RESUMO
Diversos foram os movimentos em prol da emancipação da mulher na nossa sociedade, um dos quais é o advento da imprensa feminina, que surgiu no século XVII, mas que se difundiu especialmente no século XIX. O presente estudo traz uma análise dos textos científicos e matemáticos publicados no periódico O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: periodico quinzenal, litterario, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher, editado entre 1889 e 1890, por Francisca Senhorinha da Motta Diniz. Embora esta pesquisa aponte que o tema é episódico, ela mostra que essa publicação pode ser uma maneira de compreender como os periódicos daquele período buscavam a inserção das mulheres no universo científico e matemático, assim como evidencia o papel destes conhecimentos para a emancipação da mulher na sociedade brasileira do final do século XIX.
PALAVRAS-CHAVE: História da mulher; História das ciências; Imprensa feminina; Francisca Senhorinha da Motta Diniz
ABSTRACT
There were several movements in favor of the emancipation of women in our society, one of which is the advance of the female press, which emerged in the 17th century, but which spread mainly in the 19th century. The present study presents an analysis of the scientific and mathematical texts published in the journal O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: periódico quinzenal, litterario, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher published between 1889 and 1890 by Francisca Senhorinha da Motta Diniz. Although this research points out that the theme is episodic, it shows that this publication can be a way of understanding how the periodicals of that period sought the insertion of women in the scientific and mathematical universe, as well as showing the role of this knowledge for the emancipation of women in Brazilian society at the end of the 19th century.
KEYWORDS: Women’s history; History of sciences; Female press; Francisca Senhorinha da Motta Diniz
Introdução
Depois de séculos de intensas lutas e debates, a invisibilidade feminina ainda é bastante expressiva nas estatísticas, as quais mostram que, em diversos casos, as mulheres permanecem sendo colocadas em segundo plano na sociedade atual, reflexo de uma história patriarcal.
Elas [as estatísticas] são na maior parte das vezes assexuadas. O recenseamento dos foros, durante o Antigo Regime, ou o das famílias, no século 19, repousa no chefe de família. As estatísticas agrícolas enumeram os “chefes de exploração” sem detalhar o sexo, que se supõe obrigatoriamente masculino, como o dos “trabalhadores diaristas”, entre os quais havia tantas serventes. As mulheres de agricultores ou de artesãos, cujo papel econômico era considerável, não são recenseadas, e seu trabalho, confundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torna-se assim invisível. Em suma, as mulheres não “contam”. (Perrot, 2005, p.11)
Reflexo dessas discussões, nas últimas décadas tem se intensificado o debate a respeito do papel das mulheres na produção científica e matemática (Lopes, 1998; Lopes; Sousa; Sombrio, 2004; Moura, 2018). Isso porque, quando pensamos nos personagens da história das Ciências e da Matemática, quase sempre nos lembramos de nomes masculinos. Tal fato ocorre porque, ao longo da história ocidental, a prática científica e matemática foi quase que exclusivamente executada por homens, o que se reflete ainda hoje na participação feminina nas referidas áreas (Brech, 2018; Leta, 2003).
Essa distinção de gênero aparece também em sala de aula. Reis, Rodrigues e Santos (2006) nos mostram que estudantes do Ensino Básico possuem visões bastante simplistas do universo científico, incluindo o fato de que muitos acreditam que o cientista é alguém do sexo masculino. Em algum grau, essa visão socialmente aceita de que as ciências são produzidas e praticadas por homens reflete “a tão decantada ausência das mulheres nas ciências ao longo da história” que, segundo Lopes, Sousa e Sombrio (2004, p.98), “nunca é demais lembrar que também é uma construção historiográfica”.
Eventos importantes no século XIX, como a Revolução Industrial, serviram como alavanca para a propagação dos primeiros movimentos feministas tidos como mais relevantes da história (Leta, 2003). Contudo, Maxime Rovere (2019) denomina arqueofeminismo os escritos de filósofas e filósofos feministas que defendiam mais igualdade de direito para as mulheres já nos séculos XVII e XVIII. E não são somente os estudos filosóficos sobre o papel da mulher que surgem neste período, mas também a chamada imprensa feminina.
A história da revista feminina está intimamente ligada a uma história mais ampla das representações modernas e dos discursos de feminilidade. De fato, a revista para mulheres só se torna possível com o surgimento de um consenso, que localizamos no final do século XVII ao início do século XVIII, que a diferença de gênero, em vez de distinção de status ou riqueza, é o principal árbitro do poder social para as mulheres. Isso não sugere que o gênero não tenha sido um registro significativo de desigualdade social antes desse período, mas que foi nesse momento histórico que passou a ser articulado como tal. A história da construção do patriarcado moderno “do feminino” e do relacionamento das mulheres, resistência e submissão a essa construção ideológica, não são, contudo, lineares nem absolutas. É, antes, uma história de luta e contradição. As revistas femininas, desde a sua primeira aparição, registraram e responderam a esses conflitos dentro das ideologias de gênero. (Ballaster et al., 1991, p.43-4, tradução nossa)
As publicações femininas surgiram, então, como forma de propagar as ideias em defesa da igualdade de direito das mulheres na sociedade. É considerada pioneira, nesse sentido, a publicação do jornal londrino The Ladies’ Mercury, em 1693, que surgiu como uma demanda específica do periódico intitulado Athenian. Esse possuía um formato de perguntas e respostas e era dedicado a diversas temáticas direcionadas a “ambos os sexos”. Devido ao aumento de questionamentos relativos ao universo feminino, foi publicado o The Ladies’ Mercury, contudo, somente quatro números vieram a lume (Ballaster et al., 1991).
