sugere a ignorância dos estudantes em oposição à erudição do autor do texto. Além disso, faz referência a uma fala em que o presidente chama os manifestantes de “idiotas úteis” (REUTERS, 15/05/2019).

Postagem do Twitter

Imagem 8:
Xico Graziano

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: @xicograziano.

  • Tipo de perfil: pessoal.

  • Conteúdo: print de postagem de Xico Graziano.

Imagem 9:
Leandro Ruschel

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoria: terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: @leandroruschel.

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: print de postagem de Leandro Ruschel.

Aqui são reproduzidas postagens de Twitter por meio de prints ou outros recursos - há aplicativos e extensões que permitem a replicação de postagens nativas do Twitter para o Instagram. A Imagem 8 enfatiza a ausência de manifestações violentas como uma vantagem das manifestações de direita. O distanciamento do pandemônio é um orgulho, ao que parece. Explicita-se algo que aparece apenas à superfície nas imagens analisadas anteriormente: a noção de “patriotismo sem agressões”. É algo que se relaciona às imagens de idosos e de crianças, também abundantes, embora não apareçam nesta análise e à ideia de “mais família, menos militância”, noção presente nos movimentos de direita do Brasil desde 1964, como a ideia de “marcha da família, com Deus, pela Liberdade atesta” (O DIA, 19/03/1964).

A Imagem 9 usa o termo “esquerda mortadela”, que se tornou popular nas ofensas entre direita e esquerda (“coxinhas” versus “mortadelas”). “Mortadela” é uma referência à alimentação popular e barata. A mensagem da imagem insiste que as manifestações pela educação não foram legítimas, pois teriam sido desvirtuadas para outros propósitos, para reivindicar a liberdade de Lula. Além disso, os manifestantes teriam protestado em dia de semana, às custas dos impostos ditos “nossos” - reitera-se aqui a oposição “nós” versus “eles” -, ou seja, daqueles que trabalham.

Categoria fotografia

Imagem 10:
“A babá quer passear”

Ficha de catalogação:

  • Indicação de autoriautoria: imprecisa.

  • Autor: impreciso.

  • Tipo de perfil: pessoal.

Conteúdo: Mulher negra com roupa branca aparentemente caracterizada como babá, como é possível ler no balão ao lado num carrinho de bebê.

Imagem 11:
O Brasil jamais será vermelho

Ficha de catalogação:

  • Indicação de : terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: impreciso.

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: família com camisas pró-Bolsonaro, diante de um caixão com as imagens de Haddad e Lula e de uma bandeira vermelha com o símbolo da foice e do martelo interditado e com uma frase incompleta na imagem que parece ser “O Brasil jamais será vermelho”.

As duas fotografias tratam de manifestação de rua pró-Bolsonaro - algo identificável pelas imagens do presidente em ambas: na Imagem 10, em uma espécie de boneco inflável no segundo plano, e na Imagem 11, na camiseta com a estampa de Bolsonaro usada por um dos personagens fotografados.

A oposição à esquerda nesta segunda imagem é menos sutil. A foice e o martelo aparecem dentro de um símbolo de negação cercado pela frase “o Brasil jamais será vermelho”. A primeira imagem tem camadas mais complexas. Nela uma mulher de aparência negra, vestida de branco - uniforme de muitas babás -, aparece dentro de um carrinho de bebê. Ao seu lado, é possível ler num balão: “A babá quer passear”. É necessário aqui explicar que, em 2016, durante as manifestações pró-impeachment, repercutiu muito na internet e na mídia corporativa a imagem da babá Maria Angélica Lima, uniformizada de branco, empurrando um carrinho de bebê duplo enquanto seus patrões andavam à frente (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 15/03/2016). O protesto aconteceu justamente num domingo (13 de março de 2016) e levantou debates sobre as raízes escravagistas do Brasil, ressaltando ainda o fato de o domingo ser um dia de folga. Por sua vez, o texto que acompanha a imagem postada segue outra direção e ignora, inclusive, os aspectos raciais envolvidos na imagem, para, em vez disso, focar na oposição entre direita e esquerda.

Charge

Imagem 12:
Gleisi e Lula

Ficha de catalogação:

  • Indicação de : terceiros (imagem elaborada por terceiros e repostada).

  • Autor: ilegível. Contudo, há uma assinatura à esquerda da imagem, possivelmente, Kaio.

  • Tipo de perfil: institucional/coletivo.

  • Conteúdo: charge em que o ex-presidente Lula e a deputada Gleisi Hoffman assistem a manifestações pela TV e tecem comentários.

