RESUMO
A consagração da Semana de Arte Moderna pela história cultural é fenômeno que data da década de 1940. O artigo analisa a reinvenção discursiva da Semana por meio dos escritos de Tristão de Athayde, Lourival Gomes Machado, Luís Martins, Ruben Navarra, Robert C. Smith e Nestor Victor, entre outros críticos. Aponta-se a correspondência epistemológica e metodológica entre dois mitos originários, gerados nessa época e ainda vigentes: a tese de que o movimento modernista redescobriu o Brasil profundo, resgatando a negritude do apagamento, e a noção de que o modernismo brasileiro seria uma retomada das raízes do período colonial.
PALAVRAS-CHAVE:
Semana de Arte Moderna; Modernismo; Historiografia; Regionalismo; Estado Novo
ABSTRACT
The 1922 Modern Art Week in São Paulo was enshrined as the starting point of Brazilian Modernism only in the 1940s. The article unfolds discussions on this reinvention by examining the writings of Tristão de Athayde, Lourival Gomes Machado, Luís Martins, Ruben Navarra, Robert C. Smith and Nestor Victor, among other critics. It also considers a methodological and epistemological parallel between two widely accepted origin myths generated at the time: the idea that the Modernist movement rediscovered a so-called ‘deep Brazil’, reclaiming blackness from its previous expunction, and the notion that Modernism is a recovery of Brazil’s colonial roots.
KEYWORDS:
Modern Art Week; Modernism; Historiography; Regionalism; Estado Novo (Brazil)
“Assim, no meio da confusão e lutando com os embaraços que
ela própria cria para si, vem-se cristalizando a nossa vanguarda.”
(Victor, 1938VICTOR, N. Os de hoje: Figuras do movimento modernista brasileiro. São Paulo: Cultura Moderna, 1938., p.154)
Ao longo dos últimos 50 anos, a Semana de Arte Moderna virou uma espécie de unanimidade intocável, quase sagrada. Para alguns, a Semana não se debate; se celebra. O curioso é que nem sempre foi assim. No aniversário de 20 anos do evento, a unanimidade era outra. Já nessa época, a Semana “parecia pronta para ser enterrada”, nas palavras de Francisco Alambert (2012ALAMBERT, F. A reinvenção da Semana (1932-1942). Revista USP, n.94, p.107-118, jun./jul./ago. 2012., p.112). No dia 30 de abril de 1942, Mário de Andrade, voz mais que autorizada, proferiu a conferência “O movimento modernista” na biblioteca do Itamaraty, no Rio de Janeiro, onde sentenciou: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição” (Andrade, 1974, p.255). Essa dura condenação tem ecoado de forma enviesada pela historiografia. Todos conhecem a palestra, porém poucos dão ao autor o crédito de levar suas críticas a sério (Cardoso, 2017CARDOSO, R. O intelectual conformista: Arte, autonomia e política no modernismo brasileiro. O Que Nos Faz Pensar, v.26, n.40, p.179-201, jan./jun. 2017.; Chaves, 2013CHAVES, S. da C. 22 por 1: O modernismo avaliado por Mário de Andrade. Grau Zero: Revista de Crítica Cultural, v.1, n.1, p.9-22, 2013.; Jobim, 2012JOBIM, J. L. O movimento modernista como memória de Mário de Andrade, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.55, p.13-26, 2012.; Ramos Jr., 2012RAMOS JUNIOR, J. de P. Mário de Andrade e a lição do modernismo. Revista USP, n.94, p.49-58, jun./jul./ago. 2012.; Bosi, 2004BOSI, A. O movimento modernista de Mário de Andrade. Literatura e Sociedade, v.9, n.7, p.296-301, 2004.).
O notório mea-culpa de Mário não foi a primeira condenação da Semana por um de seus integrantes ou apoiadores, e muito menos seria a última. O próprio já havia se distanciado dela em 1924, na revista América Brasileira, na qual qualificou a Semana de “Precipitada. Divertida. Inútil” (Andrade, 1924ANDRADE, M. de. Chronicas de Malazarte. VII. America Brasileira, n.28, abr. 1924., p.115). Em 1929, na Revista de Antropofagia, Oswaldo Costa desancou a Semana como “falso modernismo”, entre uma saraivada de recriminações, certamente com o aval de Oswald de Andrade (Tamandaré, 1929TAMANDARÉ [Oswaldo Costa]. Moquem. IV-Sobremesa. Revista de Antropofagia, v.2, n.7, In: Diário de S. Paulo, 1.5.1929, p.12., p.12). Ao longo das décadas seguintes, o evento e sua recepção foram postos em questão por Sérgio Milliet, René Thiollier, Blaise Cendrars, Di Cavalcanti, Yan de Almeida Prado, entre outros. Com tantas críticas e reparos vindos do seio do movimento, cabe a pergunta: em que momento se forjou o mito triunfal da Semana? É comum imaginar que isso só tenha ocorrido em torno das celebrações do cinquentenário em 1972, mas, na verdade, sua formulação intelectual é mais antiga (Cardoso, 2019b_______. Forging the myth of Brazilian modernism. In: SILVER, L.; TERRACIANO, K. Canons and Values: Ancient to Modern. Los Angeles: Getty Publications, 2019b. p.269-87.; Pontes, 1998PONTES, H. Destinos mistos: Os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Cia. das Letras, 1998., p.21-37).
A narrativa heróica da Semana foi alicerçada nos anos finais do Estado Novo e elaborada, do modo que a conhecemos hoje, logo após o fim dele. Conforme apontou Silviano Santiago (1991SANTIAGO, S. Sobre plataformas e testamentos. In: ANDRADE, O. de. Ponta de lança. São Paulo: Globo, 1991., p.7-19), o par de volumes Testamento de uma geração (1944) e Plataforma da nova geração (1945) foi decisivo para esse processo (Pontes, 1998PONTES, H. Destinos mistos: Os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Cia. das Letras, 1998., cap.2). Editados pela Livraria do Globo, de Porto Alegre, os livros são a complilação de inquéritos publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, ouvindo nomes destacados da intelectualidade brasileira. O corte estabelecido para inclusão no primeiro volume, organizado por Edgard Cavalheiro, era o ano 1930. Os autores que se firmaram após essa data passaram a compor o segundo volume, organizado por Mário Neme. As primeiras sondagens foram realizadas entre 1941 e 1942, sob encomenda de Sérgio Milliet, e publicadas no jornal em 1942 (Cavalheiro, 1944, p.271-82).
