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Entre o Caribe e a Amazônia: haitianos em Manaus e os desafios da inserção sociocultural

RESUMO

A chegada dos primeiros haitianos à cidade de Manaus, a partir de 2010, foi interpretada inicialmente como um fenômeno passageiro e que a cidade seria apenas um local de passagem para a maioria deles, já que o Brasil das "oportunidades" do qual eles tinham ouvido falar ficava mais a sudeste e sul. Essa percepção inicial parece ter se confirmada em parte, pois, segundo a Pastoral do Migrante, dos mais de oito mil haitianos que haviam passado por Manaus, cerca de mil ainda permanecem na cidade. Dentre os que escolheram permanecer, importa indagar quais seriam as razões dessa "escolha" e como tem sido o processo de inserção sociocultural. Considerando o curto espaço de tempo da presença haitiana em Manaus, e os desafios socioeconômicos enfrentados por esses imigrantes, este artigo levanta algumas hipóteses sobre as possibilidades de trocas culturais entre haitianos e brasileiros, a partir dos universos religioso e musical.

PALAVRAS-CHAVE:
Haitianos; Manaus; Inserção sociocultural; Hibridismo.

ABSTRACT

The arrival of the first Haitians to the city of Manaus in 2010 was initially considered to be a transitory event. It was expected that this population would be largely transient in Manaus, since the Brazil of "opportunities" of which they had heard was more to the southeast and south. This initial perception seems to have been confirmed in part, since, according to the Pastoral Care of Migrants, of the more than eight thousand Haitians who passed through Manaus, about a thousand remained in the city. With regard to those who chose to stay, it is important to ask what were the reasons for their "choice" and how the process of socio-cultural insertion has gone. Considering the briefness of the Haitian presence in Manaus and the socioeconomic challenges they face, this article raises some hypotheses about the possibilities for cultural exchanges between Haitians and Brazilians, especially in the religious and musical contexts.

KEYWORDS:
Haitians; Manaus; Sociocultural insertion; Hybridism

EM 2010, quando começaram a chegar os primeiros haitianos na cidade de Manaus, a ideia que parecia predominar naquele momento entre os agentes sociais que os acolhiam era a de que a cidade seria apenas um lugar de "passagem", já que para muitos deles o Brasil das "oportunidades" do qual eles tinham ouvido falar ficava mais a sudeste e sul, isto é, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba. Florianópolis, entre outras. Manaus não parecia fazer parte do imaginário migratório que fora construído ainda no Haiti ou na República Dominicana, um dos principais locais de partida.

Essa percepção inicial parece ter se confirmado em parte, já que, segundo a Pastoral do Migrante, dos mais de oito mil haitianos que já passaram por Manaus, cerca de mil ainda permanece na cidade. Dentre os que "escolheram" ficar em Manaus cabe, pois, perguntar, quais seriam as razões que teriam pesado nessa "escolha"? Como tem sido o processo de inserção sociocultural dos haitianos, seja do ponto de vista deles, seja do ponto de vista dos manauaras?

A partir do trabalho de campo realizado em diferentes momentos de 2012 e 2013, junto à Pastoral do Migrante e moradores manauaras e haitianos que vivem no bairro São Geraldo, zona Centro-Sul da cidade, procuramos levantar algumas hipóteses sobre as possibilidades de trocas ou hibridações culturais entre brasileiros e haitianos, a partir dos universos religioso e musical (Canclini, 2013CANCLINI, N. G. Las fronteras dentro de los países, las naciones fuera de su território. DIVERSITAS, n.1, p.16-28, mar./set. 2013.). No total foram entrevistados dez manauaras, sete homens e três mulheres, e cinco haitianos, todos homens. O menor número de haitianos se deve, em parte, às dificuldades de comunicação, já que, em geral, eles têm pouco domínio do português. Em alguns casos o uso do espanhol foi uma saída, posto que aqueles que viviam na República Dominica ou no Equador também falam esse idioma, além do créole e do francês. Outro fator a ser considerado foi a pouca abertura em participar da pesquisa, talvez como uma forma de autoproteção, numa situação de vulnerabilidade social.

