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Dom Quixote, Sancho Pança e Dulcineia

RESUMO

O objetivo central do presente artigo é examinar o relacionamento entre as três personagens, isto é, o cavaleiro, o escudeiro e a dama, focando Dom Quixote. Para isso, serão considerados alguns episódios com a perspectiva de tratar de entender algumas das razões que levam o leitor de hoje (e provavelmente de sempre) a admirar e respeitar intensamente um personagem que, na sua essência, é um louco arrematado.

PALAVRAS-CHAVE:
Dom Quixote; Cervantes; Personagem

ABSTRACT

The central purpose of this article is to examine the relationship between the three characters: the knight, the squire and the lady, focusing on Don Quixote. We thereby consider a few episodes to try to understand some of the reasons that make today’s readers (and probably readers from all times) admire and intensely respect a character who, in essence, is a complete madman.

KEYWORDS:
Don Quixote; Cervantes; Character

- ¿Dónde estás, señora mía,

que no te duele mi mal?

O no lo sabes, señora,

o eres falsa y desleal.

Don Quijote, I, 5

Início de conversa

É bem provável que, para um leitor de hoje, dom Quixote seja uma das personagens da literatura ocidental que mais e melhor se associem à ideia de um sonho utópico com a perspectiva de restituir ao mundo uma nova ordem, isto é, a da cavalaria andante, baseada na prevalência dos grandes valores humanitários. Batalhador incansável e amante inveterado, o cavaleiro não se deixa abater pelas sucessivas derrotas, encontrando nelas, inclusive, estímulo para buscar novas aventuras e para realimentar seus próprios princípios.

De tanto ler, durante dias e noites seguidos, como conta o narrador logo nas primeiras páginas, Alonso Quijano perde o juízo quando decide tornar-se um cavaleiro andante nos moldes das muitas novelas que leu, como se fosse possível retornar no tempo e na história. Dom Quixote de la Mancha, o nome escolhido por ele, deseja não apenas restituir ao mundo os valores e formas de vida próprios da cavalaria, como também se julga habilitado a empreender aventuras semelhantes às de um cavaleiro andante, apesar da idade avançada que beira os 50 anos. Ao longo de suas andanças, apesar dos muitos desacertos que suas aventuras produzem, ele se mantém firme na convicção de que vale a pena lutar. Como diz ao estalajadeiro, logo no início da obra, tratando de firmar seu perfil de cavaleiro “mis arreos son las armas, mi descanso el pelear” (Cervantes, 1998CERVANTES, M. de. Don Quijote. Dir. Francisco Rico. Barcelona: Crítica/Instituto Cervantes, 1998., p.51).

Essa tenacidade de dom Quixote em seguir um modelo de vida baseado em princípios elevados é algo que acaba tocando nas fibras mais sensíveis do leitor moderno, especialmente por identificar em sua trajetória uma batalha genuína em busca de um sonho utópico a serviço do bem comum. Por mais que suas aventuras desemboquem em situações risíveis, o leitor tende a preservar um espaço elevado para a personagem em detrimento do mundo que o rodeia, que, na maior parte das vezes, é mesquinho e incapaz de admitir suas razões e seus anseios.

É importante ter em conta que esse modo de entender o personagem, isto é, valorizar a dimensão do sonho e atribuir relevância a sua luta, não teve a mesma importância para os leitores dos velhos tempos que adotavam outros parâmetros e não reconheciam no texto esse viés de caráter mais sentimental e com dimensões trágicas, tão presente nas leituras feitas, aproximadamente, a partir do século XIX. Para os leitores contemporâneos à publicação da obra, isto é, século XVII, o cavaleiro era visto como um louco inveterado, porém ilustrado, capaz de criar excelentes momentos de entretenimento por meio de aventuras cômicas jamais imaginadas.