Essa enquete representou uma troca consciente da guarda entre a geração de 1918, a que fez o modernismo paulista, e aquela outra que viria a ser apelidada de geração de 1945 - responsável não somente por enterrar os ossos da Semana, mas também por reinventar e consagrar sua história. A pergunta dirigida aos respondentes era: o que virá após o fim da Segunda Guerra Mundial? Quando o inquérito nasceu, contudo, o desfecho da guerra ainda estava longe. Na abertura do primeiro volume, Cavalheiro admite que a faísca inicial para sua realização foi um artigo de Mário de Andrade, “discutidíssimo”, em que ele teria feito o balanço do que chamou de sua “pífia geração” (Cavalheiro, 1944, p.8-9). A noção de derrota geracional foi externada também por Di Cavalcanti em seu depoimento, e ecoa ainda ao longo de outros trechos e autores. O próprio título, Testamento, pode ser lido quase como prenúncio do falecimento de Mário, em fevereiro de 1945, e o enterro de tudo que sua geração, nada pífia, representou no panorama intelectual brasileiro.
O presente artigo se dedica a examinar a historiografia da Semana surgida ao fim do Estado Novo. Seu propósito não é pôr em xeque a falsidade do mito de 1922, mas compreender como e por que ele passou a ser aceito como verdade indiscutível. Em especial, quero chamar a atenção para uma tese inventada por volta dessa época e que acabou vingando: a de que o modernismo paulista teria resgatado o rural, o indígena e a negritude de um suposto apagamento anterior. Em poucas palavras, a noção de que o movimento modernista pôs em andamento a famigerada descoberta do Brasil profundo. Que essa alegação é falsa é facílimo de demonstrar por exemplos. É só apontar nomes como Adolfo Caminha, Affonso Arinos, Euclides da Cunha e João do Rio, na literatura, ou Almeida Júnior, Eliseu Visconti e Arthur Timotheo da Costa, nas artes visuais, que já haviam se lançado, entre as décadas de 1890 e 1910, à busca pelo autóctone e o autêntico, assim como ao exame da vivência urbana dos pobres e marginalizados. Isso, sem nem falar dos muitos criadores que o cânone modernista relegou ao status do regional ou, pior ainda, do pré-modernismo, ambas categorias mais que discutíveis.
O olhar para o Brasil profundo
Em 1940, foi realizada uma exposição individual de Cândido Portinari no Detroit Institute of Arts, com o título Portinari of Brazil, a qual seguiu depois para o MoMA de Nova York (Gomes Cardoso, 2019 , p.9-24). No catálogo, o historiador americano Robert C. Smith (1940SMITH, R. C. The art of Candido Portinari. In: ___. Portinari of Brazil. Nova York: The Museum of Modern Art, 1940., p.10-11) asseverou:
A dívida que a cultura brasileira moderna tem com o folclore, as danças, a música e a arte ritual do negro foi constatada pelos intelectuais de São Paulo naquela Semana de Arte Moderna de 1922 que foi o primeiro reconhecimento público da arte indígena e regional no Brasil.
Desde então, surgiu uma escola de vigor impressionante inspirada em grande parte pelo negro. Abjurando o pitoresco artificial de seus antecessores francófilos, os brasileiros modernos têm buscado entender o negro e sua relação consigo mesmos, e sobre as concepções resultantes, têm baseado sua arte.
Na tal “escola de vigor impressionante”, além de Portinari, Smith agrupou Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Arthur Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Cícero Dias e Lasar Segall. O público norte-americano, ignorante das disputas internas ao modernismo brasileiro, não haveria de estranhar essa miscelânea de nomes. Porém, para quem conhece o assunto, o insólito ajuntamento levanta não somente uma lebre, mas pacas, tatus e cotias.
Robert Chester Smith exerceu papel fundamental na divulgação da arte brasileira nos Estados Unidos, em especial na promoção de Portinari, apelidado por ele de “o Diego Rivera brasileiro” (Gomes Cardoso, 2019, p.20). Recém-formado em Harvard, onde desenvolveu pesquisa sobre arquitetura portuguesa do século XVII, Smith veio parar no Brasil no ano fatídico de 1937, o primeiro do Estado Novo, aos 25 anos de idade, e tornou-se pioneiro da linhagem de brasilianistas estadounidenses. Seu interesse pela arte e arquitetura do período colonial logo o aproximou do novíssimo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde virou colaborador assíduo da Revista do Sphan. Ali travou boa relação com os três Andrades que transitavam pelo gabinete do ministro Gustavo Capanema: Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade, todos entre dez a vinte anos mais velhos do que ele (Reis Filho, 2012, p.9-24). É provável que a visão de Smith sobre a Semana de 1922 tenha sido moldada pelas explicações desse trio, já que ele não possuía conhecimento prévio para sair dissertando sobre o assunto.