A charge apresenta a assinatura do autor pouco acima da caricatura do ex-presidente Lula, embora o perfil que a reposte também tenha inserido suas iniciais (MB) na parte inferior esquerda. A oposição entre direita e esquerda é óbvia: ela aparece na vinculação dos personagens da charge - Lula e a deputada Gleisi Hoffman - a Che Guevara e ao símbolo formado pela foice e o martelo, além da cor vermelha. Para relacionar esquerda e decrepitude, o ex-presidente aparece como presidiário, num ambiente bagunçado e cercado de garrafas de bebida, algumas das quais, alcoólicas (Cachaça 51). No texto, a personagem que representa a deputada pergunta: “Ninguém fez xixi nem cocô na rua. Cadê a quebradeira? Cadê os peitos de fora?” (Imagem 12), reforçando tanto aspectos escatológicos e de pandemônio quanto a questão moral. O personagem que representa o ex-presidente responde que seus oponentes não sabem fazer manifestação.

Considerações finais

Vistas fora de contexto, as imagens analisadas parecem retomar um antagonismo entre direita e esquerda que remete à Guerra Fria. Porém, o que une o antagonismo de então com o Brasil de agora é o medo do outro, a questão da alteridade e a tensão social. Não é possível, sem embargo, comparar contextos - tampouco é o intuito aqui. Mas tratamos de pensar como esse antagonismo vem sendo atualizado de modo específico em uma rede social digital: no Instagram, por imagens passíveis de categorizações diversas, como vimos. Agregam-se a isso aspectos outros, como a questão dos corpos abjetos, do feminismo e questões de raça.

A partir da coleta realizada, foi possível notar a emergência de um padrão: o reforço do antagonismo entre direita e esquerda sem qualquer reflexão mais aprofundada sobre o tema. Esse antagonismo é, de certa forma, organizado por perfis, a que chamamos aqui de institucionais ou coletivos, que têm como característica a produção de mensagens mais elaboradas, sendo até mesmo produzidas por profissionais de design e comunicação.

O perfil @obrasilqueagentequer foi um grande disseminador de imagens usando a hashtag #dia26euvou. Ele apresenta um esquema mais organizado de estruturação e montagem das imagens. Outros perfis atuam de modo semelhante, como o @_novaera_, o @todospelobrasil, o @movimento_a_janela e o @mbmovimentobrasileiro. Coincidência ou não, estes dois últimos parecem emular o nome do MBL, uma das forças motrizes por trás das primeiras manifestações de rua, e também depois do impeachment. Mesmo nas interações e nas fontes das imagens, é possível perceber a existência de outros perfis institucionais ou grupos, como o @negopensa, que usa a imagem de um homem negro como avatar e joga com a questão da raça; o @prendetodomundo, um perfil falso do ex-ministro Sérgio Moro; o @institutodefesa, um grupo a favor do porte de armas; e o @dollynhoopressor, que utiliza a imagem do personagem Dollynho para produzir memes de caráter ideológico.

Apesar da percepção geral de que todas as movimentações e postagens são orquestradas por sujeitos, são instituições e grupos, por sua estrutura mais profissional, por assim dizer, que acabam tendo mais visibilidade no processo de produção e disseminação de conteúdo, seja por terem mais seguidores, seja por postarem materiais mais interessantes - e por isso passíveis de maior engajamento e replicação. Essa percepção indica que há uma exploração consciente das narrativas da oposição entre direita e esquerda nessas postagens, de modo a manter o clima de ameaça de uma esquerda “sem valores morais” sobre uma direita dos “cidadãos de bem”. Esse mecanismo explica a movimentação política do Brasil na contemporaneidade: é a disseminação deliberada do binômio antagonismo-medo no Instagram, como estudamos aqui, mas também, de forma mais ampla, nas redes sociais, que explica respostas dos eleitores baseadas apenas nesse antagonismo e não em um projeto político de longo prazo que considere a superação das dificuldades socioeconômicas nacionais.

No corpus aqui levantado não foi detectado o uso de automação para promover postagens (bots), contudo, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das fake news (SENADO NOTÍCIAS, 02/12/2019) indicou que bots foram usados no Twitter e no WhatsApp para divulgar e promover conteúdos positivos sobre Jair Bolsonaro e seus apoiadores. A esse respeito, caberiam outras pesquisas. Entretanto, desde já, podemos afirmar, observando a trajetória do próprio MBL, que tal percepção faz algum sentido. De 2013 para cá, a organização passou de grupo supostamente independente para uma estrutura extremamente profissional e parapartidária, com braços na administração pública: elegeu vereadores, prefeitos e deputados por diferentes partidos (FRAZÃO, 03/10/2016; BOLDRINI, 28/08/2018).

