Open-access Wu-li: um ensaio de música experimental

CRIAÇÃO/MÚSICA

Wu-li: um ensaio de música experimental

Hans-Joachim Koellreutter

Wu-li é música experimental. Porque, nele, o experimentar é o centro da atuação artística. Não é uma obra musical. É um ensaio. É um termo médio entre música concertante e música improvisada. (Acredito que o concerto como forma social da música, do futuro, será substituído pela apresentação em público de improvisações individuais e/ou grupais, espontâneas, isto é, de livre vontade, ou estruturadas, isto é, que têm disposição metódica). Wu-li é música onijetiva que desconhece a divisão rigorosa entre as realidades subjetiva e objetiva. O dualismo compositor/intérprete-ouvinte deixa de existir, pois intérprete e ouvinte tornam-se co-compositores, complementando e completando o processo de composição.

As palavras chinesas Wu-li, se pronunciadas como escritas em português, significam:

estruturas de energia orgânica - em termos de estruturação musical: estruturação planimétrica

caminho - rumo, tendência

contra-senso: "contraria sunt complementa" (Niels Bohr)

perseverança nas idéias - coerência, estilo, iluminação.

Estética Relativista do Impreciso e Paradoxal

Wu-li é uma composição planimétrica, ou seja, uma maneira específica de ordenar música estruturalista, em que unidades estruturais ou gestaltes substituem melodia, harmonia, tempos fortes e fracos, temas e desenvolvimento. É a realização de um plano temporal (fundo), tomado isoladamente ou em relação a outros, pelo levantamento de ocorrências sonoras e musicais. Sua estética é uma estética relativista do impreciso e paradoxal.

A Ausência do Som

O "plano" existe sempre onde há sons. E o portador das ocorrências sonoras, por assim dizer. É o silêncio que faz emergir o som. As ocorrências musicais, suas variações e transformações, o vaivém dos sons são manifestações do plano.

Os sons - qualquer coisa que soa - passam a existir espontaneamente a partir do silêncio, no qual, finalmente, chegam a desaparecer.

O silêncio existe sempre e por toda parte. E os sons são manifestações transitórias do silêncio subjacente, criadas pela mente humana. Não é a simples ausência de som. E repleto de potencialidades sonoras, à disposição do espírito humano e da criatividade intelectual do homem. É também monotonia, índice alto de redundância, reverberação, despretensão, esboço, delineamento, transparência, simplicidade, austeridade e meditação.

A Nova Estética da Música

A segunda metade de nosso século transformou radicalmente a estética da música. Uma nova imagem do mundo (Weltanschauung) esfacelou os principais conceitos da estética musical tradicional, estética racionalista, positivista e até mecanicista: a noção dualista de tempo e espaço, a noção do tempo racionalmente medido (metrônomo), dos "objetos sonoros" definidos (Pierre Schaeffer) e do caráter causal da estrutura e das ocorrências musicais, assim como a idéia de uma análise objetiva da obra musical (objetividade = um mínimo de subjetividade...)

A estética relativista do impreciso e paradoxal parte do ponto de vista de que há um universo sonoro subjacente a todos os fenômenos sonoros, que está além de todos os sons e além de todas as ocorrências sonoras, mas não pode ser ouvido nem percebido pela percepção humana, limitada a um determinado âmbito de freqüências (16 a 16000 Hz por segundo, aproximadamente), aparentando ausência de som, ou seja, silêncio. Assim, o silêncio, em verdade, consiste de um universo de sons inaudíveis, porém não deixando de ser, em última análise, a essência de todas as formas musicais.

Para a estética relativista do impreciso e paradoxal, o som é apenas uma parte bem pequena do universo sonoro, um nó de energia o qual, não estando claramente delineado em relação ao todo, se propaga como uma onda de água através da superfície do mar.

A música tradicional, clássica e romântica, assim como a música popular baseavam-se em "objetos sonoros" e em uma sintaxe de tendência racionalista, deslocando-se no aparentemente vazio, no silêncio. A nova estética, no entanto, traz à tona uma revisão radical dessa conceituação, levando não apenas a uma noção nova do que seja o som, mas também transformando profundamente o conceito tradicional de silêncio. A distinção entre sons de altura definida e indefinida, de ruido e mescla perde sua nitidez, e o silêncio passa a ser considerado como uma qualidade dinâmica e expressiva de grandíssima importância.

Sons e silêncios foram, na música tradicional, dois conceitos fundamentais distintos sobre os quais se basearam os conceitos da estética clássica. Hoje, no entanto, devido às descobertas da ciência moderna e do surgimento da música eletrônica, os dois conceitos não podem mais ser separados. O som não pode ser separado do silêncio em que ocorre. Na nova estética, som é silêncio e silêncio é som. Ambos os fenômenos geram tensão - se se entende por tensão uma fase de interceptação "internal" de um estado psíquico precedente, em que se faz sentir a necessidade de distensão - e, portanto, expressão.

A Dinâmica de Wu-li

Wu-li constitui um verdadeiro evento coreográfico de sons e ocorrências musicais interatuantes através do tempo.

Na estética relativista do impreciso e paradoxal, as interações de sons e ocorrências musicais são representadas em diagramas temporais que permitem estruturar os lapsos de tempo em que ocorre a música, de maneira englobante, resultando uma composição em que sons e silêncios podem ser interpretados como positivos e negativos como sucede na imagem fotográfica. Resulta uma espécie de "renda", um tecido de sons e contexturas, que formam desenhos transluzindo o fundo, isto é, o silêncio estruturado.

Trata-se de uma composição em cuja macroforma cada uma de suas partes, em um certo sentido, contém o todo à maneira do holograma. Trata-se de padrões sonoros multidimensionais e multidirecionais, passíveis de serem redistribuidos (variados e/ou transformados), um fenômeno dinâmico de que procedem novos padrões

Desde 1933, quando chegou ao Brasil, Hans-Joachim Koellreutter (Freiburg, Alemanha, 1915) ocupa lugar único no panorama da música brasileira. Sua chegada e a conquista de real liderança no nosso meio musical coincidem com os últimos anos de ação de Mário de Andrade, parecendo significar que cabia a Koellreutter ocupar, na área da música, o espaço deixado vago com o desaparecimento do líder modernista.

Os algarismos ao lado das linhas de trajeto referem-se à duração das trajetórias de silêncio, pausa ou som em unidades de tempo.

As entradas dos instrumentos ou vozes ocorrem a critério dos intérpretes; da mesma forma densidade ou rarefação da polifonia.

Os sons de altura definida ou indefinida obedecem à tessitura dos instrumentos ou vozes respectivos, subdividida em sons graves, médios ou agudos.

(holomovimento). Trata-se de uma autentica teia dinâmica a qual, no entanto, não dispensa a noção de ordem, empregando o diagrama para manejar variação e transformação, e a planimetría para determinar os princípios de ordem.

Wu-li, assim, pode ser interpretado como um meio procurando conscientizar um sem-número de potencialidades criativas, ainda inéditas e imprevisíveis, através da estruturação do fundo-silêncio, ativo e dinâmico.

Hans-Joachim Koellreutter é maestro, compositor e ex- professor visitante do IEA/USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1990
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