O texto de Smith para o catálogo de Portinari é um dos primeiros a afirmar uma derivação entre a Semana de 1922 e a suposta redescoberta da negritude. Relação fantasiosa, diga-se de passagem, já que não há praticamente manifestações ou representações de afro-brasilidade nas obras que participaram da Semana ou foram produzidas em sua decorrência imediata. A exceção que confirma a regra é A negra (1923), de Tarsila do Amaral, quadro pintado em Paris e que só veio a ser exposto no Brasil em 1933 (Cardoso, 2019a_______. White skins, black masks: Antropofagia and the reversal of primitivism. In: FLECKNER, U.; TOLSTICHIN, E. Das verirrte Kunstwerk: Bedeutung, Funktion und Manipulation von Bilderfahrzeugen in der Diaspora. Berlin: De Gruyter, 2019a. p.131-54.; Gomes Cardoso, 2016). Em sua famosa carta conclamando Tarsila a se filiar ao matavirgismo, Mário de Andrade exortou: “Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis” (Amaral, 2003, p.369). Essa menção enviesada à “arte negra” é curiosa, sobretudo pela data. Escrita em novembro de 1923, ela é pouco posterior à produção de A negra, cuja figura central Mário ficou conhecendo por meio do esboço desenhado. Trata-se de uma referência negativa, invocada como prova de que Tarsila teria se parisianizado.
Mesmo na evolução posterior do movimento modernista - tanto no verde-amarelismo do grupo da Anta como nas pesquisas etnomusicológicas de Mário, e ainda na Antropofagia -, a questão racial aparece quase sempre em papel secundário (Toller Gomes, 1999, p.249-59). Ela costuma ser subordinada ao nacional, resumida ao folclore ou instrumentalizada como primitivismo, quando não é relegada ao deboche e ao estereótipo. Foi na década de 1930 que os meios modernistas passaram a dedicar maior atenção ao legado afro-brasileiro. Notadamente, depois de 1926 a 1927 quando o Brasil viveu sua própria onda de négrophilie, inspirada na parisiense, por conta do sucesso da Companhia Negra de Revistas, que deu palco para o talento de Pixinguinha e revelou Grande Otelo (Barros, 2005BARROS, O. de. Corações de chocolat: A história da Companhia Negra de Revistas (1926-27). Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2005.).
Apesar de sua singularidade, a hipótese de Smith não surgiu do nada. Pelo menos em parte, ela foi importada dos Estados Unidos. Encetou-se na década de 1930 um diálogo entre antropólogos americanos e brasileiros - em especial Melville Herskovits e Arthur Ramos - em torno das contribuições culturais da diáspora africana (Guimarães, 2008GUIMARÃES, A. S. A. Africanism and racial democracy: the correspondence between Herskovits and Arthur Ramos (1935-1949). EIAL - Estudios Interdisciplinares de América Latina y el Caribe, v.19, n.1, p.53-79, 2008.). A discussão não se restringiu ao campo da antropologia, mas respingou também nas artes. Escrevendo no Bulletin of the Pan American Union, em 1931, o arquiteto Carl A. Ziegler (1931ZIEGLER, C. A. The colonial architecture of Brazil. Bulletin of the Pan American Union, maio 1931 [reimpresso como panfleto n.7 da “Fine Art Series”].) destacou “a influência do negro e do indígena” na arte e na música brasileiras. Sua impressão ecoava os sentimentos de Frances Grant - diretora do Roerich Museum, em Nova York, local de uma exposição pioneira de arte brasileira em 1930 - expressos pouco tempo antes no mesmo órgão (Grant, 1931; Gomes Cardoso, 2014). À época em que Smith se formou em Harvard, despontava nos meios intelectuais dos Estados Unidos vivo interesse pela temática da negritude brasileira, fato corroborado pela tradução para o inglês dos trabalhos de Ramos.
No texto de 1940, Smith aponta como princípio organizador da sua escola imaginária aquilo que apelidou de “o mistério do negro”. A expressão soa estranha, mas não deixa de ser condizente com o uso da imprensa brasileira, que apelava com alguma frequência para os mistérios da macumba (Giumbelli, 2015GIUMBELLI, E. Macumba surrealista: Observações de Benjamin Péret em terreiros cariocas nos anos 1930. Estudos Históricos, v.28, n.55, p.87-107, jan./jun. 2015.). Predominava à época uma visão da cultura de matriz africana como algo recôndito ou enigmático, situado à parte de uma brasilidade normativa - especialmente sob o Estado Novo, quando o padrão do brasileiro moreno, católico e nacionalista tomou ares oficiais e autoritários (Seyferth, 1999SEYFERTH, G. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In: PANDOLFI, D. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.; Gomes da Cunha, 1999). Outro trecho poderia causar maior estranhamento para eventuais leitores brasileiros, onde Smith (1940, p.11) afirma que Portinari teria revelado “o negro de todo o Brasil como símbolo sólido na vida vigorosa e cambiante do seu país”. Ao postular essa categoria agregadora, porém aplainadora de diferenças, o historiador americano realizava uma operação discursiva com potencial explosivo.
Smith certamente imaginava prestar um serviço aos seus amigos do Sphan, ainda mais ao creditar a realização desse arquétipo do negro brasileiro a Portinari, artista protegido por Capanema. Em 1940 - a despeito da atuação da Frente Negra Brasileira, entre 1931 e 1937 - ainda não era usual no Brasil afirmar “o negro” como categoria reificada, muito menos com o intuito de exaltá-la, o que viria a ser o caso nas décadas seguintes por obra e militância de Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos (Oliveira, 2008OLIVEIRA, L. L. de. Entre a miscigenação e a multirracialização: Brasileiros negros ou negros brasileiros? Niterói, 2008. Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense., p.40-82). Em termos conceituais, afirmar a existência de um “negro de todo o Brasil” era andar na contramão das ideias de Arthur Ramos, citado por Smith e então tido como o maior especialista em cultura afro-brasileira. Ramos - que ficou famoso com os livros O negro brasileiro (1934) e O folclore negro no Brasil (1935) - buscava naquele momento desmontar a “homogeneidade redutora” das categorias negro, branco e índio, com o propósito de colocar o estudo da mestiçagem em novo patamar, pretensamente científico (Campos, 2004CAMPOS, M. J. Arthur Ramos: Luz e sombra na antropologia brasileira: Uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. Rio de Janeiro: Edições da Biblioteca Nacional, 2004., p.274).