Além dos grupos organizados, percebe-se uma preferência dos usuários de Instagram tratados nesta pesquisa por formadores de opinião e figuras consolidadas no cenário midiático (mídias tradicionais) e nas redes digitais (influenciadores), como é o caso de Gazerano e Ruschel, cujas postagens no Twitter são convertidas por usuários em publicações no Instagram. Como membros consolidados da direita, aparecem Danilo Gentili, Jair Bolsonaro e Artur do Val (Mamãe Falei) (MARIANI et al., 08/05/2019) e Nando Moura (YOUPIX, 10/12/2019). A proeminência desses membros em 2019 confirma pesquisa de Malini (2016) sobre as redes de direita e esquerda no Facebook que cita pelo menos dois desses nomes (Danilo Gentili e Jair Bolsonaro).

Cabe notar também que os próprios nomes dos grupos se referem constantemente à questão nacional. Nas postagens, enfatizam-se as cores verde e amarelo e questões relativas à ordem, à moral, à estética, aos valores da família e a uma ética voltada para o trabalho, apontamento que aparece também na pesquisa de Kalil (2018KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018.) sobre o perfil do eleitor de Bolsonaro.

Embora relacionado a um outro contexto, em vídeo divulgado no Twitter sobre a manifestação de 30 de maio de 2019 a favor da educação no país, Abraham Weintraub, então ministro da Educação, afirmou ter recebido mensagens de pais a respeito de ameaças feitas a seus filhos por parte de funcionários públicos. No vídeo, o ministro aparece ao lado de uma bandeira do Brasil, em que as palavras ordem e progresso são claramente visíveis. A questão da ordem, como vimos no embate entre esquerda e direita no Brasil, parece atávica.

Mais grave, nesse caso, foi o fato de o ministro encorajar a vigilância entre sujeitos, propondo que os alunos filmem e gravem as aulas. Contudo, nos ateremos ao ataque que interessa à nossa análise. O jornal O Globo, reproduzindo o Twitter do próprio ministro, publicou: “O capixaba Jonathan Felipe disse que participaria da manifestação de 30 de maio para lutar ‘pela Educação dos meus filhos’, ao que Weintraub respondeu: ‘E quem vai trabalhar para sustentar sua família?’” (O GLOBO, 30/05/2019). Aqui o ministro reproduz e reforça a narrativa de que os protestos relacionados às pautas de esquerda são impetrados por vagabundos e desocupados. Ataca mordazmente um opositor, enquanto, em diversos outros momentos, afaga aqueles que estão a favor das políticas do governo. Ainda segundo o jornal:

Outra usuária, Carla Oliveira, agradeceu ao ministro e apresentou uma denúncia. “O vice-diretor da escola da minha filha acha que um protesto organizado pelo Cpersoficial (Sindicato de Professores do RS) não é partidário, me destratou e humilhou minha fé! tenho tudo gravado em áudio, e mandarei pra ouvidoria! CHEGA desses MILITANTES travestidos de professores!”, escreveu.

O ministro Weintraub respondeu afirmando que tal comportamento era “inaceitável” e pedindo desculpas pela “falha em nosso sistema educacional”. “Pagadores de impostos são quem sustentam tudo e pagam os salários dos servidores. Caso tenha provas, peço a gentileza de encaminhar à ouvidoria com o nome deste ‘professor’”, escreveu (O GLOBO, 30/05/2019).

Embora o Twitter seja uma plataforma diferente do Instagram, e o protesto do dia 30 seja uma extensão daquele do dia 15, julgou-se relevante trazer esta fala, tanto por se tratar de uma liderança governamental, quanto por sintetizar e exemplificar exatamente o tipo de narrativa e o mesmo contexto de que tratamos neste texto, além de mostrar o uso de perfil institucional ou profissional para a disseminação de conteúdos como característica de indivíduos e grupos de direita7 7 Menciona-se aqui apenas a direita pois todas as postagens analisadas referem-se a indivíduos ou grupos de direita. .

O antagonismo entre direita e esquerda neste momento da política do Brasil expõe uma fratura, talvez sempre presente na história brasileira, entre ideais de caráter mais coletivo, de bem-estar social e mais próximos dos grupos que hoje chamamos de minorias e ideais mais relacionados à cultura de classe, aos privilégios, à meritocracia e ao liberalismo econômico.

