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Renina Katz e sua arte

CRIAÇÃO / PINTURA E POESIA

Renina Katz e sua arte

Radhá Abramo entrevista Renina Katz

NA VIDA cultural no Brasil há uma área em que as mulheres não estão em desvantagem frente aos homens – nas artes plásticas. Basta acompanhar o noticiário da imprensa para se constatar essa realidade. Todavia, como a atividade dos artistas plásticos – mulheres e homens – normalmente é solitária, cada um em seu ateliê, sua trajetória particular é pouco conhecida do grande público.

Sendo assim, ESTUDOS AVANÇADOS procurou uma destacada artista plástica, Renina Katz, a fim de registrar as particularidades desse métier, quais sejam, a xilogravura, a pintura, a litografia e a gravura em metal, além de sua atuação no magistério. Para tanto, recorremos à colaboração, como entrevistadora, de Radhá Abramo, conceituada crítica de arte que há várias décadas vem acompanhando os trabalhos de Renina, sempre marcados pela qualidade apurada e pela busca de novos caminhos.

Na entrevista, realizada em 7 de agosto, além de fornecer importantes dados a respeito de características singulares de seu trabalho, Renina faz uma síntese sobre a trajetória da gravura no Brasil, destacando a contribuição de muitos daqueles que balizam a história das artes em nosso país. (Marco Antônio Coelho)

Radhá Abramo – Renina, eu a conheço há muitos anos. Acompanho seu trabalho porque você procura renovar e redescobrir um meio de representar a criação sempre de um modo profundo e diferente. Faz isso por meio da técnica, da tecnologia artística, que criou para seu trabalho. Ele é muito especial porque, em primeiro lugar, tem uma maneira de ser particularmente interessante. É como se fosse um vir a ser. É próprio da gravura esse sentimento do ser, do como será, porque na gravura, quando se faz o trabalho, não se sabe o que vai sair.

Imagina-se o que pode resultar e qual técnica deverá ser empregada para fazer esse trabalho com leveza. Mas, o grande mistério da gravura é exatamente esse. É romântico porque tem uma técnica supertrabalhada e enraizada: na cor, no buril, na chapa. Ela tem de mostrar exatamente aquilo que o artista está pensando que vai produzir. Então, é um vir a ser. Essa questão de ser, de uma forma, vamos dizer, imponderável, é a tecnologia, a maneira como se trabalha, que, aos poucos vai qualificando mais, fornecendo alguma segurança para se saber, a priori o que vai se fazer. Mas o objeto produzido, depois de trabalhado, é exatamente aquilo que se conseguiu fazer. É uma relação da artista gravadora com o vir a ser, e com um certo romantismo, que é muito importante. Romantismo no bom sentido. É importante porque ao se ter uma tecnologia extremamente caudalosa, correta, certa, é impossível não existir uma para a realização desse tipo de trabalho. Caso contrário a gravura ficaria amarrada e talvez até fria, como sucede com alguns artistas que acabam presos dentro de uma frigidez. Você não, você faz tudo isso de forma diferente.

Nunca disse isso a você e estou dizendo agora. É preciso ser romântico. Mas não no sentido, vamos dizer, do século XIX, e sim no sentido atual, que se dá o direito de sonhar. O direito de fazer formas diferenciadas, esse direito de voar, de ir para o espaço, é o que você faz com sua gravura.

Renina Katz – Radhá, você tocou em um ponto curioso, o do vir a ser. Em qualquer atividade é assim, mesmo na ciência. Você tem uma hipótese e trabalha sobre ela. De repente, durante o processo, alguns acasos ocorrem e criam novas possibilidades. Com a criação artística não é diferente. Com o gravador, especialmente, há um dado que faz a diferença, pois nos artistas o pensamento é visual. Eles não têm o pensamento verbal como expressão para o seu trabalho. Eles não pensam a cor vermelha pela palavra, pensam-na como uma sensação luminosa. Os gravadores têm de pensar não só na construção do trabalho, na sua organização formal, mas devem saber que aquilo sairá ao contrário. Ao imprimir, o que está na esquerda sairá à direita. Esse é um conhecimento mínimo e básico, que deve estar na cabeça do artista, porque isso é que faz a diferença na gravura. Por isso os pintores, quando queriam saber se um trabalho estava bem equilibrado, o colocavam diante de um espelho, pois a inversão apontava quais poderiam ser os desequilíbrios.