Cabe enfatizar o essencialismo da síntese intelectual operada por Smith. Talvez por ingenuidade, e certamente condicionado por seu olhar norte-americano, o jovem historiador misturou todos os matizes étnicos, regionais e culturais no mesmo balaio, decretou a existência de um negro genérico e creditou sua descoberta à burguesia de São Paulo e seus enfants terribles. Pensada ou impensada, trata-se de uma visão monolítica da racialidade, em conformidade com a rigidez da “linha de cor” então imposta nos Estados Unidos. Ela vai de encontro às noções de harmonia racial avançadas por Ramos, que contavam com o beneplácito oficial durante o período do Estado Novo. Seguindo o raciocínio de Smith, “o negro de todo o Brasil” seria uma categoria não somente unificada, como também demarcada pela alteridade absoluta - um Outro passível de ser descoberto e catalogado pelo olhar do antropólogo, do historiador, do artista. A proposição de que “os brasileiros modernos têm buscado entender o negro e sua relação consigo mesmos” tropeça na falha lógica de pressupor que os tais brasileiros modernos não fossem negros, nem partilhassem de qualquer intimidade com a cultura afro-brasileira.
Presumir que o “mistério do negro” pudesse ser revelado por Portinari ou Mário de Andrade ou Gilberto Freyre, entre outros referidos por Smith, era contingente no aceite de três premissas falsas: 1) que tal mistério existisse como entidade, 2) que ele estivesse perdido e, por conseguinte, precisasse ser resgatado, 3) que essa tarefa competisse a agentes intelectuais que não se viam como negros. A suposta remição da negritude atribuída por Smith a Portinari - assim como a constatação primeira de sua necessidade, que ele situa na Semana de Arte Moderna - perfaz uma expedição ao passado mítico, habitado por forças telúricas e identidades estáticas. Trata-se de uma espécie de paleontologia social, atendendo ao apelo, feito por Graça Aranha em Estética da vida (1921), aos “elementos bárbaros da nossa formação espiritual e da nossa nacionalidade”, o qual Abílio Guerra (2010GUERRA, A. O primitivismo em Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp: Origem e conformação no universo intelectual brasileiro. São Paulo: Romano Guerra, 2010., p.110) definiu como sendo o primeiro programa estético primitivista brasileiro.
Disputas críticas em torno da Semana
O essencialismo de Smith guarda semelhança epistemológica com outro texto que se constitui no marco fundamental para a reinvenção historiográfica da Semana de 1922. Trata-se de Retrato da arte moderna do Brasil, de Lourival Gomes Machado, volume que, não por acaso, traz como frontispício A negra de Tarsila. O livro foi escrito em 1945 e premiado naquele ano pela seção paulista da Associação Brasileira de Escritores; porém, só saiu do prelo em 1947, publicado pelo Departamento de Cultura de São Paulo. Apesar do relativo desconhecimento em que caiu na posteridade, esse pequeno ensaio foi responsável por nada menos do que resgatar a Semana do limbo em que Mário de Andrade a lançara em 1942, redefinindo radicalmente o modo como o movimento modernista seria compreendido dali para frente. Seu autor contava 28 anos quando o escreveu e pertencia à primeira geração de egressos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde defendeu sua tese de doutorado em ciência política em 1942 e foi assistente de Paul Arbousse-Bastide. Juntamente com Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival foi um dos fundadores da revista Clima, na qual atuou como diretor responsável e editor encarregado da seção de artes plásticas (Avelar, 2015AVELAR, A. C. de. A raiz emocional: Arte brasileira na crítica de Lourival Gomes Machado. São Paulo: Alameda, 2015.).
Na primeira parte do livro, Retrato da arte moderna do Brasil estabelece a narrativa heróica da Semana tal qual a conhecemos. A começar pela ideia dos antecedentes, que se tornou o foco de trabalhos posteriores como a História do modernismo brasileiro. I - Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958), de Mário da Silva Brito. O texto de Lourival exalta o “papel histórico” de Anita Malfatti como precursora da Semana e “proto-mártir da nossa renovação plástica” e relega a um segundo plano as exposições de Lasar Segall em 1913. Em seguida, estabelece a visão da Semana como ruptura radical com tudo que a antecedeu. Lançando mão de uma série de metáforas médicas - entre outras, a de um “corte de navalha [em] tecidos necrosados” - o autor contrapõe o que chama de “forças de renovação” de São Paulo ao “caráter amortecedor e esperto da capital marítima e cosmopolita” (Gomes Machado, 1947, p.34-7).
O texto reforça que a tarefa dos modernistas teria sido de “descobrir o Brasil” - divisa oswaldiana em origem, embora o autor não faça a atribuição a Oswald de Andrade, figura aliás quase ausente da narrativa. Sem citar nomes, Lourival designou o que ele chama de “traidores” do movimento e os dividiu em dois grupos: os da piada inconsequente - uma referência oblíqua a Oswald e à Antropofagia - e “os cultores de um idiotíssimo nacionalismo” - ou seja, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e os demais verde-amarelistas. Em contraposição a esses traidores, o texto ergue Tarsila à condição de “heroína”, iniciadora da renovação pictórica com as obras que realizou entre A negra (1923) e Abaporu (1928). Defende também Di Cavalcanti como expressão autêntica, comparando-o ao barroco mineiro por sua “identidade de essência” com a terra. Estabelecida a prioridade e a hierarquia dos pretendentes, o autor readmite Segall ao panteão da chamada “família plástica brasileira” como uma acquisição a posteriori (Gomes Machado, 1947, p.40-9).
A narrativa forjada por Lourival Gomes Machado soa bastante familiar para quem estudou a partir da historiografia produzida desde a década de 1970. Ela é base e origem do paradigma da Semana disponível em qualquer enciclopédia. Sua ampla disseminação mascara que a concatenação dada aos fatos é não somente arbitrária, como também rompia com o senso comum existente. Para compreender o quanto ela foi uma releitura radical, é preciso contrapô-la aos relatos que vieram antes. O gatilho imediato para a escrita de Lourival foi um ensaio publicado pelo crítico Ruben Navarra na Revista Acadêmica, em 1945, repisando argumentos desenvolvidos antes em outro artigo intitulado “A revolução plástica brasileira”, esse publicado no jornal carioca Diário de Notícias, em abril de 1944. Lourival deixou claro os alvos contra os quais se lançava ao referir não somente Navarra mas também um texto de José Lins do Rego, o prefácio do livro Região e tradição, coletânea de ensaios antigos de Gilberto Freyre, publicada em 1941FREYRE, G. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941..
