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A crise na relação entre os eleitores e os políticos

DEPOIMENTOS DOS PARLAMENTARES

A crise na relação entre os eleitores e os políticos

Fernando Gabeira (Entrevista)

EM RESUMO, aqui estão as declarações do deputado Fernando Gabeira a ESTUDOS AVANÇADOS, em Brasília, em meados de agosto, em entrevista concedida ao jornalista Marco Antônio Coelho.

Ele acredita que chegou a hora e a vez de profundas modificações no Parlamento, considerando que a grande exigência dos brasileiros, no quadro atual, reside no estabelecimento de uma nova relação entre os eleitores e os políticos.

Para o deputado do Partido Verde (PV), essa é a questão central que será examinada nas eleições do próximo ano e que poderá marcar o início de uma segunda etapa no processo da democratização do Brasil.

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ESTUDOS AVANÇADOS - Como o senhor analisa a crise no Congresso, no Senado Federal e na Câmara dos Deputados?

Fernando Gabeira - A crise não é nova, mas hoje tem características mais dramáticas em função do próprio desenvolvimento do país. Avançou-se muito na ciência e na sociedade. Nesta, progredimos na demanda de transparência e na tecnologia, com a revolução da informática. Então, pela primeira vez temos uma grande exigência de transparência e os meios tecnológicos para que ela seja implantada. O Congresso brasileiro, até certo ponto, atendeu a essa demanda, no entanto não estava preparado para trabalhar com ela. Quando foram abertas as entranhas do Congresso, os defeitos da sociedade brasileira, principalmente dos políticos, vieram à tona. O primeiro é o patrimonialismo com o gasto de recursos públicos pelos políticos; o segundo é o clientelismo com o uso de cargos para eles se manterem no governo.

Essa nova situação tem um outro elemento agravante: o Congresso, sobretudo do Senado Federal, é dominado por políticos das regiões menos avançadas do Brasil. Hoje temos um presidente que é do Maranhão, um Estado entre os mais pobres do Brasil, e um líder do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que é de Alagoas. São os dois grandes líderes da base do governo no Congresso. Eles têm como experiência a mídia regional, dominada pelos "coronéis" brasileiros. Por isso estão despreparados para uma situação de transparência com meios tecnológicos avançados. O resultado é um agravamento cada vez maior da crise e um isolamento maior do Congresso em relação à opinião pública.

Essa crise é apenas um momento em que vemos esses defeitos e há outras coisas muito sérias. Por exemplo, a falta de independência do Congresso. Isso porque a maioria esmagadora dos deputados e senadores, que chega ao Parlamento, sabe que sua carreira política depende de bom relacionamento com o governo. Esse, por sua vez, usa sistematicamente desse poder para influenciá-los. Assim, o governo efetua o pagamento das emendas parlamentares (que significam obras nas regiões desses parlamentares) em troca de votos no Congresso. Da mesma maneira, o governo concede um pedaço da máquina nas diversas regiões a esses políticos. Eles obtêm do governo tanto o pagamento das emendas para a realização de obras locais, como a ocupação de cargos que facilitam sua reeleição.

Assim, foi estabelecida uma situação delicada. Em primeiro lugar, porque os deputados da oposição têm acesso ao pagamento dessas emendas que deveriam ser pagas de forma republicana. Ou seja, todos deveriam ser contemplados de acordo com o Orçamento da União. Em segundo lugar, devido a essa situação o governo consegue maioria absoluta no Congresso, não importa o que aconteça. Só tivemos um caso, o da Contribuição Provisória do Mercado Financeiro (CPMF) em que o governo foi derrotado em uma questão importante.

Podemos ir mais fundo nos perguntando se os deputados e senadores têm uma tendência intrínseca à corrupção e à covardia, ou se eles refletem uma situação nacional. Acho que eles não têm essa tendência entranhada. O que existe são conjunturas que fortalecem essa tendência. Atualmente, o dado político mais importante no Brasil reside em que grande parte do eleitorado condiciona seu voto a benefícios concretos para sua região e também para esses eleitores.