Na gravura, a técnica é fundamental, tal como é na pintura ou na gramática, para o escritor e o poeta. Na gravura tem-se um dado a mais, que é um complicador, visto que em algumas modalidades de gravura não há retorno. Se você erra, precisa jogar fora e fazer de novo; na pintura raspa-se e pode se aproveitar o suporte, refazendo o trabalho. Mas na gravura é quase impossível, é um erro letal. Às vezes, consegue-se incorporar alguns erros, mas quando estes são erros de natureza técnica, que irão prejudicar a clareza da imagem ou até mesmo o projeto artístico, aí não tem jeito, tem de refazer. Para isso, deve-se ter o domínio técnico, criar uma espécie de disciplina, não férrea, pois o gravador não é um soldado. Mas é necessário ter domínio técnico, o qual está baseado na disciplina.

A liberdade de criação e o domínio técnico

Eu costumava dizer aos meus alunos que a disciplina não é necessariamente uma prisão. Ao contrário, ela libera. Você precisa conhecer para ser livre. Quem não conhece, acerta por acaso. Para ser livre, o conhecimento é fundamental. Para se ter a liberdade de criação, é necessário o domínio técnico, que está apoiado, evidentemente, numa disciplina que vai orientar a conquista dos meios.

Gosto da gravura um pouco por causa disso. Ela é um permanente desafio, sempre propõe um aperfeiçoamento nesse desafio. Obriga a essa coisa a que se chama perseguição. Não a da perfeição, mas a do máximo que se pode dar com qualidade. É difícil encontrar uma gravura frívola. A gravura dificilmente é decorativa no mau sentido. Ela não nasceu exatamente para ser um objeto de decoração, nasceu com outros propósitos, entre outros o da divulgação. Enfim, historicamente, sabe-se que na Idade Média ela servia, por meio de suas imagens, para a difusão de doutrinas. Na sua origem há um compromisso com a multiplicação. Isso também agrada-me muito. Não que a multiplicação seja democrática tão somente etc. Ela tem história de ser veículo, de abertura, de aperfeiçoamento das pessoas. Cria uma espécie de educação do olhar também. Enfim, faz com que alguém chegue a todo mundo de uma maneira igual. Democrático ou não, não é o importante. A gravura tem na sua origem, na sua história, esse dado generoso, que também me agrada muito, que é o de evitar a escassez. Existem porém gravuras, digamos decorativas, principalmente as feitas em silk-screen, que têm essa função. Eu, pessoalmente, gosto menos do silk-screen.

O imprevisível na gravura

Radhá – A gravura, vamos chamar, "mais primitiva", é mais saborosa...

Renina – É a gravura mesma, porque ela envolve o ato de gravar, o sulco, o movimento da mão e o conhecimento, que implicam processos químicos. Tudo isso obriga a um tipo de pensamento que é muito particular. Isso não quer dizer que na gravura não se conte com os acasos, como um dado enriquecedor, como em qualquer processo. Eu chamo de acaso. De repente, acontece uma coisa que não é exatamente um acidente, porque não chega a prejudicar a imagem. Mas, por conta do imprevisível, ocorre alguma coisa que é muito boa também quando bem incorporada.

São os mistérios, não só da arte, mas da vida, e se percebe que aquele acaso criou uma oportunidade para se rever o projeto original. A gravura, portanto, tem esse lado. Tem-se o projeto básico na cabeça e passa-se para um esboço, se for o caso. Depois, existe o desenvolvimento, esse cuidado, essa aproximação. É uma relação de intimidade. O uso adequado da técnica para isso é fundamental. E, se não se domina o meio, não se faz nada. Se você tem um pincel e uma tinta ainda pode arriscar, mas na gravura é diferente. Deve-se saber que o riscado à esquerda sai à direita, que tipo de ácido é melhor para isso ou aquilo, que um sulco errado não volta etc.

Enfim, os procedimentos devem fazer parte do cotidiano, do trabalho. Por meio disso conquista-se e inova-se algumas coisas no trabalho, através do tempo. Por que algo é feito assim e não de outra maneira? E se eu fizer assim? Há esse diálogo...

A fase da xilogravura

Radhá – Houve uma mudança natural na imagem que você sempre usou para seu trabalho. Lembro-me daquelas figuras que você fazia com tinta, pincel, e depois quando se aplicou mais ainda na gravura, que, posteriormente, foi deixando de lado. Por que isso aconteceu, por que mudou o meio de trabalho, a pintura com uma linha e a gravura com outra?

Renina – Essa questão é muito interessante e você fez uma pergunta bem curiosa. Já reparou que uma das modalidades de gravura mais adequadas ao expressionismo foi a xilogravura? Ela tem um corte, uma contundência que batia, digamos, com a ideologia do expressionismo. A litografia foi um pouco isso, mas a xilogravura foi mais ainda, principalmente em preto e branco. Havia um grande contraste e uma certa contundência, do preto versus branco porque no começo a xilogravura era em madeira de fio, em tábua. Para poder trabalhar tinha que se cortar os veios da tábua, que dava uns cortes rígidos, contundentes.