Os artigos de Navarra trazem uma discussão da pintura brasileira moderna e suas relações com a Escola de Paris. O crítico contendia que o modernismo brasileiro não era uma simples derivação do seu êmulo estrangeiro, mas antes uma adaptação de seus princípios às condições e temáticas locais, constituindo assim algo original. Era importante para seu argumento demonstrar que a modernização artística teria ocorrido no Brasil em paralelo à sua eclosão na Europa, e não de modo tardio. Com esse intuito, Navarra (1944, p.1, 5) situou a “primeira semente de inconformismo” nas exposiçoes realizadas no Brasil pelo jovem Segall: “Em 1913, celebrou-se o ‘vernissage’ oficial da revolução plástica no Brasil, embora ninguém o suspeitasse”. Em seguida, o texto elenca Anita Malfatti e Tarsila do Amaral como continuadoras do processo, culminando nas obras de Di Cavalcanti, Guignard e Portinari.
Outro aspecto importante do texto de Navarra é de rebaixar a Semana:
A semana era uma formalidade historicamente dispensável. Pois o máximo que acrescentou à marcha dos fatos foi criar um ambiente de publicidade ruidosa e jovial em torno dos iconoclastas. Não foi essa famosa “Semana” o que determinou ou monopolizou a natural evolução antiacadêmica. Ela foi apenas uma celebração, uma festa e nada mais, como aliás está bem claro no recente depoimento de Mário de Andrade. O movimento já estava em curso antes da semana, como vimos, e prosseguiria da mesma maneira, sem a “Semana”. Esta fez apenas atribuir à cidade de São Paulo, por um direito formal, a honra de ter lançado o pregão do movimento. (ibidem, p.5)
Além de sustentar que a modernização artística teve início em 1913, o crítico argumentou ainda que o movimento “já despontava noutros pontos do Brasil” e que a “reação moderna estava no ar, era um fenômeno geral” (ibidem, p.5). Em defesa dessa tese, ele propôs que o agito em torno de Gilberto Freyre, no Recife, teria sido tão ou mais importante quanto o modernismo paulista. Essa afirmação seguia os enunciados do próprio. Na introdução a Região e tradição, escrita em 1940, Freyre descartou a Semana como “modernismo ‘oficial’” e alegou que o movimento de renovação do Nordeste, entre 1923 e 1930, não devia nada aos modernistas de São Paulo e do Rio, tendo se afirmado “com suas próprias forças”. No prefácio ao livro, Lins do Rego reforçou essa posição, tachando a Semana de “movimento de comédia” e “gritaria dos rapazes do Sul” (Freyre, 1941, p.12, 25-6, 35).
Ruben Navarra não estava sozinho em sua avaliação da relativa desimportância da Semana. Outros críticos que, antes dele, haviam ensaiado formular um roteiro histórico do modernismo divergem da narrativa depois fundada por Lourival Gomes Machado. Luís Martins (1937MARTINS, L. A pintura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Schmidt, 1937., p.25-8), em sua conferência A pintura moderna no Brasil, pronunciada em 1936 e publicada no ano seguinte, defendeu que a pintura moderna começava com Tarsila e sua “descoberta do Brasil”. Mesmo concordando ambos a respeito da centralidade de Tarsila - com quem Luís Martins estava recém-casado -, o argumento dele diverge em dois pontos fundamentais. Primeiramente, Martins (1937, p.13, 47-9) considerava que o modernismo no Brasil, definido por ele como “país de reflexos”, iniciou-se na troca com as vanguardas francesas, sem qualquer raiz ou antecedente em solo nacional. Em segundo lugar, ele não deu importância alguma à Semana, evento que sequer é mencionado nas cinquenta e poucas páginas da palestra impressa. Para o jovem crítico, então com 29 anos, e que contava, portanto, 15 quando a Semana se realizou, 1922 eram águas passadas.
Vale ressaltar que Luís Martins, Lourival Gomes Machado e Ruben Navarra, assim como Robert C. Smith, eram jovens no momento em que lançaram suas teses - todos abaixo dos 30 anos de idade. Era diferente a visão apresentada por críticos da geração anterior, os que testemunharam em primeira mão o surgimento do movimento modernista, como Tristão de Athayde ou Nestor Victor. Para eles, o modernismo não se configurava como ruptura ou corte, mas como a continuidade de debates que vinham se processando desde muito antes. Pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, Tristão de Athayde era então considerado uma das vozes mais identificadas com o modernismo literário, chegando a ser rotulado por João Alphonsus, em seu depoimento para Testamento de uma geração, como “o crítico do movimento” (Cavalheiro, 1944CAVALHEIRO, E. Testamento de uma geração. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944., p.144; Rodrigues, 2012RODRIGUES, L. G. Alceu Amoroso Lima: Cultura, religião e vida literária. São Paulo: Edusp, 2012.). Embora seja mais lembrado hoje por seus embates com certos agentes modernistas, especialmente após sua conversão ao catolicismo em 1928, ele ainda foi aclamado por Alcântara Machado (1929, p.4) como “o crítico do Brasil novo” em plena Revista de Antropofagia.