Haitianos em Manaus: perfil e desafios à inserção sociocultural

Segundo a Pastoral do Migrante de Manaus, até maio de 2014, já haviam passado pela capital amazonense mais de oito mil haitianos, dos quais mais de mil continuam na cidade. Os demais seguiram viagem para outros estados brasileiros, entre eles Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catariana, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, entre outros. Contudo, o fluxo tem se mantido com a chegada de novos imigrantes todas as semanas, ainda que em menor número. A partir de 2012, a principal porta de entrada na Amazônia passou a ser a de Assis Brasil e Brasileia, no Acre, talvez em razão das facilidades de cruzar a fronteira e das possibilidades de transporte terrestre para outras cidades do sudeste e do sul do Brasil, onde havia uma maior oferta de empregos.

Eles são, em geral, jovens, dentro de uma faixa etária que vai dos 20 aos 45 anos de idade, na sua maioria do sexo masculino, solteiros e com uma escolaridade média. Parte deles apresenta uma formação de nível técnico e uma minoria tem curso universitário completo (Silva, 2012______. Aqui começa o Brasil: haitianos na Triplice Fronteira e Manaus. In: SILVA, S. A. (Org.) Migrações na Pan-Amazônia - fluxos, fronteiras e processos socioculturais. São Paulo: Hucitec/Fapeam, 2012. p.300-22., p.310). Como qualquer outro fluxo de migração laboral, num primeiro momento, temos a presença quase exclusiva de homens, fato que começa a mudar na medida em que a rede social se consolida. Temos, num segundo momento, a presença de algumas mulheres que se denominam solteiras, outras com crianças ou grávidas. A presença de grupos familiares completos também já pode ser encontrada entre eles. Contudo, um fato que tem chamado a atenção é a presença de pessoas com mais de cinquenta anos, o que pode estar indicando um processo de reunificação familiar.

Do ponto de vista da origem, inicialmente, eles advinham da capital Porto Príncipe, cidade duramente afetada pelo terremoto de 2010, e outras que não sofreram danos, como Gonaives e Jacmel. Hoje é possível constatar localidades de diferentes partes do Haiti. Importa lembrar, contudo, que para a maioria o lugar de nascimento não coincide com o de partida para o Brasil, isso porque a migração interna e a internacional, para países vizinhos, como é o caso da República Dominicana, de Cuba e de outros países caribenhos, é um fenômeno histórico que faz parte das estratégias de reprodução socioeconômica dos haitianos (Perusek, 1984PERUSEK, G. Haitian emigration in the early Twentieth Century. Internacional Migration Review, v.XVIII, n.1, p.4-18, 1984.; Audebert, 2012AUDEBERT, C. La diaspora haïtienne: territoires migratoires et réseaux transnationaux. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012.). Nesse sentido, a República Dominicana tem sido um dos principais pontos de partida dos haitianos, já que muitos deles viviam nesse país há vários anos. Vale notar que tal fato tem ensejado também a vinda de imigrantes daquele país, que se utilizam da mesma rede e rota percorrida pelos haitianos. Porém, ao chegarem a Brasileia não recebem o mesmo estatuto jurídico oferecido aos haitianos pelo governo brasileiro, ou seja, o visto humanitário. Nesse caso, a única saída àqueles é solicitar o estatuto de "refugiado", mesmo sem ter a certeza de que serão enquadrados nessa categoria.

Outro ponto de partida dos haitianos é a Venezuela. Tal origem passou a ser notada em Manaus a partir de 2013. Nesse caso trata-se de um processo de re-emigração, pois há casos de imigrantes que já viviam naquele país por mais de vinte anos. Com o agravamento da crise econômica no país vizinho e com as dificuldades de enviar recursos às suas famílias, a vinda ao Brasil passou a ser um desdobramento de um processo de migração que já havia começado há algum tempo, reforçando o caráter cada vez mais transnacional das migrações (Schiller et al., 1995SCHILLER, N. G.; BARCH, L.; BLANC, C. S. From immigrant to transmmigrant: theorizing transnational migration. Anthropological Quartely, v.68, n.1, jan. 1995.).

Em Manaus eles estão em diferentes bairros da cidade, entre eles da zona Centro-Sul, como São Geraldo, Chapada, São Jorge, São Raimundo, Coroado e outros da zona Norte, como Manoa, Zumbi, Mutirão, Cidade Nova, e da zona Leste, como o Nova República. Em geral são casas ou quartos alugados, onde vivem várias pessoas, como uma forma de dividir os custos do aluguel. Outros continuam em abrigos mantidos pela Pastoral do Migrante e ONG, como é o caso do projeto AMA HAITI no bairro Parque Dez. Nesses abrigos estão aqueles que ainda não conseguiram estabilidade na cidade, mediante a inserção no mercado de trabalho.