Quando chegou no século XVIII, um ilustrador. (até como imagem não muito interessante) chamado Thomas Bewick, cortou a árvore de topo, isto é, em fatias. Com isso ele facilitou – ou seja, não havendo nenhuma fibra para ser cortada (porque todas elas estavam de pé) –, mudou o instrumental. Além das facas e das goivas, que são os instrumentos de corte, começou-se a trabalhar com o buril, que é um instrumento mais delicado. As sombras e as luzes poderiam ser trabalhadas de uma maneira mais delicada. Então, a escolha das técnicas depende muito do projeto artístico.

Radhá – Cabe aqui lembramos Käthe Kollwitz. Ela tinha de fazer o trabalho dela daquela forma. Não poderia ser de outra maneira.

Renina – Era uma gravadora fantástica na xilo, no metal e na litografia também. Essa escolha da técnica tem muito a ver com isso, com o projeto artístico e claro com o estético.

Radhá – Essa questão apresenta o mesmo ponto que eu havia começado a abordar – esse vir a ser – mas que tem um embasamento romântico. Romântico no bom sentido.

Renina – O artista consegue fazer a realização concreta da sua idealização. Nesse sentido é que você diz que ele é romântico. Concordo. Quando se faz um projeto em que se usa tinta nanquim com aguadas, isto é apenas um indicativo. Ao se trabalhar numa gravura em metal, sabe-se exatamente como se vai tratar as zonas em que houve o trabalho com aguadas e com a caneta. Mas, se ao fazer, por exemplo, um projeto para litografia, não se usa esse procedimento nem para o projeto. Já se sabe que ali é preciso outro tipo de recurso. Isso é o que se chama de pensamento visual. É saber fazer um repertório em função do seu projeto, porque essa coisa de que o artista espera o "santo baixar" e que ele vai ficar num estado de transe, de inspiração que indica as soluções...Prefiro ficar com Goethe, que dizia que noventa por cento é transpiração mesmo, e o resto é inspiração, para se chegar a um bom termo. Técnica a serviço do imaginário.

As gravuras de uma jovem militante

Radhá – De qualquer maneira, você deve convir que há situações que nos obrigam a ter uma relação um pouco diferenciada, em função do estado emocional em que o artista se encontra. Não é pelo fato de ser um artista conhecido, muito convicto de seu trabalho. Por exemplo, toda aquela sua fase no começo, nos anos de 1940 e 1950, muito ligada à questão social, você não podia fazer de outro jeito. Há também uma correlação da sensibilidade com o material.

Renina – Claro. Você está se referindo àquela fase em que eu fazia xilo-gravuras. Eu estava na minha juventude militante e aquilo foi de extraordinária importância para mim. É muito interessante, porque hoje, ao analisar aquelas gravuras, vejo que elas não são expressionistas. Certamente porque não têm a contundência típica do expressionismo. Perguntei-me, então, têm o quê? Uma amiga disse-me uma coisa que eu, na hora, fiquei meio espantada. Ela, vendo as gravuras, disse: "engraçado, Renina, você trata todas essas figuras com enorme ternura. Repare nas suas gravuras das mulheres da favela, elas são elegantes, dengosas. Você tem uma relação carinhosa com elas", como que uma atenuante da pobreza.

Fiquei a pensar: vai ver que é por isso que as gravuras não serviam, não é? Não serviam para o que eu queria, elas eram incompreendidas. As pessoas que eram militantes gostavam das imagens sofridas, escuras, achavam que aquilo ainda não estava no ponto. Talvez esse fosse um dado que nunca houvesse me ocorrido.

Então, foi isso, depende de sua relação também com tudo. Depende de como se está no mundo, quer dizer, se se está num mundo melhor, pior, não só do ponto de vista emocional, mas até de juízo de valores. As pessoas não têm um código para seguir, afirmando: "agora vou fazer isso". As pessoas mudam, o mundo muda, sua visão de mundo muda, mas a única coisa que permanece é algo que tenho escrito na minha cabeceira. É uma frase de Fernando Pessoa, que diz: "a arte é o aperfeiçoamento sensível da vida, do exterior". A arte está a serviço da melhoria de tudo, do homem por dentro e por fora também. Esse aperfeiçoamento da sensibilidade é um projeto bem aberto. Não precisa seguir um código. Nos anos de 1950 o mundo era uma coisa, no século XXI é outra. Todos sofremos com o impacto dos acontecimentos. Cada pessoa incorpora e devolve de outra forma.