Os deputados que não trabalham com esse sistema de benefícios, em troca de voto no Congresso, são uma minoria. Hoje, nos grandes centros urbanos, os deputados que seguem a opinião pública numericamente são cada vez mais reduzidos. Ao mesmo tempo, a faixa de opinião pública que os elege é cada vez menor e, às vezes, escolhe apenas um nome e se concentra nele.

Estamos vendo um processo permanente de mudança de comportamento da própria configuração do Congresso, devido à democracia. Essa traz novidades, mas também acarreta problemas. Por exemplo, vemos um grande número de deputados que vêm de programas radiofônicos e que, de um modo geral, usam os temas da insegurança urbana e da violência, como formas de alicerçar suas eleições. Temos também um expressivo número de sindicalistas, de líderes de periferias urbanas, que são bem-vindos, mas muitos encaram essa vinda para o Congresso como uma forma de ascensão social e utilizam essa presença como um processo de ascensão material porque têm medo de voltar à sua condição anterior.

ESTUDOS AVANÇADOS - Recentemente foi denunciada a influência da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd).

Fernando Gabeira - O problema da Igreja evangélica é um elemento novo. Na verdade, tudo isso decorre do processo de crescimento do Brasil, que trouxe muita gente do campo para as grandes cidades, principalmente para as periferias e comunidades mais pobres. Elas sentem insegurança nesse novo mundo que passam a habitar, pois não têm mais as referências que tinham em suas áreas de origem. As igrejas evangélicas passam a significar um porto seguro, servindo também de elemento de aglutinação. Na relação que a Igreja estabelece com esses fiéis, ela propõe também determinados candidatos que são, teoricamente, amigos de Deus. Os pastores se dizem intermediários de Deus.

Houve um momento em que conseguimos diminuir esse tipo de bancada. Foi quando atuou a Comissão Parlamentar de Inquérito das Ambulâncias, conhecida popularmente como Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Sanguessugas. A bancada dos evangélicos (não porque eram evangélicos) foi reduzida à metade, passando de cerca de 70 a 30 deputados, porque não podia mais manter um discurso cristão e responder a uma série de questões de desvio de dinheiro público.

A realidade da situação política

Temos essa nova composição e uma situação política que favorece a existência de um grande número de deputados que dependem do governo, e, ao mesmo tempo, a permanência de vários governos que dependem dessas composições. Isso se deve à estrutura política brasileira e à forma pela qual ela é organizada.

Os dois grandes partidos que disputam a hegemonia brasileira - o PT e o PSDB - são ancorados em São Paulo. Cada vez que se movimentam no campo nacional têm de buscar alianças para derrotar o outro e governar sem o outro. Essa busca de alianças tem ocorrido para a conquista do setor mais atrasado. Disputando entre si a condição de vanguarda do atraso. Ao mesmo tempo temos um grande partido nacional, o PMDB, que não tem pretensões hegemônicas, não tem projeto nacional e a intenção de dominar o governo central. Apenas quer ser sócio de todos governos. Esse mecanismo é o que Bismarck usava na Alemanha para neutralizar os partidos, atendendo a suas reivindicações específicas para que não tivessem pretensões nacionais. De um lado, o PMDB, explorando essa situação, e do outro, o PSDB e o PT, explorando essa fragilidade, enquanto atendem o PMDB em todas as suas reivindicações específicas (nem todas republicanas).

O PT e o PMDB também mantêm a primazia do projeto nacional, que passa a ser um monopólio deles e de uma alternância entre eles. Esses partidos políticos se transformaram no establishment. Rivalizam entre si, mas têm sócios que ficam esperando a vitória de um ou de outro para entrarem no governo.

Estamos chegando a um ponto em que essa situação não se sustenta mais. Primeiro, porque o Brasil avançou muito no período democrático. Se, através do PSDB, conseguimos uma economia estável (o que passou a ser respeitado pelo PT), dentro do PT temos uma política social respeitada (embora possamos fazer críticas a ela) e que foi incorporada ao processo democrático. Hoje as demandas de uma nova política econômica e as demandas de uma nova política social são tênues. No momento, a grande demanda é a da mudança política, de uma nova relação entre os políticos e os eleitores.