Os setores do mercado de trabalho que mais absorviam trabalhadores haitianos em Manaus eram os da construção civil, seguido pelos do comércio e serviços. Não encontrando trabalho no mercado de trabalho formal, alguns são obrigados a aceitar atividades informais, como segurar placas de propagandas pelas ruas da cidade ou vender objetos e alimentos, como sorvete, água, seja para manauaras, seja para os próprios haitianos. As dificuldades de encontrar trabalho se devem, em primeiro lugar, ao refluxo do mercado de trabalho local e nacional, já que a economia brasileira havia reduzido as expectativas de crescimento a partir de 2012, e em segundo, à falta de qualificação exigida pelo mercado, além do fator linguístico que dificulta a comunicação. Se, por um lado, não dominar o português dificulta a inserção no mercado de trabalho, por outro, falar outras línguas, como o francês, o inglês e o espanhol, pode abrir portas na hora de pleitear um emprego em outros segmentos laborais, como é o caso do setor do turismo e do ensino de idiomas.

Para aqueles que apresentam uma maior qualificação, o problema é encontrar trabalho na sua área, já que terão que revalidar os seus diplomas para exercer no Brasil a atividade laboral para a qual foram qualificados. E isso é um processo demorado e custoso. Nesse caso, terão que aceitar trabalhos muito aquém de suas qualificações profissionais. Para os que não concluíram seus cursos, o desafio será ingressar numa universidade pública, já que na condição de imigrante terão que seguir as mesmas regras estipuladas para os brasileiros que queiram ingressar no ensino superior. Nesse caso, a única possibilidade é bancar a mensalidade em alguma universidade particular, iniciando um novo curso.

No caso das mulheres a inserção no mercado de trabalho tem sido mais difícil em razão de vários fatores, entre eles o aprendizado da língua portuguesa, a baixa qualificação e a rejeição de algumas modalidades de trabalho que lhes são oferecidas, como é o caso do serviço doméstico. Nesse caso, as razões de tal rejeição devem ser buscadas na história social tanto do Haiti quanto do Brasil, onde esse tipo de trabalho é pouco valorizado socialmente, em razão do lugar que o negro ocupou no contexto colonial de ambos os países.1 1 Dados levantados pela Pastoral do Migrante na casa de acolhida São Francisco em 2014 mostram que num universo de 305 mulheres que passaram pela casa, 34,98% declararam ter exercido a profissão de comerciantes no Haiti, 15,52% trabalhavam como cabeleireiras e manicure, 10% como cozinheiras e apenas 1% como domésticas e camareiras. Há que considerar também casos de haitianas que no Haiti tinham empregadas e que agora a situação pode se inverter. Contudo, no caso brasileiro, com a nova legislação que ampliou os direitos do trabalhador doméstico no país, essa realidade poderá mudar, conferindo a essa categoria um lugar social diferenciado, já que a demanda desse tipo de mão de obra vem crescendo no mercado.

Vinda de uma economia em grande parte informal, parte dos haitianos tem dificuldade em se adaptar à legislação trabalhista brasileira e não entende as razões de tantos descontos no valor do salário que fora combinado previamente com o empregador. Decepcionados, alguns abandonam os empregos, causando problemas às empresas. Em geral a média salarial oscila entre um salário mínimo e um pouco mais. Para aqueles que se inserem no setor de turismo, hotelaria e bancos, a média salarial é mais elevada. Porém, há casos de trabalhadores que recebem menos de um salário mínimo e não são registrados, abrindo espaço para a superexploração dessa mão de obra. Para quem ganha um salário mínimo, a matemática é simples: trezentos reais para o aluguel, duzentos para enviar à família no Haiti e o restante para sobreviver durante o mês. Para os que não encontram trabalho no mercado formal, a solução é sobreviver vendendo alguma coisa pelas ruas da cidade, como roupas e cabelo artificial, sorvete, alimentos, água e guloseimas nos ônibus urbanos, como é o caso de algumas mulheres.

Uma forma de enfrentar o desemprego e gerar renda, tanto para homens quanto para mulheres, tem sido vender sorvetes pelas ruas da cidade. Porém, a diferença é que os sorvetes são fabricados por uma cooperativa organizada por eles e com o suporte logístico da Igreja São Geraldo, fato que permite ampliar a margem de lucro em cada picolé vendido. Vale notar a forma como eles se apresentam ao público manauara, pois, mesmo no contexto do trabalho, eles andam bem vestidos pelas ruas da cidade. Os homens portam, às vezes, um avental branco, denotando a assepsia na venda do sorvete, e para se protegerem do sol, alguns usam um boné, e em outros casos, observa-se também o uso de um guarda sol, fato que denota, por um lado, a dificuldade para adaptar-se ao forte calor amazônico e, por outro, o cuidado com a pele, mesmo tendo uma cútis com uma concentração maior de melanina. No caso das mulheres, elas fazem uso de chapéus estilizados e de sombrinhas.

