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Transplantes dentários autógenos: uma solução para casos ortodônticos e uma casuística brasileira

INSIGHT ORTODÔNTICO

Transplantes dentários autógenos: uma solução para casos ortodônticos e uma casuística brasileira

Alberto ConsolaroI; Tiago Novaes PinheiroII; João Batista Gagno IntraIII; Armelindo RoldiIV

IProfessor Titular da FOB-USP e da Pós-Graduação da FORP-USP

IIDoutorando em Patologia Bucal da FOB-USP

IIIProfessor Doutor dos Cursos de Especialização em Endodontia da UFES e da ABO-ES

IVProfessor Doutor Associado de Endodontia da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Alberto Consolaro E-mail: alberto@fob.usp.br

Os traumatismos podem induzir desde uma simples trinca de esmalte até uma avulsão com perda do dente, sem possibilidade de reimplante. Da mesma forma, a perda dentária decorrente de um traumatismo pode advir de uma fratura vertical ou de fraturas radiculares múltiplas. Nestes casos, uma avaliação minuciosa dos dentes e ossos maxilares, condicionada pela idade do paciente, pode levar à oportunidade para um transplante dentário autógeno, também conhecido como auto-transplante. Por sua vez, o reimplante, quando terapeuticamente intencional, passa a ser identificado como transplante autógeno intra-alveolar.

Em pacientes anodônticos, a ausência de pré-molares constitui a manifestação mais comum nos europeus e seus descendentes diretos, mesmo que em outros países como o Brasil. As relações oclusais e dentárias destes pacientes podem levar a um planejamento ortodôntico, ortopédico e cirúrgico no qual a extração de pré-molares ou de terceiros molares pode estar indicada. Nesta situação também se pode ter a indicação e a oportunidade para um transplante autógeno.

Nos países escandinavos, o controle da cárie dentária e da doença periodontal, há muito tempo, permitiu que os principais problemas odontológicos fossem redirecionados para o traumatismo dentário e ausência congênita dos dentes por anodontia parcial, especialmente de pré-molares.

Os transplantes dentários autógenos são realizados há mais de 40 anos nos países escandinavos e o controle dos dentes transplantados, realizado por igual período, revela que o aperfeiçoamento técnico e a fundamentação biológica se encontraram, permitindo uma elevada taxa de sucesso na população destes países2,3,6,7. Os transplantes dentários autógenos, nestes países, são procedimentos rotineiros e com protocolos bem estabelecidos nos serviços odontológicos. O tratamento ortodôntico envolvendo dentes transplantados faz parte da rotina e o sucesso é relatado em trabalhos exemplares da literatura2,3,13.

A literatura mundial revela10 que Andreasen e sua equipe foram pioneiros em mostrar seus resultados com transplantes autógenos em grandes casuísticas, a partir da técnica descrita por Slagsvold e Bjercke. No Brasil, desde a década de 1980, Roldi e sua equipe transdisciplinar, a partir da Universidade Federal do Espírito Santo, realizam transplantes autógenos, acumulando uma casuística com centenas de casos4,5,10,11,12. Muitos destes casos, seguindo a trilha dos escandinavos, são submetidos a reconstruções estéticas e tratamentos ortodônticos com a finalidade de restaurar plenamente a capacidade funcional dos maxilares.

Os transplantes autógenos devem fundamentar-se em uma frase de John Hunter9 proferida em 1778: "para a reimplantação e transplantação ter alguma chance de sucesso é essencial manter a viabilidade do ligamento periodontal".

O ligamento periodontal é formado simultaneamente aos dois tecidos que o delineiam lateralmente: o cemento e o osso fasciculado, também conhecido como osso alveolar propriamente dito (Fig. 1). Anatômica e microscopicamente, nos acostumamos a definir o dente como uma peça isolada, que se encerra no recobrimento da raiz pelo cemento. Mas o ligamento periodontal e o osso fasciculado também fazem parte do que conhecemos como dente. Estas duas estruturas são tecidos odontogênicos, e tal como o cemento, são responsáveis pela sustentação e funcionamento do dente como órgão. Em última instância, podemos afirmar que os dentes, lateralmente em sua porção radicular, terminam nos limites externos do osso fasciculado. O osso fasciculado foi assim denominado por ser depositado em camadas aposicionais, como fascículos ou volumes de livro. Ele representa aproximadamente a terça parte mais interna da espessura da cortical óssea alveolar, também denominada lâmina dura, nas radiografias periapicais.