De maneira geral, a esquerda costuma bombardear essa necessidade afirmando que essa é uma pretensão udenista (referindo-se ao velho partido, a UDN, que muitas pessoas desconhecem), tentando ver a história por uma visão que a esquerda condena, como uma repetição de moralismo. Mas não é isso que está em jogo. Trata-se da capacidade de confiar nos políticos (não como santos). Ou seja, esperam políticos que reconheçam os erros e os corrijam, o que não acontece no Brasil porque se tem a ideia de que é possível manipular as pessoas e a opinião pública.

Esse jogo está cada vez mais grosseiro. Esse avanço é necessário na política brasileira e irá determinar que os governos tenham uma relação diferente com o Congresso. Ninguém vai dizer "deixo de respeitar uma emenda porque você é da oposição" ou "vote com o governo que nós te daremos isto". Será um processo em que um programa político comum estará em jogo e as relações entre os partidos serão estabelecidas em torno desse programa.

Outros aspectos da crise

Há outros aspectos da crise que não aparecem para a opinião pública. Um deles é o crescimento da importância internacional do Brasil nos últimos anos. Ao não participar da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o Brasil buscou uma série de apoios bilaterais, produzindo acordos comerciais. A partir do governo Fernando Henrique Cardoso e com muita ênfase no governo Lula, inaugurou-se a diplomacia presidencial. Passamos no Congresso a receber políticos do mundo todo para questionarem sobre nossa posição em diversos campos. Acontece que o Congresso não estava preparado para acompanhar e avançar na política internacional, pois ele é pré-globalização. Isso significa que tem dificuldade de encontrar entre os deputados pessoas que falem outro idioma. Temos uma infinidade de acordos internacionais importantes e não há parlamentares e pessoas interessadas, aptas a ler ou entender esses convênios.

O Congresso vive um momento em que precisa se renovar e atender a essas novas necessidades, mas é difícil haver essa renovação sem que o Executivo também se renove, porque essa renovação conjunta é o que dará as bases para uma nova fase, a qual classifico de segunda onda da democratização.

Cumprimos a primeira onda com as diretas, com eleições relativamente democráticas, com um projeto de política econômica e social. Agora falta o segundo passo, respondendo a essas novas necessidades modernas: credibilidade, integração internacional, relação independente entre os poderes.

Nessa encruzilhada é que as eleições de 2010 contribuirão para esclarecer tudo isso e um pouco mais. Ao contrário do que se pensa, uma vez que os temas elementares já estão posicionados, as próximas eleições serão importante no aspecto da modernização política. Alguns acreditam que isso é udenismo e que a ética na política só interessa à classe média, pois o povo mesmo não quer saber quem é corrupto, já que escolhe (sendo todos corruptos) quem lhe dá algo!

Acontece que esse processo não é tranquilo, há um avanço muito grande. A televisão trata de política de forma mais intensa do que no passado. Então, o povo está tendo contato com informações políticas. Também há um crescimento da informática nos setores mais pobres. Para se ter uma ideia, na minha campanha eleitoral para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, computamos seis mil lan houses nas favelas e elas recebem constantemente jovens.

É um erro a ideia de que nosso povo é estático. O povo, assim como nós, está submetido a um volume de informações cada vez maior. Acredito que as eleições de 2010 irão registrar isso que aconteceu no Rio de Janeiro, nas eleições para prefeitura da cidade. Pois, embora meus adversários dissessem que minhas propostas só seriam aprovadas pela classe média, recebi 49,20% de votos. Assim, se houvesse essa porcentagem de classe média no Rio de Janeiro, estaríamos numa situação econômica muito melhor.

A repercussão da crise nas eleições presidenciais

ESTUDOS AVANÇADOS - Como essa crise determinará uma reforma política em 2010?