Realizar manifestações aos domingos faz todo sentido para os grupos de direita no Brasil: eles não buscam fraturar o sistema - e não faria, obviamente, sentido nenhum fazê-lo -, mas demonstrar sua concordância. Não desejam interromper a lógica do capital nem a do governo. Sendo assim, não cabe interromper a máquina e seu funcionamento. Ora, protesta-se aos domingos! O “nós” do discurso não vai perder seu tempo de trabalho; afinal, sua lógica laboral é baseada no mérito próprio. “Eles”, sim, o vão fazer, os de esquerda, os sustentados pelo Estado. Ao inferir que não cabe ao Estado prover os indivíduos de condições mínimas de subsistência, de antemão se discorda da lógica de bem-estar social. Assim começa a narrativa de baderna - e daí todo o mais decorre.

Especificamente no caso do Brasil, é importante compreender essa fratura, porque a oposição “nós” versus “eles”, “coxinhas” versus “mortadelas”, ainda que nos termos de uma “memecracia” (RODRÍGUEZ, 2013RODRÍGUEZ, Delia. Memecracia: Los virales que nos gobiernan. Barcelona: Grupo Planeta, 2013.), indica as rupturas de uma sociedade que sempre ocultou antagonismos de classe, de raça e de gênero - apenas para citar as que permeiam este artigo - sob o mito da cordialidade (COUTO, 2006COUTO, Rui Ribeiro. “El hombre cordial, producto americano”. In: HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 2006.). Haverá espaço para cordialidade nos anos que virão? Em termos sociais, é possível que sim, já que, na lógica das memecracias, sob a desculpa do humor, tudo é engraçado e tudo vira meme. É possível que essa lógica amplie ainda mais a noção de cordialidade no porvir, mas também as tensões que ela provoca, assim como as possibilidades de violência física e simbólica que dela eclodem.

Referências

  • BASTOS, Marco Toledo; RECUERO, Raquel da Cunha; ZAGO, Gabriela da Silva. “Taking Tweets to the Streets: A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”. First Monday, vol. 19, n. 3, pp. 1-20, 2014.
  • BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993.
  • COUTO, Rui Ribeiro. “El hombre cordial, producto americano”. In: HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 2006.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2007.
  • GOHN, Maria da Glória. Participação e democracia no Brasil: Da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis: Vozes, 2019.
  • KALIL, Isabela Oliveira. Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro. São Paulo: FESPSP, 2018.
  • KINGSTONE, Peter; POWER, Timothy. Democratic Brazil Divided. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2017.
  • MANOVICH, Lev. “The Database”. In: MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Massachusetts: MIT Press, 2001, pp. 218-281.
  • MANOVICH, Lev. Instagram and the Contemporary Image - Subjects and Styles in Instagram Photography (Part 1). 2016. Disponível em: http://manovich.net/index.php/projects/instagram-and-contemporary-image
    » http://manovich.net/index.php/projects/instagram-and-contemporary-image
  • MÜLLER, Marion. “Iconography and Iconology as a Visual Method and Approach”. In: MARGOLIS, Eric; PAUWELS, Luc (orgs). The Sage Handbook of Visual Research Methods. Londres: Sage, 2011, pp. 298-313.
  • PRIORI, Ângelo. “História e memória de comunistas no Paraná”. Revista Espaço Acadêmico, vol. 9, n. 97, pp. 131-134, 2009.
  • RODRÍGUEZ, Delia. Memecracia: Los virales que nos gobiernan. Barcelona: Grupo Planeta, 2013.
  • SANTOS, Marcelo Alves dos. #Vaipracuba!: A gênese das redes de direita no Facebook. Curitiba: Curitiba, 2019.

Fontes da imprensa

Notas

  • 1
    Tradução da autora.
  • 2
    Tradução da autora.
  • 3
    Há naturalmente sobreposições e, por vezes, diferentes nomenclaturas. Ficamos aqui com a divisão de bancadas mais usual, conforme proposto por Congresso em Foco (19/02/2016) e Diap (2018, p. 1).
  • 4
    Disponível em: www.instagram.com
  • 5
    Os vídeos foram eliminados da presente análise por exigirem uma metodologia específica, já que em sua maioria, à época da coleta (antes da popularização do aplicativo TikTok no Brasil), não tinham legendas ou textos escritos. Já as imagens repetidas foram eliminadas para não gerarem redundância pois muitos usuários de Instagram apenas replicaram conteúdos já publicados por outros sem realizarem quaisquer alterações nos mesmos.
  • 6
    Cabe explicar aqui que, embora os memes sejam, por definição conteúdos apropriados e replicados de outrem eliminamos, em função do critério de repetição, os memes que apareceram mais de uma vez durante o período estabelecido para a coleta.
  • 7
    Menciona-se aqui apenas a direita pois todas as postagens analisadas referem-se a indivíduos ou grupos de direita.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2019
  • Aceito
    14 Jul 2020
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