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Adaptação ao mundo, avalanche de informações e a serendipidade na Odontologia

INSIGHT ORTODÔNTICO

Adaptação ao mundo, avalanche de informações e a serendipidade na Odontologia

Alberto Consolaro

Professor Titular da FOB-USP e da Pós-Graduação da FORP-USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Alberto Consolaro E-mail: alberto@fob.usp.br

A adaptação ao mundo representa o objetivo final do homem enquanto representa uma de suas espécies. As mudanças em nosso corpo são para adaptarmos e transferimos estas mudanças para as próximas gerações como transferência de conhecimento. A cada mudança em nosso fenótipo necessariamente existe uma mutação no DNA para que se efetive. Cada mutação no homem para adaptarmos e transferirmos este conhecimento para nossos filhos demora em torno de 100 a 200 anos. Reconhecidamente, para nossos padrões atuais, um processo muito lento, quase "inaceitável".

Para que a transferência de conhecimento fosse mais eficiente promoveu-se a fala, na qual uma geração comunicava-se com a próxima, repassando informações para uma vida melhor. Cada adaptação ao mundo não mais necessariamente representava mutações no DNA, havíamos descoberto um mecanismo melhor, mais rápido de transmissão de conhecimento. Adaptação ao mundo com felicidade, prazer e eficiência pode perfeitamente ser chamada de conhecimento.

A fala como transmissora de conhecimento requer, necessariamente, a presença de pessoas vivas e com grande capacidade de raciocínio e memória. A cada acúmulo de conhecimento o risco de algumas informações deixarem de ser transmitidas por esquecimento era muito grande. Desta forma desenvolveu-se a escrita. Inicialmente rudimentar, na terra, nas árvores, nas pedras; ao ar livre ou nas cavernas; isoladamente ou em conjunto. Os obeliscos, ainda presentes em nossas cidades, representavam, primariamente, uma forma localizada de mostrar, aos novos membros da sociedade, o conjunto de conhecimentos acumulados no tempo pelos mais velhos. Nas guerras os obeliscos representavam um dos primeiros objetos a serem conquistados ou "roubados" dos perdedores; eliminava-se ou conquistava-se a memória e a cultura daquele povo agora oprimido.

Os papiros, os livros, as enciclopédias e as bibliotecas são evoluções da escrita e da forma de organizar e dar fluxo e acesso às informações sobre as adaptações ao mundo que as gerações passadas aprenderam e repassam aos atuais ocupantes do planeta.

Os livros, os periódicos e as bibliotecas ficaram grandes demais. Fisicamente ocupam grandes espaços e financeiramente são inviáveis para muitas sociedades. Multiplicar as grandes bibliotecas econômica e fisicamente, a cada dia, se mostrava dispendioso. No cérebro das pessoas não havia mais espaços para tanto conhecimento e muito menos mecanismos para reconhecer, de pronto, onde estariam as informações quando dela se precisasse. Mesmo as relações de conhecimento em forma de longas listas e grandes livros de índices e catálogos tornaram-se inviáveis a partir de um determinado tempo, como aconteceu com o Index Dental Literature e o Index Medicus Literature. Os bancos de dados e as bases de informações podem disponibilizar estas informações em qualquer tempo e em qualquer espaço do mundo via internet ou via satélite. Cada cidadão em qualquer lugar pode ter todas estas informações para se adaptar melhor ao seu mundo.

O computador foi desenvolvido para solucionar a questão do tempo de raciocínio e espaço de memória. Nossos cérebros não correspondiam mais às mudanças necessárias, às mutações necessárias, para nos adaptarmos plenamente ao mundo, à medida que o acúmulo de conhecimento foi subitamente aumentando a cada ano. O DNA não acompanhava o ritmo de mutação necessário e ao mesmo tempo não havia como aumentar a capacidade de velocidade de raciocínio e de memorização de nosso cérebro. Se essas mutações fossem realizadas, como se fosse possível, nossas cabeças não passariam por entre as pernas de nossas mães em função do tamanho cerebral, nem mesmo caberíamos em seus úteros. A Informática resolveu este nosso problema atual de adaptação.