Se, no âmbito do mercado de trabalho, alguns desafios deverão ser superados em médio e longo prazos, no âmbito sociocultural a realidade também não é diferente. No bairro São Geraldo, onde a pesquisa se concentrou, as relações dos haitianos com o contexto local ainda são restritas e, em alguns casos, marcadas pela desconfiança e intolerância da parte de moradores locais. Esses veem neles uma possível ameaça, seja por ocupar espaços que antes eram de uso exclusivo da comunidade, como é o caso da quadra de esportes da Igreja São Geraldo, seja porque os haitianos estariam recebendo um atendimento privilegiado da parte das autoridades religiosas e civis. Nessa igreja funciona um dos locais de atendimento da Pastoral do Migrante em Manaus e, desde 2010, tem sido a referência para a maioria dos haitianos que chegam à cidade em busca de abrigo, trabalho, orientação jurídica e religiosa, embora a maioria declare pertencer a alguma denominação evangélica.

Outro fator que fomentou a polêmica com os moradores locais foi a abertura de uma "creche" no espaço da Pastoral para atender crianças imigrantes, em sua maioria haitianas. Em 2013 havia 38 crianças nascidas em Manaus, portanto, brasileiras, e eram atendidas pela creche. Na visão dos moradores do bairro essas crianças são estrangeiras e, nesse caso, não deveriam ter tratamento diferenciado, já que crianças manauaras não tinham recebido até então a mesma atenção.

Contudo, as opiniões se dividem sobre tal presença no bairro. Para alguns, prevalece a questão humanitária e, inclusive, apoiam as ações sociais que têm sido feitas em favor desses imigrantes. É o caso de José Carlos, engenheiro de 55 anos e morador do bairro há doze anos, o qual ajudou na acolhida dos haitianos, inclusive oferecendo dinheiro. Para ele, a relação é tranquila, pois na sua visão eles "são educados e vieram para ficar". Já para Carlos, de 45 anos e morador do bairro há quinze anos, as autoridades deveriam atender primeiro as necessidades dos brasileiros, pois, segundo ele, "o governo dá aos haitianos prioridade que nunca foi dada aos amazonenses". A mesma visão é compartilhada por Marlene, de 62 anos e que tem uma filha desempregada. Para ela, o padre dá mais apoio aos estrangeiros do que aos moradores locais, inclusive cedeu-lhes a quadra de esporte, local antes utilizado pelas crianças da comunidade. Outros dizem não se importar com a presença haitiana, mas acabam reproduzindo a visão corrente de que eles vieram para ocupar vagas no mercado de trabalho, as quais deveriam ser reservadas em primeiro lugar aos amazonenses, ideia, aliás, recorrente em diferentes contextos migratórios, particularmente, em momentos de retração econômica.

Isso ficou explícito no depoimento de Michel, de 30 anos, natural de Gonaives e há dois anos na cidade. Ele trabalhou por seis meses numa agência de um banco estatal, como atendente no caixa. Segundo ele, enquanto trabalhava ouviu várias vezes comentários ofensivos sobre o seu desempenho, pois na visão de alguns correntistas do banco ele não estaria preparado para trabalhar naquela função. Uma cliente teria dito ao gerente que enquanto os amazonenses trabalham no Distrito Industrial em trabalhos sujos e pesados, ele, um haitiano, que acabou de chegar já estava trabalhando no banco, ou seja, ocupando o lugar de um "nativo", considerado "branco" em relação a eles.

Porém, o preconceito em relação aos haitianos não se limita ao universo do trabalho, mas se reproduz também no âmbito acadêmico, pois, segundo Michel, colegas de estudo de uma universidade particular teriam dito que "até na universidade já tem haitiano", suspeitando que eles estejam recebendo alguma ajuda do governo para estudar. Na verdade, essas visões revelam resquícios de uma mentalidade retrógada e racista que não vê outro lugar social para o negro a não ser na condição de força de trabalho mal paga e disponível para ocupar postos de trabalho pouco valorizados, como os mais pesados na construção civil e no serviço doméstico. Aliás, ser negro, estrangeiro e pobre são atributos que podem dificultar ainda mais as trajetórias desses imigrantes na cidade.

