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Salvador: a luta pela reparação dos negros

BAHIA: ENTREVISTAS

Salvador – a luta pela reparação dos negros

Entrevista de Arany Santana

NA CAPITAL da Bahia, a mobilização contra as desigualdades raciais vem assumindo formas inéditas e conquistando espaços na administração pública. Um deles é a criação da Secretaria Municipal da Reparação, com o propósito definido e claro de corrigir injustiças que vêm se perpetuando contra os negros na sociedade. Para conhecer os planos e os propósitos desse novo órgão da municipalidade de Salvador, entrevistamos, no dia 9 de fevereiro, Arany Santana, a titular dessa pasta.

ESTUDOS AVANÇADOS - Professora, quais são os objetivos e as funções da Secretaria Municipal da Reparação?

Arany Santana – Quando o prefeito escolheu esse nome, sabia que isso teria impacto. Na verdade, a palavra reparação é muito ampla, mas no projeto de lei que cria a Secretaria, estabeleceu-se que ela seria um órgão voltado para a população afro-descendente, com a finalidade de formular políticas, assessorar e avaliar diretrizes e ações em conjunto com as áreas de saúde, educação e habitação. Foi dada ênfase, sobretudo, ao problema da inclusão econômica.

Contamos muito com a sensibilidade do prefeito Antonio Imbassahy, mesmo porque todos sentem a situação do ponto de vista do discurso teórico, quando ela também é uma conquista do movimento negro. Pois este, ao longo de um quarto de século, vinha clamando por um órgão do governo para traçar políticas tendo em vista a desigualdade racial. Faço essa alusão ao prefeito porque não tenho vinculação política com ninguém. Mas acredito ter sido ele o homem que, nesse momento, conseguiu captar as ansiedades e os anseios da população afro-descendente.

Oitenta e seis por cento da população de Salvador é composta de negros. Por isso, reparar não é consertar. Reparar é abrir oportunidades para esse segmento enorme da cidade, a fim de combater as desigualdades raciais, provenientes de um processo de colonização e exclusão da população pobre. Essa Secretaria não é a salvadora da pátria, mas inicia um processo novo dereparação. Para tanto, é preciso que haja uma mobilização da sociedade como um todo, uma participação da sociedade civil organizada, do empresariado, das ONGs, de todos, enfim, independentemente da cor da pele e do partido político.

É bom que fique claro que se trata de um programa de governo, uma vez que esse é um compromisso que o presidente da República assumiu conosco, em razão dos vários êxitos do movimento negro e das diretrizes traçadas na Conferência Mundial, em Durban. A decisão ali tomada foi a da luta contra a xenofobia e todas as formas de intolerância no mundo.

Por isso o governo Lula criou uma Secretaria com status de Ministério – a Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial – da qual é titular Matilde Ribeiro, uma paulista que recebeu a incumbência de fazer cumprir esse acordo internacional e de acompanhar e sensibilizar todos os municípios para a implantação de políticas de combate à desigualdade racial, nos campos da educação, da saúde, do trabalho, do emprego e da renda. Fora isso, há diversas outras ações que abrangem questões como as da violência, da juventude, da mulher negra, de terras para os quilombos etc.

Essas atividades são novas para nós, militantes, e agora estamos à frente de órgãos do governo. Trata-se, portanto, de uma mudança de postura, de mentalidade, e para isso também se requer certa formação.

Nesta microsecretaria temos enfrentado dificuldades para montar um corpo capacitado para cumprir tal missão. Não posso fazer reparação aqui dentro, admitindo militantes que não tenham experiência na área, porque o que precisamos é de pessoas competentes para fazer a reparação lá fora. Na realidade, não temos quadros para gerenciar. Assim, entendo que uma atividade de reparação também deva formar quadros para a administração pública direta. Então, o processo de reparação de um povo que viveu quatro séculos excluído, no sentido mais amplo da palavra, será demorado.

O conceito de reparação

ESTUDOS AVANÇADOS - Quando foi criada a Secretaria? A sra. já obteve alguma coisa concreta nesse processo?

Arany Santana – Ela foi criada no dia 18 dezembro de 2003. Em se tratando de uma Secretaria, ela necessita de uma série de formalidades, que implicam nomeação para cargos e elaboração de seu regimento. Tudo isso é muito novo e não tenho modelo algum no qual me basear. Em função disso, tivemos que nos dedicar a discussões e a seminários internos durante três semanas, a fim de discutirmos o conceito de reparação, para conceber um órgão que tem uma finalidade bastante específica. Conceituar isso não é muito fácil, depende de um exercício, de uma prática, porque inclusive não se pode ter a ajuda de um técnico que domine a questão.