O esmalte é depositado pelo órgão do esmalte, enquanto a dentina é formada pela polpa dentária que resulta do amadurecimento da papila dentária. O órgão do esmalte e a papila dentária são externamente "embrulhados ou empacotados" por um tecido mesenquimal com organização capsular, conhecido como folículo ou saco dentário. À medida que a dentina deposita-se em direção apical para formar a raiz com a participação da bainha epitelial de Hertwig (Fig. 1), o folículo dentário dá origem a três tecidos diferentes: o cemento, o ligamento periodontal e o osso fasciculado. Estes tecidos correspondem ao periodonto de sustentação.

Durante a rizogênese temos um degradê biológico de formação e maturação tecidual. Na região cervical poderemos ter a raiz completamente formada, enquanto no terço apical estamos ainda em um período embrionário inicial; mas no terço médio temos uma fase intermediária da rizogênese (Fig. 1). Desta forma, na região média e apical desta raiz ainda temos o folículo dentário em plena atividade, envolvendo os tecidos dentários já formados e continuando apicalmente a rizogênese (Fig. 1).

Revalorizando o princípio de Hunter, citado anteriormente, se optarmos por transplantar ou reimplantar um dente completamente formado devemos preservar tecnicamente os tecidos periodontais como o cemento e seus cementoblastos superficiais, o ligamento periodontal, seus restos epiteliais de Malassez e o osso fasciculado com seus osteoblastos superficiais, todos de origem odontogênica ectomesenquimal. Mas, se optarmos por transplantar ou reimplantar um dente em rizogênese, o sucesso do procedimento dependerá da preservação dos tecidos periodontais citados, mas também e principalmente do folículo dentário presente na porção apical e média da raiz, em plena formação (Fig. 2, 3, 4).




Quando refere-se à preservação dos tecidos periodontais e do folículo dentário implica-se que, tecnicamente, o cirurgião deverá levá-los aderidos à raiz do dente a ser transplantado (Fig. 2). São tecidos embrionários recém-formados, pouco fibrosos e cuja matriz extracelular se apresenta "gelatinosa" e extremamente permeável a fluidos corporais, mediadores e à invasão de brotos endoteliais para futuras reconexões vasculares.

Ao serem acomodados nos leitos receptores (Fig. 2, 3, 4), os dentes transplantados e reimplantados não têm como se reconectar imediatemente à circulação sanguínea, isto demora ao menos algumas longas horas. Neste período, o leito receptor preparado e operado cirurgicamente deixa transudar líquido tecidual e plasmático em sua superfície e futura interface de contato com o dente transplantado. Estes líquidos contêm muitos íons, aminoácidos, peptídeos e vários mediadores celulares que nutrem e estimulam fenômenos proliferativos e reparadores, para que os tecidos estabeleçam conexões vasculares, neurais e de outras estruturas em continuidade. Esta fase inicial e forma de manutenção dos tecidos transplantados pode ser denominada embebição plasmática.

Em dentes completamente formados os tecidos são maduros, fibrosos e mais densos do que os tecidos embrionários ou recém-formados. A polpa dentária com seus vasos e nervos rompidos não tem como reconectar seus vasos e sobreviver por várias horas, apenas com a embebição plasmática. Os fluidos não permeiam pela intimidade dos tecidos maduros apenas por capilaridade e umidificação, em função de sua maior densidade estrutural, especialmente fibrosa. Isto não ocorre apenas com a polpa dentária, mas também com o ligamento periodontal e osso fasciculado.

Esta explicação elucida porque os transplantes de dentes em rizogênese têm um prognóstico melhor que os completamente formados. Após superada a fase mais crítica da embebição plasmática, quando também se tem maior o risco de infecção secundária, os tecidos periodontais reparam-se e os tecidos foliculares continuam a rizogênese (Fig. 3, 4). Quanto mais breve e traumática for a fase inicial da embebição plasmática, mais rapidamente reinicia-se a odontogênese e sem alterações morfológicas radiculares. A indicação do dente a ser transplantado deve ser rigorosa nos critérios adotados, especialmente quanto ao estágio radicular de desenvolvimento adequado e preparação do leito receptor. A transplantação para um leito receptor representado por um alvéolo dentário recém desocupado ou liberado durante o transoperatório melhora o prognóstico ainda mais10.