Para além dessas visões do senso comum e impregnadas de preconceito, há outras que veem nos haitianos uma possibilidade de intercambio, ao apontar as diferenças culturais como algo positivo. É o caso de Marilene, de 44 anos, oriunda de Santa Catarina e moradora do bairro há 25 anos. Segundo ela, os haitianos são "pessoas educadas e falam várias línguas". Quando indagada se eles sofrem algum tipo de preconceito, pelo fato de serem negros, ela respondeu: "somos um povo mestiço, um a mais...". Essa percepção pode estar revelando que a questão racial não seria uma barreira à inserção do grupo na cidade, já que eles seriam incorporados como "mestiços", pois segundo Braga (2012)BRAGA, S. I. Danças e andanças de negros pela Amazônia. In: SAMPAIO, P. (Org.) O fim do silêncio. Belém: Açaí, 2012., essa categoria seria um artifício ideológico para negar a presença do negro na Amazônia.

Talvez seja cedo para afirmar que uma das formas de inserção dos haitianos no contexto local seja via matrimônios interculturais, pois já é possível observar arranjos amorosos entre haitianos e brasileiras. Como a maioria deles se declara solteira, embora boa parte afirme ter tido algum tipo de relacionamento no Haiti ou filhos, eles estariam "disponíveis" no mercado matrimonial. Na verdade, é comum em qualquer processo migratório que relações matrimoniais se redefinam, e algumas delas são recompostas com o processo de reunificação familiar, enquanto outras são rompidas definitivamente. Contudo, alguns se mostram céticos em relação ao futuro dessas relações, pois, na visão deles, diferenças culturais poderão ser uma barreira à consolidação de matrimônios interculturais, isso porque a mulher brasileira é vista pelos entrevistados como mais liberal, porém não tolera que seu companheiro tenha outros relacionamentos, fato que, segundo eles, é comum no Haiti. Seja como for, essa questão carece de uma investigação mais aprofundada.

Para além das visões exóticas que costumam emergir no início dos fluxos migratórios, particularmente, nesse caso, onde o elemento "racial" aparece como um marco diacrítico da identidade do grupo, resta perguntar se no caso dos haitianos essa questão será de fato um elemento balizador da inserção deles na cidade. Num estudo realizado por Mello Rosa (2010)MELO ROSA, R. de. Subjetividade e inversão do racismo: um estudo de caso sobre os haitianos na República Dominicana. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, ano XVIII, n.34, p.99-112, jan./jun. 2010., em Santo Domingo, a autora mostra que naquele contexto há um processo de racialização das relações de trabalho, onde os haitianos realizam atividades considerados inferiores pelos dominicanos e, portanto, são reservados aos "nèg", ou seja, aos negros. Se em Santo Domingo eles "aceitam" tais empregos, talvez pelo fato de estar temporariamente naquele país, no Brasil a realidade poderá ser distinta, até porque, ao que tudo indica, muitos vieram para ficar e estão em diferentes regiões do país, onde a questão racial é mais ou menos explícita. Em grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a presença de afrodescendentes e de imigrantes oriundos de diferentes regiões da África é marcante, essa questão pode ser minimizada, já que a própria dinâmica da metrópole, marcada pela diversidade étnica e cultural, impõe a tolerância à diferença como condição para o convívio social. Já em pequenas cidades do sul do Brasil, onde a presença de descendentes de imigrantes europeus é significativa, a realidade poderá ser outra.

Na Amazônia e, particularmente, em Manaus, onde a presença negra tem sido minimizada e, até mesmo, silenciada pelos pesquisadores, como aponta Sampaio (2011)SAMPAIO, P. O fim do silêncio. Manaus: EDUA, 2011., os arranjos poderão tomar outros contornos. Em primeiro lugar, os haitianos são facilmente identificados pelos traços fenotípicos, ou seja, pela cor da pele e, em segundo, pelas diferenças culturais, tendo a língua como um elemento de diferenciação entre eles e os manauaras. Aliás, valer notar o desconforto de estudantes africanos que vieram para estudar na Universidade Federal do Amazonas, os quais são identificados pelos locais como "haitianos", pelo fato de serem negros. Resta, pois, investigar com maior profundidade se a cultura prevalecerá sobre a questão racial, criando canais de diálogo com a sociedade brasileira, como através da música e da religião.