A partir dos últimos anos do século XVIII e primeiros do XIX, os românticos alemães encontraram na obra de Cervantes algo que os leitores anteriores não consideravam da mesma forma. Para a leitura dos românticos, a obra de Cervantes oferecia, por meio de seus dois protagonistas, a síntese do erudito com o popular, da poesia com o prosaísmo, do ideal com a realidade. Além do mais, ao contrário das leituras anteriores, a interpretação romântica teve a tendência a ler a obra como sendo séria em detrimento do riso, privilegiando aquilo que se entendia como sendo o nascimento de um novo gênero, isto é, o romance, destacando muito mais o sonho utópico do cavaleiro em detrimento do reconhecimento de sua loucura.

É bem provável que o destaque dado ao sonhador em prejuízo do louco risível se justifique, entre outras coisas, pelo fato de que a própria loucura quixotesca contém em si mesma uma mistura que faz coincidir ideias desconexas, como atribuir o estatuto de verdade a algo ficcional, ao mesmo tempo em que dom Quixote defende e privilegia os nobres valores humanitários. Desse modo, Cervantes acaba situando no cerne da loucura do cavaleiro os mais elevados princípios da vida humana.

Nos casos em que essa leitura de viés romântico se mostra mais arraigada o cavaleiro se aproxima de um modelo exemplar, criando um horizonte de expectativas para o leitor de hoje baseado na ideia de que tem razão aquele que, como dom Quixote, se empenha nas transformações da ordem de um mundo que se mostra incapaz de reconhecer não apenas a ação heroica do cavaleiro, como também a própria dimensão humanitária de seu sonho. A consideração da obra a partir desse perfil caminha bem distante da forma como provavelmente foi concebida a personagem de Cervantes, que, longe de ser entendido como um modelo exemplar, o cavaleiro padece de uma loucura livresca, ainda que em alguns momentos revele grande lucidez e capacidade de discernimento.

É certo que nossa condição de leitores não nos permite prescindir de nossos próprios códigos e formas de conhecimento presentes de modo mais ou menos consciente, decorrentes da experiência de vida pessoal, social e histórica de cada um. No entanto, ler textos de um passado distante a partir de nossos próprios referenciais poderá nos conduzir a conclusões equivocadas do ponto de vista histórico. Além do mais, é provável que o esforço de ajustar um texto do século XVII aos nossos próprios critérios poderá desembocar em uma desconsideração das distâncias históricas e artísticas dificultando, ou mesmo impossibilitando, o reconhecimento de seu próprio valor literário.

Os escritores do chamado “século de ouro” das letras espanholas, isto é, os que produziram suas obras entre os séculos XVI e XVII, tinham em conta uma série de preceitos artísticos e se moviam dentro de um repertório de regras e modos de composição próprios. Nesse caso, é importante ter conhecimento desse universo de convenções que regia tanto a vida em sociedade quanto a arte, o que supõe de nós, leitores do século XXI, deslocamentos sucessivos de nossos respectivos tempos e lugares e, em particular, de nossos critérios e concepções acerca do que vem a ser “poesia”, tal como era entendida a literatura em geral nos tempos do Quixote. Segundo o Diccionario de Autoridades, publicado em 1726, “poema” corresponde não apenas aos versos e rimas, mas “em su riguroso sentido significa cualquier obra, en verso u prosa, en que se imita a la natureza”.

Não é raro encontrar um leitor que, após empreender a leitura do Quixote, fique surpreso ao constatar a capacidade comunicativa da obra em relação ao leitor de hoje, considerando que se tem em mãos um texto fluido e, ao mesmo tempo, próximo, que traz inquietações variadas plenamente válidas ainda nos dias atuais. Provavelmente, o leitor esperava um texto mais sisudo e talvez menos envolvente, escrito numa linguagem rebuscada. De qualquer modo, essa suposta “facilidade” de leitura não deve ser entendida como o resultado de um exercício que prima pela espontaneidade como se a obra fosse fruto de uma escrita desatada na qual o autor, por meio do narrador ou narradores, segue os passos do cavaleiro e seu escudeiro.