Foi com o intuito de se reapropriar desse legado que o autor publicou o livro Contribuição à história do modernismo. I volume, o pré-modernismo (1939). À época, Alceu Amoroso Lima era membro da Academia Brasileira de Letras, diretor da Ação Católica Brasileira, reitor da Universidade do Distrito Federal e tinha trânsito privilegiado no gabinete do ministro Capanema, de quem era um dos principais interlocutores. Não era, portanto, por motivo carreirista que fez enfeixar em volume uma série de resenhas e ensaios escritos entre 1919 e 1920, publicados anteriormente em jornal, versando sobre autores como Afrânio Peixoto, Guilherme de Almeida, João do Rio, Lima Barreto, Luiz Edmundo, Menotti del Picchia, Monteiro Lobato, Olavo Bilac, Ronald de Carvalho, entre outros. Os motivos citados pelo próprio para justificar a empreitada foram: “Um pouco de sentimentalismo. Um pouco de vaidade. Um pouco de amor às nossas letras” (Athayde, 1939_______. Contribuição à história do modernismo. I volume, o pré-modernismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939., prefácio ).
Qualquer que fossem suas motivações pessoais, o aparecimento do livro teve repercussão dupla. De cara, firmou Tristão de Athayde como o primeiro crítico de peso a compendiar a história do modernismo brasileiro em livro. O subtítulo, com a indicação “primeiro volume”, anunciava a intenção de dar continuidade ao projeto, resultado que nunca se concretizou, mas que servia como aviso para outros que porventura se propusessem a tarefa. Antes que algum aventureiro lançasse mão dela - e a palestra de Luís Martins estava recém-publicada - Alceu punha na cabeça de Tristão de Athayde a coroa de árbitro do modernismo. Em segundo lugar, o subtítulo firmou o conceito de pré-modernismo, relegando por um golpe de caneta toda uma produção riquíssima ao limbo do que veio antes daquilo que realmente importa. Ao mesmo tempo que incluía o período imediatamente anterior a 1922 na história do modernismo, o livro desenhava uma linha divisória que foi sendo acentuada ao longo dos anos.
A rigor, o termo pré-modernismo fora inaugurado por Tristão de Athayde no ano anterior, em três instalações da sua coluna “Vida Literária”, publicadas em dezembro de 1938 e intituladas respectivamente “O pré-modernismo”, “O modernismo” e “Post-modernismo”. O artigo inaugural é dedicado a examinar o primeiro de três períodos estabelecidos pelo crítico para estruturar a história literária recente: “o marasmo fim-de-século até 1918, a aventura modernista de 1918 a 1930; e a perplexidade atual” (Athayde, 4.12.1938, p.6). Ressalte-se que o argumento situa o início do modernismo literário no Brasil em 1918, o que por si só demonstra a falta de adesão de seu autor ao mito da Semana. No segundo artigo, dedicado a separar as correntes que compuseram o movimento, Athayde deixa clara sua visão de que “não se viu nascer o modernismo como os companheiros de Vasco da Gama viram surgir o monstro marinho ou como Afrodite surgiu das ondas”. “O modernismo não foi qualquer coisa que surgiu integral, monstruoso para uns ou luminoso para outros”, escreveu; ao contrário, foi se desenvolvendo progressivamente pela mudança de gerações e de estado de espírito (Athayde, 11.12.1938, p.6). Na última parte da série, o crítico asseverou: “O modernismo morreu. Ou antes, foi ultrapassado”. Na sua avaliação, o movimento teria se esgotado em 1930, transformado em “um academismo às avessas” pelo excesso de programas e a falta de obras (Athayde, 18.12.1938, p.6).
No mesmo ano em que Tristão de Athayde esquematizou essa divisão tripartida, foi publicado o volume Os de hoje: Figuras do movimento modernista brasileiro (1938), reunindo ensaios do crítico Nestor Victor, falecido em 1932 - a maioria aparecida entre 1926 e 1930, no jornal O Globo. Por ser póstumo, o título não reflete necessariamente uma intenção programática de historiar o modernismo. Todavia, os textos revelam uma visão aguda e atualizada do vanguardismo, expondo conceitos e elencando autores estrangeiros com uma familiaridade pouco comum para os padrões da época. Entre os autores analisados no livro estão nomes corriqueiros dos compêndios de modernismo brasileiro, dentre os quais Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, mas também nomes pertencentes a outras correntes e outros circuitos: Adelino Magalhães, Andrade Muricy, Cecília Meireles, Gilka Machado, Jorge de Lima, o próprio Tristão de Athayde. O olhar de Nestor Victor para o modernismo é ecumênico e não se detém absolutamente sobre a Semana de 1922, que aparece nas páginas de Os de hoje como uma passagem menor na trajetória de Graça Aranha (Victor, 1938, p.26).
Ambos Nestor Victor e Tristão de Athayde enxergavam o movimento modernista como uma calda misturada de obras e artistas, proposições e reações, agrupamentos e relações, que datavam do início do século XX e atingiram um ponto de aglutinação em torno da Primeira Guerra Mundial. Nessa visão, bem mais condizente com a complexidade dos fatos históricos, não havia espaço para o protagonismo de um único gesto fundador; e, mesmo que houvesse, é duvidoso que o episódio escolhido fosse a Semana de 1922. Ambos os críticos também creditavam a modernização cultural a iniciativas e agentes espalhados pelo Brasil e, muito logicamente, atribuíam importância ao Rio de Janeiro, como capital do país. São Paulo, para eles, era um polo de irradiação entre outros, o qual foi capaz de espalhar sua influência mais do que outros por causa de suas relações privilegiadas com a capital. Athayde explicitou a questão geográfica:
Esparso e simultâneo no Rio e em São Paulo, pouco depois em Minas e no Rio Grande do Sul. Foi um movimento principalmente do Centro. Teve como acontecimentos marcantes a “Semana de Arte Moderna”, de S. Paulo, em 1921, [sic] e a conferência de Graça Aranha sobre o “Espírito Moderno”, na Academia, em 1924. Foram suas figuras iniciais - sem que desta enumeração se conclua por qualquer hierarquia, exclusão ou precedência que não entendo aqui discutir - Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado. (Athayde, 11.12.1938_______. Post-modernismo. O Jornal, Rio de Janeiro, 18.12.1938. 1º caderno, p.6., p.6)
O detalhe da data errada, lembrada como 1921, dá uma ideia do relativo esquecimento em que a Semana havia mergulhado. Não que o crítico tivesse qualquer implicância com ela. O artigo exalta o “extraordinário valor simbólico” de ambos os acontecimentos e conclui que o modernismo foi “útil e sadio” (ibidem, p.6). Athayde não queria abater a Semana - até porque já estava praticamente morta, aguardando apenas o tiro de misericórdia que seria disparado por Mário de Andrade em 1942.