A cada período, a cada era, novas adaptações vão se fazendo necessárias. A vida é a evolução adaptativa de cada geração sobre o planeta. Antevendo futuras necessidades, o homem voltou a visitar o DNA e checar se não pode alterá-lo para que as suas mutações adaptativas, que demoram 100 a 200 anos cada uma, possam ser mais rápidas e múltiplas, além de simultâneas. Por isto estamos procurando manipular o DNA. É a busca constante de adaptações, ou conhecimento, ou informações para uma provável vida melhor.

Estamos em um tempo de muitas informações. O que lia um homem culto a 100 anos atrás, em termos quantitativos, pode ser encontrado em uma edição semanal ou dominical de um grande jornal. A educação moderna, verdadeiramente moderna, não requer necessariamente computadores, requer métodos de ensino que habilitam as pessoas a resgatar informações de grandes sistemas como as bases de dados. O indivíduo adaptado ao seu mundo atual requer habilidade em resgatar e interpretar informações de forma crítica e analítica e, se possível, no menor espaço de tempo, ou seja rapidamente, e com o menor número de palavras ou sinais.

Nosso raciocínio e habilidade de reconhecer informações importantes a partir de uma única palavra ou sinal têm limites. Assim nasceram o serviços de buscas nas bases de dados. Eles garimpam para o homem o que seu cérebro levaria semanas, meses ou anos para encontrar e discernir o que deveria ser analisado para ser lido ou não. Eis o nosso tempo! Mas ainda assim, eles localizam muita informação, algumas muito boas, outras nem tanto, além de uma boa quantidade de coisas dispensáveis. Afinal nem tudo é perfeito.

A serendipidade representa uma poderosa ferramenta mental de raciocínio e lógica que se estende cada vez mais e se enquadra na informática como um recurso de busca e resgate de informação, embora possa parecer quase impossível superar o cérebro humano neste quesito. Quanto à inteligência, Stephen Hawking comparou o computador ao cérebro de uma minhoca.

Serendipidade

Muitas descobertas são atribuídas ao "acaso" ou "por acidente". Algumas foram mesmo por acaso, mas muitas outras assim consideradas são agora atribuídas à serendipidade. Quando um fenômeno, um evento, uma observação são detectados por mentes preparadas e adequadamente interpretadas podem gerar descorbertas, inventos, teorias, enfim conhecimento para que o homem se adeqüe cada vez mais ao seu mundo. Quantas maçãs e outros frutos não caíram sobre a cabeça de pessoas ou de animais antes de Newton formular sua teoria sobre a lei da gravidade! Mas a sua mente preparada permitiu uma interpretação adequada do evento e sua transformação em conhecimento. Isto se chama "serendipidade". Pasteur afirmava: "No campo da observação, o acaso favorece apenas a mente preparada".

Em muitas civilizações antigas, os pães embolorados foram utilizados com sucesso no tratamento de feridas expostas e irreparáveis. Mas quem diria que se tratava de antibióticos produzidos pelos fungos que destruíam as bactérias contaminantes e davam lugar ao reparo aparentemente impossível?

Em 1928, o escocês Alexander Fleming ao retornar ao seu laboratório no Hospital St. Mary, em Londres, após alguns dias ausente, observou o crescimento de um fungo em uma de suas culturas de estafilococos, "estragando-as". Mas percebeu que ao redor das áreas com fungo não havia crescimento bacteriano. Sua mente preparada logo percebeu que o fungo produzia uma substância inibidora do crescimento bacteriano e seus estudos posteriores revelaram a substância bactericida então denominada de penicilina, visto que o fungo produtor era o Penicillium notatum. Esta descoberta foi uma das mais importantes para a humanidade, mas com certeza outras culturas bacterianas já haviam sido contaminadas por este fungo e muitas outras pessoas observando o mesmo fenômeno não estavam preparadas ou sensibilizadas para interpretá-lo a ponto de gerar uma descoberta. Este "acaso" ou "acidente", quando detectado por uma mente preparada representa a serendipidade.

Mas, em 1922, o mesmo Fleming havia notado que uma gota de secreção nasal, ao cair no meio de cultura, impediu o crescimento das bactérias. Foi Fleming que descobriu a lisozima na clara do ovo como agente bacteriano, a mesma substância encontrada nas secreções nasais e lacrimais. Este fato ocorrido 6 anos antes da descoberta da penicilina talvez tenha preparado a sua mente para interpretar e valorizar o efeito dos fungos sobre o crescimento bacteriano em 1928.