Com relação à música, é notória a influência de ritmos afros tanto na música brasileira quanto na haitiana. Em Manaus já há um grupo musical formado por jovens haitianos, denominado inicialmente por eles de New Kompa, ou novo ritmo, o qual passou a ser chamado de Sensation. Por enquanto, os locais de apresentação têm se restringido ao espaço da Pastoral do Migrante, festas sociais e suas festas pátrias, como o dia da independência2 2 Nesse dia é servida uma sopa feita de carne e legumes, simbolizando a igualdade e a liberdade conquistada por eles em 1804, já que, antes da independência, esse prato era restrito à elite branca que dominava o Haiti. (1º de janeiro) e da bandeira (18 de maio). Entretanto, segundo um dos integrantes do grupo, o objetivo é tocar em lugares públicos como uma forma de divulgar a música haitiana no Brasil.

Já no âmbito religioso, as relações parecem ser mais complexas, visto que igrejas voltadas para a comunidade haitiana começam a ser criadas na cidade. Isso poderá ser um fator de segregação do grupo, já que o fator linguístico é um marcador das diferenças étnicas deles frentes aos seguidores locais. No bairro São Jorge há uma sede da Igreja Metodista Wesleyana, e nesse mesmo bairro, na rua São Paulo, foi alugado um salão para a comunidade haitiana cujos participantes em sua maioria são homens. A presença feminina ainda é pequena, bem como a de crianças. Num culto que participei, não observei a presença de jovens e eu era o único brasileiro e branco, ou seja, "estrangeiro" naquele espaço. O culto foi realizado em créole e em alguns momentos o pastor arriscou falar algumas frases em português, talvez porque eu estava presente. No final do culto ele pediu a quem estava ali pela primeira vez que se apresentasse. Foi então que me identifiquei e disse qual era o propósito da minha visita, o qual parece ter sido acolhido por todos os presentes.

Considerando que o Vodu é um elemento constitutivo da cultura haitiana e da própria haitianidade (Hurbon apud Handerson, 2010HANDERSON, J. Vodu no Haiti - Candomblé no Brasil: identidades culturais e sistemas religiosos como concepções de mundo Afro-Latino-Americano. Pelotas, 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Instituto de Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2010., p.168), cabe, pois, perguntar o que acontece com essa tradição num novo contexto, onde os haitianos são, em geral, acolhidos pelas Igrejas Católica e Metodista. É sabido que historicamente a Igreja Católica combateu tanto a prática do Vodu no Haiti quanto a das religiões afro-brasileiras, classificando-as como "feitiçaria", prática voltada para o mal. Nessa perspectiva, poderíamos levantar a hipótese de que a religião do Vodu, em que pese sobre ela uma forte carga de preconceitos e estigmatização, continuará presente entre os haitianos, como um "sistema cultural" (Geertz, 1973GEERTZ, C. The interpretation of cultures. New York: Basic Books, Inc., Puhlishers, 1973.), capaz de conferir sentido, sobretudo nas situações de crise e inseguranças, ensejadas tanto pelos fenômenos naturais no Haiti como pelo fato social da imigração. Um exemplo disso é quando alguém da família fica doente ou falece. Nesses casos é preciso retornar ao Haiti para realizar rituais voduistas, com o objetivo de se reestabelecer a ordem.

Nesse contexto de transição, ser católico ou evangélico poderá ser uma estratégia de inserção num novo contexto sociocultural pautado por tradições cristãs, seja na versão do catolicismo, seja na do protestantismo. Se no âmbito do catolicismo há uma maior tolerância em relação às religiões de origem africanas, em que os adeptos transitam sem problemas entre diferentes sistemas de crenças, o mesmo não se pode dizer em relação às igrejas neopentecostais, as quais assumem uma postura de combate e negação de práticas alusivas ao universo afrorreligioso, demonizando-as (Oro, 2007ORO, A. P. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In: SILVA, W. G. (Org.) Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007. p.29-69.).