Radhá – Essa mudança se dá nos anos de 1950?

Renina – Lá pelos anos de 1950, 1960, eu já tinha esgotado esse meu assunto porque percebi que ele poderia ficar viciado, formalista demais. Estava ficando extremamente burilado. Senti que aquilo era um esgarçamento da emoção posta na gravura, e que eu precisava tentar outras coisas.

Radhá – Lembro também que você voltou a pintar, a usar cor outra vez.

Renina – Achei que devia deixar um pouco a gravura em preto e branco e a xilogravura, e deveria, especialmente, tentar outras técnicas que fariam com que eu fosse criando também outros projetos artísticos. Foi difícil essa passagem. No começo achei que eu não iria encontrar o meu prumo. Foram um ou dois anos em que eu fazia somente exercícios.

Uma crítica de Arnaldo Pedroso Horta

Radhá – Mas houve um amigo que muito a ajudou, que disse coisas e tal, e lhe deu uma certa opinião...

Renina – Quem?

Radhá – Arnaldo Pedroso Horta, com um artigo que escreveu sobre você.

Renina – Sem dúvida – o Arnaldo Pedroso Horta. Ele foi à primeira exposição que fiz depois dos anos de 1950. Era uma exposição de pintura numa galeria que havia perto do Teatro Municipal. Ele começou o artigo desaprovando minhas gravuras. Foi muito engraçado, porque ele fez uma análise que me surpreendeu. Ele era um crítico aguçado, mas muito reservado. Eu não sabia que ele olhava com tanta atenção para o meu trabalho. Mas decodificou tudo.

Foi como um soco no estômago. Pensei que ele tinha acabado comigo. Quando li o artigo inteiro fiquei tão emocionada que lhe escrevi um bilhete. Lembro que foi num balcão de um bar que havia na rua Sete de Abril. Deixei o bilhete na portaria do "Estadão". Fiquei realmente espantada porque não podia entender como ele havia conseguido captar o que eu pretendia, porque era a minha primeira exposição em pintura. Ele não só falou do domínio da técnica, mas do universo que eu havia conseguido, como se fosse um renascimento. Afirmava que eu havia saído de alguma coisa que ele considerava como uma cadeia aprisionadora, para algo mais livre.

Isso foi realmente muito estimulante. Até hoje guardo essa crítica com carinho e eu não sabia que tinha um amigo assim. Pois não era crítica de um crítico, mas de um amigo. Esse é o papel do crítico, que deve saber que, num determinado momento, seu papel pode ser decisivo. Compromete-se, coisa que hoje se encontra pouco, pois as pessoas são mais evasivas. Naquela época o compromisso era grande, o crítico comprometia-se, tanto quanto o artista tinha compromisso com o que apresentava. Espero que isso volte.

A imersão na litografia

Radhá – Depois dessa fase, que foi muito boa, houve um revival artístico para você. Fez várias exposições e em seguida voltou para a gravura.

Renina – Voltei para a gravura numa outra dimensão. Como já havia trabalhado intensamente com a pintura, atravessei umas fases que Mário Schenberg chamou de realismo mágico. Em 1970 houve uma exposição de pintura, que preparei com cuidado e que foi elogiada pela crítica. Não foi uma exposição grande, tinha apenas vinte e cinco trabalhos. Deu-me uma saudade da gravura, mas eu não queria voltar à xilogravura porque julgava ter encerrado um período. Se bem que uma série de coisas, digamos assim, da escritura da xilogravura, ficaram como repertório.

Resolvi então fazer litografia, porque das técnicas é a mais pictórica. Eu já ensinava litografia no Museu de Arte, onde era professora de gravura, substituindo Poty. Mas era tudo em preto e branco, porque não tínhamos muitos recursos. Eu dava aulas, fazia poucas gravuras e desenvolvia meu trabalho.

Foi quando apareceu uma pessoa visionária que resolveu montar uma gráfica para fazer trabalhos artísticos em litografia, Élsio Mota. Durante a guerra ele foi piloto de provas, tendo sido o único militar que conheço a pedir demissão com uma carta sobre a mesa de um brigadeiro, dizendo: "Não volto mais aqui". Demitiu-se, com todas as desvantagens, e fundou essa gráfica.

Ele descobriu que havia um impressor, Octavio Pereira, que trabalhara nos Estados Unidos por muito tempo na "Gemini", e que conhecia bem litografia. Élsio convidou Otávio para ser uma espécie de masterprint da gráfica, montada precariamente numa garagem. Muitos artistas o apoiaram, entre as quais Maria Bonomi e Fayga Ostrower. No começo era uma coisa meio precária, mas o negócio foi indo e os artistas foram se interessando. Ela transformou-se, talvez, na única gráfica comercial, porque também vendia o trabalho dos artistas.