A serendipidade parece ser a faísca para o conhecimento e o raciocínio iluminarem um acaso. Encontrar algo que se procura pode ser o resultado de criatividade e persistência, mas encontrar algo que não se procura e estar apto a interpretar como algo importante é serendipidade.

O conceito da serendipidade pode ser aplicado em qualquer setor da vida humana, inclusive nos relacionamentos humanos. Serendipity foi o nome de um filme para elucidar o encontro de dois personagens por "acaso". Quantas vezes, ao procurar uma palavra no dicionário, encontramos outra de nosso interesse, quase por "acaso". Quantos livros e filmes não encontramos por "acaso"! Acasos acontecem, mas serendipidade apenas para os bem preparados mentalmente.

Parafraseando Pasteur, o físico estadosunidense Joseph Henry afirmou: "As sementes das grandes descobertas estão constantemente flutuando em torno de nós, mas elas só criam raízes nas mentes bem preparadas para recebê-las". A ciência progrediu muito graças à serendipidade. No quadro 1 têm-se uma lista de descobertas feitas a partir da serendipidade.


Atualmente, a Informática vem, cada vez mais, usando a serendipidade na busca de informações nos bancos de dados e no seu resgaste pelo usuário. Por semelhança terminológica de conteúdo os bancos de dados oferecem muitos artigos, livros e produtos ao usuário. O conceito de serendipidade cada vez mais se aplica no resgate de informações, de conhecimento, ou melhor, como ferramenta de adaptação ao mundo. Quantos artigos e livros você achou por serendipidade em suas monografias, teses e artigos? Alguns artigos e livros resgatamos apenas por estarmos mentalmente preparados para, a partir de uma palavra, desenho ou sinal, considerarmo-los interessantes: isto é serendipidade.

Na vida clínica devemos estar preparados para explorar toda a potencialidade oferecida pela serendipidade. Na Odontologia podemos destacar 3 exemplos maravilhosos de serendipidade.

Exemplo 1 - Horace Wells, um cirurgião-dentista, foi assistir uma demonstração em que voluntários iriam inalar o gás óxido nitroso com finalidade de divertimento, em 1844, na cidade de Hartford, Connecticut. Ele estava acompanhando um amigo, Samuel Cooley. Depois de inalar o gás Cooley ficou violento e começou a brigar, tropeçou e caiu. O impacto o fez ficar sóbrio e sentou silenciosamente ao lado de Wells. Uma poça de sangue formou-se embaixo do assento de Cooley e advinda de um corte profundo em sua perna, mas ele nada sentia, até que depois de certo tempo passou a doer. Perspicaz, Wells correlacionou o efeito anestésico do gás com as difíceis e doloras exodontias e ao testar em si mesmo o efeito do óxido nitroso, solicitando a colega de profissão que extraísse um de seus molares, nada sentiu. Desta forma, por "acaso", ou melhor, por serindipidade, Horace Wells tornou-se o pai da anestesia na Medicina e na Odontologia.

Exemplo 2 - No início dos anos 60, Branemark, um pesquisador sueco na Universidade de Gotemburgo com aproximadamente 31 anos de idade, estudava a microcirculação sangüínea em tíbias de coelho introduzindo câmaras de observação para registrar eventos circulatórios e migração celular em vídeos. Depois de alguns dias e semanas de experimentos removia-se as câmeras com invólucro externo metálico à base de titânio. Em alguns casos era difícil a recuperação da câmara, pois os tecidos, especialmente o tecido ósseo, se "soldavam" ou interagiam de forma tão intensa com o metal que ficava inviável separá-los. Não havia reação tecidual pela presença do metal, mas este evento aumentava os custos do experimento. No entanto, com base nesta observação, detectou a possibilidade e desenvolveu cilindros personalizados de titânio para serem implantados na tíbia de coelhos e cães e verificar a integração tecidual em suas superfícies. Desta forma nasceu o conceito de osseointegração, que permitiu o surgimento dos implantes dentários osseointegráveis, que mudaram por completo o perfil da Odontologia Clínica e algumas áreas da Medicina nos últimos 20 anos.