Na realidade, essa aparente naturalidade na linguagem é decorrente de um conjunto de artifícios que atuam de modo criterioso na composição do texto, deixando para o leitor a impressão de que a palavra escrita é a reprodução verossímil e fluente da fala. Afinal, talvez Cervantes seja um dos últimos representantes de um preceito bem difundido ao longo do século XVI que defendia a ideia do escribo como hablo, quando os escritores passaram a adotar um princípio que consistia em fazer com que os textos escritos reproduzissem a língua falada. Além do propósito de dignificar a língua oral e de elevar o castelhano ao patamar de uma língua culta, havia também a ideia de conceder à língua escrita uma maior naturalidade, precisão, clareza e simplicidade, o que correspondia ao preceito da perspicuitas da retórica clássica, retomado por Juan Luis Vives em sua Arte retórica e definido como “uma descrição muito evidente que atrai aquele que ouve como se a coisa estivesse presente” (Vives, 1998, p.223). Desse modo, a clareza (ou a perspicuidade) era considerada como uma das virtudes da elocução, enquanto a obscuridade e a afetação não passavam de um vício. É preciso ter em conta que na época a língua castelhana tratava de conquistar um estatuto próprio e ainda era bem recente a publicação de sua primeira gramática escrita por Antonio de Nebrija e publicada em 1492. Alguns autores se empenhavam em escrever seus textos nessa língua e não em latim, como ocorria na maior parte das vezes e, nesse caso, o “escribo como hablo” estava associado não apenas à naturalidade na escrita, mas também à utilização da língua romance, isto é, o castelhano.

Quando Cervantes publica a primeira parte do Quixote, em 1605, essa tendência já começava a ceder espaço para uma orientação divergente que tratava de alargar a distância entre o referente e a metáfora, entre res e verba, com a perspectiva de se chegar a uma forma poética que privilegiava a capacidade engenhosa de penetrar nos assuntos da forma mais distante e inesperada, tratando de extrair das coisas, por meio das palavras, suas propriedades mais ocultas. Um dos representantes dessa tendência foi Luis de Góngora, que privilegiava a ideia de que a poesia, muito distante de qualquer aparência de naturalidade, deveria ser destinada “a muy pocos”.

Com relação ao Quixote, é possível considerar a obra como um longo diálogo, um exercício de fala entre os dois personagens, isto é, entre um intelectual e um analfabeto que conversam sobre os mais variados assuntos, sobre suas experiências, suas aventuras e desventuras, seus desejos e, em especial, sobre Dulcineia. A figura da dama exemplar converte-se em objeto de conversação em diferentes momentos e com motivos diversos, constituindo-se assim na tríade fundamental da obra.

A preocupação central deste artigo é examinar em alguns fragmentos da obra o relacionamento entre as três personagens, isto é, o cavaleiro, o escudeiro e a dama. Para isso, serão considerados três episódios: o primeiro deles, situado no capítulo 20 da primeira parte da obra, quando Sancho se dá conta de que, em caso de necessidade, ele próprio é capaz de enganar seu amo; o segundo, situado no capítulo 10 da segunda parte, quando Sancho, coagido a encontrar alguma donzela que faça as vezes de Dulcineia, persuade seu amo a acreditar que sua amada é uma lavradora que, inesperadamente, vem ao seu encontro; e o terceiro, no capítulo 32 da segunda parte, quando, diante dos duques, dom Quixote se vê obrigado a descrever a sua dama. Por meio desses três momentos da obra pretende-se entender algumas das razões que levam o leitor de hoje (e provavelmente de sempre) a admirar e respeitar intensamente um personagem - dom Quixote - que, na sua essência, é um louco arrematado.

As relações entre dom Quixote e Sancho Pança

As relações de amizade entre dom Quixote e Sancho é um dos traços mais pronunciados ao longo das andanças por eles empreendidas. Destacada como um valor humano, a amizade entre ambos corre o risco de encobrir outros aspectos, igualmente humanos, como a disputa pelo poder. Se há um processo de assimilação recíproca entre os saberes do cavaleiro e do escudeiro, há também uma tensão que se manifesta nos passos dessa longa amizade. No capítulo 20 da primeira parte da obra, a vontade do escudeiro, surpreendentemente, se sobrepõe à do amo que deixa entrever certa fragilidade em seu poder hierárquico. Nesse episódio, dom Quixote não se desgasta fisicamente, porém, padece de um certo abalo moral que não lhe permite culpar os costumeiros encantadores.