Seja como for, um fato que presenciei durante o trabalho de campo pode ser ilustrativo de que o Vodu faz parte da "visão de mundo" desses imigrantes, permeando suas trajetórias na nova terra. Um grupo de haitianos recém-chegados a Manaus discutia com a freira encarregada do acolhimento dos haitianos na Paróquia São Geraldo. Eles argumentavam que não queriam ir para um alojamento mantido pela Pastoral do Migrante no bairro Zumbi, zona Norte da cidade. Além da distância do centro da cidade, que certamente dificulta o acesso deles às redes de apoio, situadas na região central de Manaus, o nome desse lugar acionou uma situação muito temida no Vodu do Haiti, que é a de se transformar num "Zombi", estado de letargia e sonolência profunda a que é submetida uma pessoa, que acaba sendo considerada morta por seus familiares. Nessa condição, o "enfeitiçado" pode estar sujeito a toda forma de manipulação, inclusive ser escravizado (Handerson, 2010HANDERSON, J. Vodu no Haiti - Candomblé no Brasil: identidades culturais e sistemas religiosos como concepções de mundo Afro-Latino-Americano. Pelotas, 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Instituto de Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2010., p.138).

E num processo de inserção social, marcado às vezes pela desonestidade de empregadores sem escrúpulos, o que eles não querem é ser transformados em "Zombi", ou seja, em possíveis escravos. Por isso, o abandono do emprego por trabalhadores haitianos, vista pelos empregadores como uma indisciplina ou incapacidade para adaptar-se ao universo racional das leis trabalhistas, pode ser uma forma de eles se inserirem no mercado de trabalho brasileiro de modo não subordinado, condição, aliás, pretendida por alguns contratantes, já que eles precisam trabalhar para enviar dinheiro à suas famílias.

Nessa perspectiva, as igrejas têm tido, em geral, um papel fundamental no processo de inserção dos haitianos na cidade, sobretudo no momento da chegada, particularmente para quem não conta com a ajuda de amigos ou parentes para resolver os primeiros desafios de todo migrante: encontrar trabalho e moradia. Outras questões, como encaminhar documentos, aprender o português, qualificar-se profissionalmente e defender direitos, são alguns dos serviços oferecidos por igrejas e ONG da cidade. Nesse sentido, a Pastoral do Migrante da Igreja Católica tem sido um espaço de solidariedade e articulação dos haitianos num contexto marcado, às vezes, pela indiferença de governos locais e por preconceitos de brasileiros que atribuem a vinda dos haitianos ao Brasil a uma iniciativa do governo brasileiro, particularmente do ex-presidente Lula.

Se, de um modo geral, a imagem dos haitianos na cidade é considerada, por um lado, boa, pois são vistos como pessoas trabalhadoras e educadas, que não se envolvem com a criminalidade, por outro, os canais de diálogos com o contexto local parecem ser ainda incipientes. Além das iniciativas privadas, particularmente de igrejas e ONG, não se constata nenhuma política pública voltada para a inserção sociocultural deles em Manaus, já que na percepção do senso comum a cidade está mais "colorida". Contudo, o problema que se coloca é como lidar com essa diversidade, oscilando entre a intolerância localizada, como é o caso de alguns brasileiros incomodados com essa presença no bairro São Geraldo, e o discurso exoticizante de que os haitianos não são discriminados na cidade.

A presença haitiana em Manaus é "boa para pensar", além de questões sociais, econômicas e políticas que essa presença enseja, os limites das ideologias multiculturalistas que enfatizam o pertencimento a uma única sociedade e Estado-Nação, já que a dinâmica cultural é permeada por relações que vão além da localidade e dos Estados nacionais, possibilitando aos emigrados construírem "campos sociais transnacionais" (Feldman-Bianco, 2012FELDMAN-BIANCO, B. Repensando a localidade nos estudos migratórios. In: SILVA, S. A. (Org.) Migrações na Pan-Amazônia: fluxos, fronteiras e processos socioculturais. São Paulo: Hucitec; Fapeam, 2012. p.81-92., p.90). Nessa perspectiva, já não é possível mais pensar a migração a partir do conhecido marco conceitual que a entendia como um processo definido temporal e espacialmente entre locais de origem e de destino, mas é preciso considerar outras variáveis, como a re-emigração, a migração de retorno e aqueles que estejam em transito. Entendida como um "fato social total" (Sayad, 1998SAYAD, A. A imigração e os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.), a migração tem implicações econômicas, sociais e culturais, tanto no local de partida quanto no de chegada ou de passagem. Se do ponto de vista econômico a integração se dá de alguma forma via mercado de trabalho formal ou informal, o mesmo não se pode dizer do ponto de vista social e cultural, já que a condição de imigrante, considerado como "trabalhador temporário", impõe uma serie de limites, seja no exercício da cidadania política, seja no âmbito das trocas culturais, em razão de preconceitos que poderão enfrentar.