Todavia, o mais importante era a qualidade artística excepcional do trabalho da gráfica, porque ali nunca foram feitas coisas duvidosas. Élsio dava aos artistas todas as oportunidades, dentro do possível e dos recursos. Dava tudo, perguntando a cada um: "quer experimentar, esteja à vontade". A nós, insistia: "pode fazer o que desejar". Ele até começou a importar pedras da Baviera, da região de onde se originou a litografia.

Assim, podíamos fazer gravuras com muitas cores, com até oito impressões. Ele nunca colocou qualquer restrição ao trabalho dos artistas, pois sabia que não poderia condicionar nossa atividade.

Hoje, quem comanda a gráfica é a filha dele, Patrícia que mantém o mesmo espírito. Ela, inclusive, também é pioneira na "digigrafia", nome dado por ela aos trabalhos feitos através da informática, do computador. Já fiz algumas coisas nesse terreno, mas ainda não me adaptei bem aos resultados. Faço algumas restrições porque também não domino completamente essa técnica. Enfim, não sei até aonde podem ir os recursos e até aonde a própria informática favorece.

Nesse período, que foi de vinte e tantos anos, a litografia foi a técnica a que mais me dediquei. A litografia tem uma coisa aproximativa com um dos processos de que gosto muito: a aquarela e a pintura feita sobre papel. Gosto muito de papel, porque julgo sesr uma matéria bonita, tem uma coisa assim antiga, ancestral, que me fascina, e nunca é inerte. Na aquarela, o que me fascina é a questão da luz e da transparência, que acho uma maravilha. Isso sempre me interessou, tanto na gravura como na xilogravura. Eu conseguia fazer algumas coisas nesse sentido, da passagem da sombra para a luz, que já era uma intenção forte no meu trabalho, e a aquarela é perfeita para isso. A litografia conseguia aproximar-me um pouco disso tudo, e eu conseguia trabalhar essas questões da transparência, da luz, da passagem do escuro para o claro. Podem até dizer que essa coisa do claro e do escuro deixa-me um pouco paleolítica. Dizem que isso é um problema do Renascimento, mas não é não.

Radhá – Mas viva o Renascimento!

Renina – Luz e sombra existem até hoje. Não sei porque deveríamos eliminar essa coisa maravilhosa que é a transparência, a luz e a sombra. Porque se forem consideradas anacrônicas é um outro problema, mas dá-me muito prazer trabalhar com isso. A minha litografia tem essa marca, não é uma litografia pesada, semelhante ao cartaz, para o qual a litografia sempre foi muito adequada. Trabalhei com outro sentido e não fui só eu. Fayga também fez isso. A litografia não tinha aquele sentido da rapidez, da divulgação. Ela é um procedimento que pode ser rápido, como Daumier usou, a própria Käthe Kollwitz também, para ser impresso rapidamente, para ser distribuído, ir para o jornal, porque ela tem essa qualidade. Mas peguei a litografia num outro viés. Os resultados não foram maus, pelo menos para aquilo que eu pensava.

O aprendizado na Escola de Belas Artes

Depois de trabalhar vinte e tantos anos com litografia, pensei que deveria retomar um pouco à gravura em metal, que aprendi quando era estudante. Fiz a Escola de Belas Artes graças a meu pai. Ele achava que eu deveria ter um estudo sistematizado, pois do contrário não iria dar certo. Agradeço a ele até hoje e, de fato, esse aprendizado foi muito importante. Porque não era só a questão da artesania que eu deveria aprender. Não, tive que estudar Geometria Descritiva, Anatomia Artística, Arquitetura Analítica, História da Arte. Tudo isso, evidentemente, abre horizontes, e foi muito importante. Pode não ser para outras pessoas, mas para mim foi fundamental.

Na escola tive algumas aproximações, entre as quais, a do meu amigo Poty, que era meu contemporâneo, um maravilhoso gravador em metal. Ele disse – quando assistente de Carlos Osvald – que eu deveria fazer um pouco de gravura em metal. Mas argumentou que não sabia se eu iria agüentar, porque não era coisa para mulher. Ele era provocador e eu disse que iria tentar.