De modo bastante resumido, o capítulo inicia-se com uma descrição espacial estimulada pelo acúmulo de sensações que experimentam os personagens, seja pela presença excessiva, seja pela ausência delas. É noite alta, não há ninguém por perto, ambos sentem uma enorme sede em meio a uma densa escuridão e não encontram como saciar as sensações gustativa e visual. No entanto, a sensação auditiva é intensa e se manifesta pela presença marcante e ritmada de uns tais “golpes a compás”, acompanhados por um ruído violento de queda d´água que vai solapando a segurança de ambos. Vítima de um espaço atemorizante como esse, o cavaleiro tenta livrar-se do domínio das sensações e apela para a razão, recorrendo aos modelos dos livros de cavalaria com o intuito de encontrar em si mesmo o eco das histórias heroicas dos cavaleiros. Proporcional ao medo que sente, dom Quixote atribui-se uma missão altamente elevada e transcendente: “yo nací, por querer del cielo, en nuestra edad de hierro, para resucitar en ella la de oro o la dorada, como suele llamarse” (Cervantes, 1998CERVANTES, M. de. Don Quijote. Dir. Francisco Rico. Barcelona: Crítica/Instituto Cervantes, 1998., p.208). A grandiosidade de seu discurso oculta seus temores circunstanciais, e se alguém tem medo, segundo o cavaleiro, esse alguém é Sancho. Mostrando grande dose de compreensão, dom Quixote reconhece e justifica todo e qualquer medo que o escudeiro possa experimentar, e, após considerar a noite como tenebrosa, ele passa a enumerar o estranho silêncio, o ruído das árvores e o terrível estrépito da água que lhe aflige os ouvidos. Todos esses elementos infundem medo no escudeiro, e também no cavaleiro; no entanto, se Sancho deixa que o medo o imobilize, dom Quixote reage de outra forma. O cenário atemorizante desperta-lhe os ânimos para recuperar a tradição da cavalaria: seu impulso é enfrentar o ruído perturbador, sem sequer saber onde e como. Sancho deverá esperá-lo durante três dias e, caso não retorne, o escudeiro deverá ir ao Toboso e relatar a Dulcineia o motivo da morte daquele que lutou para ser digno de seu amor.

Contrapondo-se a todo e qualquer princípio elevado, Sancho tenta alterar radicalmente as decisões do amo, pois, além do medo lhe bloquear os movimentos, ele não suporta a ideia de ter de enfrentar a solidão naquele espaço tenebroso. Diante da decisão de dom Quixote de partir, Sancho argumenta como pode, chantageia, envolve a família e mistura lágrimas com palavras das Sagradas Escrituras com a perspectiva de reter o amo, sem se preocupar em ocultar o medo que o assola. No entanto, com o propósito inarredável de não abandonar uma causa supostamente justa, dom Quixote não dá ouvidos aos seus argumentos, ainda que no caso específico dessa aventura ele nem sequer chega a imaginar exércitos em guerra ou injustiçados aguardando sua ação.

Sem conseguir convencê-lo pela fala, Sancho decide utilizar um recurso mais eficaz para mantê-lo ao seu lado até o alvorecer e, sem que dom Quixote perceba, amarra as patas de Rocinante, de modo que o cavalo não consegue sair do lugar. Aquele que se diz capaz de restituir ao mundo a idade dourada encontra-se agora imobilizado e, sem se dar conta, submetido a uma pilhéria comandada pelo escudeiro. A cena continua e os desdobramentos vão se agudizando de forma notável; no entanto, o que importa destacar no momento com respeito à relação entre ambos é que, a partir desse momento, Sancho percebe que ele próprio é capaz de enganar seu amo e fazer prevalecer sua vontade em certas ocasiões. Dom Quixote não se deu conta da estratégia de Sancho para mantê-lo ao seu lado e, se o escudeiro não foi capaz de dominá-lo por intermédio de argumentos, ele soube, por sua vez, encontrar recursos que atendessem aos seus objetivos. Por mais que o escudeiro admire seu amo e frequentemente se surpreenda com sua sabedoria, a partir desse momento, Sancho ganhou seu quinhão de poder em relação ao amo.