De volta para o moderno
Ao final da década de 1930, o consenso era de que a Semana dera em nada, ou que tivera importância apenas relativa. Esse sentimento não deixava de ter relação com a derrota de São Paulo em 1932. Nomes importantes do modernismo paulista haviam se engajado na trincheira constitucionalista - alguns, literalmente, como Guilherme de Almeida; outros nos bastidores, como Mário de Andrade (Weinstein, 2015WEINSTEIN, B. The Color of Modernity: São Paulo and the Making of Race and Nation in Brazil. Durham: Duke University Press, 2015., p.148-9). Com a ascensão de Ademar de Barros ao cargo de interventor, em 1938, e o confisco do jornal O Estado de S. Paulo, em 1940, as pretensões das elites paulistas à autonomia regional foram efetivamente esmagadas pelo governo federal. A exoneração de Mário do Departamento de Cultura, em maio de 1938, acompanhou a queda política de seu protetor Armando de Sales Oliveira, culminando na prisão e no exílio desse. A permanência de Mário no Rio, entre 1938 e 1941, à margem do poder e à beira da depressão, é emblemática da fortuna minguante da Semana (Calil; Penteado, 2015CALIL, C. A.; PENTEADO, F. R. Me esqueci completamente de mim, sou um Departamento de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 2015.; Jardim, 2005JARDIM, E. Mário de Andrade: A morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.).
Esse era o pano de fundo político e intelectual para a entrada em cena de Lourival Gomes Machado. Formados pela USP - outro produto da gestão de Armando de Sales Oliveira - os jovens do grupo Clima detinham uma aversão compreensível à ditadura do Estado Novo, apesar do tom ostensivamente apolítico da revista. Compartilhavam ainda laços de família, conforme Heloisa Pontes (1998PONTES, H. Destinos mistos: Os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-68). São Paulo: Cia. das Letras, 1998., cap.3) os apelidou, com o modernismo de 1922 e também de lealdade à causa regionalista derrotada, como a maioria dos paulistas que contava seus 14 para 15 anos em 1932. Isso explica o ufanismo com que Lourival postulou, em Retrato da arte moderna do Brasil, o “caráter geográfico particularizado [do] movimento de renovação”. Para o diretor da revista Clima, “[s]ó em São Paulo poderia ter nascido uma revolução estética de tal porte”. Citando Mário de Andrade, o texto elenca o provincianismo, o sangue imigrante e o espírito do burguês novo rico como fatores sociológicos que condicionaram “as misteriosas forças de renovação” (Gomes Machado, 1947, p.37-8, 48-50).
Ao mesmo tempo que se reconhece o pioneirismo da narrativa erigida por Lourival Gomes Machado, é importante compreender que ela não surgiu do nada. O autor também bebeu em suas fontes, duas em particular. A primeira é Mário de Andrade, referido sempre com admiração em Retrato da arte moderna do Brasil. O livro foi escrito nos meses que se seguiram à morte do poeta; é natural, portanto, que guardasse certa postura de reverência, reforçada pelos elos que ligaram Mário aos jovens do grupo Clima no final da vida. Contudo, o fantasma do finado crítico ocupa ali um papel que não se resume à simples admiração. O livro opera efetivamente como um desagravo à memória de Mário e um ato de apropriação do seu legado. Ruben Navarra evocara a palestra “O movimento modernista” para autorizar seu próprio desdém pela Semana. Lourival, em resposta, qualificou-a de “admirável trabalho sobre o modernismo” e recriminou o modo como Mário foi “tão jeitosamente citado pelos seus contraditores” (Gomes Machado, 1947, p.37, 90-3). Ao tomar as dores do finado papa do modernismo, Lourival se posicionava como seu herdeiro e sucessor.
A segunda fonte em que Lourival bebeu foram as ideias do sociólogo francês Roger Bastide. No ano anterior à escrita do livro, o jovem intelectual se envolveu num diálogo sobre barroco e surrealismo com o colega mais velho na USP, o que demonstra a influência de um sobre o outro. Pouco após sua chegada ao Brasil em 1938, Bastide se engajou nas discussões sobre arte colonial e, de 1944 a 1945, conforme demonstrou Fernanda Arêas Peixoto (2011PEIXOTO, F. A. O candomblé (barroco) de Roger Bastide. Revista de Antropologia (USP), v.54, n.1, p.379-405, 2011., p.383-5), ele dedicava atenção a explorar as relações entre o barroco e o candomblé. Ao lado de outros pensadores estrangeiros, notadamente Hanna Levy e Robert C. Smith - e juntos a Lúcio Costa e Rodrigo Melo Franco, influentes agentes do Sphan - o sociólogo contribuiu para constituir o paradigma do barroco colonial como expressão mais autêntica da cultura brasileira. No debate com Lourival, em 1944, ele chegou mesmo a propor que o barroco seria uma “antecipação do surrealismo” e aventou o “pequeno paradoxo” de que “a estética ultramoderna permitisse ao Brasil retomar raízes em seu antigo tropicalismo” (Peixoto, 2011, p.384; Gomes Júnior, 1998). Registre-se a coincidência metodológica com o gesto primitivista de Smith: ambos foram buscar num passado mítico as origens de uma identidade brasileira moderna.