Segundo Ballaster et al. (1991, p.74, tradução nossa), as revistas femininas do século XVIII servem como “um indicador da crescente identificação de uma classe em particular, a burguesia, com os atributos de um gênero em particular, o feminino, recém-definido inteiramente em termos de esfera doméstica e privada”.
Um dos periódicos femininos tidos como mais importantes do século XVIII foi o Lady’s Magazine, publicado por quase 80 anos, entre 1770 e 1847 (Beetham, 2008). No século XIX, a quantidade de publicações dedicadas às mulheres aumentou significativamente: The Ladies’ Pocket Magazine (1824-1840), Godey’s Lady’s Book (1830-1898), The Ladies’ Cabinet (1832-1852), The New Monthly Belle Assemblée (1847-1870) e The Ladies’ Treasury (1857-1895) são alguns exemplos (Unwin; Unwin; Tucker, 2020).
[Nestes periódicos,] As mulheres, como a Lady’s Magazine demonstra insistentemente, eram percebidas como os ornamentos de uma classe, uma classe definida por seus padrões de consumo e não de produção, e que buscava exibir sua nova riqueza e influência como parte de sua luta para alcançar objetivos culturais e hegemonia política. Essa construção da classe como gênero e, por sua vez, a ligação da feminilidade com o lazer e o ornamento, condicionou a construção do gênero. (Ballaster et al., 1991, p.74, tradução nossa)
Esse tipo de publicação se difundiu no Brasil somente a partir do século XIX. O primeiro periódico brasileiro foi O Espelho Diamantino, periodico de politica, litteratura, bellas artes, theatro e modas, dedicado as senhoras brasileiras, produzido para mulheres no Rio de Janeiro e publicado inicialmente em 1827. A partir dele, diversos outros surgiram, tanto com interesse de instruir quanto de entreter a mulher. Lima (2007) afirma que diversas dessas primeiras publicações tiveram curta duração e preocupavam-se especialmente com moda e literatura.
Inicialmente, a imprensa feminina brasileira foi redigida por homens, mas as primeiras publicações escritas por uma mulher ocorreram já em 1833, com os títulos Belona Irada contra os Sectários de Momo (1833-1834) e Idade d’Ouro (1833), ambas produzidas por Maria Josefa Barreto (1786-1837), em Porto Alegre. Dezenove anos mais tarde surgiu, no Rio de Janeiro, O Jornal das Senhoras (1852-1855), de Joana Paula Manso de Noronha (1819-1875), que ficou conhecido como o primeiro periódico escrito e dirigido por mulheres (Duarte, 2016). Segundo Lima (2007, p. 222), esse “conseguiu ultrapassar os limites da moda e da literatura, ousando tímidos protestos contra a maneira possessiva com que os homens tratavam suas mulheres”.
Na segunda metade do século XIX, a imprensa feminina torna-se ainda mais efervescente e, segundo levantamento realizado por Duarte (2016), foram encontradas 143 publicações femininas que circularam no século XIX.
No presente artigo, trazemos um estudo a respeito dos textos científicos e matemáticos divulgados no periódico O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: periodico quinzenal, litterario, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher, publicado por Francisca Senhorinha da Motta Diniz entre dezembro de 1889 e dezembro de 1890. Foram analisadas oito edições,1 conforme Quadro 1.
Tendo como fonte os oito números mencionados, fizemos uma análise para identificar os artigos com caráter científico e matemático e buscamos compreender quais e como os conhecimentos dessas áreas de saber eram difundidos para a mulher leitora desse periódico. Como apresentaremos adiante, os artigos que tratam de temáticas científicas e matemáticas encontrados no levantamento são escassos. Ainda assim, ressaltamos que este estudo se faz necessário na medida em que nos auxilia a compreender os discursos sobre o papel da mulher na sociedade brasileira do final do século XIX e seu acesso a conhecimentos dessas áreas. Desse modo, na próxima seção, apresentamos breves comentários sobre a publicação e, em seguida, passamos para a análise do conjunto de artigos que tratam das questões mencionadas.