Havia um pequeno ateliê do jornal O Globo, no centro da cidade, perto da avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. O jornal concordou em colocar ali uma prensa para Carlos Osvald e Poty. Nesse ateliê trabalhavam também três ou quatro alunos, entre eles duas moças. A prensa era pesada e comecei a fazer nela as minhas águas fortes e a imprimir. Aprender a imprimir era importante. No momento de imprimir, a prensa tinha que ser rodada por duas pessoas. Depois de uma semana, perguntei ao Poty se não tinha uma prensa menor. Ele respondeu que a prensa era elétrica, mas não havia dado essa informação porque queria saber se eu teria peito para continuar. Então mostrou onde se ligava a prensa. Quase bati nele, mas foi um teste, uma brincadeirinha, que ele fez com a gente. Nesse ateliê aprendi muitas coisas. Carlos Osvald era um professor dedicado, tinha paixão pela gravura.

Nos anos de 1980 retomei as atividades nessa área. Minha última exposição foi em 2002, só de gravura em metal. Foi importante para mim. Mas não sabia quando terminaria os preparativos. Eram vinte e tantas peças, somente água forte. Queria ver o que conseguiria fazer e resolvi usar água e tinta, outra modalidade e que dá uma certa riqueza gráfica.

Deu uma maluquice na minha cabeça, decidi fazer a coisa mais sintética, para ver o que obteria com recursos menores. Se eu usasse três ou quatro modalidades a gravura ficaria mais rica. Era um desafio que poderia até ser um pouco infantil, porém, achei que era uma boa coisa de se fazer. Acabei fazendo e deu certo porque foi um trabalho muito grande para alcançar esse objetivo, quase obsessivo.

Havia ainda a questão da técnica e perguntava-me se eu conseguiria mesmo. Isto porque no Brasil os artistas sofrem com a precariedade de recursos. O papel é importado, tudo a gente inventa. O Brasil sobrevive disso. Se não temos uma coisa inventa-se outra.

Os impressores

Os impressores são exemplos disso. Não há um único que seja formado em escola técnica. Quem forma o impressor é o artista. Nisso Élsio teve um papel fundamental. Ele pegava meninos de dezessete e dezoito anos, que hoje têm quarenta e tantos, alguns são até avós. Aprenderam na gráfica a fazer impressões, e são maravilhosos. Quem não conseguia fazer, caía fora. Um impressor facilmente pode destruir uma gravura. A gravura mal impressa é imprestável. Quer dizer, não se vê o que está na matriz se ela não for bem impressa. Então, o papel do impressor é fundamental. É uma coisa de equipe, ele tem de gostar e entender. Curiosamente, eles percebem as diferenças. Existe uma brincadeira comum nesta gráfica. O impressor diz que vai pegar a sua gravura para imprimir com as cores que imprimiu para fulano de tal. Digo que vai ficar uma coisa esquisita, mas concordo. Eles sabem qual é o repertório e o rigor de cada artista.

Então, às vezes, digo que o registro não está bom. Ele diz que só eu e ele estamos vendo, eu rebato, e digo que para mim já é o bastante. Se você está vendo e eu também (falo para impressor: "então pronto, vamos corrigir"). Eles (os impressores) fazem de propósito para testar o rigor. Sabem que sou rigorosa. O rigor não é inibidor, é uma forma de conduzir o aperfeiçoamento. O trabalho de equipe na gráfica tem um tipo de convivência que me atrai. O trabalho de criação é solitário. Há um momento em que esse tipo de convivência é salutar, porque não só você aprende, como ensina. Não é só a técnica que se ensina. Esses meninos, que hoje são homens, têm um olho fantástico. Eles só têm o curso primário e acabou. Mas têm uma certa sensibilidade que é aprimorada.

Radhá – Sem contar outros dados, todo trabalho técnico que é feito produz na sociedade a possibilidade de ter a obra, de vê-la com mais facilidade. É muito importante o que vocês, gravadores brasileiros, fizeram nas décadas de 1940 a 1950. Deram ao povo a possibilidade de ver e apreciar e até possuir uma obra de arte como essa.

A gravura no Brasil

Renina – A gravura no Brasil é recente. As de Rugendas não são gravuras, são desenhos executados por litógrafos na Europa, sendo uma documentação narrativa de hábitos e jeitos brasileiros. A verdadeira gravura brasileira nasceu em 1930. Raimundo Cela (1.890-1.954) no Ceará, fazia gravuras ótimas, interessantes, com grande rigor técnico, bem acabadas, ligadas ao seu meio, às jangadas, às rendeiras, aos vaqueiros. Depois aparecem Lívio Abramo, que tem uma importância capital; Osvaldo Goeldi, com suas notáveis xilogravuras; e algumas gravuras em ponta seca do Guignard, mas poucas.