Era algo que tinha de emanar de nós e dos diversos segmentos da comunidade negra, a qual tive de convocar para pensar junto comigo, pois não se tratava mais um movimento de mulheres isoladas ou a formação de uma pequena ONG. Enfrentamos, assim, um processo de mudança de mentalidade. Recorremos aos nossos arquivos, aos nossos anseios e aspirações para conceber a montagem de uma estrutura governamental. Para tanto, elaboramos um regimento, a fim de estabelecer normas de funcionamento.

Levamos em conta, para tanto, vários dados. Primeiro, que a partir do mês de julho, o foco de atenção será a sucessão eleitoral no município de Salvador; depois, que a Secretaria não poderia contar com um grande orçamento e que ela seria mais um órgão de articulação. Assim, entendemos que estamos correndo contra o tempo para organizar essa parte burocrática, da qual não poderíamos fugir.

Além de todos esses problemas internos para estruturar a Secretaria, recebemos também projetos mirabolantes. Uma vez que a demanda da sociedade está comprimida e reprimida, quando surge uma determinada Secretaria as pessoas querem que sejam implementadas, de uma hora para outra, mil e uma coisas.

As primeiras atividades da Secretaria

Já estamos, no entanto, respirando, dando os primeiros passos para o cumprimento de nosso dever.

Temos, por exemplo, um projeto de formação de jovens, trazido por uma ONG de Brasília, que nos procurou no dia da minha posse. Ela deseja capacitar jovens da periferia e de baixa renda. Foi uma negociação rápida, e essa parceria já está sendo encaminhada com a Cooperforte.

Também estabelecemos contato com as outras secretarias que têm programas que interessam à nossa causa, como a da Saúde, por exemplo, que acabou de assinar uma parceria conosco para assistir a população afro-descendente portadora de anemia falciforme. Trata-se de uma doença silenciosa, muitas vezes assintomática e da qual somente a população negra é vítima. O convênio foi assinado e as providências estão sendo tomadas. Não foi um projeto concebido por nós, mas que tem a ver com a nossa Secretaria, porque vamos acompanhar, avaliar e indicar os locais/áreas de concentração de população negra/afro-descendente.

Vamos iniciar o processo de implantação da lei nº 10.639/2003, que trata da inclusão da disciplina História e cultura afro-brasileira e africana nos currículos das escolas de educação básica. Antes dessa lei, em 1985, o Conselho Estadual de Educação da Bahia aprovou a inclusão da referida disciplina nos currículos das escolas de 1º e 2º graus públicas e privadas da rede de ensino.

A Fundação Palmares fez uma parceria conosco para a elaboração, junto com a Universidade Federal da Bahia, de um livro didático, porque não há bibliografia disponível para o estudo da história da África, muito menos professores especializados. Nosso currículo de primeiro, segundo e terceiro graus é extremamente branco e europeu, e a preparação de um livro didático com uma linguagem acessível é algo que dá muito trabalho.

Como se vê, não estamos, com essa Secretaria, fazendo algo óbvio ou banal, mas sim identificando programas das diversas Secretarias, dando força e visibilidade e buscando recursos para que eles sejam implementados com o nosso intermédio.

A fixação de cotas

ESTUDOS AVANÇADOS - O que a sra. pensa sobre a introdução de cotas? Por exemplo, no serviço público, deveria haver uma cota para pessoas afro-descendentes? Isso é positivo e necessário?

Arany Santana – Isso se faz necessário, sim. Tenho observado essa questão já há algum tempo e tenho visto que não adianta mais ficarmos no plano da discussão. Precisamos de ações concretas, mesmo que isso seja provisório. É claro que o estabelecimento de cotas não resolverá os problemas, mas é uma solução imediata. Acredito nas cotas, tanto para a universidade como para o serviço público, mas creio que deve haver também, paralelamente, uma melhoria na qualidade de ensino na escola pública, desde a educação infantil. Cotas para inserção dos afro-descendentes no funcionalismo público? Dá para se contar nos dedos das mãos quantos afro-descendentes existem nos órgãos públicos, ou ocupando chefias nas empresas de grande porte.

Salvador é uma cidade eminentemente negra, mas os que a dominam não têm a cara, nem a cor de sua população. As empresas não têm a cor dos soteropolitanos. Por quê isso acontece? Por que essa população é tida como inapta, incompetente e sem condições de assumir postos, nem cargos? Porque o grande cartão de visita é a cor da pele. Então, infelizmente, vivemos num país em que é preciso fazer leis para se respeitar o idoso, leis para se respeitar as crianças e os adolescentes. Por que não leis para se dar emprego aos afro-descendentes?

Vamos pedir a Deus para que nas próximas décadas não sejam necessárias cotas e nem leis. Ao longo dos anos estamos somente no discurso teórico e nada aconteceu. Ações concretas vão chocar a sociedade? Vão. Vão de encontro aos nossos princípios ideológicos etc. e tal? Sim. Mas estamos num país que tem essa cara, que o racismo tem essa faceta múltipla e já cansamos de brigar. Agora queremos ações concretas, mesmo que isso seja por pouco tempo, e que a gente consiga a igualdade racial. Mas oferecendo à população uma educação de qualidade, saúde etc. Todo movimento, quando começa, é assim mesmo, radical. Depois as coisas chegam no lugar.