Fernando Gabeira - Haverá uma demanda de credibilidade. Tudo que está aí está comprometido e as pessoas irão dizer o que fazer diante desse tema. Provavelmente algum candidato dirá: "Vamos fazer uma reforma política". Esse tema tem servido de bálsamo no Congresso. Cada vez que a situação complica promete-se tal reforma, mas sabemos que as pessoas envolvidas não farão uma reforma política contra elas próprias. Esse é um grande impasse. Por isso tentamos fazer isso por outros caminhos. Primeiro, por um novo Executivo e, depois, desenvolver alguns temas da reforma política. A imunidade parlamentar é um deles, pois em nosso país temos cidadãos de primeira e de segunda classes. Se eu, deputado, atropelo uma pessoa, terei um tratamento, mas, se uma pessoa qualquer atropelar alguém, terá tratamento completamente diferente. Isso é antidemocrático. Também existe no Brasil uma situação peculiar. Para ser funcionário público, o cidadão precisa ter uma ficha limpa, já para ser parlamentar não é indispensável. Basta que ele não tenha sido condenado em última instância para ocupar tranquilamente o seu mandato.

Temos um caminho longo para resolver todos os problemas, mas não se pode mudar tudo de uma única vez. Temos de ir aos poucos e para isso é indispensável uma nova relação entre o Executivo e o Congresso. É preciso que os dois partidos, ao assumirem o governo, quebrem essa lógica e não busquem o que é mais atrasado para governar, porque a questão da governabilidade sempre é colocada. Dizem que não podem virar as costas para o PMDB (corrupto, patrimonialista, "coronelista") porque não vai nos deixar governar. Mas a governabilidade deve ser entendida de outra forma. Deve nascer de um programa político respaldado nas urnas. Devemos tentar aprovar o essencial desse programa com o apoio da população enfrentando a resistência do Parlamento. Não é necessário aprovar tudo, mas apenas o que é essencial em seu programa. É preciso ter uma visão mais tranquila da governabilidade, pois hoje ela está sendo entendida como uma vitória em todos os casos. Veja-se, como exemplo, a questão da CPMF. O governo achava que perdendo não conseguiria manter a governabilidade, mas viu-se que a arrecadação cresceu e não foi preciso realmente manter o imposto.

ESTUDOS AVANÇADOS - Como o senhor analisa as interferências do Judiciário no Legislativo?

Fernando Gabeira - Entendo que elas são positivas. A "judicialização" da política é um fenômeno já existente nos Estados Unidos, onde se busca ajuda do Judiciário para a solução de problemas delicados. No caso brasileiro, os temas que têm sido decididos na Justiça deveriam ser resolvidos no Parlamento. Entretanto, como somos subjugados pelo Executivo com suas medidas provisórias, que sufocam nosso funcionamento, o governo decide governar com medidas provisórias. Assim, em todos os momentos que a Justiça interferiu foi muito positivo para o país. Acredito que deveríamos tratar desses assuntos no Congresso, mas como vivemos num impasse, a Justiça intervém e resolve.

No caso eleitoral, por exemplo, foi um escândalo. Se dependesse dos parlamentares, não haveria eleições, pois nunca se chegaria a um acordo. É preciso que o Tribunal Superior Eleitoral entre e determine quais são as regras do jogo.

Assim, são positivas essas interferências. Isso porque não existe espaço vazio em política. O Executivo com as medidas provisórias ocupa intensamente o espaço do Legislativo, evita que esse cumpra sua função. Aí tem de vir um outro Poder para ocupar esse espaço. Somos assediados por dois poderes, um que nos leva à incompetência, outro que nos substitui.

ESTUDOS AVANÇADOS - O senhor acredita que essa crise terá uma solução rápida ou até o final do ano?

Fernando Gabeira - Houve um equívoco do governo ao apoiar a liderança de Sarney no Senado. Essa não é a causa da crise, mas é um elemento importante. Hoje não interessa a ninguém que a crise seja resolvida: não interessa ao governo porque supõe que está tudo bem com essas pessoas, não interessa à oposição porque vê no prolongamento da crise uma força para se fortalecer. O governo tem a ilusão de que está forte. Temos a opinião pública contra, mas não temos o dínamo interno para realizar essa vontade.

Por isso penso que a transparência em si e a indignação da opinião pública em si não são capazes de resolver o problema. É indispensável uma série de procedimentos legais internos para modificar o funcionamento do Congresso. Todavia, todos percebem que quanto mais a crise se agravar, as pessoas entenderão que o quadro do Congresso necessita ser modificado.

Entrevista realizada em 18 de agosto de 2009.

Fernando Gabeira é deputado federal pelo Partido Verde (PV). @ - dep.fernandogabeira@camara.gov.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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