A gravura retoma sua força em meados dos anos de 1940, quando Carlos Scliar volta da guerra, vai para o Rio Grande do Sul, e resolve fazer uma coisa importantíssima: fundar o Clube da Gravura, em Bagé. Ele havia convivido com os mexicanos, com o Ateliê de Artes Gráficas, dirigido por Leopold Mendez, que tinha a intenção de usar a gravura com esse sentido que você falou, de abertura, de divulgação. Scliar era amigo de Mendez e tomou aquela experiência como um paradigma. Podia ser até regionalismo, mas para salvar algumas visões do Brasil, daquela região, onde ele nasceu, esse clube foi notável. Essa tendência contaminou outros artistas e depois fizemos um pequeno núcleo em São Paulo, com Mário Gruber, Luís Ventura e Otávio Araújo. Todavia, não teve a continuidade que havia tido no Rio Grande do Sul.

Essa atividade do Scliar foi básica porque trouxe a idéia de um ateliê. Reuniu um conjunto de artistas em torno de uma idéia, que era fazer registros. A série do Rio Grande do Sul, dos gaúchos, é muito bonita, linda, de uma qualidade incrível. Isso se deve ao Scliar. Ele gravava em linóleo e fazia serigrafias, porque achava que esses procedimentos eram rápidos. Era o seu jeito.

A geração do Rio e Lescoschek

Posteriormente, o Museu de Arte Moderna também criou um ateliê que formou vários artistas, da geração dos anos de 1950, no Rio de Janeiro. Havia também o ateliê de Axel Lescoschek. Ele era uma pessoa excepcional, possuía uma técnica incrível, principalmente em xilogravura. Também era um ilustrador maravilhoso e um professor magnífico. Fizemos tudo para mantê-lo no Brasil, mas ele tinha uma lealdade firme para com o seu povo. Afirmava que a Áustria iria precisar dos austríacos saídos do país em virtude do nazismo, para a sua reconstrução. Voltou para lá e foi maltratado, porque era um homem de esquerda. Os austríacos, definitivamente, não são simpáticos às pessoas de esquerda. No fim da vida dele, nós, aqui, fizemos uma espécie de mutirão para ele, porque estava doente e completamente sem recursos. A volta dele, patriótica, para reconstruir a Áustria de nada valeu.

Lescoschek nos deu uma lição inesquecível. Ele tinha um enorme respeito pelos alunos, inclusive pelos menos dotados. Nunca os desanimava. Afirmava que se o aluno estava ali era porque estava procurando alguma coisa. Isso me influenciou em minha carreira no magistério, porque o professor não tem o direito de desmantelar o sonho das pessoas. Ele dizia que o papel do professor é dar a cada aluno todos os meios possíveis, inclusive os meios críticos, para que possa se realizar. Se não conseguir, cabe a cada aluno decidir. São poucos os professores que têm esse tipo de cuidado. Por isso foi importante essa minha convivência com Lescoscheck.

Radhá – Essa sua linha de análise da gravura no Brasil está nos convidando a fazer uma exposição com esse objetivo. Poderíamos pensar nisso, porque sua fala vai ao fundo das questões. Você apresenta uma análise global e profunda sobre a gravura, a sua paixão.

Anos dedicados às Artes

Exposições individuais, entre outras:

1953 – Museu de Arte de São Paulo

1953 – Museu de Arte Moderna de São Paulo

1963 – Petite Galerie – RJ

1973 – Brazilian American Institute – Washington (EUA)

1975 – Galeria Arvil – Cidade do México

1979 – Fundação Gulbenkian – Lisboa

1979 – Galeria Panphill – Roma

1981 – Museu de Arte de São Paulo

1983 – Haia – Holanda

1987 – Documenta – Curitiba

1989 – Museu Nacional de Belas Artes – Rio-São Paulo

1989 – Museu de Gravura – Curitiba

1992 – Fundação Moreira Salles – Poços de Caldas

1994 – Gravuras em metal – Pinacoteca de São Paulo

1996 – Pinacoteca de São Paulo

1997 – Fundação Maria Vieira da Silva – Lisboa

2001 – Museu de Arte de Santa Catarina

Exposições coletivas, entre outras:

III, V, VI, e VII Bienais de São Paulo

1954 – Kunstgeverbenmuseum – Zurich

1954 – Mostra de Arte Brasileira – Varsóvia

1956 – Xylon II Mostra Internacional de xilogravura – Zurich

1956 – XXVII Bienal de Veneza

1974 – Arte Gráfica de Hoy – Madri

1974 – Galeria Ziegler – Genebra

1975 – Arte Gráfica Brasileira, nos museus Galiera, Paris; Albertina, Viena; Gulbenkian, Lisboa