Uma militante do movimento afro

ESTUDOS AVANÇADOS - Uma pergunta um pouco pessoal: a sra. sempre foi uma militante da causa negra? Qual é a sua trajetória, sua formação?

Arany Santana – Optei por ser professora. Sou filha de uma família humilde e nasci em Amargosa, uma terra extremamente racista, cheia de brancos. Minha mãe era costureira e meu pai marceneiro. Ele se destacava porque era o único que tinha uma família numerosa, sete filhos, e nenhum de nós foi para a cozinha do branco para cozinhar, nem para o armazém escolher café, nem para o armazém de fumo, para enrolar fumo, quando esse era o destino de todos os de pele negra. Meu pai foi um grande militante. Ele é a minha referência, pois fez questão de colocar os filhos na escola, pegando no enxó e no serrote, de noite e de dia.

Ele era considerado um negro metido a besta, porque mantinha os filhos na escola. Então tive essa referência e já nasci militante, com pai militante, que participou ativamente e cedia o espaço da tenda dele para se fazer reuniões. Ele tinha o projeto de ser enviado para São Paulo, para aprender uma metodologia com o intutito de passar o ofício dele para os meninos pobres da cidade. Era o sonho dele naquele momento, antes da revolução de 1964, o de fazer esse projeto de melhoria da população. Eu era pequena e vi estourar a revolução de 1964, e vi a tenda de meu pai ser quebrada pelo exército brasileiro. Tivemos de arrumar as malas e mudar para Salvador, em 1965. Começamos tudo do zero, de novo.

Compromisso com a educação

Fui ser professora por opção; fiz faculdade e sou professora do ensino médio. Tenho 29 anos de magistério e sempre estive com um pé na sala de aula e outro nos blocos afros. Sempre acreditei que a educação era o caminho para ascensão da minha gente e tenho um compromisso para com o meu povo, de colocá-lo na escola pública. Minha clientela é soldado de polícia, enfermeira, camelô. São esses os meus alunos, jovens e adultos do noturno, um turno completamente marginalizado na escola.

Sou professora de língua portuguesa e também das demais disciplinas, inclusive de história da África. Sou atriz, também por opção; fiz teatro, cinema, televisão e tudo isso me proporcionou elementos para vencer na vida e estar aqui hoje. Não tenho olhos azuis, nem verdes, mas tenho grande vivência e experiência, e acredito que podemos mudar esse quadro que aí está.

Tenho um compromisso com o prefeito dessa cidade e, por uma questão de ética, de postura e de compromisso, estou andando na velocidade de quem vai trabalhar um ano apenas. Sou fundadora do "Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial 13 de maio de 1978". Naquele porão onde hoje é a prefeitura, tive a honra de lavrar a ata da fundação.

"Prefiro ser negra"

ESTUDOS AVANÇADOS – Qual é a denominação correta que se dá a uma pessoa que não é branca? É negra, preta ou afro-descendente?

Arany Santana – Em sendo brasileiro, todo mundo tem um pé na senzala e na casa grande. Na Bahia, é um problema sério as pessoas não assumirem sua condição de mestiças ou afro-descendentes. A questão no Brasil é a cor da pele. Isso ficou arraigado, incrustado nas cabeças. Essas terminologias fazem uma tremenda confusão na cabeça do nosso povo desinformado – até porque raça é um conceito puramente ideológico.

Não gosto desse qualificativo de afro-descendência porque essa denominação não foi trabalhada com a nossa gente. Para mim, o afro-descendente é aquele que tem um pé na senzala, nem que não saiba quantas gerações atrás. É o mestiço, é a grande população brasileira. São diversos os seus indicativos: orelha, nariz, boca, olho, queixo, formato do rosto, gengiva, palma da mão, auréola da mama, o genipapozinho no bum-bum do recém-nascido. Mas há pessoas que não se assumem como tal e procuram se afastar desse padrão, porque existe essa realidade cruel e racista. Prefiro ser negra. É uma coisa antiga. Preto é cor de objeto, mas algumas pessoas se qualificam como pretas.

Tenho dificuldades em usar essas novas terminologias, verdadeiros modismos. É por isso que insisto na existência de um trabalho prolongado para que essas pessoas tenham consciência e conhecimento da sua história, de que eles são mestiços. A raça negra foi cortada no meio, foi fragmentada totalmente e essa discussão é para enfraquecer o movimento. Então, se a gente diz negros e não-negros, fica melhor, neste momento de pouco esclarecimento das cabeças.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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