O Quinze de Novembro do Sexo Feminino
Francisca Senhorinha da Motta Diniz nasceu em São João Del-Rei, Minas Gerais, porém não se sabe o ano de seu nascimento, assim como não temos acesso a outras informações de sua vida anterior à carreira como professora, que teve início em 1854. Foi casada com o advogado Joaquim José da Silva Diniz - que também era responsável pela publicação do jornal O Monarchista -, com quem teve três filhas: Amélia Diniz, Albertina Diniz e Elisa Diniz Machado (Andrade, 2006).
Em 1873, Francisca passou a conciliar a carreira de docente na Escola Normal da cidade de Campanha, Minas Gerais, com sua atuação no jornalismo. Nesse ano, começou a editar o periódico O Sexo Feminino: semanário dedicado aos interesses da mulher (Andrade, 2006; Nascimento; Oliveira, 2007). Em 1875, mudou-se para o Rio de Janeiro, para onde transferiu a publicação e dirigiu escolas como o Collegio Maternal de Nossa Senhora da Penha, o Collegio Santa Izabel e a Escola Domestica Marianna da Fonseca, anexa ao Collegio Santa Izabel, que servia como associação para a educação de meninas (Andrade, 2006; Souto, 2013).
Posteriormente, Francisca também fundou outros dois jornais, A Primavera e A Voz da Verdade, além de colaborar com o periódico A Estação. Publicou, em 1886, o seu único romance, A Judia Rachel, em coautoria com sua filha Albertina Diniz. A autora, que veio a falecer em outubro de 1910, pertencia a uma elite intelectual e, atuando nos movimentos em prol dos direitos da mulher, buscava, pelo meio impresso, formas de auxiliar na redefinição do lugar da mulher na sociedade daquela época (Nascimento; Oliveira, 2007; Souto, 2013).
O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: periodico quinzenal, litterario, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher começou a ser publicado no Rio de Janeiro por Senhorinha em 16 de dezembro de 1889, como continuidade ao periódico O Sexo Feminino: semanário dedicado aos interesses da mulher, que, como afirmamos, iniciou sua edição em 1873 na cidade de Campanha. Em 1875, quando a redatora se mudou para o Rio de Janeiro, a publicação seguiu sendo veiculada na capital do Império até 1876. Nesse ano, a autora e sua família contraíram febre amarela e escreveram um aviso no jornal alterando a periodicidade da publicação de quinzenal para mensal. Apesar do aviso, o periódico só voltou a ser editado em junho de 1889 (Souto, 2013).
Mesmo com a alteração do título, O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: periodico quinzenal, litterario, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher continuou a sequência das edições da publicação anterior: a primeira, de 15 de dezembro de 1889, já se iniciou com o número 12, e a última, datada de 6 de dezembro de 1890, foi a de número 23. A alteração do nome se dava em comemoração (e também como crítica) à Proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de 1889. Segundo Duarte (2016, n.p.), “a mudança de título expressava o desejo da redatora de dar continuidade à luta por transformações também na vida das mulheres, principalmente no que dizia respeito à conquista de direitos”.
Apesar de proclamado, a instituição do regime republicano no Brasil por si só não garantia igualdade entre sexos ou a conquista de direitos às mulheres, como assinalou Senhorinha na coluna “A racional emancipação da mulher”, da primeira edição do periódico:
Teremos o nosso 15 de novembro de 1889?
Talvez!
O juramento prestado pelo governo provisório na camara municipal, despido da fórma religiosa e affirmado sob palavra assentou que o primeiro governo republicano, aquelle que symbolisa a aspiração democratica nesta venturosa nação, aceita o principio fecundo da liberdade e igualdade. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1889, n.12, p.2)
Apesar de esperançosa pela possibilidade de alcançar a igualdade entre os sexos e também a liberdade feminina com a instituição do regime republicano, Senhorinha demonstrava não estar segura dessas conquistas para o gênero feminino, e iniciou o texto deixando clara a incerteza com um “Talvez!”, destacado no escrito. Para a autora, as mulheres ainda não haviam alcançado seu “quinze de novembro”, ou seja, os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade; por isso, buscava levar a suas leitoras mais informações sobre o regime republicano e seus ideais (Bernardes, 1989).
A publicação do periódico propunha-se a ser quinzenal, e seu primeiro número teve tiragem de 2.400 exemplares (Duarte, 2016, n.p.). Esses eram distribuídos no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil, e parte da renda das assinaturas era revertida para manter a Escola Domestica, fundada e dirigida por Francisca e suas filhas (Cunha, 2007).
Cada exemplar do periódico possuía apenas quatro páginas e, segundo o registro da Biblioteca Nacional, suas dimensões eram de 38 cm x 17 cm e não usava recursos visuais, como imagens. Apesar de seu título indicar que sua periodicidade era quinzenal, percebemos (ver Quadro 1) que houve um intervalo de aproximadamente três meses entre os números 12 e 13 e, nas demais edições, não havia regularidade. A sua redação ficava na rua do Lavradio, n.24, na cidade do Rio de Janeiro, mas a partir do número 20 mudou-se para a rua do Senador Euzebio, n.78. Cabe mencionar ainda que O Quinze de Novembro foi impresso pela Tipografia Mont’Alverne, localizada na rua Uruguaiana, n.43, com exceção do número 12, que foi impresso pela Tipografia Montenegro, instalada na rua Nova do Ouvidor, n.16.