El Quijote, obra do pintor espanhol Pablo Picaso (Museu da cidade de St. Denis, na França).

Os enganos envolvendo a “sin par Dulcinea del Toboso

A partir do capítulo 20 da primeira parte da obra, Sancho vai progressivamente ganhando mais espaço em sua missão de escudeiro, ainda que muito desconheça acerca do funcionamento da cavalaria preconizado por seu amo. Com base nessa autoconfiança recentemente adquirida, um pouco mais adiante, no capítulo 25, em plena Serra Morena, dom Quixote, imitando Amadis de Gaula, decide fazer penitências por sua dama. Enquanto se dedica a essa prática, pede a Sancho que leve uma carta a Dulcineia e que retorne dentro de três dias. Antes de sua partida, o amo lê a carta para Sancho, acreditando que ele possa memorizá-la, caso a carta seja extraviada por alguma eventualidade. É nesse momento que o escudeiro se dá conta de que a tal senhora Dulcineia del Toboso é nada mais, nada menos que a filha de Lorenzo Corchuelo, moça de fama duvidosa. Como se sabe, Sancho se ausenta da Serra Morena, acaba se esquecendo de levar a carta e, evidentemente, não vai ao encontro de Dulcineia. No seu retorno, ele responde a todas as perguntas que lhe faz dom Quixote, inventando um relato realista de como teria sido a entrega da carta para aquela que se dedica aos afazeres considerados baixos. É interessante observar também que por meio da figura da Dulcineia, a obra vai adquirindo uma certa relação de causalidade entre os episódios, sobretudo na segunda parte, distanciando-se da estrutura episódica própria dos livros de cavalaria.

Devido a essa mentira sobre a entrega da carta, Sancho passará por momentos difíceis diante de seu amo e ante os próprios leitores/personagens da segunda parte, em especial, o duque e a duquesa, que vão incidir sobejamente sobre essa falsidade ocorrida no capítulo 25.

Uma situação extremamente delicada ocorre no capítulo 10 da segunda parte, quando dom Quixote decide visitar Dulcineia e pede a Sancho que anuncie à dama sua eminente chegada. Sem saber como se livrar dessa enrascada, Sancho desenvolve um solilóquio tratando de encontrar uma saída para a situação e, avistando três lavradoras montadas em seus burrinhos, decide dizer ao amo que uma delas é Dulcineia que veio ao seu encontro. Essa solução que Sancho dá ao impasse não poderia gerar maior confusão. Dom Quixote, nesse momento, vê exatamente a realidade, isto é, uma lavradora que não apresenta nenhuma das qualidades daquela que seria a dama de seus sonhos. A lavradora enfurecida e sem entender nada do que ocorre, tenta escapar daquela situação aos trancos e barrancos; dom Quixote, desolado, não consegue encontrar beleza alguma naquela dama indelicada e que, para piorar, cheira a alho; Sancho, servindo-se de todos os argumentos possíveis, se esforça em persuadir o cavaleiro de que Dulcineia está encantada e, devido à intervenção de encantadores, dom Quixote não consegue visualizar a verdadeira formosura de sua dama. O cavaleiro não pode admitir que aquela figura “tan baja y tan fea” (Cervantes, 1998CERVANTES, M. de. Don Quijote. Dir. Francisco Rico. Barcelona: Crítica/Instituto Cervantes, 1998., p.709) seja a sua amada; no entanto, Sancho, servindo-se dos próprios argumentos dos livros de cavalaria, defende a ideia de que por artimanha dos encantadores que o perseguem incessantemente dom Quixote enxerga uma lavradora, quando na verdade se trata de uma dama etérea e formosa. Inconformado com esse encantamento que arruína a figura de sua amada e que lhe condena a uma visão deformadora, desabafa: “- Sancho, ¿qué te parece cuán mal quisto soy de encantadores?” (ibidem, p.709).