Lourival Gomes Machado se formou em meio a essas discussões, absorvendo em primeira mão seu impacto, e essa influência se evidencia na estrutura de Retrato da Arte Moderna do Brasil. As demais seções do livro são dedicadas a traçar paralelos entre a arte colonial e a arte moderna, justificando assim a tese de que o modernismo seria uma retomada das raízes brasileiras, supostamente deturpadas no século XIX pelo academismo de origem francesa (Gomes Machado, 1947, p.39, 51). Em ambos os lados da disputa entre Ruben Navarra e Lourival Gomes Machado, havia concordância com relação à redescoberta do barroco. Em 1942NAVARRA, R. Uma escola de tradição brasileira. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 15.11.1942, 3ª seção, p.1-2., Navarra (1942, p.1-2) escreveu um artigo intitulado “Uma escola de tradição brasileira”, em que destacou como os técnicos do Sphan, ao resgatarem o passado colonial, estavam fundando uma inédita “consciência nacional”. A ocasião foi a publicação do quinto número da Revista do Sphan, e o texto tece um elogio à tradição como base para organizar a cultura artística brasileira, com destaque especial para as pesquisas de Lúcio Costa sobre a arquitetura jesuítica.
Entre 1940 e 1945, formou-se o consenso de que o modernismo, ao contrário de ser uma adaptação das vanguardas europeias, brotava do passado brasileiro profundo e mantinha com ele laços de continuidade. Continuidade e ao mesmo tempo ruptura, num paradoxo ainda hoje pouco questionado. Ao decretar que a Semana teria sido o “corte de navalha” a remover cirurgicamente a cultura de importação e revelar o caráter nacional, Lourival atualizou e radicalizou a tese do modernismo como redescoberta da alma brasileira - mote que moveu Mário de Andrade desde suas primeiras pesquisas sobre arte colonial nos anos 1919 a 1920. Nessa época, ainda sob a influência das ideias de Ricardo Severo, Mário pregava o tradicionalismo e desdenhava do futurismo e das “formas exóticas”, propondo um “movimento nacionalista da arte” (Andrade, 1993, p.83-7, 91-6). Embora tenha renegado posteriormente essa conferência, atravessam sua obra as concepções paradoxais de um modernismo fundado na tradição e de uma identidade brasileira surgida antes da existência da nação.
Há uma sutil diferença de grau, no entanto, entre as visões de Mário e Lourival. O discípulo radicalizou a posição regionalista ao explicitar, com todas as letras, a primazia e excepcionalidade do caso paulista. Mário, famosamente, repreendera Sérgio Milliet por escrever, em 1926, na revista Terra Roxa, que só se podia ser brasileiro sendo paulista (Silva, 2013SILVA, R. R. da. Sergio Milliet: Um projeto modernista de literatura, entre o Brasil e a Europa. In: ANPUH - XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2013., p.9-10). Porém, isso foi antes que as elites do estado se decidissem pelo confronto militar com o poder central. A partir de 1928 e com maior intensidade nos anos seguintes, ele adotou uma retórica de antipatia extrema ao Rio de Janeiro, postura discursiva captada e amplificada por Lourival. Retrato da arte moderna do Brasil deu continuidade à disputa pela supremacia paulista e a elevou a um novo patamar de afirmação explícita da hegemonia cultural.
O sentido político dessa postura, em 1945, era claro. Retrato da arte moderna do Brasil é inequívoco em sua condenação ao Estado Novo. Os integrantes do grupo Clima se posicionavam contra a ditadura, então de saída, e igualmente contra sua oposição comunista que, após anos de clandestinidade e luta, se alinhou com Vargas na campanha do Queremismo. Para os que defendiam a esquerda democrática durante a emaranhada Constituinte de 1946, o caminho do meio era minado. Quando o livro saiu finalmente, em 1947, Lourival teve o cuidado de inserir uma advertência datando sua escrita de dezembro de 1945. O momento político já era outro, e as forças do socialismo democrático buscavam se unir nacionalmente, desta vez na fundação do Partido Socialista Brasileiro (Karepovs, 2017KAREPOVS, D. Pas de politique Mariô!: Mario Pedrosa e a política. São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017., p.95-123).
Nos anos seguintes, surgiram as grandes instituições do cenário artístico de São Paulo - o Masp, a Bienal, o Museu de Arte Moderna. Em 1949, Lourival Gomes Machado passou a dirigir o MAM e, em 1951, foi nomeado diretor-artístico da primeira Bienal. Com a consolidação institucional dessa geração, já distante da vivência da Semana, naturalizou-se a ideia de que 1922 fora uma revolução, e não parte de um processo mais amplo. Mais uma revolução... num país que as ama em nome, mas foge das verdadeiras como o diabo da cruz. Com isso, apagou-se as contribuições dos outros modernismos ocorridos em paralelo ao movimento de São Paulo. Apagou-se também, o que é talvez mais grave, a possibilidade de reconhecer a modernidade daquilo que veio antes de 1922, gerando um ponto cego na historiografia cultural.
É importante reconhecer o quanto tudo isso é nocivo e nos impede de atentar para a complexidade dos fatos. O problema não é a Semana. O que aconteceu ou deixou de acontecer em fevereiro de 1922 está aí para ser estudado, pesquisado, rediscutido e até mesmo comemorado. O problema está no que ocorreu de 1945 para cá, na constituição de um paradigma que transformou a Semana em mito intocável. No Brasil, como se sabe, as pessoas frequentemente elegem o mito e descartam a crítica ponderada como “mimimi”. Vou concluir citando o escritor e político paraense Abguar Bastos, um dos entrevistados para o volume Testamento de uma geração. Seu depoimento consistiu em argumentar lucidamente que o movimento modernista não se limitou a São Paulo e Rio de Janeiro. Na contramão dos que insistiam, e ainda insistem, em ver a Semana como momento de eclosão, ele escreveu: “O modernismo não é um ato teatral. É um processo. Pode tomar variados nomes e assumir variadas formas. Mas é um processo” (Cavalheiro, 1944CAVALHEIRO, E. Testamento de uma geração. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944., p.26). Estamos ainda em processo de aceitar essa verdade tão evidente.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
18 Out 2021 -
Aceito
21 Dez 2021