A procura inicial de Brånemark não era desenvolver um procedimento que integrasse componentes de titânio e osso, uma vez que seu interesse era o estudo de técnicas in vivo da geração e comportamento de células sangüíneas. Sua tese de doutorado foi baseada no estudo da circulação sangüínea no osso e medula óssea, pois na época havia pouca informação sobre a produção de novas células sangüíneas. Mas, por serendipidade, graças à sua mente preparada, encontrou outros achados que permitiram o desenvolvimento dos implantes dentários osseointegráveis.

Exemplo 3 - Lawrence F. Andrews desenvolveu vários conceitos e produtos para melhorar a clínica ortodôntica, mas ainda faltavam parâmetros estáveis anatomicamente, que no tempo e espaço serviriam como ponto de referência para calcular angulações do longo eixo dentário, orientar prescrições de braquetes e outros parâmetros importantes para o diagnóstico, tecnologia e terapêutica ortodôntica e ortopédica.

Em sua clínica, quando uma de suas profissionais protéticas o questionou se deveria ou não remover dos seus modelos de gesso, via recorte manual, aquela estrutura mais proeminente na parte externa vestibular, imediatamente isto lhe chamou a atenção. A partir deste acontecimento, Andrews percebeu a constante presença da estrutura e sua estabilidade estrutural, estabelecendo-se o conceito de Borda Wala em 1995.

Reflexões finais

Um cientista atual perde uma parte significante do seu tempo dedicado à burocracia, administração e política institucionais, preenchimento de relatórios, levantamento de custos e no gerenciamento de programas de pós-graduação e pós-doutorado. A outra parte do seu tempo está comprometida com preparação de aulas, cursos e avaliações. Uma parte muito pequena do tempo de um cientista atual está dedicada ao laboratório e muito menor ainda é a parte do tempo dedicado exclusivamente às reflexões e desdobramentos de resultados das pesquisas.

Além do tempo reduzido para a sua principal função, o cientista ainda está no meio de uma avalanche de informações, impossível de ser aproveitada pela quantidade e variedade que se apresenta. Temos que selecionar o que ler e quando ler, mas ao mesmo tempo que a falta de tempo dificulta a ocorrência da serendipidade, a própria serendipidade muitas vezes e cada vez mais, de forma paradoxal, ajuda-nos no resgaste de informações importantes e fundamentais via serviços de buscas.

Uma mente preparada deve dar lugar à serendipidade, mas isto depende de tempo para pensar, refletir, interpretar e desdobrar dados, observações e resultados, inclusive com extrapolações para o lado pessoal, emocional, criativo e artístico da vida. Muitos acreditam que a "sorte" favorece algumas pessoas, que o destino facilita a vida de certos indivíduos colocando os "acasos" em suas descobertas. Na verdade a "sorte" e o "acaso" ocorrem na vida de todos, mas apenas alguns poucos os detectam e aproveitam, pois suas mentes estão preparadas para interpretar e desdobrar atitudes, processos e inventos essenciais para a vida. A serendipidade na evolução da ciência e da humanidade tem se mostrado essencial.

Em nossas vidas, em nossa prática e nas atividade clínicas e acadêmicas estamos deixando espaços e preparando nossas mentes para a serendipidade?

  • 1
    BACH, Marcus. Serendipidade: o mundo do acaso. São Paulo: Nordica, 2005.
  • 2
    BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
  • 3
    HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz 5. ed. São Paulo: ARX, 2002.
  • 4
    LACAZ-RUIZ, R. Microbiologia Zootécnica São Paulo: Roca, 1992.
  • 5
    LACAZ-RUIZ, R. O espírito de serendípite Disponível em: <www.hottopos.com.br/vidlib2>. Acesso em: 10 abr. 2008.
  • 6
    LENTIN, J. P. Penso, logo me engano São Paulo: Ática, 1996.
  • 7
    McCLARENCE, Elaine. Close to the edge, Brånemark and the development of osseointegration Quintessence: Berlim, 2003.
  • 8
    OLIVA, Alberto. Filosofia da Ciência Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
  • 9
    ROBERTS, Royston M. Descobertas acidentais em ciências Campinas: Papirus, 1993.
  • 10
    THOMPSON, Charles C.; LYONS, Lael. Idéias em ação São Paulo: Saraiva, 1996.
  • Endereço para correspondência

    Alberto Consolaro
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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