1980 – Artistas Brasileiros – Belgrado

1981 – A gravura da mulher brasileira – Nova York

1983 – Brazilian Artists – Barbican Center – Londres

1984 – Tradição e Rutura – Bienal de São Paulo

1985 – Expressionismo e Herança – Bienal de São Paulo

1986 – Bienal de Veneza

1986 – Sala Especial na Bienal de Havana

1987 – Bienal de Lubliana – Iuguslávia

1996 – Bienal de Aquarela – México

1998 – Litografia – XI Bienal Ibero Americano de Arte – México

1999 – Brasil – Frankfurt / 1999 – Alemanha

2003 – Arte e Sociedade – Itaú Cultural – São Paulo

Magistério

Mestre e doutora pela USP, Renina Katz lecionou durante 29 anos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Professora na Faculdade de Arquitetura

Renina – É paixão mesmo, a gravura é apaixonável e apaixonante. Fui professora na FAU por muitos anos e a ECA nem existia ainda. Os arquitetos manifestaram uma certa resistência a mim, porque não tive formação em arquitetura. Eu dizia que eles eram arrogantes, porque eu fazia parte de uma escola fundada por D. João VI, que foi a primeira, e a origem da universidade no Brasil: a Escola de Belas Artes. O que é isso, eu dizia, tenham cuidado comigo, porque tenho ancestralidade.

Fui assistente de Abelardo de Souza, arquiteto, uma pessoa muito aberta. Perguntei-lhe o que deveria fazer como artista na Faculdade de Arquitetura. Ele disse que não sabia. "Você tem seis meses; você vai ser um gladiador numa arena de trinta leões. Defenda-se. Se não for devorada, será nomeada." Eu retruquei – muito bem, vou aprontar-me para isso. Minha primeira providência foi meio cruel. Escolhi um projeto, um programa para eles desenvolverem. Tinha certeza de que não sabiam. Então, iriam depender de mim para desenvolver o projeto. Foi uma molecagem e um artifício de sobrevivência. Depois ficamos amigos e tornei-me parte do corpo docente.

Alguns anos depois, na FAU, estavam outros professores, dois ou três, que não tinham formação de arquitetos, mas a USP passou a exigir o diploma universitário. Eu era a única que tinha, porque a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro era universidade e eu possuía, também, diploma da Faculdade Nacional de Filosofia, em razão da minha formação didática. Portanto, possuía dois diplomas, era inquestionável. Resultado, fiquei e os outros tiveram de sair. Pensei então em inocular naqueles rapazes algumas idéias interessantes. Aconteceu que na FAU havia ótimos alunos entre eles: Sérgio Ferro, Flávio Império, Odileia Setti. Um bando de jovens artistas.

Radhá – Saíram artistas em vez de arquitetos, por sua causa.

Renina – Eles tiveram uma boa formação porque a Faculdade de Arquitetura sempre foi muito aberta. O pessoal mais jovem também. Cito alguns: Hélio Vinci, Rubens Matuck, Ferez Khouri, Odiléia Setti. Havia algumas disciplinas optativas, nas quais se podia fazer esses exercícios. Minha matéria era do primeiro ano, quando começamos a ensinar os meios e os métodos de representação. Tratava-se da formação da linguagem gráfica do arquiteto, mas havia uma disciplina optativa, somente quem quisesse freqüentava, não era obrigatória. Onde aprenderam a fazer xilografia, a montar coisas na tipografia. Havia um professor que era muito entusiasmado, Flávio Motta. É um historiador de arte, um pedagogo preocupado com o ensino da arte. Ele mesmo é um artista maravilhoso e dava bastante força ao que eu fazia. Foi ótimo porque isso contaminou vários alunos. Hoje eles são professores na FAU e continuam um pouco com esse procedimento, dando uma certa continuidade. No Brasil as coisas interrompem-se. Quando se consegue estabelecer uma corrente, realimentada a cada ano, já é um sucesso.

Penso que cumpri também esse papel de professora, repetindo tudo aquilo que aprendi, não só com Lescoschek, mas com alguns professores excelentes, como Quirino Campofiorito e Henrique Cavaleiro. Eles tinham uma formação acadêmica próxima do impressionismo. Mas havia toda uma discussão sobre o que era arte, pintura, desenho. Aprendi muito com eles, pois houve essa transmissão do conhecimento. O que é uma coisa difícil em matéria de arte, porque pode-se passar a parte técnica, emprestar-se um compêndio no qual estejam todas as receitas, mas esta não é a questão decisiva. O essencial é transmitir o que fazer com os meios, com o instrumental, ensinando o que resulta daí. Aliada à minha produção artística, juntei essa missão de ser uma divulgadora através do exercício do magistério.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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