Do ponto de vista estilístico, ocorre uma perfeita sobreposição de falas em estilo elevado, por parte de dom Quixote, e em estilo baixo, por parte da lavradora, fazendo contrapor à paródia da linguagem cavalheiresca, a fala da aldeã, que não tem a menor condição de supor qual é o seu papel dentro desse curioso teatro inventado por Sancho. Isto é, por uma questão de coerência com a mentira inicial - a entrega da carta -, Sancho inventa uma mentira maior, fazendo encarnar a amada Dulcineia numa rústica lavradora, que, por sua vez, se mostra como tal apenas para o cavaleiro, vítima constante dos desafetos dos malignos encantadores. Pior será quando, mais adiante, dom Quixote se vê na situação de ter que descrever a dama de seus sonhos. Essa transformação da dama em camponesa chega a abalar a conexão de dom Quixote com o universo da cavalaria e, a partir desse momento, sua missão primordial ao longo da segunda parte será sobretudo a luta para desencantar Dulcineia.

O ser e o estar de Dulcineia

Entre os capítulos 30 e 57 da segunda parte, dom Quixote e Sancho estarão hospedados no palácio dos duques e convivem durante alguns dias com esses nobres senhores e com todo seu séquito de servos e damas, num espaço genuinamente cortesão.

Um ponto fundamental é o de que a primeira parte da obra já foi efetivamente publicada em 1605 e, quando se inicia a segunda parte, publicada em 1615, a admirável novidade é a de que há leitores da própria obra, isto é, da primeira parte, que interferem como personagens na segunda parte, como é o caso dos duques, que conhecem antes dom Quixote e Sancho como personagens e, nesse momento, os recebem em seu palácio. Receber o cavaleiro e seu escudeiro em sua residência se converte para os duques em excelente oportunidade para se divertirem às custas dos sonhos delirantes de dom Quixote e Sancho e, para isso, fingem acreditar em suas verdades, levando esse jogo teatral a inesperadas consequências. Para ambas personagens, por outro lado, a situação que experimentam é totalmente nova pois, ao que tudo indica, esses senhores aristocráticos acreditam de fato que eles são cavaleiro e escudeiro. As primeiras cenas relacionadas com a permanência do cavaleiro e seu escudeiro no palácio incidem diretamente em duas situações muito próprias do universo da corte: comportar-se à mesa e praticar a conversação. Por intermédio do narrador se sabe que todos no palácio se observam mutuamente e, se a observação do outro é um dos fundamentos desse mundo aristocrático, o exercício da descrição esmerada será sua consequência direta. Não é por casualidade que já nos primeiros momentos em que dom Quixote e Sancho se encontram na residência dos duques, ambos são encarregados da difícil tarefa da descrição um do outro e, em particular, da descrição de Dulcineia para os duques e sua criadagem.

Após a cena cômica centrada no cerimonial relativo às maneiras à mesa, surge a demanda fatal da duquesa dirigida a dom Quixote para que ele “delinease y describiese […] la hermosura y facciones de la señora Dulcinea del Toboso” (ibidem, p.895), sabedora de todos os meandros relacionados com o contato perturbador que o cavaleiro experimentou em relação a sua dama. Da perspectiva da organização retórica, a situação não poderia ser mais emaranhada uma vez que o próprio objeto da descrição se encontra mergulhado em ambiguidades e incongruências, dividido entre o ser e o estar aos olhos do próprio dom Quixote, quem, por sua vez, se encontra transtornado pelo fato de que sua Dulcineia está convertida numa camponesa desalinhada e malcheirosa. Como descrever a formosura de sua dama nessas circunstâncias?