Além de Francisca, também contribuíram com a publicação outras escritoras do período, como Eulália Diniz, Júlia Lopes, Presciliana Duarte e Elisa Diniz Machado Coelho. Em levantamento inicial, foi possível coletar outras assinaturas femininas nos artigos, dentre elas: Amelia Diese, f.s. Moreira, A. Marques, Maria Tshebrikowa, Raphaelina Gomes Marcondes, Elisa Augusta de Villeróz, Maria Clara Vilhena da Cunha, Narcisa Amalia, Elisa A. e Villenoy. Alguns dos artigos foram publicados sem autoria e há também assinaturas com parte do nome suprimido.
Entre as temáticas presentes em O Quinze de Novembro estavam textos de caráter informativo, como notícias sobre política, ciências, caridade, filosofia, biografias e história de mulheres que haviam alcançado posições de destaque na sociedade. Havia ainda textos de opinião sobre educação feminina, emancipação feminina e política. O entretenimento estava presente na publicação na forma de folhetins, contos, poemas e charadas. Por fim, em todos os números, podemos encontrar uma seção de anúncios de profissionais e sobre o Collegio Santa Izabel e a Escola Domestica.
Senhorinha defendia que a mulher deveria ser informada sobre política, ter o poder de votar e também de ser votada, sobretudo após a Proclamação da República, a qual tinha como fundamento proporcionar igualdade. Sobre esse tema, escreveu: “Além das secções noticiosas, de critica, de anouncios, de litteratura, medicina domestica e de outros assumptos que possam interessar aos nossos leitores e leitoras, trataremos um pouco de politica, assumpto este alheio ao nosso sexo, porém bem necessario para o fim que desejamos attingir” (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1889, n.12, p.3).
Para alcançar a igualdade, a principal bandeira levantada pelo periódico era a luta pela educação feminina, pois a autora acreditava que dessa forma a mulher poderia alcançar a cidadania e a emancipação (Souto, 2013).
No período, a educação feminina era algo recente. Até o século XVIII, as práticas escolares eram reservadas ao sexo masculino, pois eram esses que participariam da vida pública, e as meninas das classes elevadas eram educadas em casa por preceptoras. A partir do século XIX, passaram a surgir as primeiras escolas no Brasil voltadas ao sexo feminino e, em alguns casos, escolas mistas. Ao caracterizar esse avanço em relação à educação feminina, Gusmão (2012, p.269) afirma:
O movimento foi acompanhado com muita atenção por alguns segmentos conservadores da sociedade que, embora negassem a igualdade de direitos de homens e mulheres, defendiam a extensão a estas últimas do letramento, do domínio de línguas estrangeiras, de habilidades de conversação e desenvoltura social, a fim de que pudessem cumprir bem as funções de mãe e esposa nas sociedades urbanas.
Ao final do século XIX, ainda havia poucas escolas dedicadas a atender ao público feminino e, em sua maioria, estavam restritas à elite. Quanto às mulheres das classes populares, o acesso à educação era ainda mais escasso, uma vez que o ensino público estava em fase inicial de desenvolvimento no Brasil. Havia algumas iniciativas de escolas filantrópicas que atendiam a meninas pobres, como é o caso da Escola Domestica, fundada por Senhorinha e financiada pela renda obtida por meio da assinatura do jornal e de doações (Cunha, 2007).
Quando as mulheres tinham acesso à educação, o foco principal se concentrava em ensiná-las a ler, contar e nos predicados domésticos (Heller, 2001). Dessa forma, a educação feminina não lhes permitia que ingressassem no mundo do trabalho ou exercessem sua cidadania, diferentemente do proposto por Senhorinha, que julgava a educação praticada para as meninas como opressora.
Cremos, com aquella boa fé que as nobres causas inspiram, que, esse ideal [a emancipação da mulher] chegará mui breve á sua realidade, quando a mulher illustrada e livre dos prejuízos e preconceitos tradicionaes banir de sua educação as oppressões e erroneos preconceitos com que a cercam, e que der pleno desenvolvimento á sua natureza physica, moral e intellectual...
[...]
Não queremos representar na sociedade o papel de adorno dos palacios dos senhores do sexo forte, não devemos continuar na si-mi-escravidão em que jazemos, vendo-nos mutiladas em nossa personalidade, em seus codigos ou leis por elles legisladas, tal como a da outr’ora escravidão, sem que podesse ser pela escrava protestada. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.14, p.1)
Nesse escrito, Senhorinha deixava claro qual educação objetivava para as mulheres: uma que as libertasse do comando dos homens e permitisse que desenvolvessem plenamente seus aspectos cognitivos, sociais e físicos. Seria também por meio da educação que a mulher conheceria a ciência, em sua opinião: “A emancipação da mulher pelo estudo, é o facho luminoso que póde dissipar-lhe as trevas pela verdade em que deve viver e que leval-a ha ao templo augusto da sciencia, do bem viver na sociedade civilisadora” (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.14, p.1).