Se, por um lado, preconceitos podem impor limites às trocas culturais, por outro, é preciso estar atento aos processos de recriação cultural, já que num novo contexto os migrantes terão que lidar com um "ethos" cultural diferente daquele que estavam acostumados a vivenciar. E nesse processo de intercambio, para Canclini (2013)CANCLINI, N. G. Las fronteras dentro de los países, las naciones fuera de su território. DIVERSITAS, n.1, p.16-28, mar./set. 2013., práticas culturais poderão coexistir ou hibridar-se, pelo menos, parcialmente. Contudo, alerta o autor que "la hibridación no es sinónimo de conciliación", ao contrário, "puede implicar combinaciones tensas y conflictos entre las culturas y estéticas que se entrecruzan desde posiciones desiguales" (Canclini, 2013CANCLINI, N. G. Las fronteras dentro de los países, las naciones fuera de su território. DIVERSITAS, n.1, p.16-28, mar./set. 2013., p.19). Nesse contexto de "intercâmbios" culturais, o problema que se coloca é o da tradução, já que a recriação de uma prática cultural num novo contexto poderá ganhar novos sentidos, seja para quem não a conhece, nesse caso os brasileiros, seja para os haitianos, os seus protagonistas. E nada melhor para expressar essa realidade do que as metáforas que são criadas, seja no âmbito da linguagem, seja no âmbito das estéticas corporais. Nessa perspectiva, o universo religioso e musical dos haitianos com influências africanas, europeias e ameríndias oferece várias possibilidades de trocas ou possíveis hibridações com o contexto cultural brasileiro.

Considerações finais

No caso dos haitianos em Manaus, talvez seja ainda cedo para tecer conclusões sobre o processo de inserção deles na cidade, até porque, trata-se de um fluxo migratório recente e com um alto grau de rotatividade, já que para muitos deles, Manaus tem sido um lugar de passagem, em razão das dificuldades de inserção no mercado de trabalho local. Para outros, a re-emigração para países, como os Estados Unidos, passou a ser uma outra possibilidade, apesar do alto investimento e dos riscos que tal decisão implica. Para os que ficam, a cidade pode ser o lugar de realizações profissionais e de trocas culturais.

Contudo, a experiência histórica da imigração no Brasil já revelou que a inserção dos imigrantes não acontece por decreto e que essa não é uma via de mão única, mas depende, em grande parte, da forma como eles reagem aos preconceitos que lhes são atribuídos e se organizam enquanto grupo étnico para dialogar com a sociedade local. Nesse sentido, alguns passos já foram dados na construção de uma instituição que os represente. Resta agora esperar que essas iniciativas frutifiquem e fortaleçam a busca por uma cidadania cada vez mais ampla, superando dicotomias, entre elas de ordem jurídica, que antepõem nacionais e estrangeiros, de ordem geopolítica, que os classificam com categorias genéricas de caribenhos ante os sul-americanos, ou ainda de cunho cultural, que remarcam as diferenças entre tradições afro-caribenhas e afro-brasileiras.

Talvez a proposta desenvolvida por Édouard Glissant (1997)GLISSANT, E. Traité du tout-monde. Paris: Gallimard, 1997. de "pensamento de arquipélago", o qual se inspira na concepção dos caraíbas e dos arawakes, que habitavam as ilhas do mar do Caribe antes da chegada dos conquistadores, possa ser-nos profícua para pensar a presença haitiana não somente em Manaus, mas também em outras partes do Brasil e do mundo. Tal como os habitantes pré-colombianos, que não defendiam o sentimento de pertença a uma ilha isolada, mas a um arquipélago, os haitianos também circulam de ilha em ilha e entre diversos continentes, criando múltiplas relações, mesmo quando a presença física se faz impossível. Oxalá as dificuldades enfrentadas por eles ao longo de suas trajetórias em terras brasileiras não os transforme em ilhas, mas os estimule a continuar questionando ideias imobilizadoras e cosmologias hegemônicas.

Notas

  • 1
    Dados levantados pela Pastoral do Migrante na casa de acolhida São Francisco em 2014 mostram que num universo de 305 mulheres que passaram pela casa, 34,98% declararam ter exercido a profissão de comerciantes no Haiti, 15,52% trabalhavam como cabeleireiras e manicure, 10% como cozinheiras e apenas 1% como domésticas e camareiras.
  • 2
    Nesse dia é servida uma sopa feita de carne e legumes, simbolizando a igualdade e a liberdade conquistada por eles em 1804, já que, antes da independência, esse prato era restrito à elite branca que dominava o Haiti.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2014
  • Aceito
    05 Maio 2015
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