Antes de considerar a composição do retrato de Dulcineia feito por dom Quixote, é importante ter em conta que ao longo do século XVI, sobretudo na segunda metade, houve uma avidez cultural importante para os estudos da retórica e, sendo assim, os manuais de docência tratavam de ensinar e exercitar os estudantes dentro desses princípios de composição (Artaza, 1997_______. Antología de textos retóricos españoles del siglo XVI. Bilbao: Universidad de Deusto, 1997., p.13). Um estudioso, García Matamoros, propunha que a descrição de pessoas deveria abarcar a linhagem, a nação, a pátria, a educação, a instrução, os costumes, os interesses pessoais, as amizades e a condição de vida, entre outros (Artaza, 1997, p.117).

Apoiando-se em Cícero e na Retórica a Herenio, Frei Miguel de Salinas, em sua Retórica en Lengua Castellana (1541), recupera também a tópica relacionada com a descrição de pessoa, distinguindo para isso o tratamento a ser dado a “personas reales” e a “personas fingidas” e elenca os pontos fundamentais que deveriam ser contemplados na descrição: nome, sexo, nação, linhagem, idade, disposição corporal, virtudes da alma, educação, ofício, fortuna, estado social, filhos, o feito e o dito (Salinas, 1980, p.73-9).

Antes de iniciar sua descrição, dom Quixote, que ainda tem gravada em sua memória a imagem da lavradora, declara à duquesa que está mais para “llorarla que para describirla” porque afinal ainda não se apagou de sua lembrança “la desgracia que poco ha que le sucedió” (Cervantes, 1998CERVANTES, M. de. Don Quijote. Dir. Francisco Rico. Barcelona: Crítica/Instituto Cervantes, 1998., p.869) e assim, com tais recordações, em lugar dos elogios predominam em sua descrição os vitupérios, respeitando as tópicas previstas para a descrição de pessoa. Em lugar do que poderia ser sua dama, o cavaleiro a descreve como ela está, isto é, “de princesa en labradora” (linhagem/oficio), “de hermosa en fea” (características do cuerpo), “de ángel en diablo” (virtudes del alma), “de olorosa en pestífera” (características do cuerpo), “de bien hablada en rústica” (estado social), “de reposada en brincadora” (disposição corporal), “de luz en tinieblas” (virtudes da alma).

A duquesa insiste na descrição, apoiando-se na distinção entre o que seria uma “pessoa do mundo” e uma “dama fantástica”, e com essa provocação, dom Quixote, seguindo agora as tópicas centradas no elogio, descreve novamente sua Dulcineia convertendo-a em dama virtuosa que deve ser elogiada, baseando-se nas características positivas do corpo (“hermosa sin tacha”), da alma (“grave sin soberbia”), das virtudes (“amorosa con honestidad”), da educação (“cortés por bien criada”) e da linhagem (“alta por linaje”). O duque, não satisfeito com os elogios que faz dom Quixote a sua dama, insiste ainda na questão da estirpe e, privilegiando as virtudes humildes sobre o vício avantajado, dom Quixote a defende dizendo que se não formalmente, ao menos virtualmente ela tem as melhores qualidades para ser rainha.

Tendo em conta apenas a descrição de pessoa realizada pelo cavaleiro, seu exercício descritivo tem como resultado uma peça cômica devido à incongruência da matéria figurada que, num primeiro momento, é vituperada - a Dulcineia que está - para, no momento seguinte, ser elogiada - a Dulcineia que é. Desse modo se constrói, dentro dos preceitos aristotélicos, por um lado, uma imagem torpe que corresponde ao ridículo (Aristóteles, 2007_______. Poética. Trad. Ana Maria Valente, pref. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007., 1449 a, p.46) e, por outro, a imagem de uma dama superior que dispõe de uma condição fantástica e etérea.

Se o decoro próprio do cerimonial cortesão com respeito ao comportamento à mesa é parodiado, os protocolos relacionados com a conversação também seguem os mesmos caminhos uma vez que, tendo em conta os princípios retóricos da descrição, o esboço desarmônico de Dulcineia se transforma proporcionalmente numa imagem, ainda que verossímil, fantástica, centrada na deformação, na mistura, na falta de unidade e, consequentemente, produzindo comicidade dentro dos parâmetros que, anos depois Tesauro apresentaria em seu “Tratado dos Ridículos” (Tesauro, 1992TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Prefácio: João Adolfo Hansen. Campinas: Cedae; IEL; Unicamp, 1992., p.30-59).