Ciências e Matemática: lugar de mulher?
Na publicação anterior, O Sexo Feminino: semanário dedicado aos interesses da mulher, havia um apelo para que a mulher tivesse acesso ao conhecimento científico. Na visão da autora, a subordinação dessa se dava justamente em virtude de uma postura retrógrada que era, inclusive, contrária ao suposto “progresso” que a ciência daquele período buscava (Nascimento; Oliveira, 2007).
De acordo com O Sexo Feminino, há uma “ciência dos homens” que deveria ser suplantada por uma outra, mais universal, fraternal, útil e promissora. A ciência dos homens caracterizada como aristocrática, elitista, despreocupada com o bem-estar social, perpetua a inferioridade da mulher. O jornal parece ressoar aqui a crítica à ciência togada, essencialmente livresca e vinculada aos arranjos de títulos imperiais, dos bacharéis de direito e dos médicos. Reage, sobretudo, ao discurso médico que distorcia a figura da mulher como fisiologicamente debilitada, excluindo-a e justificando sua falta de acesso ao conhecimento acumulado pela humanidade. (Nascimento; Oliveira, 2007, p.449-50)
Em O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, esse discurso continuara vivo, porém, percebemos que poucos são os textos de caráter científico e matemático presentes no periódico. Nos números 12 e 19 não foi publicado artigo algum com esse teor; nas edições 20, 21 e 23, apenas um único artigo em cada; já nos números 13, 14 e 18 foram publicados dois, três e quatro artigos, respectivamente.3
Senhorinha criticava a concepção enraizada de que as mulheres não teriam a mesma capacidade intelectual que os homens e de que elas não poderiam compreender e raciocinar cientificamente. Nesse sentido, na coluna “A Racional Emancipação da Mulher” do número 21, a autora questiona:
O que seria da verdade, que deve ser universal, se a natureza desapiedada tivesse escondido sua demonstração, em raciocinios inintelligiveis aos tres quartos e meio do genero humano? A verdade é o sol do mundo moral, tremer devem vós outros, pelas consequencias do erro e não pelo triumpho da verdade; os fructos da sciencia e da verdade farão a ventura da humanidade, pois que a luz e a verdade nunca foram esteries… A mulher compete o direito de igualdade e a missão dos nossos concidadãos, que promovem a transformação social e fecundante de beneficios deve tornar em realidade este sagrado direito, este motor civilizador dos povos cultos. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.21, p.1, grifo nosso)
Nesse trecho, Senhorinha argumenta a favor da emancipação feminina sob a égide do racionalismo, corrente filosófica que afirma que tudo que existe tem uma causa inteligível, mesmo que não possa ser provada por meio da experiência. Nesse caso, a razão é colocada como única forma de raciocínio capaz de atingir a verdade, que só poderia ser alcançada pelas ciências. Essa percepção está presente nas discussões científicas desde o século XVII e, naquele período, embasava o positivismo, pelo qual a ciência é tratada como a única forma de conhecimento portador da verdade.
Essa concepção reflete, na fala de Senhorinha, que a ciência provaria a verdade sobre a capacidade intelectual da mulher e seria desse modo que estaria resolvida a questão da desigualdade entre gêneros. No trecho seguinte, ela tratava da importância de que fossem definidos os papéis que as mulheres poderiam desempenhar na sociedade.
Está nas attribuições dos senhores legisladores especificar, indicar ponto por ponto, as funções publicas, os logares apropriados á mulher, de accordo com a vocação, intelligencia, estado, idade, etc., de cada uma. Em um paiz como o nosso, grande e generoso é sufficiente socitar sómente o problema, os melhoramentos poderão opportunamente ser feitos neste assumpto. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.21, p.1)
Percebe-se, contudo, que a autora coloca nos homens a responsabilidade de decisão dos papéis a serem executados pelas mulheres. Para argumentar essa fala, Senhorinha lista alguns importantes autores do sexo masculino que defendiam a igualdade de direitos para as mulheres, como Jeremy Bentham (1748-1832), Samuel Johnson (1709-1784), Pierre Bayle (1647-1706), Thomas Hare (1806-1891) e John Stuart Mill (1806-1873).
No número 23 do periódico, na mesma coluna, Senhorinha retoma o assunto dizendo que, em teoria, a questão da igualdade entre homens e mulheres está resolvida, mas ainda há muito o que mudar na prática. Ela afirma que “a mulher, como ser intelligente, é capaz de fazer tudo o que faz o homem, tendo ainda segura e ampla esphera de acção no mundo moral e sensível, é facto demostrado”, e se opõe ao atraso da política brasileira quanto à igualdade entre gêneros, usando argumentos relativos a outras nações onde mulheres exercem “profissões scientíficas, e as quaes se chamavam humanidades. [...] As profissões livres não lhes são vedadas; ha medicas e advogadas exercendo suas profissões livremente” (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.23, p.1).