A polpa coronária e a maior parte da polpa radicular de dentes transplantados tendem a se apresentar radiograficamente com metamorfose cálcica da polpa (Fig. 3, 4). A restrição de nutrientes, decorrente da interrupção da circulação sangüínea, e a pouca eficiência da embebição plasmática para os tecidos pulpares mais distantes do leito receptor induzem as células pulpares à metaplasia para odontoblastos com extensa e irregular produção de dentina displásica. Esta dentina displásica ocupa a maior parte do espaço pulpar, revelando-se radiograficamente por obliteração da camâra pulpar e do canal radicular1. Em alguns poucos casos de dentes transplantados com rizogênese incompleta ocorre a necrose pulpar, providenciando-se de imediato o tratamento endodôntico. Nos casos de transplantes de dentes completamente formados o tratamento endodôntico quase sempre é requerido10.

Quando um dente for transplantado e cirurgicamente for respeitado o princípio biológico de preservação dos tecidos periodontais e foliculares aderidos à raiz em formação, o mesmo apresentará estruturas radiculares normais, tal como um dente não transplantado. Como um dente normal, os dentes transplantados podem apresentar as mesmas conseqüências da movimentação dentária induzida, especialmente reabsorções radiculares8,13. Desta forma os dentes transplantados podem receber tratamentos estéticos e ortodônticos habituais. Tal como nos demais dentes, deve-se no planejamento ortodôntico considerar a: 1) forma da raiz - quanto mais triangular, maior a probabilidade da reabsorção radicular ocorrer; 2) proporção raiz-coroa - abaixo de 1,6 a raiz deverá ser considerada curta e, por isso, mais propensa a ter reabsorções durante a movimentação dentária; 3) forma da crista óssea alveolar - quanto mais quadrada ou retangular, aumenta-se o risco de reabsorção, especialmente se os movimentos forem maiores. Além destes, os demais fatores predictivos de reabsorção para todos os dentes são aplicáveis em movimentações dentárias bem sucedidas de dentes transplantados.

Um ponto importante deve ser ressaltado: os transplantes dentários não se contrapõem aos implantes. Em outras palavras, os transplantes não substituem os implantes dentários. Os transplantes dentários têm indicacões muito específicas para alguns casos de anodontia parcial e como solução de traumatismos seguidos de perda dentária, especialmente em pacientes jovens. Nos adolescentes e adultos jovens, o desenvolvimento craniomandibular restringe os implantes e as soluções protéticas como solução definitiva. A limitação dos transplantes dentários em relação aos implantes também está relacionada à disponibilidade de dentes dos pacientes que possam ser transplantados (Fig. 4).

Em seu pós-doutoramento em 2006, Roldi analisou 108 dentes transplantados, proservando-os por até 21 anos. Avaliou quais foram os fatores determinantes no sucesso de cada caso, bem como quais seriam os procedimentos a serem otimizados na busca do maior porcentual de sucesso. Atualmente, Pinheiro, na Faculdade de Odontologia de Bauru, USP, desenvolve sua tese de doutoramento ampliando em 32 casos esta casuística, com o objetivo de examinar o índice de sucesso da amostra, baseado em critérios clínicos e radiográficos. Enquanto estes estudos são desenvolvidos, a equipe de Roldi submete a novas condutas muitos destes casos, para melhorar a estética e o posicionamento dos dentes transplantados a partir de tratamentos restauradores e ortodônticos. Os transplantes dentários podem ser planejados em conjunto com o tratamento ortodôntico, de forma mais segura e precisa quando houver discrepância de modelos e/ou cefalométrica negativa, com indicação de extração de pré-molares, mas não necessariamente em todos os casos. Alguns casos de transplantes dentários podem envolver terceiros molares, normais ou reduzidos em seus tamanhos, e dentes supranumerários, muito comuns, inclusive entre os pré-molares.

Um questionamento pode ser aplicado na nossa realidade sobre dentes transplantados e movimentados ortodonticamente: por que temos tão poucos casos descritos e apresentados em nosso país? Provavelmente uma das razões seja a falta de recursos humanos treinados na realização técnica criteriosa dos transplantes dentários e na falta de conhecimento geral de que são procedimentos com elevada taxa de sucesso, podendo inclusive serem movimentados ortodonticamente, se for necessário. Uma ação conjunta e transdisciplinar, envolvendo a Traumatologia, a Endodontia, a Cirurgia, a Periodontia, a Ortodontia e a Odontopediatria nas universidades e entidades de classes poderia ampliar a prática dos transplantes dentários em nosso país, treinando-se cada vez mais profissionais no manejo com este tipo de paciente e suas necessidades.

  • 1
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  • 4
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  • 10
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  • 11
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  • 12
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  • Endereço para correspondência:
    Alberto Consolaro
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
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