A descrição que faz dom Quixote de Dulcineia resulta, portanto, num retrato cômico e desfigurado, o que faz com que a imagem de sua dama fique comprometida com o mundo das burlas, para a diversão dissimulada dos duques. Por outro lado, a imagem que o próprio cavaleiro assegura para si mesmo e para nós, seus leitores, tem relação com a verdade, por mais que nesse ambiente palaciano ele seja objeto de riso.

Segundo Aristóteles (2005ARISTÓTELES. Retórica. 2 ed. revista. Trad. e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/ Imprensa nacional - Casa da Moeda, 2005.), em sua Retórica, de nada servem as artes oratórias de um orador se ele mesmo não tiver honradez, chegando a afirmar que “quase se poderia dizer que o caráter [do orador] é o principal meio de persuasão” (Livro I, 2, 1356a, p.96).

Se as discrepâncias presentes na descrição que realiza dom Quixote de sua dama não lhe permitem um discurso coeso devido ao estado em que ela própria se encontra, a integridade do cavaleiro, em contrapartida, lhe assegura um lugar de credibilidade porque, por mais difícil que seja reconhecer nesse espaço cortesão a imagem desfigurada de sua dama, dom Quixote não se serve de artifícios da simulação para fabricar uma descrição adequada com a preocupação de obter o seu reconhecimento como cavaleiro andante. Ao contrário, justapõe as duas Dulcineias - a que é, e sempre foi, e a que está, após a mentira inventada por Sancho - e se enfrenta com a verdade dos fatos. Assim, se seu discurso acaba resultando na construção de uma imagem deformada, o orador, isto é, o próprio cavaleiro, é digno de credibilidade por parte do leitor que, nesse momento, é capaz de avaliar a sua coerência e as suas qualidades morais de homem virtuoso. Se o cavaleiro pode ser considerado como um louco arrematado na ação, na fala e no caráter ele é absolutamente sensato e verdadeiro. Talvez, essa solução cervantina, isto é, esse viés tão íntegro que compõe o perfil de dom Quixote tenha algo que ver com o que Close identifica como sendo o processo de humanização pelo qual passam as personagens de Cervantes (Close, 2006, p.113-42).

Referências

  • ARISTÓTELES. Retórica. 2 ed. revista. Trad. e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/ Imprensa nacional - Casa da Moeda, 2005.
  • _______. Poética. Trad. Ana Maria Valente, pref. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
  • ARTAZA, E. Ars narrandi en el siglo XVI español. Teoría y práctica. Bilbao: Universidad de Deusto, 1989.
  • _______. Antología de textos retóricos españoles del siglo XVI. Bilbao: Universidad de Deusto, 1997.
  • CERVANTES, M. de. Don Quijote. Dir. Francisco Rico. Barcelona: Crítica/Instituto Cervantes, 1998.
  • CLOSE, A. La dicotomía burlas/veras como principio estructurante de las novelas cómicas del siglo de oro. In: Demócrito Áureo - Los Códigos de la Risa en el Siglo de Oro. Ed. I. Arellano y V. Roncero. Sevilla: Iluminaciones Renacimiento, 2006. p.113-42.
  • DICCIONARIO DE AUTORIDADES. Edición Facsímil de la Real Academia Española. Madrid: Gredos, 1990.
  • RETÓRICA A HERENIO. Introd., trad. y notas Salvador Núñez. Madrid: Gredos, 1997.
  • SALINAS, M. de. La retórica en lengua castellana. Ed. Elena Casas. Madrid, Ed. Nacional, 1980.
  • TESAURO, E. Tratado dos Ridículos. Prefácio: João Adolfo Hansen. Campinas: Cedae; IEL; Unicamp, 1992.
  • VIVES, J. L. El arte de la retórica. Introducción de Emilio Hidalgo-Serna, trad. y notas de Ana Isabel Camacho. Barcelona: Anthropos Ed., 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Dez 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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