Nesse sentido, é interessante destacar o breve artigo intitulado “Uma estudante”, que Senhorinha publicou a respeito de Miss Philippa de Fawcett (1868-1948):
Miss Philippa Fawcett, filha de um fallecido ministro dos correios da Inglaterra, recebeu na universidade de Cambridge a maior das honras universitarias - a que affirma sua superioridade, em mathematica, sobre todos os estudantes.
É motivo de jubilo para o bello sexo. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.20, p.4)
Apesar de breve, o artigo também é um estímulo à mulher leitora e demonstra importante conquista feminina na área de matemática. Philippa de Fawcett viveu na Inglaterra e foi a primeira mulher a receber, da Universidade de Cambridge, a melhor pontuação no exame conhecido como Mathematical Tripos - a prova mais importante para qualificação de um graduando no curso de Matemática daquela instituição. A honraria destacada nesse artigo foi recebida no ano de 1890.
Paradoxalmente à afirmação anterior, a autora defende que não tinha como desejo que as mulheres fossem presidentes da República, coronéis ou que agissem como homens (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.23, p.1). Ao mesmo tempo que reconhece a potencialidade do sexo feminino para que alcance a igualdade e possa exercer carreiras científicas na área de Matemática, que tenham acesso à educação e se libertem da opressão masculina, ela desejava também que a área de atuação da mulher fosse definida pelos legisladores, que naquele momento era uma classe composta estritamente por homens (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.21, p.1).
Senhorinha listou, no número 14 do periódico, uma série de nomes notáveis de mulheres que haviam tido sucesso na história em diversas áreas e que comprovassem a potencialidade feminina. No artigo “Senhoras célebres”, que a seguir transcrevemos, são listados os nomes de 57 mulheres que, desde a Antiguidade, haviam exercido importantes funções, como rainhas, coronéis, escritoras, professoras, pintoras, cientistas, políticas, filósofas e também personagens mitológicas.
Lançando os olhos pelo longo acervo de experiencia que se chama historia, vimos que todas as éras houve mulheres que, sem deixarem de o ser, sem usurparem os predicados do outro sexo, exerceram notavel influencia nos successos contemporaneos.
Helena, Aspasia, Cleopatra, Cassandra, Corina, Sapho de Mithylene, Hypathia d’Alexandria, Judith, Joanna d’Arc, Isabel a Catholica, Isabel de Hungria, Isabel de Inglaterra, Mme. Condorcet, Sra. Remusat, Necker de Saussure, Lajolais, Mme. Stael, Genlis, Sevigné, Montelieu, Berengaria, Dascier, Chimit, Sybilla Marion, Anna Waser, Sophia Chiron, Henriqueta Waper, Volters, Semiramis, Savigné, Gertrudes, Margarida, Maria Terburge, Flausina Bardoni, Isabel Claudia, Roland, Neria, Terchisilla, Julia Waser, Archiata, Van-Veca, Versilt, Cornelia, Anna Deilur, Olympia, Cysica, Aristareta, Calipso, Van Huepen, Rarisch, Marqueza de Merangere, George-Sand, Delfina de Sartre, Marqueza de Robias, Phryné, Pape Carpantier e muitas outras. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.14, p.2)
O nome da personagem mitológica Semíramis, que faz parte da lista, recebeu especial atenção por ter sido o único a ser biografado nesta mesma edição do periódico. Semíramis era descrita como genial por ter mandado construir Babilônia, a principal cidade da civilização babilônica na antiga Mesopotâmia, e por suas diversas conquistas. Sobre a ausência de biografias das outras mulheres, a autora escreveu:
Não podendo descrever como desejavamos as traductoras dos sentimentos moraes - as Sras. de Condorcet, Stael, Sevigné e outras matronas illustres que são argumentos irrecusaveis de que a mulher póde rivalizar sua intelligencia com a do homem em muitos predicados, tendo alguns em que nunca pode e nem poderá ser por elle alcançada. Fazemos ponto. Deixemos falar os factos, e no almo seio da historia deduziremos a intuitiva teoria - O que a mulher quer, Deus quer. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.14, p.2, grifos da autora)
Dos nomes listados e que chamam a atenção por suas contribuições científicas, citamos Sybilla Merian (1647-1717), uma naturalista ilustradora científica alemã que estudou plantas e insetos, e também Hipátia de Alexandria, que viveu na Grécia no século IV a.C. e se destacava por ter desenvolvido trabalhos de Aritmética, Ciências e Medicina.
Apesar de considerarmos relevante a menção a esse conjunto de nomes, a falta de informações biográficas poderia não surtir o efeito pretendido pela autora do artigo. As leitoras do periódico teriam condições de buscar mais informações acerca dessas mulheres? De que forma os artigos publicados poderiam contribuir para a emancipação das mulheres? Acreditamos que, em razão das condições precárias de acesso à informação naquele momento (e por não saber as reais contribuições de cada uma das mulheres citadas), muitas das leitoras poderiam não se sentir influenciadas ou inspiradas pelas realizações daquelas mulheres.
Ainda sobre biografias, Senhorinha escreveu na 14a edição do periódico um breve artigo sobre Benjamin Franklin, que, entre outras funções que desempenhou em sua vida, foi um cientista. Entretanto, o artigo destacava apenas sua ação filantrópica, por ter deixado como herança uma quantia destinada à construção de prédios públicos nas cidades de Boston e Filadélfia (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.14).
Sobre escritos de caráter matemático, há apenas um artigo, na edição de número 18, em que a autora apresentava uma fórmula matemática para ensinar como as leitoras poderiam calcular o dia da semana em que havia ocorrido o nascimento de qualquer pessoa.
Calculo para saber o dia em que nasce qualquer pessoa
Sabendo com exatidão o dia, mez e anno em que uma pessoa nasceu, escrevem-se os dous ultimos algarismos do anno anterior ao do nascimento.
Verbi gratia, se nasceu em 1837 escreve-se, 36 addciona-se a quarta parte deste numero, despresadas as fracções se as houver; addiciona-se mais o algarismo 5: addiciona-se a totalidade dos dias decorridos desde o 1o de Janeiro até o dia do mez em que nasceu, inclusive não esquecendo o dia do bissexto (se o nascimento for em anno tal, e em mez posterior a Fevereiro.) sommem-se estas quatro addições e divida-se o total por 7.
O resto ou sobra da divisão indicará o dia da semana em que a pessoa nasceu; se não houver sobra ou resto este dia será sexta-feira. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1990, n.18, p.4)
Posteriormente, a autora apresentava uma tabela indicando o dia de nascimento de uma pessoa em relação às possibilidades de restos de divisão entre 1 (sábado) e 6 (quinta-feira) (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.18). Existem diversos algoritmos para calcular o dia da semana em épocas distintas, porém a fórmula apresentada pela autora serve somente para datas do século XIX.
Entre os escritos sobre ciências, havia informações acerca das descobertas que estavam sendo feitas naquele momento nas áreas de saúde e botânica. Na 13a edição do periódico, a autora replicou um artigo publicado no jornal A Província de São Paulo, em 25 de agosto de 1889, noticiando o satisfatório resultado de uma transfusão de sangue realizada pelo médico Antonio Constantino da Silva Castro, que curou a febre de uma jovem de 15 anos (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.13). Esse artigo remetia a um avanço na Medicina, uma das áreas sobre as quais a autora se propôs a publicar no periódico quando apresentou O Quinze de Novembro do Sexo Feminino ao público.
Há também, na mesma edição, uma cópia de outro artigo do jornal A Província de São Paulo, que trata do desenvolvimento da pesquisa sobre o hipnotismo realizada por James Braid (1795-1860), um médico escocês considerado o primeiro hipnotizador da história (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.13).
Mencionamos ainda uma breve notícia sobre a descoberta de uma nova forma de examinar o crânio por meio de um objeto incandescente colocado na boca do paciente, com o intuito de iluminar os ossos cranianos. A esse artigo foi dada atenção especial, por ter sido uma descoberta feita por meio de brincadeiras realizadas por estudantes de Medicina (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.21). Não foram encontradas mais informações sobre esse tipo de exame ou sobre os inventores da técnica.
Ainda como divulgação de curiosidades, o periódico informa sobre a descoberta de uma árvore da espécie Galactodendron utile.
ARVORE DE LEITE. - Com esta vulgar denominação conheceu-se em Venezuela, d’onde é indigena, prosperando em terrenos elevados entre 500 a 1.500 pés acima do nivel do mar, uma arvore de grande porte (Galactodendron utile), da familia das artoerpeas que, desde Humboldt que primeiro a descreveu, tem chamado a attenção dos botanicos. Além de distincta por sua belleza e dimensões magestosas, a interressante arvore dá por incisão um liquido branco nutritivo que, segundo analyses scientificas, contém substancia semelhante á materia gordurosa do leite de vaca e cera identica á mais pura das abelhas. O leite do qual muitas pessoas tem usado de mistura com o café, constituindo uma bebida agradavel ao paladar ha sido applicada com vantagem em casos de tisica pulmonar. (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.13, p.3)
A árvore descrita no artigo, também conhecida como Brosimum utile, está presente nas Américas do Sul e Central e possui uma seiva que se assemelha ao leite de vaca, servindo de alimentação para os indígenas destas regiões. No artigo, é mencionado ainda o fato de que foram enviadas algumas mudas da árvore para aclimatação no Jardim Botânico fluminense (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.13).
Em outro artigo, Senhorinha descreve mais uma descoberta da Botânica - uma árvore indiana que emanava energia -, relatando que, durante a pesquisa, notaram que esse fenômeno era mais intenso durante o dia, enquanto durante a noite ou em período de chuva isto não ocorria (O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, 1890, n.18). Não há mais informações sobre a espécie da árvore mencionada no referido artigo.
Algumas considerações
Em um momento em que a mulher não tinha sua cidadania reconhecida e muitas vezes não tinha acesso à educação, Francisca usava a imprensa como sua principal ferramenta de luta e reconhecia a potencialidade intelectual da mulher, tendo dentre seus objetivos informar as leitoras do periódico sobre Ciências e Matemática e reafirmando que a educação feminina só seria emancipadora quando a mulher tivesse acesso a estes conhecimentos.
Porém, o que se percebe é que a produção científica noticiada no periódico era, muitas vezes, fruto de descobertas realizadas por homens; além de que, a publicação não apresentava de modo detalhado como ocorriam o desenvolvimento e a prática do conhecimento científico e como as mulheres estavam sendo invisibilizadas nesta área de conhecimento.
De modo geral, o que se observa é uma abordagem curiosa e informativa das “novidades” das ciências daquele momento. Desse modo, os artigos parecem não alcançar um patamar que atingisse a formação da leitora para que entendesse e buscasse formas de seguir carreira e produzisse conhecimento científico e matemático - apesar de a autora ter demonstrado, por diversas vezes, qual era a relevância dessas áreas para a emancipação feminina.
Além disso, nos números do periódico O Quinze de Novembro do Sexo Feminino aqui analisados, são poucos os artigos que tratam de temáticas científicas e matemáticas, resumindo-se a uma lista de mulheres consideradas importantes (incluindo cientistas numa lista genérica), biografias (de mulheres e homens cientistas), notícias sobre novas descobertas (relacionadas especialmente a questões de saúde e botânica) e apenas um artigo que classificamos como relacionado à Matemática.
No que diz respeito às biografias, embora a autora tenha apresentado uma lista de importantes nomes do gênero feminino para inspirar suas leitoras, dificilmente esse intuito poderia ser alcançado, já que não eram trazidas informações sobre suas carreiras, como elas conquistavam a notoriedade e os percalços que as invisibilizaram ou as inferiorizaram por trabalharem em um ambiente tipicamente masculino para suas respectivas épocas. Mesmo quando trata de Semíramis e de Philippa de Fawcett, faltam evidências que elucidem para as leitoras o potencial da mulher para o desenvolvimento científico e matemático.
Em relação ao único texto que nos remete exclusivamente à Matemática ao apresentar um cálculo curioso, O Quinze de Novembro do Sexo Feminino não coloca em pauta a importância que essa área tem para a sociedade, talvez deixando transparecer uma visão mágica das fórmulas que podem ser desenvolvidas, sem apresentar sua potencialidade para a compreensão de outros fenômenos cotidianos - por exemplo, como os algoritmos matemáticos poderiam ser usados para compreender assuntos importantes e não apenas como diversão ou curiosidade.
Analisar os discursos sobre o papel da mulher na sociedade brasileira do final do século XIX e seu acesso a conhecimentos científicos e matemáticos em O Quinze de Novembro do Sexo Feminino pode ser uma maneira de compreender como os periódicos daquele período buscavam a inserção das mulheres no universo científico e matemático. Observa-se que, apesar da postura progressista de Senhorinha, ainda havia enraizada a ideia de que conhecimentos eram mediados por homens, e que mulheres tinham papéis menos importantes na sociedade - ainda que ela não tivesse consciência de tal fato. Entretanto, há que considerar que Senhorinha havia sido educada em uma cultura patriarcal, motivo pelo qual algumas construções sociais ainda não estavam concretizadas em suas ideias. Não obstante, seus escritos podem ser considerados um avanço para a época, sendo de relevância ímpar para a construção histórica da identidade da mulher na sociedade.
Apesar de distante no tempo, a luta de O Quinze de Novembro do Sexo Feminino ainda está presente na sociedade brasileira. Francisca Senhorinha da Motta Diniz se junta a outros nomes como Nísia Floresta, Ana Eurídice Eufrosina de Brandas, Joana Paula Manso de Noronha, Josefina Álvares Azevedo e a diversas outras mulheres que lutaram por meio de seus escritos durante todo o século XIX pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, reconhecendo o potencial intelectual da mulher para aprender, trabalhar e desenvolver ciências e matemática.
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Notas
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1
A escolha destes números se deu pelo fato de serem as únicas edições disponíveis. Elas estão digitalizadas no site da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
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2
Não é possível ter certeza da data de publicação deste número, pois a primeira página está rasurada no arquivo disponibilizado digitalmente pela Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.
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3
Inicialmente foi realizada uma leitura de todos os artigos das edições disponíveis e, em seguida, foi estabelecida uma classificação que, além de selecionar os textos científicos e matemáticos, elencava aqueles que se remetiam a literatura, opinião, política, entretenimento, anúncios, breves notas e assuntos diversos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
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Recebido
07 Jul 2020 -
Aceito
06 Ago 2020